Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2838/22.9T8GDM-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: DESPACHO DE CONVOCAÇÃO DE AUDIÊNCIA PRÉVIA
DESPACHO SANEADOR
CONHECIMENTO IMEDIATO DO MÉRITO DA CAUSA
Nº do Documento: RP202403182838/22.9T8GDM-A.P1
Data do Acordão: 03/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não cumpre o desiderato do art. 591.º CPC e, bem assim, do art. 3.º, n.º 3, o despacho judicial que convoca audiência prévia com indicação genérica das finalidades previstas naquele primeiro normativo, sem indicação casuística de que pretende conhecer deste ou daquele pedido, já na fase do despacho saneador, por entender verificada esta ou aquela exceção ou por considerar que os factos, tal como se acham alegados pelo A. (ou pelo R.) não permitem a procedência do pedido (ou da exceção) ou por esta ou por aquela razão.
II - O art. 595.º, n.º 1 al. b) CPC, destina o despacho saneador ao conhecimento imediato da causa quando não exista necessidade de mais provas, designadamente por os factos estarem assentes, não sendo disputados pelas partes e não se colocando já qualquer dúvida sobre a sua natureza provada ou não provada.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2838/22.9T8GDM-A.P1

Sumário do acórdão proferido elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:

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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

Relatório

AUTORA: AA, residente na Rua ..., nº..., 1º,..., Concelho de Valongo.

RÉ: A..., SA, com sede na Estrada ..., ..., ..., Concelho de Gondomar.

Por via da presente ação declarativa, instaurada a 21.8.2022, pretende a A. obter a condenação da Ré a restituir-lhe o veículo automóvel que a Ré detém e que se recusa a entregar-lhe, alegando direito de retenção por crédito decorrente de serviços por si prestados, não obstante ter sido já julgada improcedente ação instaurada pela Ré contra a A. visando o pagamento do preço de tais putativos serviços. Mais pretende indemnização por danos não patrimoniais e € 10,00 por cada dia de privação do uso da viatura, até efetivo e integral pagamento, computando-a na data da instauração da ação, na quantia de € 17.000,00.

Contestou a Ré, defendendo-se por exceção de abuso do direito por a A. estar ciente de que o veículo, sendo seu, foi entregue para reparação pelo seu filho, tendo a A. permitido que este o abandonasse nas instalações da Ré, apesar de a Ré lhe haver solicitado a sua retirada, nunca tendo invocado direito de retenção.

Alem disso, a viatura em causa tinha, na data em que foi abandonada nas instalações da ré, mais de oito anos e 305.300km de uso, encontrando-se sem motor porque foi levado pelo filho da autora com conhecimento e autorização desta, em maio de 2018 e, no momento da entrada em oficina, em outubro de 2017, estava avariada, com óleo no sistema de refrigeração, não podendo circular.

Estando o veículo ocupando o seu espaço, há 1600 dias, à data da contestação, pede, em reconvenção, o valor de €10, 00, diários por tal depósito, pretendendo, ainda, a condenação da A. como litigante por má-fé.

A A. apresentou réplica, opondo-se à procedência das exceções e reconvenção e reafirmando não ter a Ré nunca permitido o levantamento do veículo das suas instalações, sem que lhe fossem pagos os serviços que alegava haver prestado.

A A. foi convidada a aperfeiçoar a pi, tendo apresentado mais dois articulados iniciais em resposta a tal solicitação.

A Ré exerceu contraditório.

Por despacho de 11.3.2023, foi determinado o seguinte:

Para a realização da audiência prévia a que alude o art. 591.º do Código de Processo Civil (CPC), designo o próximo dia 20 de Abril de 2023, pelas 9.30h, neste Tribunal (e não antes, considerando a indisponibilidade de agenda deste Tribunal para data anterior e a interposição de férias judiciais).

