Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
437/21.1T8OVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
TEMAS DE PROVA
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: RP20240318437/21.1T8OVR.P1
Data do Acordão: 03/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O ónus consagrado na alíneas a), do nº1, do art. 640º, do CPC, (de especificação de concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados), pressuposto do conhecimento do mérito da impugnação da decisão de facto, cuja função é delimitar o objeto do recurso, tem de se mostrar cumprido nas conclusões das alegações, impondo, desde logo, a falta de tal especificação, bem como a falta de especificação da al. b) e da al. c), do referido nº1, em toda a peça das alegações (mesmo no seu corpo), a rejeição do recurso, na vertente de facto (cfr. nº1, do art. 639º e nº1, do art. 640º, daquele diploma legal).
II - Sendo os temas de prova enunciados o objeto da instrução, não são eles o objeto da decisão da matéria de facto, tendo, sim, de ser analisados, para efeitos de serem considerados provados ou não provados, diretamente, os factos alegados pelas partes, nos articulados da causa, a densificar a causa de pedir e matéria de exceção;
III - É na decisão da matéria de facto, com concreta e especificada exposição de factos provados e não provados, que o juiz deve garantir a recolha de todos os factos (cfr. art. , do CPC) que se mostrem relevância jurídica.
IV - Inalterada a decisão de facto e mostrando-se bem subsumido juridicamente o caso, cabe manter a decisão de mérito.
V - É abusivo, por desequilibrada atuação, atentatória da boa fé (v. válvula de segurança consagrada no art. 334º, do Código Civil), o tapamento, pelos Réus, de abertura, de entrada de luz e ar - “com as dimensões de 0,43 metros de altura por 0,65 metros de largura situada a 1,80 metros a contar do solo do interior, com sistema de abertura basculante para o interior de cerca de 40º, a que corresponde uma abertura de 22 centímetros, com vidro transparente e sem gradeamento ou malha no exterior da parede, (janela esta) existente no quarto de vestir do anexo e deita para o quintal do prédio dos RR” -, existente no prédio dos Autores há 47 anos, que devassa ou limitação ao quintal daqueles não causa, após décadas a ser gerada a confiança de a aceitarem (quer pelos Réus, quer pelos anteriores proprietários, pais de Autor e Réu e de quem os Réus herdaram o seu imóvel).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 437/21.1T8OVR.P1
Processo da 5ª secção do Tribunal da Relação do Porto (3ª Secção cível)
Tribunal de origem do recurso: Juízo Central Cível de Aveiro - Juiz 1


Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto:  Des. Fátima Andrade
2º Adjunto: Des. Jorge Martins Ribeiro

Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):

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I. RELATÓRIO

Recorrentes: os Réus, AA e BB

Recorridos: os Autores, CC e DD

CC e mulher, DD, intentaram a presente ação, com processo comum, contra AA e mulher BB, pedindo a condenação destes a:

a) reconhecerem que os AA. são proprietários do prédio identificado nos artigos 1.º e 16.º da petição inicial, por o terem adquirido por doação dos seus pais e sogros e, subsidiariamente, por o terem adquirido por usucapião;

b) reconhecerem o direito de propriedade dos AA. sobre a faixa de terreno com 15/20 centímetros de largura e ao longo de toda a confrontação entre o prédio dos AA. e RR. (cerca de 20 metros), melhor identificada no artigo 40.º da petição inicial;

c) serem condenados a demolir o muro e construções que edificaram na referida faixa de terreno, assim permitindo o livre acesso dos AA. às suas tubagens e canalizações do gás ali existentes;

d) reconhecerem que a abertura de 0,70 cms. x 0,48 cms., a 1,78 metros do piso do interior do anexo do prédio dos AA., sem grade ou malha, com sistema de abertura basculante, com vidro transparente, existe há 47 anos consecutivos;

e) reconhecerem que a posse das utilidades propiciadas por tal abertura reveste-se das características e obedece a todos os requisitos que facultam a aquisição daqueles direitos por via da usucapião;

f) reconhecerem que foi constituída uma servidão predial atípica, sobre o seu prédio, identificado no artigo 29.º da petição inicial, pela manutenção da referida abertura no prédio dos AA. durante 47 anos consecutivos;

g) reconhecerem que as utilidade que possam obter com a tapagem da abertura existente no prédio dos AA. são manifestamente inferiores ao prejuízo que causa a estes (falta de luz e arejamento, arrefecimento da habitação, surgimento de cheiro a mofo e humidades);

h) julgar-se o comportamento contraditório dos RR. um manifesto abuso de direito na categoria de comportamento abusivo venire contra factum proprium.

