Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1120/23.9T8MTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE MARTINS RIBEIRO
Descritores: CONCESSIONÁRIA DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PÚBLICO
COBRANÇA COERCIVA
TRIBUNAL MATERIALMENTE COMPETENTE
Nº do Documento: RP202403181120/23.9T8MTS.P1
Data do Acordão: 03/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A relação que se estabelece entre a concessionária de prestação de um serviço público essencial, como de água e de saneamento (independentemente de aquela ser uma pessoa coletiva de direito privado), e os consumidores não é uma relação de direito civil, porquanto reveste-se de particularidade próprias do direito público, na medida em que os particulares não têm plena liberdade contratual e estão sujeitos a normativos legais que corporizam o ius imperii do Estado, no âmbito administrativo de gestão pública e do interesse público – ou seja, é uma relação jurídica administrativa, como referido no art.º 4.º, n.º 1, al. o), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, E.T.A.F.
II - O tribunal materialmente competente para conhecer de um litígio entre uma sociedade concessionária de prestação de um serviço público essencial, como de água e de saneamento, atinente à cobrança dos custos de construção dos ramais inerentes à obrigação de os cidadãos se ligarem obrigatoriamente ao sistema, é o tribunal administrativo e fiscal territorialmente competente.
III Neste sentido, é paradigmático que o legislador tenha sentido a necessidade de excluir da jurisdição administrativa e fiscal, no art.º 4.º, n.º 4, al e), do E.T.A.F., “[a] apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”.
IVNão vemos razões de interesse público para que a atual diferença de regime (entre a competência dos tribunais judiciais para apreciarem litígios relacionados com a prestação de serviços públicos essenciais e a competência dos tribunais administrativos e fiscais, no caso, para apreciar a relação administrativa subjacente aos serviços de construção e ligação de ramais à rede) não seja alterada de jure constituendo, cometendo o legislador aos tribunais judiciais também os litígios referentes a tais ligações à rede, alargando então as hipóteses atualmente previstas no art.º 4.º, n.º 4, al. e), do E.T.A.F.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO N.º 1120/23.9T8MTS.P1

SUMÁRIO (art.º 663.º, n.º 7, do C.P.C.):

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Acordam os Juízes na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto, sendo

Relator: Jorge Martins Ribeiro;

1.º Adjunto: Carlos Gil e

2.ª Adjunta: Eugénia Cunha.


ACÓRDÃO


        I – RELATÓRIO

         Nos presentes autos de ação declarativa sob a forma de processo comum, para cobrança de quantia certa, é recorrente a autora (A.) “A..., S.A.”, titular do N.I.F. ...05, com sede na Av. ..., ..., ..., e é réu (R.) AA, titular no N.I.F. ...35, residente na Rua ..., ... ....


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         Procedemos agora a uma síntese do processado destinada a facilitar a compreensão do objeto do presente recurso.

1) A presente ação foi interposta aos 23/02/2023, peticionando a A. a condenação do R. no seguinte pedido:

         “Nestes termos e nos mais de Direito, deverá a presente ação ser julgada procedente por provada e, em consequência, ser o Réu condenado a pagar à Autora a quantia total de 409,99€, sendo 344.28€ de capital, a quantia de 47,36€ a título de despesas administrativas e 18,35€ de juros de mora vencidos calculados à taxa legal comercial em vigor desde a data de vencimento das supra citadas faturas peticionadas (08/06/2022) até hoje e ainda os juros vincendos às sucessivas taxas legais comerciais de mora em vigor até efetivo e integral pagamento”.

         Para tal invocou, em suma, que:

         a)A Autora é uma sociedade comercial anónima que se dedica, em regime de concessão, nomeadamente, à prossecução da exploração e gestão conjunta dos serviços públicos municipais de abastecimento de água para consumo público e de recolha, tratamento e rejeição das águas residuais do Município ..., conforme certidão permanente de registo comercial com o código de acesso nº ...07 - doc.1.”.

      b)Assim, a Autora detém a concessão para exploração dos serviços municipais de distribuição de água e recolha e tratamento de água residuais no concelho de Matosinhos, com contrato de concessão em vigor desde 17.09.2007 até à presente data.

Cfr. http://www.A.....matosinhos.pt/fotos/editor2/01_contrato_de_concessao_asc.pdf - doc. 2.”.

         c)O Réu efetuou, junto da A., pedido de ligação da sua rede predial ao sistema público e inerente contratação do respetivo serviço – cfr. doc. 3 e 4.”.

         d)Sendo certo que, verificando-se a disponibilidade das redes públicas junto do imóvel em apreço, nos termos do disposto no art. 59º do DL 269/2009 de 20 de Agosto, a ligação da rede predial do imóvel em apreço ao sistema público era e é obrigatória ao abrigo do disposto no art. 69º do citado Decreto-Lei”.

         e)Nessa sequência, foram emitidas e remetidas ao Réu as faturas peticionadas, para liquidação da tarifa/preço inerente à construção do ramal, liquidação da tarifa de ligação de águas residuais, inspeção e vistorias efetuadas ao imóvel do mesmo, para ligação e contratação do serviço solicitado, conforme discriminação das mesmas – cfr. doc. 5, 6 e 7”.

 2) Aos 29/03/2023 o R. apresentou a sua contestação. Defendeu-se por exceção, considerando que o prazo de prescrição aplicável é o especial de 6 meses (por entender estar em causa o fornecimento de bens/serviços pela A. ao R., nos termos do regime da Lei 23/96, de 26/07, lei dos serviços públicos essenciais, mormente dos seus artigos n.º 1, n.º 1 e n.º 2, alíneas a) e b), e art.º 10.º, n.º 1), pelo que tal prazo tinha já decorrido à data da interposição da ação e, em consequência, impugnou (genericamente([1])) o teor da petição, tendo concluído pela improcedência da ação.