A audiência prévia agora designada tem por objecto os seguintes fins:

a) Realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594.º;

b) Facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa;

c) Discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litígio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate;

d) Proferir despacho saneador, nos termos do n.º 1 do artigo 595.º;

e) Determinar, após debate, a adequação formal, a simplificação ou a agilização processual, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 6.º e no artigo 547.º; e

f) Proferir, após debate, o despacho previsto no n.º 1 do artigo 596.º e decidir as reclamações deduzidas pelas partes.


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Considerando que a audiência em causa visa a realização de uma tentativa de conciliação, tenha-se em conta o disposto no artigo 594.º n.º 2 do CPC aquando da notificação das partes para a presente diligência.

Notifique, cumprindo o disposto no art.º 151.º do CPC.

A 18.4.2023, BB, suscitou incidente de intervenção principal, pretendendo figurar na ação, do lado ativo, invocando litisconsórcio com a A., fazendo seus os articulados desta.

Tendo-se a Ré oposto a tal incidente, veio o mesmo a ser indeferido por despacho de 22.4.2023.

Teve lugar audiência prévia, a 25.5.2023, aí se admitindo o pedido reconvencional, fixando o valor da causa, proferindo despacho saneador e julgando improcedente a ação, prosseguindo os autos apenas para conhecimento do pedido reconvencional.

Desta decisão recorre a A., visando a sua revogação, com base nos argumentos que assim conclui:

1. O Tribunal “a quo” considerou, em sede de audiência prévia, que os autos continham todos os elementos necessários à apreciação do mérito, pelo que nada obstava à prolação de decisão quanto aos pedidos formulados pela Autora/Recorrente.

2. O tribunal “a quo”, ao abrigo do disposto no artigo 595º nº1 alínea b) do Código de Processo Civil, julgou a ação improcedente, por não provada, e absolveu a Ré dos pedidos formulados pela Autora/Recorrente.

3. Contudo, nunca o despacho que designou a realização da audiência prévia ventilou, sequer, a possibilidade de se conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa.

4. O despacho que designou a realização da audiência prévia apenas se limitou a reproduzir as alíneas do nº1 do artigo 591º do Código de Processo Civil e mencionar que a audiência em causa visava a realização de uma tentativa de conciliação.

5. A Juiz “a quo” ao ter previsto poder conhecer do mérito de causa quanto aos pedidos formulados pela Autora/Recorrente, no âmbito do saneador, impunha-se que no despacho que designou a audiência prévia tivesse feito referência expressa a tal finalidade de modo a que esta tivesse a possibilidade de poder exercer, nela, efetivamente o contraditório.

6. Não era lícito à Juiz “a quo” decidir questões de direito ou de facto, mesmo de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciarem (cfr. artigo 3º nº3 do Código de Processo Civil).

7. O exercício do contraditório é, sempre, justificável e desejável se puder gerar o efeito que com ele se pretende – permitir que a pronúncia das partes possa influenciar a decisão do Tribunal.

8. O tribunal “a quo” não poderia ter decidido, de imediato, sobre o mérito da causa, sem, no mínimo dos mínimos, ouvir as partes em sede de audiência prévia.

9. Não tendo sido facultada às partes a possibilidade de poderem exercer a discussão, de facto e de direito, da causa, tal omissão representa uma nulidade processual, nos termos do artigo 195º do Código de Processo Civil.

10. O saneador-sentença, ao conhecer, de imediato, o mérito da causa, fez um uso indevido do disposto na alínea b) do nº1 do artigo 595º do Código de Processo Civil, em violação do princípio do contraditório (na vertente da proibição das decisões-surpresa), do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, e ainda do direito a um processo justo e equitativo, todos previstos nos artigos 3º, nº3, 6º, nº1, 591º, nº1, b) do Código de Processo Civil, e artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, razão pela qual enferma de nulidade processual e deverá ser anulado nos termos do disposto no artigo 195º do Código de Processo Civil.

