Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
329/23.0YLPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RP20240318329/23.0YLPRT.P1
Data do Acordão: 03/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A nulidade da sentença, prevista no art. 615º/1/c) CPC, contempla as situações de contradição real entre os fundamentos e a decisão, vicio de estrutura, que não se confunde com a contradição entre factos provados e não provados, a resolver em sede de reapreciação da decisão de facto.
II - A sentença não padece de nulidade, nos termos do art. 615º/1 d) CPC, se não analisou um certo segmento jurídico que a parte apresentou, desde que fundadamente tenha analisado as questões colocadas e aplicado o direito.
III - Guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procedimento Especial de Despejo-RMF-329/23.0YLPRT.P1  

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SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):

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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto ( 5ª secção judicial – 3ª Secção Cível )

I. Relatório

A..., S.A, com sede na Avenida ..., ... Lisboa intentou o presente procedimento especial de despejo contra AA tendo por objeto o prédio sito na rua ..., ..., pedindo que seja decretado o despejo e a consequente restituição do locado à requerente.

Alegou para o efeito que atualmente é o proprietário de uma fração autónoma relativamente à qual foi celebrado com o requerido um contrato de arrendamento. Sucede que o requerido deixou de pagar as rendas a que se encontrava obrigado de dezembro de 2021 e janeiro a julho de 2022 e pese embora expressamente interpelado não pôs termo à mora, pelo que o contrato se encontra resolvido.


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Citado o requerido contestou alegando que nunca lhe foi comunicado que a requerente havia adquirido a fração e que quando tomou conhecimento da aquisição solicitou a indicação do IBAN para onde devia ser paga a renda, o qual lhe foi comunicado pela atual proprietária. Pagou todas as rendas. Sucede que em outubro de 2022 recebeu um telefonema por parte da procuradora da requerente que lhe deu conta que o contrato já se encontrava em incumprimento e que devia cessar o pagamento da renda de sua responsabilidade, o que fez a partir de novembro de 2022.

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A requerente respondeu à matéria de exceção alegando em síntese que, de facto, existiram pagamentos no decurso do ano 2022, em março e desde julho a outubro de 2022. Todavia, aquando do envio da carta de resolução (04 de julho de 2022) o requerido encontrava-se há mais de três meses em mora no pagamento das demais rendas, devendo assim ser decretado o despejo.

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Realizou-se audiência de discussão e julgamento com observância formalismo legal.

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Após as alegações as partes solicitaram a suspensão da instância por estarem em vias de alcançar um acordo, o que não se mostrou possível.

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Proferiu-se sentença com a decisão que se transcreve:

“Em face do exposto, julgo o presente procedimento especial de despejo procedente e em consequência decreto o despejo imediato da fração autónoma identificada em 1 e condeno o requerido AA a entregá-la à requerente livre de pessoas e bens.

Custas a cargo do requerido.

Valor da ação: fixo à ação o valor de € 12.028,20 (doze mil e vinte e oito euros e vinte cêntimos)”.


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O réu veio interpor recurso da sentença.

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Nas alegações que apresentou o apelante formulou as seguintes conclusões:

1.ª Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou o procedimento especial de despejo procedente e em consequência decretou o despejo imediato da fração autónoma identificada nos autos e condenou o Requerido a entregá-la à Requerente livre de pessoas e bens.

2.ª O Requerido/Recorrente não se pode conformar com o decidido pelo Tribunal de primeira instância, que entende ser desfasado da realidade e contrário à prova produzida, desde logo no que se refere ao comportamento da Requerente na origem da suspensão dos pagamentos sempre foram efetuados pontualmente durante cerca de 7 anos.

3.ª Tal como se demonstrará, impõe-se dar como “provada” toda a matéria que consta dos factos considerados “não provados” pelo Tribunal a quo nos quatro pontos supra transcritos, em face do que a ação haverá de improceder.

4.ª Impõem a alteração da referida matéria do facto a correta ponderação das missivas juntas ao Requerimento Inicial, dos 5 documentos da Oposição, dos 2 documentos juntos em audiência final, do depoimento da testemunha BB e das declarações de parte do Requerido em audiência de julgamento e do facto provado sob o ponto 7 da fundamentação.

5.ª Como logo resulta do compulso dos articulados, não foi o Requerido que, sem quê nem para quê, deixou de pagar a renda, o que sempre fez entre 2015 e o final de 2021, mediante débito direto na sua conta bancária ou por Multibanco, nos termos do contrato.

6.ª O que sucedeu foi que, em fevereiro de 2022, o Requerido não conseguiu efetuar o pagamento da renda, uma vez que, ao introduzir a entidade e a referência habitualmente utilizada para o efeito, o sistema Multibanco reportava que os dados eram inválidos.

7.ª Por tal motivo, o Requerido entrou em contacto telefónico com o Fundo senhorio a fim de esclarecer o motivo de tal ocorrência e, só nessa ocasião e por causa de tal contacto, o Requerido informado de que o arrendado teria sido vendido a outra sociedade meses antes.

8.ª Até esse momento, o Requerido desconhecia qualquer transmissão da posição de

locador, que não lhe foi comunicada, como havia de ter sido, incluindo para poder exercer o seu direito contratual de opção de compra (cf. Cláusula 9 do contrato), bem como o seu direito legal preferência (art. 1091.º do CC).

9.ª No decurso do referido contacto telefónico, o Requerido foi informado que deveria aguardar indicação de dados sobre os novos meios de pagamento, o que só viria a ocorrer por alturas de junho/julho de 2022, com a indicação do IBAN para o qual deveria passar a efetuar o pagamento da renda, alegadamente titulado pela sociedade B..., procuradora e representante da Requerente.

10.ª De acordo com as indicações assim recebida, o Requerido pagou rendas nos meses de julho a outubro de 2022, até que, no mês de novembro de 2022, foi novamente contactado telefonicamente da parte da referida B..., em nome da Requerente, informando-o de que teria de deixar o imóvel até ao final do ano, uma vez que o contrato alegada e surpreendentemente já teria “terminado”.

11.ª Neste sentido, veja-se o teor das declarações prestadas pelo Requerido na audiência final, registadas no ficheiro áudio acima identificado, aos minutos 00:02:16 a 00:02:45, 00:02:55 a 00:03:00, 00:03:16 a 00:03:48, 00:04:35 a 00:05:05, 00:05:09 a 00:05:15 e 00:16:03 a

00:16:43, supra transcritas e que aqui se dão por reproduzidas.

12.ª No mesmo sentido, atente-se ainda no depoimento prestado pela testemunha BB na audiência final, registado no identificado ficheiro áudio identificado, aos minutos 00:02:30 a 00:03:11 e 00:04:50 a 00:00:19, passagens estas supra transcritas e que aqui se dão por reproduzidas.

13.ª Do que vai dito resulta, pois, que até ao momento em que o seu anterior senhorio procedeu à venda do arrendado, sem nada comunicar ao Requerido, ao arrepio do que se lhe impunha, este mantinha o pagamento das rendas em dia, como sempre manteve ao longo de mais de 7 anos de contrato.

14.ª Acresce que o Requerido nunca recebeu as cartas da referida B... datadas de 04/07/2022 e de 18/08/2022, referidas no ponto 8 dos factos provados, como resulta das

mesmas, o que o impediu de esclarecer e regularizar qualquer situação junto da remetente ou do senhorio.

15.ª Por outro lado, decorre do facto provado sob o ponto 7 que o Requerido efetuou pagamentos de renda 06/01/2022, 31/03/2021, 06/07/2022, 04/08/2022, 07/09/2022, 05/10/2022, pelo que não se pode aceitar a contraditória conclusão de que se impõe o despejo pela falta de pagamento das rendas de fevereiro, abril, maio e junho de 2022, o que não se pode aceitar, considerando até que as rendas eram pagas no mês anterior àquele a que diziam respeito.

16.ª Ora, o art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC prescreve que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível – e é esse, manifestamente, o caso vertente.