3) No dia 19/05/2023 foi proferido despacho a convidar a A. para, querendo, responder à invocada exceção.

4) A A. respondeu, por articulado datado de 14/06/2023, defendendo que o prazo de prescrição aplicável em causa é o ordinário, de 20 anos, por no caso não estarem em causa faturas de prestação de serviço público essencial, mas sim atinentes à execução (construção) do ramal de ligação à rede que o R. tinha contratado com a A., aludindo ora ao instituto do contrato de prestação de serviço ora ao instituto do contrato de empreitada, como condição prévia de prestação do serviço.

5) No dia 21/06/2023 foi proferido o despacho em que se dispensou a realização de audiência prévia, bem como a fixação do objeto do litígio e dos temas da prova e, tendo sido concluído que não havia qualquer exceção a apreciar([2]), foi designada data para a realização da audiência de discussão e julgamento.

6) Aos 06/11/2023 viria a ser proferido novo despacho por, no seguimento da resposta da R. à exceção de prescrição, ter sido entendido que, não estando em causa um fornecimento de um bem público essencial, o tribunal seria materialmente incompetente (seria materialmente competente o tribunal administrativo e fiscal), pelo que foi dado prazo às partes para se pronunciarem.

7) As partes não responderam a tal despacho; aos 06/12/2023 o R. fez um requerimento a pedir o prosseguimento dos autos.

8) No dia 13/12/2023 foi proferido o despacho recorrido; no mesmo foi decidido o seguinte:

1. Julga-se procedente a exceção dilatória da incompetência material deste Juízo Local Cível de Matosinhos, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto e, em consequência, absolve-se da instância o réu AA.

2. Condena-se a autora no pagamento das custas processuais, nos termos do artigo 527.º n.º 1 do Código de Processo Civil.

Registe e notifique”.

9) Aos 15/01/2024 a A. interpôs o presente recurso.

Formulou as seguintes conclusões([3]):

A. O Recorrido dirigiu, por sua iniciativa, à Recorrente um pedido de execução de ramal e ligação à rede pública, tendente à posterior contratação do serviço de fornecimento de água e saneamento públicos.

B. Os presentes autos têm por base as faturas emitidas e enviadas ao Recorrido, para cobrança de valores respeitantes aos serviços prestados e mencionados nas mesmas (construção de ramais de água e saneamento, vistorias inerentes ao local e tarifa de ligação de águas residuais), na sequência do pedido por esta efetuado, conforme documentos por este assinados e entregues nas instalações da Recorrente;

C. Serviços ligados à prestação de bens públicos essenciais, conforme resulta da causa de pedir e pedido formulado.

D. A situação dos autos, apesar de não configurar um contrato de fornecimento de bens em si mesmos (água e saneamento), integra uma relação contratual de consumo, iniciada por solicitação expressa do Recorrido (consumidor) junto da Recorrente (concessionária), com vista à execução de ramais de ligação para posterior prestação de serviços de fornecimento de água e de saneamento públicos, esses sim qualificados, legalmente, como bens essenciais.

E. Sendo a Recorrente a «prestadora de serviço», a que exerce uma atividade económica, com caráter profissional, para obtenção de benefícios, incluindo a construção de ramais para posterior ligação e contratação do fornecimento do bem: água e saneamento.

F. E o Recorrido o «consumidor», aquele a quem foram fornecidos bens, no caso, prestados serviços, destinados a uso não profissional.

G. Nos termos do artigo 2º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho «Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios» e «Consideram-se incluídos no âmbito da presente lei os bens, serviços e direitos fornecidos, prestados e transmitidos pelos organismos da Administração Pública, por pessoas coletivas públicas, por empresas de capitais públicos ou detidos maioritariamente pelo Estado, pelas regiões autónomas ou pelas autarquias locais e por empresas concessionárias de serviços públicos».

H. Ou seja, consumidor é cada um de nós, é todo aquele todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.

I. São, assim, elementos da relação de consumo, o consumidor e o fornecedor (elementos subjetivos) o produto ou o serviço (elemento objetivo), independentemente do tipo contratual celebrado entre as partes, o que se verifica preenchido no caso dos autos.

J. Entende a Recorrente que esta relação de consumo relativa aos bens de serviço público essencial (água e saneamento) inclui todos os serviços relacionados e intrínsecos a tal abastecimento e saneamento, devidamente previstos na legislação, Regulamento em vigor e tarifários publicitados pela Recorrente.

K. Ora, o serviço em causa prestado – execução de ramal de ligação, tarifas de ligação e tarifas de vistorias inerentes – foi no âmbito da relação de consumo iniciada por solicitação expressa do Recorrido, serviço prévio à contratação do bem essencial, em si mesmo.

L. Trata-se, portanto, de um serviço necessariamente ligado à prestação de bens/serviços públicos essenciais, uma vez que, tal pedido efetuado pelo consumidor é uma condição necessária e essencial à futura celebração do contrato de fornecimento de água.

M. Nesse sentido, destaca-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 17/11/2015, no âmbito do processo 87/15.1YRCBR, disponível em www.dsgi.pt, onde se esclarece que «1. A Lei dos Serviços Públicos Essenciais ( Lei nº 23/96 de 26/7) não é aplicável somente à fase do fornecimento de tais serviços e que pressupõe a prévia celebração de um contrato formal entre a concessionária e o utilizador de tais serviços, mas a toda a relação que se estabelece entre ambos, abrangendo a fase pré-contratual e os serviços prestados pela concessionária com vista ao estabelecimento das condições necessárias à celebração do contrato de fornecimento e à disponibilização de um sistema de abastecimento».