SEM PREJUÍZO,

11. A decisão do processo na fase do saneador-sentença só poderá suceder quando, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, a matéria de facto não deixar dúvidas a ninguém sobre a sua procedência ou improcedência.

12. Entendemos que os autos ainda não fornecem todos os elementos necessários, para uma decisão conscienciosa e justa.

13. Por isso, com todo o respeito pela julgadora da 1.ª instância, o Tribunal “a quo” ajuizou mal ao enveredar pela decisão da questão do direito de retenção na fase de saneamento.

14. Não se pode corroborar o decidido na 1ª instância relativamente à questão do direito de retenção, onde se omitiu pura e simplesmente o facto da Ré ter comunicado, no dia 20/03/2018, à Autora, através de e-mail que “condicionava” o levantamento da viatura ao pagamento dos serviços nela realizados.

15. Porquanto, a mencionada missiva enviada aos mandatários da Autora refere que “à semelhança do comunicado no passado dia 20.03.2018, que deverão proceder à recolha da viatura e pagamento dos trabalhos efetivamente realizados.

16. Ou seja, à semelhança do comunicado no dia 20.03.2018, significa que tal levantamento da viatura estava condicionado ao contra pagamento dos serviços realizados.

17. Contudo, o tribunal “a quo” não apreciou essa prova documental (comunicação de 20.03.2018) junta com a Réplica.

18. Pelo que, não se pode corroborar o decidido na 1ª instância relativamente à questão do direito de retenção, onde se omitiu pura e simplesmente o facto da Ré ter comunicado, no dia 20/03/2018, à Autora/Recorrente, através de e-mail que “condicionava” o levantamento da viatura ao pagamento dos serviços nela realizados.

19. E a sentença proferida no âmbito do processo nº28756/19.0YIPRT apenas tem força do caso julgado relativamente ao facto da Ré ter interpelado a Autora para proceder ao levantamento da viatura.

20. Contudo, essa sentença não faz força do caso julgado relativamente ao facto desse levantamento se encontrar ou não dependente do pagamento exigido pela Ré.

21. Pois, a questão da retenção da viatura não foi dirimida no âmbito da mencionada ação especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato.

22. A autoridade de caso julgado de uma sentença só existe na exata correspondência com o seu conteúdo e daí não possa impedir que, em novo processo, se discuta e dirima aquilo que ela mesmo não definiu.

23. Na realidade, o tribunal “furtou-se” à análise dos factos e da totalidade da prova documental produzida pela Autora na Petição Inicial e na Réplica.

24. Bem como na demais prova que haveria de resultar do requerimento probatório apresentado por esta, que o tribunal não apreciou, nomeadamente o depoimento da testemunha CC que redigiu as mencionadas comunicações, em nome da Ré, e que seria essencial para apurar se a Ré invocou o direito de retenção contra a Autora/Recorrente, negando-se a restituir a viatura enquanto não fosse pago o valor dos trabalhos prestados.

25. Por tudo isto se conclui que o saneador-sentença constitui um julgamento sumário, extemporâneo e em denegação do direito da Autora ao acesso à justiça e a uma tutela jurisdicional efetiva em cumprimento do disposto no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa e artigo 2º do Código de Processo Civil.

26. Razão pela qual deverá ser concedido provimento ao presente recurso, julgando-o totalmente procedente e, em consequência, revogar-se a sentença recorrida, substituindo-a por outra em que se determine o prosseguimento da causa e apreciação dos factos e prova pelo tribunal “a quo”.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Nesta Relação, a relatora proferiu despacho, datado de 25.1.2024, convidando as partes a, querendo, pronunciarem-se quanto à aplicação do disposto no art. 665.º CPC.

Objeto do recurso:

- da nulidade por violação do princípio do contraditório.

- da possibilidade do imediato conhecimento do pedido da A. em fase de despacho saneador.