17.ª Com efeito, a sentença apresenta uma fatal contradição entre factos considerados provados e factos considerados não provados, que a inquina de nulidade, que aqui expressamente se argui para todos os efeitos legais.

18.ª Soma-se que, em matéria de direito probatório vigora o princípio da livre apreciação da prova, devendo seguir as “regras da experiência comum”, obedecendo a critérios explicáveis e sindicáveis pelas partes e, se for o caso, pelo tribunal superior (art. 607.º, n.ºs 4 e 5, do CPC).

19.ª Vale isto por dizer que se impõe dar como “provada” toda a matéria que consta dos factos considerados “não provados” pelo Tribunal nos quatro pontos supra transcritos, à luz dos meios de prova que se analisaram, o que importará, consequentemente, a improcedência da ação e a procedência das exceções deduzidas pelo Requerido na Oposição.

20.ª Com efeito, impõe-se concluir que a Requerente agiu com manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, proibida pelo art.º 334.º do CC, por ser ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social e económico desse direito.

21.ª Na verdade, o comportamento anterior da Requerente, ao impossibilitar de forma objetiva o Requerido de se manter no pagamento pontual das rendas como até então, é contraditório com a pretensão esgrimida nos autos, ultrapassando os limites impostos pela boa-fé e violando a confiança objetivamente criada no Requerido.

22.ª Com efeito, se a partir de fevereiro de 2022 o Requerido deixou de conseguir efetuar o pagamento das rendas por qualquer uma das formas contratualmente previstas e sempre utilizadas ao longo de 7 anos de contrato, tal deveu-se única e exclusivamente ao comportamento do Fundo senhorio e da Requerente, que lhe sucedeu no contrato.

23.ª Em face do exposto e do manifesto abuso de direito da Requerente, sempre seria ilegítima a pretensão de obter o despejo do Requerido com fundamento na falta de pagamento de rendas, o que se arguiu a título de exceção conducente à imediata absolvição do pedido, mas que o tribunal não conheceu.

24.ª Ademais, o descrito comportamento culposo da Requerente sempre constituiria, no mínimo, mora do credor (art.º 813.º do CC).

25.ª E a verdade é que a maneira de proceder dos sucessivos senhorios do Requerido não é inocente nem fruto do acaso, antes resultando de forma inequívoca da sua natureza jurídica, orientada para o lucro, ao qual a antiguidade do contrato e, sobretudo, a renda abaixo dos valores de mercado constituíam um entrave.

26.ª Acresce que, conforme fez constar da Oposição, o Requerido procedeu à constituição de um depósito autónomo no montante de 2.886,87€, valor correspondente 6 rendas acrescidas de 20% de indemnização, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 1048.º do CC e 15.º-F do NRAU, assim fazendo caducar qualquer eventual direito à resolução do contrato por falta de pagamento de rendas, matéria que o Tribunal também não conheceu.

27.ª Ora, o art.º 608.º, n.º 2, do CPC, impõe que o Tribunal resolva todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação sob pena de incorrer no vício da omissão de pronúncia, sancionável com a nulidade da sentença, que ao abrigo do disposto no art.º 615.º, n.º 1, d), do CPC, aqui expressamente se argui para todos os efeitos legais, subsidiariamente e à cautela.

28.ª Face ao exposto, a decisão recorrida violou de forma manifesta o disposto nos arts. 334.º,813.º, 1048.º, 1083.º e 1084.º do CC, no art. 15.º-F do NRAU, bem como nos arts. 607.º, n.ºs 4 e 5, 608.º, n.º 2, e 615.º, n.º 1, d), do CPC, razão pela qual não deve ser mantida.

Termina por pedir o provimento do recurso e a revogação da sentença, com substituição por outra sentença que julgue a ação totalmente improcedente por não provada.


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Não foi apresentada resposta ao recurso.

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O recurso foi admitido como recurso de apelação.

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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

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II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.

As questões a decidir:

- nulidade da sentença;

- reapreciação da decisão de facto;

- mérito da causa;

- abuso de direito.


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2. Os factos

Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal da primeira instância:

1. Em 01/02/2015, a Solução Arrendamento – Fundo de Investimento Fechado para Arrendamento Habitacional, celebrou com o requerido AA um acordo denominado “Contrato de Arrendamento para Habitação Permanente, com prazo certo e com opção de compra” o qual teve por objeto a fração autónoma “CS”, habitação ..., no piso 8 – ..., com acesso pelo número ...02 da Rua ..., em ... - descrita na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o número ...54/... e inscrita na matriz predial urbana com o Artigo ...15º.

2. Por via desse acordo foi cedido ao requerido o uso para habitação da fração identificada em 1 pelo prazo inicial de 5 (cinco) anos, renovável por 1 (um) ano, salvo denúncia das partes.

3. Ficou acordado que por conta dessa cedência o requerido entregaria a quantia inicial de €390,00 (trezentos e noventa euros) a título de renda, devendo ser paga ao primeiro dia útil do mês anterior a que a renda diga respeito.

4. Resulta da cláusula 7.2 do acordo que As partes consideram que o incumprimento do arrendatário nos termos a seguir discriminados, atenta a gravidade e consequências que terão, o que ambas as partes desde já reconhecem, tornam inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento e consubstanciam fundamento direto para a resolução do contrato:

a) Não pagamento pontual e integral do valor da renda, qualquer que seja o montante e o número de meses de renda, total ou parcial, em dívida;

5. Pela AP ...29 de 11.11.2021 a fração referida em 1 encontra-se atualmente descrita na Conservatória a favor da requerente A..., SA.

6. O requerido procedeu ao pagamento da renda até ao mês de novembro de 2021.

7. A partir do mês de dezembro de 2021, por conta das rendas devidas, o requerido efetuou a transferência do montante de € 400,94 (renda atualizada) em 15.12.2021, 06.01.2022, 31.03.2021, 06.07.2022, 04.08.2022, 07.09.2022, 05.10.2022.

8. Em 04 de julho de 2022 e 18 de agosto de 2022 através de carta registada com Aviso de Receção enviada pela Requerente, através da sua procuradora B..., comunicou ao requerido que: “Vimos pela presente (…) comunicar-lhe a resolução do contrato de arrendamento com prazo certo celebrado em 01.02.2015. (…)

Como sabe, na presente data V. Exa encontra-se em mora com o pagamento do valor de €3.599,55 relativo a rendas vencidas e não pagas nos meses de dezembro de 2021 e janeiro, fevereiro, março, abril, maio, junho e julho de 2022.

O atraso no pagamento é superior a 3 (três) meses pelo que não é exigível à proprietária e senhoria a manutenção do contrato de arrendamento (…)

A resolução ora comunicada (…) produzirá efeitos na data da receção do presente escrito, devendo o imóvel ser entregue à senhoria e proprietária contados 30 (trinta) dias da receção da presente (…)

Mais se informa que a lei concede a V. Exa (..) fazer cessar a mora com o pagamento das rendas já vencidas acrescidas da penalização de 20% (…) perfazendo assim o valor total de € 4319,46 (….)”


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B. Factos não provados

- O requerido entregou à requerente as rendas referentes aos meses de fevereiro, abril, maio e junho de 2022.

- No mês de outubro de 2022, o Requerido foi contactado telefonicamente da parte da B..., em nome da Requerente, informando-o de que teria de deixar o imóvel a breve trecho, uma vez que o acordo referido em 1 alegadamente já teria “terminado”.

- Nesse contacto o Requerido informado de que lhe seria remetida em breve toda a documentação relativa à cessação do acordo e à restituição do imóvel, pela qual deveria aguardar, devendo até lá suspender o pagamento das rendas.

- O Requerido cessou o pagamento das rendas em novembro de 2022, porque recebeu indicações expressas nesse sentido da parte da procuradora e representante da Requerente.