N. Ainda no mesmo sentido, veja-se também o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 01/07/2019, no âmbito do processo 204/18.0YRPRT, disponível em www.dsgi.pt, cujo sumário também esclarece que, e citamos, «III - A Lei dos Serviços Públicos Essenciais não é aplicável somente à fase do fornecimento de tais serviços e que pressupõe a prévia celebração de um contrato formal entre a concessionária e o utilizador dos mesmos, mas a toda a relação que se estabelece entre ambos, abrangendo a fase pré-contratual e os serviços prestados pela concessionária com vista ao estabelecimento das condições necessárias à celebração do contrato de fornecimento e à disponibilização de um sistema de abastecimento».

O. Sem prescindir, caso assim não se entendesse, no que não se concede, é inegável que, ao ser solicitada pelo Recorrido a execução de um ramal de ligação, e ao ser executado pela Recorrente no âmbito das suas funções e serviços incluídos no seu objeto social e contrato de concessão, estamos sempre, obviamente, perante uma relação de consumo em que a Recorrente presta o serviço e o Recorrido recebe a prestação do mesmo, por sua solicitação.

P. Estamos perante um vínculo contratual – o contrato de empreitada celebrado entre as partes a pedido do Recorrido.

Q. Motivos pelos quais sempre a relação em causa está expressamente abrangida pela atual alínea e) do art.º 4º do ETAF.

R. A recorrente não pratica atos administrativos, nem celebra contratos administrativos com os utilizadores, presta apenas, por força do contrato de concessão (este sim público), serviços/bens de caráter público essencial e, a considerar-se – o que por mero dever de patrocínio se admite - que atua no âmbito de poderes públicos transmitidos por força da concessão,

S. Então todos os seus poderes teriam que ser considerados de natureza pública, e todos os seus atos teriam natureza pública incluindo os praticados no abastecimento mensal de água e prestação de saneamento a todos os consumidores, o que não é o caso.

T. Dado que todos os seus poderes e atos têm a mesma origem: o contrato de concessão.

U. E a verdade é que a alteração efetuada pela Lei 114/2019 ao art.º 4º do ETAF não refere contratos de consumo ou contratos respeitantes a bens públicos essenciais mas, de uma forma muito mais abrangente, refere-se a relações de consumo, aqui incluídos todos os atos relacionados com o contrato de consumo, quer os pré-contratuais quer os que decorrem no decurso do contrato do ato concreto de prestação de serviços essenciais, esses sim, de fornecimento de água e saneamento.

V. Nos termos do disposto na alínea e) do atual art.º 4º do ETAF, na redação dada pela Lei 114/2019 de 12.09.2019, está excluída da competência dos tribunais administrativos e fiscais a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva (o sublinhado é nosso).

W. Esta alteração legislativa veio precisamente no sentido de clarificar as questões interpretativas, nomeadamente jurisprudenciais, e com conflitos de competências que se levantavam no âmbito da anterior redação do art.º 4º do ETAF.

X. No fundo, o que a alínea e) do nº4 do art.º 4º do ETAF diz é o seguinte: mesmo que esteja em causa a prestação de um serviço público essencial no âmbito de uma relação de consumo, os Tribunais Administrativos e Fiscais não são competentes para decidir sobre tal matéria.

Y. Com a alteração daquele normativo, com a nova alínea e) do nº4 do artigo 4º do ETAF, da sua leitura e da razão de ser da alteração, só pode resultar, a contrario, que as questões que emergem de contratos celebrados entre uma empresa concessionária de serviço público de fornecimento de água ao domicílio e os respetivos clientes finais, quanto ao pagamento do custo dos ramais de ligação de edifício particular à rede pública, os quais permitiriam a posterior celebração de contratos de consumo, no domínio da vigência do ETAF, já com a alteração legal introduzida pela Lei 114/2019, de 12-09, são da competência dos tribunais judiciais cíveis, pois que foi essa atribuição que o legislador quis alterar, ainda que se entenda, no que não se concede, estarmos perante uma relação que não é de consumo.

Z. Consequentemente, e desde logo, não faz sentido fazer tábua rasa da clarificação interpretativa que veio a ser plasmada na nova disposição legal – a própria lei, com justificação expressa no seu anteprojeto, veio resolver as dúvidas de interpretação até aí existentes.

AA. Não faz igualmente sentido a mesma matéria vir a ser discutida nuns casos/processos no TAF com base em tal entendimento e, noutros casos/processos, vir a ser discutida nos tribunais comuns com base no entendimento da atual lei.

BB. Muito menos sentido fará que se exclua a competência dos tribunais administrativos e fiscais para dirimir os litígios emergentes dos contratos de prestação de serviços públicos essenciais e simultaneamente se considere já competente essa mesma jurisdição para litígios emergentes de prestações que, consubstanciando já uma relação de consumo, não mais são do que uma antecâmara da prestação do serviço essencial em si mesmo.

CC. Por último, não podemos olvidar que a relação em causa nos autos é estabelecida entre duas entidades privadas, sendo que a aqui Recorrente desenvolve uma atividade privada e não atua como titular de qualquer poder público.

DD. E o que se pede é a execução material de ramais públicos às redes privadas, através de um contrato de empreitada, que pressupõe um pedido do futuro consumidor quando este o pretender.

EE. Está, por isso, em causa uma relação de consumo privada para prestação de um bem público essencial, ou, sem prescindir, um contrato de empreitada privado, e não um contrato ou ato administrativo, nem qualquer tipo de relação de natureza fiscal, pelo que sempre serão competentes os tribunais cíveis comuns.

FF. Ou seja, a apreciação que se pede ao tribunal é relativamente ao cumprimento ou não das obrigações emergentes de um contrato de empreitada privado, tal qual qualquer outro contrato privado, como o mesmo fim, celebrado entre privados, em concreto para cobrança coerciva de um preço não pago.