FUNDAMENTAÇÃO

Matéria de facto

Além dos factos relativos ao iter processual e acima mencionados, dão-se de seguida como provados os factos considerados demonstrados na decisão recorrida:

1. A autora é proprietária da viatura automóvel de marca Seat, modelo ... e com a matrícula ..-HG-.. – cfr documento 1 junto com a petição inicial e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido.

2. A ré dedica-se ao comércio de veículos automóveis ligeiros.

3. A ré reivindicou da autora o pagamento da quantia de € 1.405,77 (mil quatrocentos e cinco euros e setenta e sete cêntimos), IVA incluído.

4. A autora sempre se negou a pagar em virtude de não ter solicitado quaisquer serviços à ré.

5. Em março de 2019, a ré deu entrada com procedimento injuntivo contra a autora, tento como causa de pedir o cumprimento da obrigação emergente da reparação do veículo propriedade da autora.

6. A ré alegou que prestou serviços de reparação para a autora.

7. Que a dita reparação tinha ficado concluída no dia 30.10.2017.

8. A ré alegou que, para a reparação do veículo, tinha prestado serviços que incluíram a aplicação de peças e acessórios e mão de obra mecânica com as seguintes designações, quantidades e preços:

a. Peças na importância de € 495,51

b. Mão de Obra na importância de € 647,399. Porém, a autora apresentou oposição;

10. Essa acção foi julgada improcedente, por sentença transitada em julgado.

11. Da referida sentença constam os seguintes factos provados:

“1. A autora é uma sociedade comercial anónima, que se dedica à atividade de comercialização de peças e acessórios, óleos e similares para automóveis, bem como à comercialização e reparação de veículos automóveis.

2. A ré é dona e legítima proprietária do veículo automóvel com a matrícula ..-HG-.., de marca SEAT, modelo ....

3. A pedido de BB, filho da ré e utilizador habitual do veículo acima identificado, a autora efetuou serviços de revisão mecânica desta, tendo, na sua sequência, sido detetadas anomalias no funcionamento do respetivo radiador, cuja reparação aquele pediu à autora que orçasse e, dependendo do respetivo preço, viesse a efetuar, após sua aprovação.

4.A autora aplicou no veículo referido peças e acessórios, com o valor de € 495,51, e executou o trabalho inerente à sua aplicação, com o valor de € 647,39, o que, acrescido do IVA à taxa legal, perfaz a quantia total de € 1.405,77.

5. Na sequência de diversos desentendimentos entre a autora e BB acerca da origem das anomalias detetadas no radiador do veículo, dos meios técnicos necessários à sua reparação e ao respetivo preço, o veículo referido manteve-se na oficina da autora, depois de terminada a intervenção inicialmente solicitada, em 30/10/2017, aí se mantendo até à presente data, apesar de a autora ter solicitado à ré e àquela pessoa que procedessem ao levantamento do seu veículo nas suas instalações.

6. A autora emitiu, em nome da ré, a fatura com o n.º ..., de 18/02/2019, com o valor total, incluindo IVA, de € 1.405,77.

7. Desde a data da conclusão da reparação que o veículo referido está a ocupar espaço da oficina da autora.”

12. A autora enviou, através de seus mandatários, à ré carta datada de 6/04/2018, onde se pode ler, entre o mais, o seguinte, cfr. documento 2 junto pela autora com a réplica e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido: “Neste sentido, face ao anteriormente relatado e à actuação culposa e prejudicial de V. Exas, solicitamos que no prazo máximo de 10 dias, procedam à entrega da viatura no estado em que se encontra, bem como assumam a responsabilidade por todos os prejuízos decorrentes das avaliações erróneas efectuadas por V. Exas.”