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3. O direito

- Nulidade da sentença -

Nas conclusões de recurso, sob os pontos 16 e 17, 26 e 27, suscita o apelante a nulidade da sentença, com fundamento no art.º 615º/1 c) e d) CPC.

No despacho que admitiu o recurso, o juiz do tribunal “a quo” não se pronunciou sobre as nulidades, como determina o art.º 617º/1 CPC. Contudo, não se mostrou indispensável a remessa dos autos à 1ª instância para proceder à apreciação das nulidades, atenta a manifesta improcedência dos fundamentos, estando o tribunal de recurso em condições de apreciar as nulidades suscitadas.

Nos pontos 15 e 16 das conclusões de recurso defende o apelante que a sentença é nula por ocorrer oposição entre os fundamentos e a decisão e ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível. Considera que a sentença apresenta contradição entre os factos considerados provados e os não provados, porquanto, decorre do facto provado sob o ponto 7 que o Requerido efetuou pagamentos de renda 06/01/2022, 31/03/2021, 06/07/2022, 04/08/2022, 07/09/2022, 05/10/2022, sendo contraditória a conclusão de que se impõe o despejo pela falta de pagamento das rendas de fevereiro, abril, maio e junho de 2022, considerando até que as rendas eram pagas no mês anterior àquele a que diziam respeito.

Nos termos do art.º 615º/1/c) CPC, a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.

A previsão da norma contempla as situações de contradição real entre os fundamentos e a decisão e não as hipóteses de contradição aparente, resultante de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão.

Como refere o Professor ANTUNES VARELA: “a norma abrange os casos em que há um vício real no raciocínio do julgador: a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direção diferente“[2].  

Na sentença sobre a matéria da exceção do pagamento considerou-se, o que se passa a transcrever:

“Ora, reconduzindo-nos ao caso sub judice, está, pois, em causa a celebração de um contrato de arrendamento.

O requerido não procedeu ao pagamento à requerente das rendas referentes aos meses de fevereiro, abril, maio e junho de 2022, o que motivou que a requerente tenha enviado ao requerido uma carta registada com aviso de receção, solicitando que ponha termo à mora, pagando as rendas acrescida de uma penalização sendo que caso não pagasse, o contrato considerar-se-ia resolvido. O requerido não pagou as rendas nem as que se venceram a partir do mês de novembro de 2022. Mesmo após a entrada do requerimento de despejo não foram depositadas as rendas devidas”.

No caso presente existe na sentença uma perfeita coerência no raciocínio e a decisão resulta como a conclusão lógica desse raciocínio, pois analisou-se os fundamentos para a resolução do contrato, com fundamento em falta de pagamento da renda e ainda, a exceção de pagamento invocada pelo réu, concluindo-se no confronto com os factos provados que não se provaram os fundamentos da exceção, o que determinou a procedência do procedimento especial de despejo.

Perante os factos provados, a interpretação e análise dos mesmos à face do direito, apenas podia conduzir à decisão a que chegou o juiz do tribunal “a quo”, motivo pelo qual não se verifica a apontada nulidade.

O facto do apelante discordar da decisão não configura o apontado vício e apenas justifica a impugnação do mérito da decisão.

Nos termos do art.º 615º/1 c) CPC a sentença é ainda nula quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.

Considera-se que a sentença é obscura quando enferma de “ambiguidade, equivocidade ou de falta de inteligibilidade”.

A sentença é ambígua quando alguma das suas passagens se presta a diferentes interpretações ou pode comportar mais do que um sentido, quer na fundamentação, quer na decisão. A sentença mostra-se equívoca quando o sentido decisório se perfile como duvidoso para um qualquer destinatário normal.

Contudo, este vício apenas determina a nulidade da sentença se a decisão for ininteligível ou incompreensível[3].

A ininteligibilidade da decisão corresponde à falta ou ininteligibilidade da indicação do pedido na petição inicial ( art.º 186º/2/ a) CPC )[4].

No caso concreto a sentença contém uma decisão expressa em termos inequívocos. Os fundamentos que conduziram à decisão são eles também objetivos e não são suscetíveis de várias interpretações. Acresce que a fundamentação apoia-se nos factos provados.

A alegada contradição entre “factos provados e não provados”, não configura o apontado vício, por não se reportar à estrutura da própria sentença e apenas justifica a reapreciação da decisão de facto.

Com efeito, nos termos do art.º 662º/2 c) CPC, a decisão da matéria de facto de conteúdo deficiente, obscuro ou contraditório justifica a anulação do julgamento, quando não constem do processo todos os elementos que permitam a alteração proferida sobre a decisão da matéria de facto.

A contradição pode derivar da oposição entre diversas respostas dadas a pontos de facto controvertidos ou entre tais respostas e os factos considerados assentes na fase da condensação.

A superação da contradição, sem necessidade de anulação do julgamento, pode derivar da prevalência que deva ser dada a certo elemento constante do processo com força probatória plena ou por via da conjugação com outras respostas ou com matéria já assente. Mas pode decorrer ainda da reponderação dos meios de prova que se encontrem disponíveis e nos quais o tribunal “ a quo “ se tenha baseado, como determina o art.º 662º/2 c) CPC[5].  

Será, pois, através da reapreciação da decisão de facto, que se poderá suprir tais vícios, caso se detetem, sendo certo, que não constitui fundamento de nulidade da sentença.

Conclui-se que a sentença não apresenta o vício suscetível de enquadrar a nulidade do art.º 615º/1 c) CPC.


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Sob os pontos 26 e 27 das conclusões de recurso, suscita o apelante a nulidade da sentença, com fundamento no art.º 615º/1 d) CPC.

Alegou para o efeito que fez constar na oposição que procedeu à constituição de um depósito autónomo no montante de €2.886,87, valor correspondente a seis rendas, acrescido de 20% da indemnização, nos termos e para os efeitos do art.1048º e 15º F do NRAU, pretendendo fazer caducar qualquer eventual direito à resolução do contrato por falta de pagamento de rendas, mas na sentença o tribunal não conheceu de tal questão, o que determina a nulidade da sentença.

A omissão de pronúncia sobre questões que o juiz devesse apreciar ou o conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento constitui um dos fundamentos de nulidade da sentença, previsto art.º 615º/1 d) CPC.

A omissão de pronúncia sobre questões que o juiz devesse apreciar, constitui um vício relacionado com a norma que disciplina a “ordem de julgamento“ – art.º 608º/2 CPC.

Com efeito, resulta do regime previsto neste preceito, que o juiz na sentença: deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

A respeito do conceito “questões que devesse apreciar“ refere ANSELMO DE CASTRO que deve “ser entendida em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das exceções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem. Esta causa de nulidade completa e íntegra, assim, de certo modo, a da nulidade por falta de fundamentação. Não basta à regularidade da sentença a fundamentação própria que contiver; importa que trate e aprecie a fundamentação jurídica dada pelas partes. Quer-se que o contraditório propiciado às partes sob os aspetos jurídicos da causa não deixe de encontrar a devida expressão e resposta na decisão”[6].

LEBRE DE FREITAS por sua vez tem a respeito de tal matéria uma visão algo distinta, pois considera que devendo: “o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art.º 660º/2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado”[7].

Para melhor precisar o seu entendimento remete para o estudo do Professor ALBERTO DOS REIS cuja passagem se transcreve:

“Resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação “não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito (art.º 511º/1), as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art.º 664º) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas”[8].

Seguindo os ensinamentos dos ilustres Professores, atendendo ao regime processual vigente, afigura-se-nos ser esta a interpretação que melhor reflete a natureza da atividade do juiz na apreciação e decisão do mérito das questões que lhe são colocadas, pois o juiz não se encontra vinculado às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art.º 5º CPC).

Resulta desta interpretação que a sentença não padece de nulidade porque não analisou um certo segmento jurídico que a parte apresentou, desde que fundadamente tenha analisado as questões colocadas e aplicado o direito.