GG. Mesmo a anterior redação do artigo 4º nº 4 do ETAF, ao suprimir a al. f) e aditando o nº 1 e al. e), já tinha sido objeto de dissipação de dúvidas sobre as situações que estariam abrangidas pela jurisdição administrativa e fiscal, confinando a competência daqueles tribunais, à aplicação aos contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação publica, o que não é também o caso (cfr. Ac. Rel Porto, 13-08-2018, in www.dgsi.pt).

HH. Esta a razão de ser da lei e sua alteração, esta a intenção do legislador vertida no texto, nos trabalhos preparatórios e que conformaram o espírito do legislador e, portanto, esta a interpretação que, em nosso modesto entender, deve ser aplicada – cfr. artigo 9º do CC.

II. Sem prescindir de tudo quanto se disse, e por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que se afigura, ainda, de extrema relevância salientar que em causa, nos autos, está um preço/tarifa, e não qualquer taxa, muito menos de caráter tributário, relativo aos serviços que a Recorrente prestou, por solicitação expressa do Recorrido.

JJ. Nos termos da Lei n.º 73/2013, de 3 de setembro, pelo serviço de abastecimento público de água e saneamento de águas residuais, as Autarquias Locais cobram um «preço» (artigo 21º), que respeita, entre outras, às atividades de exploração de sistemas municipais de:

a) Abastecimento público de água;

b) Saneamento de águas residuais;

KK. Acrescenta o artigo 82º da Lei da Água (Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro) que:

«1 - O regime de tarifas a praticar pelos serviços públicos de águas visa os seguintes objetivos:

a) Assegurar tendencialmente e em prazo razoável a recuperação do investimento inicial e de eventuais novos investimentos de expansão, modernização e substituição, deduzidos da percentagem das comparticipações e subsídios a fundo perdido;

b) Assegurar a manutenção, reparação e renovação de todos os bens e equipamentos afetos ao serviço e o pagamento de outros encargos obrigatórios, onde se inclui nomeadamente a taxa de recursos hídricos;

c) Assegurar a eficácia dos serviços num quadro de eficiência da utilização dos recursos necessários e tendo em atenção a existência de receitas não provenientes de tarifas.

2 - O regime de tarifas a praticar pelas empresas concessionárias de serviços públicos de águas obedece aos critérios do n.º 1, visando ainda assegurar o equilíbrio económico-financeiro da concessão e uma adequada remuneração dos capitais próprios da concessionária, nos termos do respetivo contrato de concessão, e o cumprimento dos critérios definidos nas bases legais aplicáveis e das orientações definidas pelas entidades reguladoras. (…)”

LL. Resulta, assim, que os preços ou, como são por vezes chamados, «tarifas», são instrumentos de remuneração e, no caso específico de o serviço estar concessionado, visam, ainda, assegurar o equilíbrio económico-financeiro da concessão e uma adequada remuneração dos capitais próprios da concessionária (a aqui Recorrente), nos termos do respetivo contrato de concessão.

MM. Ou seja, o que se paga por tal serviço de execução de ramais é um verdadeiro preço que, aliás, está dependente das condições específicas do que se pretende executar, a pedido do consumir, sendo que o custo do ramal é o maior ou menor consoante o maior ou menor numero de dispositivos existentes na propriedade do consumidor/contratante, aferidos por exibição da planta da construção, na qual aquele quer ver construído/s o/s referidos ramais de ligação.

NN. Preço esse que, contrariamente, a uma taxa ou tarifa, não reverte (total ou parcialmente, sequer) a favor do Estado, ou seja, da Câmara Municipal de Matosinhos.

OO. Reverte, sim, na sua totalidade, a favor, única e exclusivamente, da entidade que vai executar o solicitado e que vai ter os custos totais com tal execução: A..., S.A.

PP. Ademais, neste contexto, rege o «Princípio da recuperação dos custos», nos termos do qual os tarifários (preçários) dos serviços de águas e resíduos devem permitir a recuperação tendencial dos custos económicos e financeiros decorrentes da sua provisão, em condições de assegurar a qualidade do serviço prestado e a sustentabilidade das entidades gestoras, operando num cenário de eficiência de forma a não penalizar indevidamente os utilizadores com custos resultantes de uma ineficiente gestão dos sistemas;” – cfr. RECOMENDAÇÃO ERSAR Nº 01/2009 in https://www.ersar.pt/pt/o-que-fazemos/recomendacoes ,

QQ. Daqui decorre que o presente litígio só pode ser concebido como decorrente da cobrança de um preço/tarifa, e não de qualquer taxa, não havendo lugar à aplicação de qualquer das alíneas do nº1 do art.º 4º do ETAF, nem mesmo da norma residual da alínea o), pois que não se trata nem de uma relação de natureza administrativa, nem de uma relação de natureza fiscal.

RR. Sentido este – falta de ius imperi da A. e inexistência de caráter de tributo – sufragado no Acórdão da Relação de Guimarães de 04.03.2020, no processo 202/18.3T8MTC-A.G1 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19.03.2020 no processo 3392/19.4T8MTS.P1, disponíveis in (www.dgsi.pt).

SS. Resta ainda acrescentar a última sentença proferida pelo TAF do Porto a 30.10.2020, no processo 2854/19.8BEPRT, em que a A... Matosinhos era Ré, que declarou ser materialmente incompetente para decidir.

TT. Em suma, quer pela existência de uma relação de consumo privada, quer pela inexistência de aplicação de quaisquer taxas com caráter de tributo, e ainda pela clara intenção do legislador, com a alteração operada no ETAF, de excluir estas situações do âmbito de competência da jurisdição administrativa e fiscal, verifica-se a competência do tribunal comum para decidir nos presentes autos.