13. A ré enviou aos mandatários da autora missiva de 14/05/2018, onde se pode ler, entre o mais, o seguinte, cfr. documento 2 junto com a petição inicial e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido: “Como já referido a A... atuou sempre de boa-fé e com diligência, cumprindo todos os parâmetros preconizados pela marca SEAT, pelo que a imobilização da viatura apenas aos N/ comuns clientes é devida Ficam pois novamente interpelados, à semelhança do comunicado no passado dia 20.03.2018, que deverão proceder à recolha da viatura e pagamento dos trabalhos efetivamente realizados, a que acresce o montante devido pela utilização diária do nosso espaço de oficina.”

Deu-se aí como não provado:

14. A ré invocando o direito de retenção contra a autora, negou-se a restituir a viatura enquanto não fosse pago o valor dos trabalhos prestados.

A motivação da decisão de facto é a seguinte:

Tais factos encontram-se inequivocamente demonstrados com base no acordo das partes, com base no teor da correspondência trocada entre as partes e ainda com base no teor da sentença proferida no processo n.º 28756/10.0YIPRT, pelo Juízo Local Cível de Valongo J1, o qual faz caso julgado entre as partes. Bastaria esta última, aliás, para que se considerasse que não houve qualquer retenção do veículo por parte da ré, por força do caso julgado do facto provado 5. Todavia, é a própria autora que reconhece que a forma como pediu a entrega da viatura foi a carta enviada em 6/04/2018 e que a forma como a recusa foi manifestada foi através da carta de 14/05/2018. Ora, da leitura destas missivas se extrai que a ré não reteve o veículo, pelo contrário, informou os mandatários da autora de que o deveria levantar (e também pagar a quantia devida, sem que em momento algum resulte que tivessem condicionado a referida entrega a tal pagamento).

Ora, sem se avançarem considerações sobre a eventual licitude da retenção efectuada pela ré (cfr. artigo 755.º do Código Civil), a verdade é que a própria retenção, por parte da ré, que era um facto essencial cujo ónus da prova onerava a autora, não ficou demonstrada.

Não se provou, de modo algum, que a ré se tenha recusado a restituir a viatura, pelo contrário, a ré solicitou à autora que procedesse ao seu levantamento. E também não é possível produzir qualquer outro meio de prova sobre esta matéria, não apenas por força do caso julgado mas também pela circunstância de a autora ter afirmado que a forma como pediu a devolução e a forma como tal devolução foi recusada foram as supra referidas missivas.

Ora, nos termos do disposto no artigo 342.º do Código Civil:

(…)

A autora não demonstra um facto essencial constitutivo do seu direito e, nessa medida, o seu pedido soçobrará, quer na parte em que é pedida a condenação da ré na restituição (não é possível condenar a ré a restituir uma coisa que não retém por sua vontade), quer também no pedido de indemnização por danos morais, por desvalorização do veículo e por privação do uso, que sempre dependeriam da prova da recusa da entrega.

Fundamentos de Direito

A recorrente considera nulo o processado por violação do princípio do contraditório e tendo em vista a aplicação das normas dos arts. 3.º e 195.º CPC.

Alude à circunstância de haver sido conhecido do mérito da demanda no despacho saneador, não tendo as partes sido notificadas de que, em concreto, tal sucederia, limitando-se o tribunal a quo a remeter de forma genérica para a previsão do art. 591.º CPC, na altura em que designou a audiência prévia.

Quando o juiz, findo o período dos articulados e considerando o estado do processo, entender que dispõe de condições para decidir já o mérito da causa, essa decisão será incluída no despacho saneador, a proferir, em princípio, na audiência prévia (arts. 591.º/d, 595.º/1/b e 595.º/2).

A audiência prévia destina-se a facultar às partes uma discussão sobre as vertentes do mérito da causa que o juiz projeta decidir.

O juiz não deve decidir o litígio sem um debate prévio, no qual os advogados das partes tenham a oportunidade de produzir alegações orais, de facto e de direito, acerca do mérito da causa.