Aplicando o exposto ao caso concreto, cumpre considerar que o presente procedimento especial de despejo foi instaurado ao abrigo do art.º 15º/1/2 e) da Lei 6/2006 de 27/02, alterado pela Lei 31/2012, de 14/08 e pela Lei 79/2014 de 19 de dezembro.

O requerente instaurou o procedimento com fundamento em resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio, nos termos do art.º 1083º/4CC, indicando como causa de resolução a falta de pagamento das rendas pelo inquilino, pretendendo a autora efetivar a cessação do contrato de arrendamento, obtendo título para desocupação do locado.

O procedimento especial de despejo, como decorre do art.º 1º do citado diploma, constitui um meio processual que se destina a efetivar a cessação do arrendamento, quando o arrendatário não desocupe o locado na data prevista na lei ou na data fixada por convenção entre as partes.

Este procedimento admite oposição, como decorre do art.º 15ºF, a qual deve ser deduzida no prazo de 15 dias a contar da notificação.

Contudo, prevê-se no art.º 15º-F/3, que com a oposição deve o requerido nos casos previstos no nº3 e nº4 do art.º 1083º CC, juntar comprovativo do pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas, salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.

A Portaria 09/2013 de 10 de janeiro veio prever, no art.º 10º, a forma como se processa o pagamento da caução, determinando o pagamento pelos meios eletrónicos previstos no art.º 17º da Portaria 419-A/2009 de 17 de abril, após a emissão do respetivo documento único de cobrança.

Este mesmo preceito, no seu nº2, veio precisar que o documento comprovativo do pagamento deve ser apresentado juntamente com a oposição, independentemente de ter sido concedido apoio judiciário ao arrendatário.

Não se mostrando paga a caução, a oposição tem-se por não deduzida, em conformidade com o disposto no art.º 15º-F/4 da Lei 6/2006 de 27/02, alterado pela Lei 31/2012, de 14/08 e pela Lei 79/2014 de 19 de dezembro.

Da conjugação destes preceitos decorre que a prestação de caução constitui uma condição de admissibilidade da oposição[9], pois na sua falta a oposição tem-se por não deduzida. A prestação da caução visa garantir a posição do senhorio e por isso, não tem qualquer repercussão sobre o mérito da causa. Pretende-se desta forma obstar à prática de atos dilatórios e a oposições infundadas.

O valor da caução é devido, ainda que se verifique um motivo justificado para suspender o pagamento da renda e é calculado em função do valor das rendas em atraso[10], apesar de constituir matéria controvertida o montante devido a título de renda, pois a lei manda juntar comprovativo do pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso. Bem se compreende que assim seja, uma vez que a caução não produz efeitos sobre a relação controvertida, ao contrário do que ocorre com o depósito de purgação da mora.

Esse depósito - purgação da mora - para ser eficaz e determinar a caducidade do direito do senhorio deve ser efetuado no prazo de 30 dias a contar da notificação da resolução, como determina o art.º 1084º/3 CC.

Na situação concreta, resulta dos autos que em 04 de julho de 2022 o senhorio, através de carta registada, dirigida ao inquilino/apelante comunicou a resolução do contrato com fundamento na falta de pagamento de rendas. Informou da possibilidade de fazer cessar a mora mediante depósito, no prazo de 30 dias a contar da receção da comunicação, das quantias em dívida acrescidas de indemnização de 20%.

O alegado depósito a que se reporta o apelante, no montante de €2.886,87, foi efetuado em 16 de maio de 2023, juntamente com a apresentação da oposição e foi classificado como “Comprovativo do pagamento da caução” (ref. Citius 35645337).

O depósito em causa tem a natureza de caução e não visa por fim à mora. Constitui condição de admissibilidade da oposição, pois caso não fosse efetuado, não seria admitida a oposição.

Na sentença, o juiz não tinha de se pronunciar sobre a alegada caducidade do direito, por não estar vinculado ao enquadramento jurídico dos factos tal como são apresentados pela parte, quando além do mais, é a própria parte que junta o Documento Único de Cobrança atribuindo-lhe a natureza de “Comprovativo do pagamento da caução”.

Não se mostra junto aos autos outro comprovativo de depósito das rendas.

Contudo, sempre se dirá que na sentença foi apreciada a questão do pagamento das rendas, mesmo as vencidas na pendência da ação, quando se refere:

“Ora, reconduzindo-nos ao caso sub judice, está, pois, em causa a celebração de um contrato de arrendamento.

O requerido não procedeu ao pagamento à requerente das rendas referentes aos meses de fevereiro, abril, maio e junho de 2022, o que motivou que a requerente tenha enviado ao requerido uma carta registada com aviso de receção, solicitando que ponha termo à mora, pagando as rendas acrescida de uma penalização sendo que caso não pagasse, o contrato considerar-se-ia resolvido. O requerido não pagou as rendas nem as que se venceram a partir do mês de novembro de 2022. Mesmo após a entrada do requerimento de despejo não foram depositadas as rendas devidas”.

As rendas devidas após a entrada do requerimento de despejo são as que se venceram desde 20 de fevereiro de 2023 (data da entrada do requerimento) até 16 de maio de 2023 (data da entrada da oposição) (art. 15º/8 Lei 6/2006 de 27/02, alterado pela Lei 31/2012, de 14/08 e pela Lei 79/2014 de 19 de dezembro).

O montante da caução é manifestamente inferior ao montante das rendas vencidas e em divida, sendo certo que a apelada não pretende obter o pagamento das rendas devidas, mas apenas a entrega do local arrendado.

O apelante discorda dos fundamentos da decisão, mas tal situação não configura o apontado vício, na medida em que a sentença apreciou da matéria da exceção contendo-se a decisão dentro dos limites da exceção.

Conclui-se que na sentença se apreciaram as questões colocadas na oposição a respeito da exceção do pagamento da renda e fundamento para inviabilizar a efetivação do despejo, motivo pelo qual não se verifica o apontado vício de omissão de pronúncia.

Improcedem, também nesta parte, as conclusões de recurso sob os pontos 26 e 27.


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- Reapreciação da decisão de facto -

Na reapreciação da decisão de facto anotamos um lapso de escrita no ponto 7 dos factos provados, que cumpre retificar, antes de passar à reapreciação da matéria de facto.

A retificação de erros materiais engloba as situações em que a sentença é omissa quanto ao nome das partes, a custas, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou qualquer inexatidão devidas a outra omissão ou lapso manifesto, como determina o art.614º CPC.

A correção considera-se complemento e parte integrante da sentença, aplicando-se analogicamente o art.º 617º/2 CPC[11].

No ponto 7 dos factos provados julgou-se provado:

7. A partir do mês de dezembro de 2021, por conta das rendas devidas, o requerido efetuou a transferência do montante de € 400,94 (renda atualizada) em 15.12.2021, 06.01.2022, 31.03.2021, 06.07.2022, 04.08.2022, 07.09.2022, 05.10.2022.

Na fundamentação da decisão escreveu-se:

“Os factos constantes dos pontos 6 e 7 tiveram por base o alegado pela requerente no requerimento inicial, sendo que os pagamentos referidos no ponto 7 foram admitidos pela requerente no articulado de resposta à oposição”.

A Autora na oposição admite que o réu efetuou um depósito em 31 de março de 2022, no montante de €400,94 (cf. requerimento inserido no processo eletrónico, na página 221).

A Autora não admitiu que se efetuou um depósito em 06 de janeiro de 2022.

O comprovativo do depósito resulta do documento junto em sede de audiência de julgamento (inserido no processo eletrónico a páginas 139), o que, aliás, é referido na fundamentação da decisão de facto.

Desta forma, justifica-se retificar o ponto 7 dos factos provados, por conter um lapso de escrita que é manifesto, no sentido de fazer constar onde se lê: “ 30 de março de 2021”, passar a ler-se ”30 de março de 2022” ( art.614º/1 CPC).

A alteração deve ser oportunamente anotada na sentença.