UU. Pelo que se entende, salvo melhor entendimento, que deve julgar-se materialmente competente o tribunal a quo.

VV. Terá de concluir-se, pois, que a douta decisão recorrida violou os artigos 89º nº 1 do CPC, o art. 157º do CPTA, os arts. 1º e 4º nº 1 al. e) do ETAF, art. 211º nº 1 e art. 212º nº 3 da CRP, art. 18º nº 1 da LOTJ e do art. 6º, nº 1, al. c) do Código dos Contratos Públicos, por errada interpretação jurídica.

WW. Sendo que, no entender da Recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas no sentido de ter aplicação o disposto no artigo 4º, nº4, alínea e) do ETAF, que afasta o litígio da jurisdição administrativa.

XX. Antes, devendo o presente litígio ser dirimido nos tribunais judiciais, nomeadamente o Juízo Local Cível de Matosinhos do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, nos termos do disposto nos artigos 64º do CPC, 211º e 213º ambos da CRP, artigos 40º e 144º, n.º1 ambos da LOSJ, devendo, por isso, o Tribunal a quo ser considerado materialmente competente, com todas as consequências legais, uma vez que estamos perante uma relação jurídica de direito civil regulada pelo direito civil”.

10) Não foram apresentadas contra-alegações.

11) Aos 29/02/2024 foi proferido o despacho a admitir o requerimento de interposição de recurso, referindo-se, entre outras, a norma constante do art.º 629.º, n.º 2, al. a), do C.P.C.


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O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 e n.º 2, do C.P.C., não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (como expresso nos artigos 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art.º 663, n.º 2, in fine, do C.P.C.).

         Também está vedado a este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, revogação ou anulação.


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         II – FUNDAMENTAÇÃO

         Os factos provados relevantes para a decisão:

         São os que resultam da sinopse processual constante do relatório deste acórdão, tanto mais que a questão a decidir é apenas de Direito, menção que fazemos tendo em conta o disposto no art.º 663.º, n.º 6, do C.P.C

O Direito aplicável aos factos:

 

A matéria objeto de recurso é apenas de Direito.

A questão a decidir é saber se é materialmente competente um juízo cível ou um tribunal administrativo e fiscal para apreciar o mérito de uma ação em que a autora pede o pagamento de uma quantia relativa a tarifas de ligação (ramal) e ensaios da rede predial do imóvel do R. à rede pública.

Como ensina Domingos de Andrade, sobre a competência em razão da matéria, “[é] a competência das diversas espécies de tribunais: diversas ordens de tribunais dispostas horizontalmente, isto é, no mesmo plano, não havendo entre elas uma relação de supra-ordenação e subordinação. Razão de ser desta designação: Na definição desta competência a lei atende à matéria da causa, quer dizer, ao seu objecto, encarado sob um ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação substancial pleiteada. Trata-se pois duma competência ratione materiae. A instituição de diversas espécies de tribunais e a demarcação da respectiva competência obedece ao princípio da especialização, com as vantagens que lhe são inerentes. Tribunais judiciais e tribunais especiais. Generalidades. Competem aos tribunais judiciais todas as causa que não forem, por lei, da competência de diferente [jurisdição]. A competência dos tribunais judiciais constitui a regra; é genérica. A dos tribunais especiais constitui excepção; é especifica([4]).

Posto isto, as principais normas que relevam para a apreciação da questão a decidir constam, em primeira linha, quer do Código de Processo Civil (C.P.C.([5])), quer da Lei da Organização do Sistema Judiciário (L.O.S.J.([6])) e, numa segunda linha, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, E.T.A.F.([7]).

Atentemos então nas normas do C.P.C. No tocante à competência em razão da matéria, segundo o disposto no art.º 64.º, “[s]ão da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. De acordo com o art.º 65.º, “[a]s leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada”.

Uma das causas da incompetência absoluta é a incompetência em razão da matéria, como referido no art.º 96.º, “[d]eterminam a incompetência absoluta do tribunal: a) A infração das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras de competência internacional; b) A preterição de tribunal arbitral”.

Aqui chegados, vejamos então quais as regras da L.O.S.J. que devem ser consideradas, tendo em conta o disposto no art.º 96.º, al. a), do C.P.C., ou seja, as normas atinentes à competência em razão da matéria.

Assim, da L.O.S.J., e para a decisão da questão, importa referirmos três artigos. Começamos pelo art.º 29.º, n.º 1, al. b), “ 1 – Além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de tribunais: b) O Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais”, dispondo o art.º 40.º, n.º 1, que “[o]s tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. Por fim, dispõe o art.º 144.º, n.º 1, que “[a]os tribunais administrativos e fiscais compete o julgamento de litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais”.

A recorrente considera que é competente o juízo local cível de Matosinhos, ao abrigo do disposto, entre outros, nos artigos 40.º e 144.º da mencionada lei – ainda que tal só poderia ser entendido numa argumentação a contrario, tanto mais que defende a sua interpretação em harmonia com o disposto no art.º 4.º, n.º 4, al. e), do E.T.A.F.; certamente pretenderia dizer que este último fosse interpretado à luz da competência regra ou genérica enunciada no art.º 130.º, n.º 1, da L.O.S.J., “1 - Os juízos locais [cíveis] possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada”.

Por sua vez, estabelece o art.º 4.º, n.º 4, al. e), do E.T.A.F. que “4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva” – sendo que, nos termos do art.º 4.º, n.º 1.º al. o) deste Estatuto, “1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a: o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores”.

Expostas as normas, é oportuno atentarmos agora na argumentação jurídico-processual da recorrente.