Nessas alegações, as partes poderão tecer os considerandos que tenham por convenientes, no sentido de justificar e fundamentar a procedência das respetivas pretensões, além de poderem tomar posição sobre eventuais exceções perentórias não discutidas nos articulados, mas que o juiz entenda poder conhecer oficiosamente.

Deve ser proporcionada às partes a possibilidade de produzirem alegações quando o juiz se proponha decidir o mérito da causa num enquadramento jurídico diverso do assumido e discutido pelas partes nos articulados.

A realização de audiência prévia impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão surpresa (situação proibida pelo art.3.º/3) e impede os casos em que a anunciada intenção de conhecimento imediato do mérito da causa derive de alguma precipitação do juiz.

Não determinando a realização de audiência prévia, a intenção de conhecer do mérito da ação no saneador deverá ser precedida de audição das partes por escrito, sendo estas notificadas especificamente para o efeito.

A realização de tal audiência prévia, tendo em vista o conhecimento total ou parcial do mérito, pressupõe que às partes é previamente indicada essa intenção como sendo um dos objetos da diligência.

A indicação genérica do teor do art. 591.º CPC não possibilita aos sujeitos processuais pronunciarem-se sobre os temas concretos que o juiz entende já poder conhecer em face dos factos já apurados ou o que o mesmo considera deverem ter-se por assentes.

Afigura-se-nos, assim, não cumprir o desiderato deste último normativo e, bem assim, do art. 3.º, n.º 3, o despacho judicial que convoca audiência prévia com indicação genérica das finalidades previstas no art. 591.º CPC, sem indicação casuística de que pretende conhecer deste ou daquele pedido, já na fase do despacho saneador, ou por entender verificada esta ou aquela exceção ou por considerar que os factos, tal como se acham alegados pelo A. (ou pelo R.) não permitem a procedência do pedido (ou da exceção) ou por esta ou por aquela razão.

No caso, cabia ao tribunal recorrido, indicar entre as finalidades da audiência prévia a referência à intenção de decidir de imediato sobre a improcedência do pedido formulado pela A. por considerar não estar demonstrado ter a Ré negado a entrega do veículo à A. mediante a invocação de um direito de retenção.

Só assim sucedendo, poderia a A. contrapor, como o faz em alegações de recurso, ser essa a intenção da Ré, colocando em causa a conclusão contida na motivação da decisão de facto, quanto à existência de caso julgado decorrente do julgamento anterior (exceção não debatida nos articulados) e do ponto 5 dos factos dados como provados no processo 28756/19.0YIPRT, e esclarecendo o teor da carta da Ré, datada de 14.5.2018.

Não o tendo feito, o tribunal a quo violou o disposto no art. 3.º, n.º 3, CPC.

Entende a A. que, assim, se mostra praticada nulidade capaz de influir na decisão da causa, tratando-se de vício procedimental, previsto no art. 195.º, n. º1, CPC.

É consabido que a este respeito se podem defrontar posições distintas quanto à consequência da violação do princípio do contraditório[1].

Acaso se entenda, como a recorrente, estarmos perante uma nulidade procedimental cujo efeito redunda na nulidade do processo desde a verificação do vício, deve a parte invocar (reclamar) o vício (art. 197.º CPC), sendo que, tratando-se da nulidade prevista no art. 195.º, n.º 1, o que deve acontecer de imediato, quando a parte estiver presente, por si ou mandatário, no momento em que for cometida; se não estiver presente, o prazo de 10 dias, conta-se a partir do momento em que a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para o termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligencia (art. 199.º CPC).

Na situação dos AA., o mandatário da A. encontrava-se presente na diligência – audiência prévia de 25.5.2023 – em que a nulidade foi cometida, pelo que lhe cabia arguir aí, ou no decêndio posterior, a dita nulidade processual, o que não fez, vindo depois argui-la já fora de tempo, em 29.6.2023.

Sendo assim, caberia considerar extemporânea a arguição da nulidade e, por via disso, sanado o correspondente vício.