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Nas conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 15, o apelante veio requerer a reapreciação da decisão de facto, com fundamento em erro na apreciação da prova, em relação aos factos julgados “não provados” (os quatro pontos).

Passando à apreciação da verificação dos pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto.

O art.º 640º CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:

“ 1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.

3. […]”

Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso – e motivar o seu recurso – fundamentação - com indicação dos meios de prova que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.

No caso concreto, realizou-se o julgamento com gravação dos depoimentos prestados em audiência e o apelante veio impugnar a decisão da matéria de facto, com indicação dos pontos de facto impugnados, prova a reapreciar – documentos, declarações de parte e prova testemunhal - e decisão que sugere.

Nos termos do art.º 640º/1/2 do CPC consideram-se reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto.


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Nos termos do art.º 662º/1 CPC a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto:

“ […]se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

A respeito da gravação da prova e sua reapreciação cumpre considerar, como refere ABRANTES GERALDES, que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, “tem autonomia decisória”. Isto significa que deve fazer uma apreciação crítica das provas que motivaram a nova decisão, de acordo especificando, tal como o tribunal de 1ª instância, os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador[12].

Nessa apreciação, cumpre ainda, ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.

Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[13].  

Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos das testemunhas, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art.º396º CC e art.º607º/5, 1ª parte CPC.

Como bem ensinou ALBERTO DOS REIS: “ […] prova […] livre, quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, isto é, ditados pela lei”[14].  

Daí impor-se ao julgador o dever de fundamentação das respostas à matéria de facto – factos provados e factos não provados (art.º 607º/4 CPC).

Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.

É através dos fundamentos constantes do segmento da decisão que se pronunciou sobre a matéria de facto que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância[15].

Por outro lado, porque se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados[16].

Atenta a posição expressa na doutrina e na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pelas partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido[17] ou se da reapreciar da prova é possível formar convicção distinta.

Ponderando estes aspetos, face aos argumentos apresentados pelo apelante, tendo presente o segmento da sentença que se pronunciou sobre a fundamentação da matéria de facto, conclui-se que não se justifica alterar a decisão de facto pelos motivos que se passam a expor.

O apelante veio impugnar os seguintes factos (matéria alegada na oposição), que se julgaram “não provados”:

- O requerido entregou à requerente as rendas referentes aos meses de fevereiro, abril, maio e junho de 2022.

- No mês de outubro de 2022, o Requerido foi contactado telefonicamente da parte da B..., em nome da Requerente, informando-o de que teria de deixar o imóvel a breve trecho, uma vez que o acordo referido em 1 alegadamente já teria “terminado”.

- Nesse contacto o Requerido foi informado de que lhe seria remetida em breve toda a documentação relativa à cessação do acordo e à restituição do imóvel, pela qual deveria aguardar, devendo até lá suspender o pagamento das rendas.

- O Requerido cessou o pagamento das rendas em novembro de 2022, porque recebeu indicações expressas nesse sentido da parte da procuradora e representante da Requerente.

Em sede de fundamentação considerou-se:

“Para a resposta à matéria de facto, o Tribunal fez uma apreciação crítica dos depoimentos das testemunhas arroladas e das declarações prestadas pela autora lançando mão de todos os elementos recolhidos, incluindo os documentos juntos aos autos e as regras da experiência comum, sempre sem deixar de ter em consideração o ónus da prova respetivo.

Assim, a prova dos factos dos pontos 1 a 5 teve por base o teor da prova documental junta com o requerimento de despejo: o contrato de arrendamento, a certidão matricial, a certidão da descrição predial da fração.

Os factos constantes dos pontos 6 e 7 tiveram por base o alegado pela requerente no requerimento inicial, sendo que os pagamentos referidos no ponto 7 foram admitidos pela requerente no articulado de resposta à oposição.

O facto constante do ponto 8 teve por base o teor das missivas que foram juntas com o requerimento inicial.

A factualidade não provada teve por base a total ausência de prova quanto à mesma.

Primeiramente, importa salientar que na sua oposição o requerido refere que recebeu o IBAN da requerente ainda no mês de fevereiro de 2022 e que liquidou as rendas a partir daí. Sucede que não juntou aos autos os comprovativos de pagamento das rendas de fevereiro, abril, maio e junho, pelo que mais não restou do que considerar esse facto como não provado. Quanto ao mês de março, foi a própria requerente a ter reconhecido que esse mês recebeu um pagamento.

Por outro lado, competia ao requerido demonstrar que deixou de depositar as rendas por indicação da requerente, o que não aconteceu. A única prova que o requerido carreou para os autos foram os comprovativos de pagamento das rendas em julho, agosto, setembro e outubro de 2022, resultando igualmente dos documentos juntos em audiência que foi liquidada a renda de janeiro de 2022 por transferência da conta de BB, filho do requerido que, de resto, prestou depoimento em audiência e confirmou que o seu pai efetuou pagamentos através da sua conta bancária. Para além disso, o requerido juntou aos autos comunicações através de correio eletrónico (cf. referência 35931781) para a B... onde solicita os dados para pagamento da renda. Do conteúdo desses emails resulta que em 27 de junho o requerido recebeu novamente o IBAN para o qual deveria transferir o valor das rendas (note-se que em sede de oposição referiu que recebeu esse IBAN num contacto telefónico que efetuou no mês de fevereiro). Sucede que, não obstante essa indicação, o requerido não transferiu o valor global das rendas que se encontravam em atraso, começando a fazer o pagamento mensal da renda de julho a outubro de 2022.

De resto, em sede de declarações o requerido não explicou a razão pela qual optou por não transferir as rendas que se encontravam em atraso. Ainda que se justificasse com o facto de desconhecer o IBAN para transferência (o que não corresponde à verdade pois já havia confessado que em fevereiro já tinha conhecimento), quando recebeu essa informação deveria ter diligenciado pelo pagamento das rendas que não pagou, o que não fez.

De igual modo nenhuma prova se produziu quanto a ter sido transmitido ao requerido para deixar de pagar as rendas a partir de novembro de 2022. Na verdade, não é sequer plausível que a requerente, por si ou por intermédio da sua procuradora, decida transmitir ao requerido que terá que deixar de pagar as rendas sem o imóvel se encontrar entregue”.

O apelante sugere a alteração da decisão no sentido de se julgarem provados os factos impugnados e sustenta a alteração da decisão no depoimento da testemunha BB e declarações de parte do próprio réu/apelante.

A testemunha BB, filho do réu/apelante, revelou ter conhecimento da celebração do contrato de arrendamento e conhecer o prédio objeto do contrato, local onde reside, desde maio de 2015, o réu, seu pai. Referiu que seu pai pagava a uma empresa e depois mudou para outra.

Questionado sobre a forma como se processou essa alteração, disse de forma espontânea que não sabe pormenores e não saber se lhe indicaram novo NIB para pagamento da renda.

Referiu que seu pai sempre pagou a renda e de um momento para o outro não sabia onde depositar a renda.

Confirmou que foram efetuados pagamentos de renda por transferência bancária a partir de uma conta titulada pela testemunha, porque seu pai tem acesso a tal conta.

Quando lhe foi colocada a questão sobre se apresentaram ao pai a proposta de compra do imóvel, respondeu ”penso que não”. Disse, por fim, que a casa tem dois quartos.

O réu, AA, veio em declarações referir que em 2015 celebrou o contrato de arrendamento e pagava as rendas por multibanco ou por transferência bancária. Vive na casa objeto do contrato. Em janeiro de 2022 e fevereiro de 2022 tentou pagar e não tinha acesso. Ligou para o senhorio e informaram que a fração tinha sido vendida. Em fevereiro de 2022 ligou para a nova empresa e mandou “mail”, que não obteve resposta, mantendo-se sem conseguir pagar.

Mais referiu, que uma senhora ligou-lhe para o telemóvel a informar que não pagava as rendas. Indicaram o NIB em junho de 2022. Nessa altura pediu a indicação do montante em falta.

Em julho, agosto, setembro e outubro de 2022 pagou sempre as rendas.