Quando o R. contestou a ação invocou a prescrição do crédito peticionado, por entender que à data da sua interposição tinha decorrido já o prazo de seis meses sobre a fatura inerente à prestação do invocado serviço, fazendo-o ao abrigo do disposto no art.º 10.º, n.º 1, da Lei n.º 23/96, de 26/07([8]), atinente à proteção dos utentes de serviços públicos essenciais, “[o] direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação”.

Em resposta à exceção,  a A. ora recorrente defendeu-se alegando que o prazo de prescrição não é o especial de seis meses mas o ordinário de 20 anos por, em suma: “2 – [a] questão que se aprecia na presente ação prende--se com a liquidação devida pelo R., da tarifa/preço inerente à construção do ramal, efetuada pela A., de ligação de saneamento, inspeção e vistorias efetuadas ao imóvel do mesmo, na sequência do serviço solicitado pelo R. [4.] Não se prende com a celebração de um contrato de fornecimento de água e recolha de águas residuais e eventual falta de pagamento de serviços prestados à luz desse contrato. [15.] Dispõe o artigo 1154º do C.C. que, quando uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho, intelectual ou manual, com ou sem retribuição, estamos perante um contrato de prestação de serviços. [20.] Portanto, atenta a factualidade já provada pela sua não impugnação, somos a concluir que entre a A. e R. foi celebrado um contrato de prestação de serviços de execução da ligação da rede predial do imóvel da R. ao sistema público de água e saneamento; 21. Um verdadeiro contrato de empreitada privado. [23.] Ora, face ao exposto, desde logo, certo é concluir que não se pode estar perante o âmbito de aplicação da Lei 23/96 de 26 de julho, pois que, este diploma não inclui contratos como o celebrado no caso. [29.] Conforme resulta expressamente da lei, supra identificada, apenas se consideram serviços públicos essenciais os serviços de fornecimento de água, serviço de recolha e tratamento de águas residuais e serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos, prestados na sequência das obrigações decorrentes da celebração de um contrato. 30. Não estão aqui contemplados a prestação de serviços de execução de ramais de ligação([9]). [33.] Afigura-se-nos, assim, que os serviços de ligação ao sistema público de saneamento, de execução do ramal de ligação ao saneamento e de vistoria da ligação de saneamento, não cabem no conceito de serviço de recolha e tratamento de água residuais previsto na alínea f), nº1 do artigo 1º da Lei n.º 23/96, de 26 de julho e, consequentemente, não consubstancia qualquer dos casos de enumeração taxativa dos serviços públicos essenciais aí vertida, 34. Estando, por isso, sujeitos ao prazo de prescrição ordinário de 20 anos (artigo 309.º CC)”.

Em sede de recurso coloca a enfâse na relação de consumo de um serviço, como resulta, entre outras, das seguintes conclusões (estando todas já transcritas): “D. A situação dos autos, apesar de não configurar um contrato de fornecimento de bens em si mesmos (água e saneamento), integra uma relação contratual de consumo, iniciada por solicitação expressa do Recorrido (consumidor) junto da Recorrente (concessionária), com vista à execução de ramais de ligação para posterior prestação de serviços de fornecimento de água e de saneamento públicos, esses sim qualificados, legalmente, como bens essenciais. K. Ora, o serviço em causa prestado – execução de ramal de ligação, tarifas de ligação e tarifas de vistorias inerentes – foi no âmbito da relação de consumo iniciada por solicitação expressa do Recorrido, serviço prévio à contratação do bem essencial, em si mesmo. L. Trata-se, portanto, de um serviço necessariamente ligado à prestação de bens/serviços públicos essenciais, uma vez que, tal pedido efetuado pelo consumidor é uma condição necessária e essencial à futura celebração do contrato de fornecimento de água. P. Estamos perante um vínculo contratual – o contrato de empreitada celebrado entre as partes a pedido do Recorrido. Q. Motivos pelos quais sempre a relação em causa está expressamente abrangida pela atual alínea e) do art.º 4º do ETAF”.

Ou seja, a Recorrente acaba por entender que não é um contrato de prestação de um serviço público essencial, que é um contrato de empreitada (prévio à prestação de serviço essencial) e que por isso está abrangido pelo já citado art.º 4.º, n.º 4, al. e), do E.T.A.F. (para, no seu entendimento, afastar a jurisdição administrativa e fiscal): “[e]stão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal: e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos [essenciais]”([10]).

Posto isto, importa então atentar na definição do que são os serviços públicos essenciais, tal como definidos no art.º 1.º, n.º 2, da Lei n.º 23/96, de 26/07: “[s]ão os seguintes os serviços públicos abrangidos: a) Serviço de fornecimento de água; b) Serviço de fornecimento de energia eléctrica; c) Serviço de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados; d) Serviço de comunicações electrónicas; e) Serviços postais; f) Serviço de recolha e tratamento de águas residuais; g) Serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos. h) Serviço de transporte de passageiros”.

Sendo assim, concordamos com a recorrente quando, em resposta à exceção de prescrição (antes parcialmente transcrita), afirma que, neste caso, não estamos perante um contrato de prestação de um serviço público essencial, “29 [c]onforme resulta expressamente da lei, supra identificada, apenas se consideram serviços públicos essenciais os serviços de fornecimento de água, serviço de recolha e tratamento de águas residuais e serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos, prestados na sequência das obrigações decorrentes da celebração de um contrato. 30 Não estão aqui contemplados a prestação de serviços de execução de ramais de ligação”.

Não estando em causa o fornecimento de um serviço público essencial, mas a prestação de serviço de execução de um ramal de ligação, importará ver a génese de tal execução: será um ato no âmbito do direito privado (procedimental([11]) e substantivamente) ou um ato que, independentemente da natureza pública ou privada dos sujeitos, se insere no âmbito do direito público.