A solução final – prosseguimento para conhecimento do objeto do recurso relativo à decisão sobre o mérito da demanda da A. – seria exatamente idêntica, caso aqui optássemos por considerar que, ao invés de nulidade processual, o vício em apreço – violação do contraditório – acaba por redundar em nulidade da decisão, mormente por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º1 e) CPC), vício este arguível já em sede de recurso e cuja verificação determinaria a substituição do tribunal recorrido, desde que – como sucedeu – as partes tivessem sido ouvidas (art. 665.º, n.ºs 1 e 3 CPC).

Termos em que, prosseguimos para avaliação da decisão, em fase de saneador, sobre a inexistência da recusa, pela Ré, da entrega do veículo automóvel à A., dando-se como não provado o ponto 14.

A A. entendeu que, com a carta datada de 14.5.2018, a Ré se negou a devolver-lhe o veículo, caso não lhe fosse pago o valor dos trabalhos que alega ter prestado.

É o seguinte o teor de tal carta:

Entendeu o tribunal que, desta forma, não está demonstrado exercício de um direito de retenção por parte da Ré, não se demonstrando ter esta recusado restituir a viatura, e considerando que “pelo contrário, a Ré solicitou à autora que procedesse ao seu levantamento”.

Tanto a pretensão da A., como a pretensão da Ré assentam na consideração de que o veículo se acha nas instalações da segunda de forma indevida. A A. afirma ter-se a Ré negado a restituí-lo, sem que lhe fosse pago determinado valor; contrapõe a Ré, como fundamento da reconvenção, terem a A. e filho abandonado o veículo nas suas instalações, convencendo-a que não mais o recolheriam, apesar de a Ré lhes haver solicitado que procedessem ao levantamento do veículo.

O art. 595.º, n.º 1 al. b) CPC, destina o despacho saneador ao conhecimento imediato da causa quando não exista necessidade de mais provas, designadamente por os factos estarem assentes, não sendo disputados pelas partes e não colocando já qualquer dúvida sobre a sua natureza provada ou não provada.

Na situação que nos ocupa, a A. alega ter-se a Ré negado a devolver-lhe um veículo que mantém nas suas instalações e, instada em primeira instância, por despacho de 1.2.2023, para que esclarecesse “em que data e por que meio solicitou à ré a entrega da viatura identificada nos autos e em que data e por que meio lhe foi comunicada a recusa de tal entrega” apresentou o articulado de 16.2.2023, onde alega ter solicitado à Ré a devolução do automóvel por carta de 6.4.2018 (doc. 2 junto com tal articulado), ao que a Ré terá respondido com a já mencionada missiva, de 14.5.2018, que a A. interpretou como recusa de devolução sem que o valor de reparação lhe fosse pago.

Sendo assim, poderia o tribunal interpretar o teor desta missiva em sentido divergente?

Cremos que não.

Os documentos cujo conteúdo dará lugar a factos provados, sem contestação e que, por isso, podem, desde logo, fundar decisão de mérito no saneador-sentença são aqueles cuja redação e conteúdo se revela linear, aceite pelas partes quanto ao seu sentido e intenção, sem possibilidade de invocação de linhas de interpretação distintas. Dito de outro modo: só sendo um documento inequívoco quanto ao que nele consta podem dar-se como provados factos nele relatados.

Quando ocorre, como aqui sucede, ter uma parte interpretado a comunicação de uma forma e a outra parte pretender-lhe dar outro significado (o que sequer resulta claro da alegação da Ré), afigura-se-nos estar em causa um problema técnico-jurídico de interpretação do teor do documento que não vai sem recurso às regras da interpretação da declaração negocial (arts. 236.º e ss. CC), o que se supõe se atenda a toda a situação envolvente, mormente às circunstâncias que rodearam o documento em causa.