Disse, ainda, que em outubro telefonaram-lhe a dizer que “tinha despejo”. Referiu, “como tinha despejo deixou o pagamento das rendas”.

Por fim, disse que nunca recebeu qualquer carta a comunicar o despejo. Vive na casa que consta do endereço da carta e apenas se ausentou temporariamente, por óbito da mãe, não indicando a data em que tal ocorreu. Disse, ainda, que a partir de fevereiro de 2022 e até junho de 2022 não pagou a renda. Mandou “mails” sem resposta e só em fevereiro de 2022 tomou conhecimento da empresa que comprou o imóvel.

Esclareceu que procedeu ao pagamento de rendas em agosto, outubro e setembro de 2022, janeiro de 2022 e dezembro de 2021.

O declarante foi confrontado com as comunicações eletrónicas juntas aos autos e com datas de 07 de fevereiro de 2022, 27 de junho de 2022 e 28 de junho de 2022 (inseridas no processo eletrónico a páginas 215 a 217).

Voltou a referir que nunca recebeu a notificação a dar conhecimento da venda, nem do exercício da preferência. Não recebeu da autora, nem da representante da autora.

Disse que em novembro de 2022 telefonaram a dizer que o contrato tinha terminado e tinha de sair até dezembro, mas não indicaram o motivo. Depois nunca mais o contactaram, nem avisaram da instauração da ação.

O declarante, ao longo do seu depoimento, referiu várias vezes que pretendia pagar as rendas em divida, mas não sabia o montante em divida e ninguém o informava. Confrontado com a comunicação eletrónica datada de 26 de junho de 2022, onde se indica o montante das rendas em dívida, limitou-se a responder que “depois falou com essa pessoa”.

Apreciando a prova.

Nos termos do art.º 466º/1 CPC as partes podem prestar declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto.

As declarações prestadas são apreciadas livremente pelo tribunal, salvo se constituírem confissão, como se prevê no art.º 466º/3 CPC.

A parte deve ser admitida a prestar declarações apenas sobre factos em que tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento direto e que sejam instrumentais ou complementares dos alegados.

Daqui resulta que não merece relevo probatório as declarações que assentem em relato de terceira pessoa e ainda, aquela em que a parte se limita a narrar os factos alegados no respetivo articulado.

Como refere FERNANDO PEREIRA RODRIGUES: “[…] também é suposto que a parte ao requerer a prestação das suas declarações não seja apenas para confirmar o que já narrou nos articulados através do seu mandatário. Seria inútil a repetição do que já é do conhecimento do tribunal. Por isso, estarão sobretudo em causa factos instrumentais ou complementares dos alegados de que a parte tenha tido conhecimento direto ou em que interveio pessoalmente e que se mostrem com interesse para a descoberta da verdade”[18].

LEBRE DE FREITAS a propósito do valor probatório das declarações de parte observa:” [a] apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, máxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas”[19].

O valor probatório das declarações de parte, avaliado livremente pelo tribunal, estará sempre dependente do confronto com os demais elementos de prova.

No caso concreto, nas declarações de parte, o declarante não veio esclarecer os factos narrados na oposição, acabando até por contradizer o que vinha alegado na oposição.

Recorde-se o alegado na oposição sobre o pagamento das rendas:

“ 5.º

Em fevereiro de 2022, o Requerido não conseguiu efetuar o pagamento da renda, uma vez que, ao introduzir a entidade e a referência habitualmente utilizada para o efeito, o sistema Multibanco reportava que os dados eram inválidos.

6.º

Por tal motivo, o Requerido entrou em contacto telefónico com o Fundo senhorio a fim de esclarecer o motivo de tal ocorrência.

7.º

Só nessa ocasião e por causa de tal contacto foi o Requerido informado da alegada venda do imóvel arrendado a outra sociedade.

8.º

Até esse momento, o Requerido desconhecia qualquer transmissão da posição de locador, que não lhe foi comunicada, como havia de ter sido, incluindo para poder exercer o seu direito contratual de opção de compra (cf. Cláusula 9 do contrato), bem como o seu direito legal preferência (cf. art.º 1091.º do CC).

 9.º

Não obstante, de acordo com os documentos juntos ao requerimento de despejo, o referido Fundo senhorio já teria procedido à venda do imóvel à Requerente em 11-11-2021 – cf. certidão do registo predial sob o doc. 4

10.º

No decurso do referido contacto telefónico, o Requerido foi informado do IBAN para o qual deveria passar a efetuar o pagamento da renda – alegadamente titulado pela procuradora e representante da nova Senhoria, a sociedade B..., SA, com o NIPC ...91.

11.º

Ora, nos meses de fevereiro a outubro de 2022, o Requerido liquidou as rendas vencidas[…]”.

Nas declarações que prestou, o declarante assume que não pagou as rendas nos meses de fevereiro, abril, maio e junho de 2022 e só não se atribui a natureza de confissão a tais declarações, porque o declarante apresentou um motivo para assim proceder, ainda, que tal motivo não se mostre confirmado por qualquer meio de prova.

Com efeito, referiu que perante a impossibilidade de proceder ao pagamento da renda com a referência que tinha, o novo NIB só lhe foi facultado em junho de 2022, quando na oposição referiu que o NIB lhe foi facultado em fevereiro de 2022 e comprovou um depósito de renda em março de 2022.

Aliás, só após expedição da carta de resolução do contrato, com data de 04 de junho de 2022, veio o apelante a retomar o pagamento da renda, o que fez em julho, agosto, setembro de outubro de 2022, sendo certo que na comunicação eletrónica de 27 de junho de 2022 tomou conhecimento da posição do senhorio e do montante em divida àquela data (documento junto pelo próprio réu/apelante e inserido a páginas 216 e 217 do processo eletrónico).

Sobre os contactos que ocorreram em outubro de 2022, o declarante nada referiu de concreto. Limitou-se a fazer referência a um contacto telefónico que terá ocorrido em novembro de 2022, através do qual lhe comunicavam que devia entregar o local arrendado até dezembro de 2022, mas sem que lhe tenham indicado o motivo para assim acontecer.

Nada referiu sobre instruções para não proceder ao pagamento da renda.

A testemunha nada revelou saber sobre a matéria de facto impugnada, nem confirmou as declarações prestadas pelo declarante sobre tal matéria, pois do seu depoimento decorre que apenas tomou conhecimento da mudança de proprietário do local arrendado e que seu pai teria dificuldade em proceder ao pagamento da renda.

Contudo, esta versão dos factos é pouco credível, quando se vem a constatar que era através da conta bancária da testemunha que se procedia às transferências das quantias devidas a título de renda, não podendo, pois, ignorar os movimentos que se processavam através da referida conta bancária.

De todo o modo, a versão dos factos tal como narrada pelo réu/declarante não foi confirmada por qualquer outro meio de prova, mostrando-se até contraditória com a versão apresentada na oposição e com os documentos que o próprio juntou aos autos para comprovar o pagamento das rendas, circunstância que foi salientada na fundamentação da decisão de facto e que não podemos deixar de confirmar.

Resta referir que o apelante não juntou qualquer comprovativo de pagamento de rendas nos meses de fevereiro, abril, maio e junho de 2022. Por outro lado, nos extratos bancários juntos aos autos, onde se faz menção às transferências, não se indica o mês a que respeita o pagamento. Desta forma não resulta demonstrado que o réu pagou à requerente a renda nos meses de fevereiro, abril, maio e junho de 2022, sendo esta a redação que deve passar a constar do primeiro parágrafo dos factos julgados não provados.

A questão de saber se existe mora que justifique a resolução do contrato, constitui matéria que se prende com o mérito da causa.

Acresce referir que o declarante afirmou que sempre habitou no local arrendado, mesmo na data em que foram expedidas pela autora as cartas referenciadas no ponto 8 dos factos provados, matéria de facto que o apelante não impugnou. É certo que afirmou ter-se ausentado transitoriamente, por óbito da mãe, mas não indicou a data em que tal ocorreu, nem o período de ausência, nem para onde se ausentou.