Vejamos então as noções fundamentais atinentes ao direito privado, no caso civil, e ao direito público, no caso administrativo. Citando Mota Pinto, “[s]egundo uma clássica distinção o direito divide-se em dois grandes ramos: direito público e direito privado. O direito civil constitui o direito privado geral([12]).

Após enunciar diferentes critérios de distinção, o mesmo autor esclarece que “[o] critério mais adequado e que hoje reúne a maioria dos sufrágios pode ser designado por teoria dos sujeitos, em virtude de assentar na qualidade dos sujeitos das relações jurídicas disciplinadas pelas normas a qualificar como de direito público ou de direito privado. Segundo esse critério, o direito privado regula as relações jurídicas estabelecidas entre particulares ou entre particulares e o Estado ou outros entes públicos, mas intervindo o Estado ou esses entes públicos em veste de particular, isto é, despidos de «imperium» ou poder soberano. [Estão] fora do exercício de quaisquer funções soberanas. Se a relação jurídica disciplinada pela norma não se apresenta com estas características estamos perante uma norma de direito público. Este ramo do direito é integrado, portanto, pelas normas que estruturam o Estado e outras pessoas colectivas dotadas de qualidades ou prerrogativas próprias do poder estadual (municípios, freguesias, distritos, [serviços públicos]) ou disciplinam as relações desses entes providos de [«jus imperii»] entre si ou com os particulares. Necessário se torna, pois, para se nos deparar uma norma de direito público, que pelo menos um dos sujeitos da relação disciplinada seja um ente titular de «imperium», de autoridade, que intervenha nessa veste([13]).

Direito administrativo é, na definição de Freitas do Amaral, “o ramo do direito público constituído pelo sistema de normas jurídicas que regulam a organização e o funcionamento da Administração Pública, bem como as relações estabelecidas entre ela e os particulares no exercício da actividade administrativa de gestão pública([14]).

Feito o enquadramento doutrinário, estamos agora em condições de afirmar que a relação que se estabelece entre a concessionária de prestação de um serviço público essencial, como de água e de saneamento (independentemente de aquela ser uma pessoa coletiva de direito privado), e os consumidores não é uma relação de direito civil, porquanto reveste-se de particularidade próprias do direito público, na medida em que os particulares não têm plena liberdade contratual e estão sujeitos a normativos legais que corporizam o ius imperii do Estado, no âmbito administrativo de gestão pública e do interesse público – ou seja, é uma relação jurídica administrativa, como referido no art.º 4.º, n.º 1, al. o), do E.T.A.F.

Neste sentido, é paradigmático que o legislador tenha sentido a necessidade de excluir da jurisdição administrativa e fiscal, no art.º 4.º, n.º 4, al. e), do E.T.A.F., “[a] apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”.

Entre outros que poderíamos referir, a título de exemplo da limitação ao princípio da autonomia da vontade, veja-se o teor do art.º 64.º, n.º 9, do Decreto-Lei n.º 194/2009, de 20/08, “[a]execução de ligações aos sistemas públicos ou a alteração das existentes compete à entidade gestora, não podendo ser executada por terceiros sem a respectiva autorização”, bem como o normativo legal que, também entre outros, corporiza o ius imperii do Estado ao estabelecer um regime sancionatório, nos termos do art.º 72.º, n.º 2, alíneas b) e c), do mesmo Diploma, “[c]onstitui [contraordenação]: b) O incumprimento da obrigação de ligação dos sistemas prediais aos sistemas públicos, quando tal resulte do disposto no artigo 69.º; c) Execução de ligações aos sistemas públicos ou alteração das existentes sem a respectiva autorização da entidade gestora, nos termos previstos no n.º 9 do artigo 69.º”([15]) ([16]).

Estas normas positivam realidades análogas às subsumíveis a um ato administrativo imperativo – o que impõe ao destinatário uma conduta ou uma sujeição; podendo ser uma ordem, se for imposta uma ação, ou uma proibição, se for imposta uma abstenção([17]).    

A complexidade atual da regulação da vida em sociedade, e a ponderação da prossecução de diferentes interesses, leva a que a dicotomia entre o direito privado e o direito público, entre o direito civil e o direito administrativo (ambos a título de exemplo) deixe de ser uma realidade impermeável.

Assim, atente-se na já referida distinção feita pelo legislador no art.º 4.º, n.º 4, al. e), do E.T.A.F., constando do art.º 1.º, n.º 2, da Lei n.º 23/96, de 26/07 (diploma que criou no ordenamento jurídico alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais) o elenco, taxativo, dos serviços públicos abrangidos: “a) Serviço de fornecimento de água; b) Serviço de fornecimento de energia eléctrica; c) Serviço de fornecimento de gás natural e gases de petróleo liquefeitos canalizados; d) Serviço de comunicações electrónicas; e) Serviços postais; f) Serviço de recolha e tratamento de águas residuais; g) Serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos. h) Serviço de transporte de passageiros”.

Segundo o disposto no art.º 9.º do C.C., “1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.

Os serviços públicos essenciais são os referidos na lei, não nos parecendo que seja defensável uma interpretação que inclua o serviço de construção ou ligação de ramais, sejam de água ou de saneamento, por tal não ter o mínimo de correspondência na letra da lei, além do dever de o intérprete presumir que o legislador soube exprimir-se corretamente.

Tal não obsta porém a que, de jure constituendo, o legislador possa repensar o atual elenco, pois que não vemos razões de interesse público para que a atual diferença de regime não seja alterada, pelo que seria então aplicável aos serviços de construção de ramais à rede o mesmo regime que é aplicado aos contratos de fornecimento, cometendo aos tribunais civis a competência para dirimir os litígios – como sucede nas hipóteses previstas nas normas do art.º 4.º, n.º 4 [mormente na al. e)], do E.T.A.F.