Sendo assim, pode afirmar-se que, na carta de abril de 2018, a Ré apenas admite entregar o automóvel caso lhe seja pago que nele diz ter despendido? Ou pode, em face de tal texto, dar-se desde já como não provado ter-se a Ré negado à entrega enquanto lhe não fossem pagos os trabalhos prestados.

A resposta não pode ser dada, sem mais, já em fase de despacho saneador.

Com efeito, em tal carta, a Ré apela, desde logo, a comunicação que efetuara já em fevereiro desse ano, referindo “à semelhança da comunicação do passado dia 20.3.2028”, não resultando dos factos provados ou da motivação da decisão de facto qualquer referência a tal comunicação que, desde logo, poderia confirmar ou infirmar a posição da A.

Compulsando os autos, neles constatamos a existência de uma comunicação eletrónica dirigida pela Ré ao filho da A., com data de 20.3.2018 (doc. 1 junto com o articulado de 14.11.2022), onde a Ré afirma “não pretendendo prosseguir a reparação, deverão V. Exas. proceder ao levantamento da viatura, o que poderão fazer contra pagamento dos trabalhos nele realizados, sem prejuízo da cobrança diária de utilização do espaço da nossa oficina”.

A referência à possibilidade do levantamento do carro surge, assim, manifestamente condicionada (contra pagamento) a um pagamento prévio que a A. considera não ser devido (pagamento esse que a Ré viu já ser-lhe negado por sentença).

Também do ponto 5 da matéria de facto constante da sentença em que culminou o pedido da Ré para que A. lhe pagasse tal valor – decisão que não reconheceu à Ré tal direito de crédito – não resulta ter a Ré permitido (ou impedido) a A. de proceder ao livre levantamento do automóvel, pois aí apenas se afirma manter-se este na oficina da segunda, apesar de esta ter solicitado à primeira que o levantasse, o que é verdade, mas carece de ser complementado com a alegação – não contrária a esta afirmação – que, nestas comunicações (de fevereiro e abril de 2018), a Ré alude a um contra pagamento.

Sendo este o conteúdo dos documentos, afigura-se-nos prematuro afirmar, sem mais, não estar (ou estar) demonstrado não ter a Ré exigido qualquer pagamento como condição para que a A. procedesse ao levantamento do seu automóvel nas instalações daquela.

Coisa distinta é a apreciação do alegado pela Ré a este respeito, mormente o pretendido abuso do direito por parte da A. invocado pela Ré na contestação, o que pressupõe que os autos prossigam para julgamento e se apurem os contornos exatos do sucedido (porventura com inquirição de quem levou o automóvel para reparação e de quem, por parte da Ré, manteve negociações com aquele), sem prejuízo da interpretação dos documentos à luz da prova que logre obter-se quanto às razões da permanência do automóvel nas instalações da A., mormente após a sentença de 5.3.2020.

Dispositivo

Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso procedente e, assim, revogar a decisão recorrida, determinando o prosseguimento dos autos para julgamento também relativamente aos pedidos formulados pela A.

Custas pela A. (art. 527.º, n.º 1, parte final, CPC).


Porto, 18.3.2024
Fernanda Almeida
Miguel Baldaia de Morais
Carlos Gil
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[1] Sobre as diversas posições que se perfilam a este respeito, pode ver-se Luís Correia de Mendonça, O contraditório e a proibição das decisões-surpresa, disponível em https://portal.oa.pt/media/135588/luis-correia-de-mendonca.pdf. Ainda, a dissertação de mestrado apresentada na Universidade de Coimbra, por Ana Lúcia Moreira, em julho de 2023, intitulada Princípio da proibição das decisões surpresa o desejo de uma justiça efetiva, ps. 45 e ss, disponível em
https://estudogeral.uc.pt/retrieve/266079/Princ%c3%adpio%20da%20Proibi%c3%a7%c3%a3o%20das%20Decis%c3%b5es-Surpresa%20-%20O%20Desejo%20de%20uma%20Justi%c3%a7a%20Efetiva.pdf