Refira-se, ainda, que não recaía sobre a autora/apelada o ónus de comunicação da preferência, pois só com a aquisição do imóvel assumiu a posição de senhorio. Porém, não foi tal circunstância que impediu o apelante de proceder ao pagamento da renda em dezembro de 2021 e depois em março de 2022, na medida em que como o próprio referiu a partir de fevereiro 2022 tomou conhecimento da alteração do proprietário.

Conclui-se que a prova indicada não justifica a pretendida alteração da decisão de facto que por esse motivo se mantém, reformulando-se apenas o parágrafo primeiro dos factos julgados não provados, que passa a ter a seguinte redação:

- “o réu pagou à requerente a renda nos meses de fevereiro, abril, maio e junho de 2022”.

Improcedem as conclusões de recurso sob os pontos 1 a 15.


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Na apreciação das restantes questões cumpre ter presente os seguintes factos provados e não provados (constando em itálico a retificação e reformulação da redação):

1. Em 01/02/2015, a Solução Arrendamento – Fundo de Investimento Fechado para Arrendamento Habitacional, celebrou com o requerido AA um acordo denominado “Contrato de Arrendamento para Habitação Permanente, com prazo certo e com opção de compra” o qual teve por objeto a fração autónoma “CS”, habitação ..., no piso 8 – ..., com acesso pelo número ...02 da Rua ..., em ... - descrita na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o número ...54/... e inscrita na matriz predial urbana com o Artigo ...15º.

2. Por via desse acordo foi cedido ao requerido o uso para habitação da fração identificada em 1 pelo prazo inicial de 5 (cinco) anos, renovável por 1 (um) ano, salvo denúncia das partes.

3. Ficou acordado que por conta dessa cedência o requerido entregaria a quantia inicial de €390,00 (trezentos e noventa euros) a título de renda, devendo ser paga ao primeiro dia útil do mês anterior a que a renda diga respeito.

4. Resulta da cláusula 7.2 do acordo que As partes consideram que o incumprimento do arrendatário nos termos a seguir discriminados, atenta a gravidade e consequências que terão, o que ambas as partes desde já reconhecem, tornam inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento e consubstanciam fundamento direto para a resolução do contrato:

a) Não pagamento pontual e integral do valor da renda, qualquer que seja o montante e o número de meses de renda, total ou parcial, em dívida;

5. Pela AP ...29 de 11.11.2021 a fração referida em 1 encontra-se atualmente descrita na Conservatória a favor da requerente A..., SA.

6. O requerido procedeu ao pagamento da renda até ao mês de novembro de 2021.

7. A partir do mês de dezembro de 2021, por conta das rendas devidas, o requerido efetuou a transferência do montante de € 400,94 (renda atualizada) em 15.12.2021, 06.01.2022, 31.03.2022, 06.07.2022, 04.08.2022, 07.09.2022, 05.10.2022.

8. Em 04 de julho de 2022 e 18 de agosto de 2022 através de carta registada com Aviso de Receção enviada pela Requerente, através da sua procuradora B..., comunicou ao requerido que: “Vimos pela presente (…) comunicar-lhe a resolução do contrato de arrendamento com prazo certo celebrado em 01.02.2015. (…)

Como sabe, na presente data V. Exa encontra-se em mora com o pagamento do valor de € 3.599,55 relativo a rendas vencidas e não pagas nos meses de dezembro de 2021 e janeiro, fevereiro, março, abril, maio, junho e julho de 2022.

O atraso no pagamento é superior a 3 (três) meses pelo que não é exigível à proprietária e senhoria a manutenção do contrato de arrendamento (…)

A resolução ora comunicada (…) produzirá efeitos na data da receção do presente escrito, devendo o imóvel ser entregue à senhoria e proprietária contados 30 (trinta) dias da receção da presente (…)

Mais se informa que a lei concede a V. Exa (..) fazer cessar a mora com o pagamento das rendas já vencidas acrescidas da penalização de 20% (…) perfazendo assim o valor total de € 4319,46 (….)”


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B. Factos não provados

- O requerido pagou à requerente a renda nos meses de fevereiro, abril, maio e junho de 2022.

- No mês de outubro de 2022, o Requerido foi contactado telefonicamente da parte da B..., em nome da Requerente, informando-o de que teria de deixar o imóvel a breve trecho, uma vez que o acordo referido em 1 alegadamente já teria “terminado”.

- Nesse contacto o Requerido informado de que lhe seria remetida em breve toda a documentação relativa à cessação do acordo e à restituição do imóvel, pela qual deveria aguardar, devendo até lá suspender o pagamento das rendas.

- O Requerido cessou o pagamento das rendas em novembro de 2022, porque recebeu indicações expressas nesse sentido da parte da procuradora e representante da Requerente.

- Mérito da causa -

No ponto 19 das conclusões de recurso o apelante insurge-se contra a decisão de mérito no pressuposto da alteração da decisão de facto.

Mantendo-se inalterada a decisão de facto, pois as retificações introduzidas não contendem com a decisão de mérito, não cumpre reapreciar o mérito da decisão, improcedendo nesta parte as conclusões, sob o ponto 19.


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- Do abuso de direito -

Nas conclusões de recurso, sob os pontos 20 a 25, considera o apelante que o Fundo senhorio e a autora, que lhe sucedeu na posição contratual agiram em manifesto abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprio.

Argumenta para o efeito:

21.ª Na verdade, o comportamento anterior da Requerente, ao impossibilitar de forma objetiva o Requerido de se manter no pagamento pontual das rendas como até então, é contraditório com a pretensão esgrimida nos autos, ultrapassando os limites impostos pela boa fé e violando a confiança objetivamente criada no Requerido.

22.ª Com efeito, se a partir de fevereiro de 2022 o Requerido deixou de conseguir efetuar o pagamento das rendas por qualquer uma das formas contratualmente previstas e sempre utilizadas ao longo de 7 anos de contrato, tal deveu-se única e exclusivamente ao comportamento do Fundo senhorio e da Requerente, que lhe sucedeu no contrato.

 23.ª Em face do exposto e do manifesto abuso de direito da Requerente, sempre seria ilegítima a pretensão de obter o despejo do Requerido com fundamento na falta de pagamento de rendas, o que se arguiu a título de exceção conducente à imediata absolvição do pedido, mas que o tribunal não conheceu.

24.ª Ademais, o descrito comportamento culposo da Requerente sempre constituiria, no mínimo, mora do credor (art. 813.º do CC).

25.ª E a verdade é que a maneira de proceder dos sucessivos senhorios do Requerido não é inocente nem fruto do acaso, antes resultando de forma inequívoca da sua natureza jurídica, orientada para o lucro, ao qual a antiguidade do contrato e, sobretudo, a renda abaixo dos valores de mercado constituíam um entrave.

Considera, ainda, que apesar de arguida tal exceção na oposição, a mesma não foi apreciada na sentença.

Tal circunstância não impede que o tribunal de recurso tome conhecimento e aprecie a exceção, dado tratar-se de matéria de conhecimento oficioso. O Tribunal pode, por si e em qualquer momento, ponderar os valores fundamentais do sistema, que tudo comporta e justifica[20].

O abuso de direito, nos termos do art.º 334º CC, consiste no exercício ilegítimo de um direito.

Considera-se ilegítimo o exercício de um direito “quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA referem que: “[a] nota típica do abuso do direito reside, por conseguinte, na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido“[21].

ALMEIDA COSTA refere a este respeito que: “exige-se, um abuso nítido: o titular do direito deve ter excedido manifestamente esses limites impostos ao seu exercício[22].