Consideramos, também, que não colhe o apelo ao instituto da responsabilidade pré-contratual, nos termos do art.º 227.º do C.C., tanto mais que se trata de realidades, rectius, de contratos distintos – o que é por demais evidente nos casos dos imóveis para habitação compostos de diferentes frações, em que a ligação ao ramal é feita a pedido do construtor (que a paga) e o contrato de consumo é outorgado pelo proprietário que adquiriu a fração.

Na sequência do que vimos expondo, concluímos que a competência material para a decisão do litígio, que assenta numa relação jurídica administrativa, pertence ao tribunal administrativo e fiscal territorialmente competente, não ao tribunal civil, ao abrigo do disposto no art.º 4.º, n.º 1, al. o), do E.T.A.F. Tal conclusão foi também a atingida no acórdão desta Secção([18]), datado de 28/10/2021, proferido no processo n.º 3078/21.0T8VNG.P1, numa situação idêntica à destes autos, em que estava em causa a cobrança de tarifas por ligação (e ensaios) à rede de saneamento.

A incompetência absoluta é uma exceção dilatória, no caso de conhecimento oficioso, em conformidade à estatuição dos artigos 577.º, al. a), e 578.º do C.P.C., que, nos termos do art.º 576.º, n.º 2, do C.P.C., importa ou a absolvição da instância ou a remessa ao tribunal competente.

Improcedem assim as conclusões da recorrente.

III – DECISÃO

Pelos motivos expostos, e nos termos das normas invocadas, acordam os juízes destes autos no Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela autora e, consequentemente, em confirmar a decisão proferida.

Custas da apelação pela autora recorrente, nos termos do art.º 527.º, n.º 1, in fine, do C.P.C.


Porto, 18/03/2024.
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Este acórdão é assinado eletronicamente pelos respetivos:


Relator: Jorge Martins Ribeiro;
1.º Adjunto: Carlos Gil e
2.ª Adjunta: Eugénia Cunha.
__________________
[1] Independentemente da linha argumentativa seguida na contestação, em que o R. admite o alegado pela A. em a) e b), os documentos n.º 1 e n.º 2 juntos por esta não foram impugnados.
[2] Pelo que a invocada exceção de prescrição não foi apreciada.
[3] Aspas, negrito e itálico no original.
[4] Cf. Manuel A. Domingues de ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, pp. 94-95 (interpolação nossa e itálico no original).
[5] A redação em vigor está acessível em:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1959&tabela=leis&so_miolo= [05/03/2024].
[6] A redação em vigor está acessível em:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1974&tabela=leis&so_miolo= [05/03/2024].
[7] A redação em vigor está acessível em:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=418&tabela=leis [05/03/2024].
[8] Esta lei, na redação em vigor, está acessível em:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=1436&tabela=leis [05/03/2024].
[9] Negrito e sublinhado no original; itálico nosso.
[10] Interpolação nossa.
[11] O que nada tem a ver com a natureza pública do direito processual civil; tal como observa José João Baptista, “[q]uando a tutela judicial diz respeito a direitos e interesses protegidos pelo Direito Substantivo Civil e Comercial (Direito Privado comum e especial), o procedimento destinado a assegurar essa tutela é o processo civil. Este procedimento é regulado pelo Direito Processual Civil, o qual se assume assim como um instrumento ao serviço daqueles ramos de Direito Privado”. Cf. José João BAPTISTA, Processo Civil I, Lisboa, Universidade Lusíada, 1993, p. 14 (negrito no original). Recorrendo, novamente, aos ensinamentos de Domingues de Andrade, a propósito dos carateres do direito processual civil, “[é] um direito instrumental, por constituir, em dado sentido, um instrumento ao serviço do direito privado material ou substantivo. É por intermédio da acção que se assegura a realização efectiva deste último, visto ser através dela que os órgãos jurisdicionais concedem aos direitos fundados nas normas substantivas a tutela adequada, variável com a natureza desses direitos e com a situação em crise em que possam achar-se os respetctivos interesses dos particulares. [O] direito processual civil institui e regula, em suma, os meios a [utilizar] para a solução concreta dos diversos conflitos de interesses entre os particulares, mediante aplicação dos critérios fixados em termos gerais e abstractos pelo direito privado material”. Cf. Manuel A. Domingues de ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 1993, p. 11 (interpolação nossa e itálico no original).
[12] Cf. Carlos Alberto da Mota PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição actualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1989, p. 24 (itálico no original).
[13] Cf. Carlos Alberto da Mota PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª edição actualizada, Coimbra, Coimbra Editora, 1989, pp. 28-29 (interpolação nossa; aspas e itálico no original).
[14] Cf. Diogo Freitas do AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. 1, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2015, p. 125 (itálico nosso).
[15] Interpolação nossa.
[16] Deixamos em nota o teor do art.º 73.º, n.º 1: “Artigo 73.º Processamento das contra-ordenações e aplicação das coimas: 1 - O processamento e a aplicação das coimas compete à entidade titular dos serviços na área onde tiver sido praticada a infracção quando o infractor seja um utilizador e à entidade reguladora sempre que o infractor seja a entidade gestora”.
[17] Sobre o conceito, cf. Marcello CAETANO, Manual de Direito Administrativo, 8.ª edição, Lisboa, Coimbra Editora, 1968, p. 417.
[18] Relatado por Ana Paula Amorim (sendo adjuntos Manuel Fernandes e Miguel Baldaia de Morais), com vasta citação de doutrina e de jurisprudência.
O acórdão está acessível em: https://jurisprudencia.pt/acordao/204708/ [05/03/2024].