Alegam, para tanto e resumidamente, que são donos e legítimos possuidores de um prédio urbano composto por casa térrea destinada a habitação, com anexo e logradouro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar, sob o nº ... da freguesia ... que lhes foi doado, pelos pais da A. mulher, por escritura celebrada a 21/05/1986. O referido prédio já tinha sido entregue aos AA., pelos doadores, em 1970. Os AA., entre 1970 e 1973, construíram uma casa de habitação, anexo e quintal e em 1989 o referido prédio sofreu obras de ampliação, tendo sido edificado um salão em parte do quintal e o anexo foi transformado numa verdadeira habitação, composto por dois quartos, cozinha, quarto de banho, quarto de vestir/despensa e corredor, para ali residir uma filha dos AA.. Todas as portas, janelas e outras aberturas existentes na parte habitacional do prédio dos AA. (casa e anexo) existem desde a sua construção original (1973), com as medidas atuais. Este prédio dos AA. confronta, do lado sul, com o prédio dos RR. descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar, sob o nº ... da freguesia ..., composto de casa térrea de habitação e terreno de cultura. Este prédio foi adjudicado ao R. marido por escritura de Habilitação e Partilha, celebrada em 29/08/2008, por óbito de EE, pai do A. marido e do R. marido. O referido prédio foi comprado por EE entre 1940 e 1950 para ali instalar a sua habitação e do seu agregado familiar. Os AA., quando edificaram o seu muro de vedação, a sul, afastaram este da linha divisória entre os prédios, deixando uma faixa de terreno livre, com 15/20 cms de largura e ao comprimento de toda a confrontação entre a casa dos AA. e a casa dos RR., com cerca de 20 metros, por ali passar a canalização e tubagem do gás para a sua casa, e assim permitir o fácil acesso, em caso de necessidade de reparação ou manutenção daquelas. Os finados pais do A. marido e R. marido, durante os mais de 50 anos em que ocuparam o prédio que atualmente pertence aos RR., sempre reconheceram e aceitaram o prédio dos AA., com a composição e descrição supra referidas, bem como com todas as aberturas, portas e janelas nele existentes, o mesmo sucedendo com os RR.. Estes, porém, encostaram a nova construção que edificaram no seu prédio ao prédio dos AA., ocupando a faixa de terreno de 15/20 cms de largura por 20 metros de comprimento, a sul do prédio dos AA., que pertence a estes. E no dia 22/02/2021 taparam a janela existente no quarto de vestir dos AA. com uma chapa de ferro que cravaram no seu muro, impedindo a entrada de luz e condicionando a entrada do ar. A referida janela tem 0,48 cms. de altura e 0,70 cms. de largura, situa-se a 1,75 cms. a contar do solo (interior do anexo), tem sistema de abertura basculante, com vidro transparente, sem qualquer grade ou malha colocada no exterior da parede e existe há cerca de 47 anos. A impossibilidade de abrir a janela provocou o aparecimento de mofo e humidades na roupa e mobiliário, provocados por um insuficiente arejamento e falta de luz.

Os RR. na contestação que apresentaram, defendem que a estrema dos prédios de AA. e RR. sempre se fez de nascente para poente, com início no arruamento por uma linha coincidente com as construções efetuadas pelos AA. , nomeadamente muro, garagem e anexos. A parede norte da casa onde viviam os pais do A. marido e do R. marido encontrava-se encostada, há mais de 30 e 40 anos, às construções dos AA. na sobredita linha de extrema. Os RR. no final de 2020, demoliram tal prédio e construíram um novo, igualmente encostado ao dos AA., ou seja, na extrema dos ditos prédios. Nessa altura os RR. procederam à construção de um muro na restante estrema norte do seu prédio, respeitando o alinhamento já existente, ou seja, o que era conferido pela antiga parede norte da casa dos seus pais e pelas construções existentes no prédio dos AA.. Tais construções foram acompanhadas pelos AA., que inclusivamente permitiram aos RR. acederem ao seu prédio para acabarem as suas obras do lado voltado ao prédio dos AA.. O anexo construído no prédio dos AA., não são, nem podem ser habitação de ninguém, nem como tal estão licenciados. Tal anexo é servido por várias janelas e portas voltadas para o prédio dos AA.. Os RR., no local em frente à abertura existente na parede dos AA., colocaram uma placa de PVC opaca a cerca de 20cm do prédio daqueles, a qual permite que no dito quarto de vestir continue a existir luz e arejamento, pela abertura em causa nos autos[1].

Os AA. apresentaram resposta a manter o alegado na petição inicial.


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Foi, no despacho saneador, relegado para a sentença o conhecimento da exceção de abuso de direito por tal depender de prova a produzir, identificado o Objeto do litígio - 1º - quando os AA. edificaram o seu muro de vedação, a sul, afastaram este da linha divisória, deixando livre uma faixa de terreno com 15/20 centímetros de largura em todo o seu comprimento de cerca de 20 metros, por passar ali a canalização do gás para sua casa; 2º - os RR. se apropriaram desta faixa de terreno sem consentimento dos AA., ocupando-a com um muro; 3º - os RR. taparam a abertura existente no anexo do prédio dos AA. que dava há 47 anos luz e ar a uma divisão desse anexo; 4º - se tal abertura é de qualificar como janela” - e enunciados os temas da prova[2].