Para apurar se as partes envolvidas no negócio agiram segundo os ditames da boa-fé cumpre ao juiz considerar: “as exigências fundamentais da ética jurídica, que se exprimem na virtude de manter a palavra e a confiança, de cada uma das partes procederem honesta e lealmente, segundo uma consciência razoável, para com a outra parte, interessando as valorações do círculo social considerado, que determinam expectativas dos sujeitos jurídicos. “ De igual modo, “ não se pode esquecer o conteúdo do princípio da boa-fé objetivado pela vivência social, a finalidade intentada com a sua consagração e utilização, assim como a estrutura da hipótese em apreço“[23].

Com base no abuso de direito, o lesado pode “requerer o exercício moderado, equilibrado, lógico, racional do direito que a lei confere a outrem; o que não pode é, com base no instituto, requerer que o direito não seja reconhecido ao titular, que este seja inteiramente despojado dele”[24].

O apelante enquadra o abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprio.

A conduta suscetível de integrar o venire contra factum proprium pressupõe, estruturalmente, duas condutas da mesma pessoa, lícitas em si e diferidas no tempo. A primeira – o factum proprium – é contrariada pela segunda. O óbice reside na relação de oposição entre ambas[25].

O venire é suscetível de configurar um comportamento abusivo e por isso merecedor de censura legal, à luz do abuso de direito, tal como se mostra configurado no art.º 334º CC, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé.

Em termos dogmáticos o venire contra factum proprium constitui uma manifestação de tutela da confiança, que decorre do princípio da boa-fé. Um comportamento não pode ser contraditado quando ele seja de molde a suscitar a confiança das pessoas[26].

Como se pode então considerar que um comportamento é suscetível de criar a confiança das pessoas, vinculando-as às obrigações assumidas.

MENEZES CORDEIRO propõe, como auxiliar ao intérprete, na concretização do conceito de “confiança”, “um modelo de quatro proposições“ sem estabelecer qualquer hierarquia entre eles e sem caráter cumulativo:

“- uma situação de confiança conforme com o sistema e traduzida na boa-fé subjetiva e ética, própria da pessoa que, sem violar os deveres de cuidado que ao caso caibam, ignore estar a lesar posições alheias;

- uma justificação para essa confiança, expressa na presença de elementos objetivos capazes de, em abstrato, provocarem uma crença plausível;

- um investimento de confiança consistente em, da parte do sujeito, ter havido um assentar efetivo de atividades jurídicas sobre a crença consubstanciada;

- a imputação da situação de confiança criada à pessoa que vai ser atingida pela proteção dada ao confiante: tal pessoa, por ação ou omissão, terá dado lugar à entrega do confiante em causa ou ao fator objetivo que a tanto conduziu“[27].

No caso concreto, o apelante não indica em que consistiu a alegada conduta que criou a errónea confiança que não seria despoletado o procedimento para entrega do local arrendado, na sequência da resolução do contrato.

Também não resulta dos factos provados que a apelada adotou uma conduta suscetível de gerar uma confiança legitima no apelante, no sentido de considerar eficaz o contrato de arrendamento, apesar do apelante não proceder ao pagamento das rendas.

De igual forma, não resulta dos factos provados que a partir de fevereiro de 2022 a autora/apelada tenha adotado um qualquer comportamento que impedisse o apelante de proceder ao pagamento da renda.

Conclui-se, no contexto dos factos provados, inexistir fundamento para limitar o exercício do direito da autora/apelada, por ter excedido os limites da boa-fé, o que conduz à improcedência da exceção.

Improcedem as conclusões de recurso, sob os pontos 20 a 25.


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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pelo apelante.

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III. Decisão:

Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e nessa conformidade:

- julgar improcedente a reapreciação da decisão de facto; e

- confirmar a sentença.


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Retifica-se a sentença no ponto 7 dos factos provados, onde se lê: “31.03.2021”, deve passar a ler-se “31.03.2022”.

Anote.


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Custas a cargo do apelante.

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Porto, 18 de março de 2024

(processei, revi e inseri no processo eletrónico – art. 131º, 132º/2 CPC)
Assinado de forma digital por

Ana Paula Amorim
Juiz Desembargador-Relator
Mendes Coelho
1º Adjunto Juiz Desembargador
Anabela Morais
2º Adjunto Juiz Desembargador
______________
[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] ANTUNES VARELA, et al, Manual de Processo Civil, 2ª edição, revista e atualizada, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pág. 690.
[3] FRANCISCO MANUEL LUCAS FERREIRA DE ALMEIDA Direito Processual Civil, Vol.II, Almedina, 2015, pág. 369.
[4] FRANCISCO MANUEL LUCAS FERREIRA DE ALMEIDA Direito Processual Civil, Vol.II, Almedina, 2015, pág. 369, nota 744.
[5] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos em Processo Civil – Novo Regime, 2ª edição revista e atualizada, Almedina, 2008, pág. 295.
[6] ANSELMO DE CASTRO Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Coimbra, Almedina, 1982, pág. 142.
[7] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO Código de Processo Civil Anotado, Vol.II, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pág. 704.
[8] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra, Coimbra Editora Lim, 1984, pág. 143.
No mesmo sentido pode ainda ler-se o ANTUNES VARELA et al Manual de Processo Civil , ob. cit., pág.688.
[9] RUI GONÇAVES PINTO Manual da Execução e Despejo, 1ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, agosto de 2013, pág. 1187.
[10] MARIA OLINDA GARCIA Arrendamento Urbano Anotado – Regime Substantivo e Processual (alterações introduzidas pela Lei 31/2012), 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, maio de 2013, pág. 208-209.
[11] Cf. JOSÉ LEBRE DE FREITAS – ISABEL ALEXANDRE, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3ª edição, Almedina, Coimbra, julho 2017, pág. 732.
[12] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos em Processo Civil, 7ª edição atualizada, Coimbra, Almedina, 2022, pág. 334-335.
[13] ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, Coimbra, Almedina, Janeiro 2000, 3ª ed. revista e ampliada pág. 272.
[14] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, Coimbra Editora, Coimbra, pág. 569.
[15] Ac. Rel. Guimarães 20.04.2005 - www.dgsi.pt.
[16] Ac. Rel. Porto de 19 de setembro de 2000, CJ XXV, 4, 186; Ac. Rel. Porto 12 de dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt..
[17] ANTÓNIO DOS SANTOS ABRANTES GERALDES Recursos em Processo Civil, 7ª edição atualizada, Coimbra, Almedina, março 2022, pág. 341 e Ac. STJ 20.09.2007 CJSTJ, XV, III, 58, Ac STJ 28.02.2008 CJSTJXVI, I, 126, Ac. STJ 03.11.2009 – Proc. 3931/03.2TVPRT.S1; Ac. STJ 01.07.2010 – Proc. 4740/04.7 TBVFX-A.L1.S1 (ambos em www.dgsi.pt) - jurisprudência que se mantém atual.
[18] FERNANDO PEREIRA RODRIGUES Os meios de prova em Processo Civil, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2016, pág. 72.
[19] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A Ação Declarativa Comum – À luz do Código de Processo Civil de 2013, ob. cit., pág. 278.
[20] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, COORD. Código Civil Comentado I – Parte Geral, CIDP, Almedina 2020, anotação 41 ao art. 334º do C.Civil, págs. 941 e 942.
[21] PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA Código Civil Anotado, vol. I, 4ª Edição Revista e Atualizada, Reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora- grupo Wolters Kluwer, 2011, pág. 298.
[22] MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA Direito das Obrigações, 9ª edição, Coimbra, Almedina, 2001, pág. 75.
[23] MÁRIO JÚLIO DE ALMEIDA COSTA Direito das Obrigações, ob. cit., pág. 104-105.
[24] PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA Código Civil Anotado, vol. I, ob. cit., pág. 300.
[25] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO Tratado de Direito Civil , vol. V, 2ª Reimpressão da edição de maio de 2005, Coimbra, Almedina, 2011, pág. 278.
[26] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO Tratado de Direito Civil, ob. cit., pág. 290.
[27] ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO Tratado de Direito Civil, ob. cit., pág. 292.