Procedeu-se à audiência final, com a observância das formalidades legais.


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Foi proferida sentença com a seguinte

parte dispositiva:

“Julgo, nos termos e pelos fundamentos expostos:

A) a ação parcialmente procedente e, em consequência:

1º - reconheço que os AA. são proprietários do prédio identificado nos artigos 1.º e 16.º da petição inicial;

2º - condeno os RR. a reconhecer que os AA. têm direito a manter a “janela” (abertura) com as dimensões de 0,43 cms. de altura por 0,65 cms. de largura situada a 1,80 metros a contar do solo do interior, com sistema de abertura basculante para o interior de cerca de 40º, a que corresponde uma abertura de 22 mm, com vidro transparente e sem gradeamento ou malha no exterior da parede, (janela esta) existente no quarto de vestir do anexo e deita para o quintal do prédio dos RR.

B) Julgo a ação improcedente quanto ao mais.

Custas na proporção de 3/5 para os AA. e 2/5 para os RR..”


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Apresentaram os Réus recurso de apelação, pugnando por que, na sua procedência, seja revogada a sentença recorrida quanto à parte em que julga procedente o pedido, formulando as seguintes

CONCLUSÕES:

(…)


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Responderam os Autores às alegações de recurso pugnando pela improcedência dos pedidos formulados pelos Recorrentes nesta sede recursiva, mantendo-se o decidido na sentença recorrida, formulando as seguintes

Conclusões:

(…)


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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.

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II. FUNDAMENTOS

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.

Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1º- Do lapso de escrita a corrigir.
2º -Da decisão de facto:
1.1. Da inobservância dos ónus de impugnação da decisão de facto.

3º - Da decisão de mérito:

3.1. Da questão do abuso de direito:

3.1.1 - Da admissibilidade da sua apreciação;

3.1.2 - Da procedência ou não do pedido de reconhecimento do direito de manter a abertura.


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II.A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

1. FACTOS PROVADOS

Foram os seguintes os factos considerados provados pelo Tribunal de 1ª instancia, com relevância para a decisão (transcrição):

1 - Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar, sob o nº ... da freguesia ..., o seguinte prédio: urbano, situado em ..., com a área total de 757 m2, a área coberta de 123 m2 e a área descoberta de 634 m2, composto de casa térrea de habitação, com a superfície coberta de 96 m2, dependências com 27 m2 e logradouro com 634 m2, a confrontar, do norte, com CC, do nascente, com Rua ..., do sul, com herdeiros de EE, e, do poente, com FF. É a parte restante após desanexação dos nºs. ..., ... e ... – fls. 18 (A).

2 - Pela AP. ... de 1996/11/26, está inscrita a aquisição deste prédio a favor de DD, casada com CC, no regime de comunhão geral, por doação de GG e marido HH – fls. 18 (B).

3 - O prédio identificado em A) encontra-se inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... da freguesia ..., com inscrição em nome do A. marido – fls. 17v. e 18 (C).

4 - Por escritura pública de doações, celebrada no 2º Cartório Notarial de Santa Maria da Feira, a 21/05/1986, HH e mulher GG declararam (além do mais que não interessa reproduzir):

a) ser donos exclusivos dos bens seguintes:

- SEGUNDO: do prédio urbano constituído por uma casa térrea, para habitação, e suas pertenças, situado no lugar da ..., freguesia ..., a confinar, do norte e sul, com os doadores, do, poente, com herdeiros de II, e, do nascente, com o caminho, inscrito (então) na matriz sob o artigo ..., com a área coberta de 57 m2 e omisso no registo;

- QUINTO: um terreno de cultura e suas pertenças situado no sítio da ... do lugar da ... da freguesia ..., a confinar, do norte e nascente, com a estrada, do sul, com JJ, e do poente, com FF, inscrito na matriz sob o artigo ..., com a área de 1480 m2, omisso no registo;

b) que pela presente escritura, por conta das quotas disponíveis e com reserva de usufruto, doam a DD, sua filha (que declarou aceitar a doação), o referido prédio e, ainda, uma parcela de terreno com a área de 740 m2, destinada a aumento do logradouro daquele mesmo prédio, a confinar, do norte e nascente com estrada, do poente, com o prédio número dois, e, do sul, com a parcela do mesmo prédio doada a DD – fls. 18v./22 (D).

5 - Por escritura pública de retificação e renúncia de usufruto, celebrada no 2º Cartório Notarial de Santa Maria da Feira, a 06/07/1993 (além do mais que não interessa reproduzir):

a) HH e mulher GG declararam que renunciam ao usufruto que reservaram na escritura celebrada a 21/05/1986, o que fazem gratuitamente;

b) todos os outorgantes que intervieram na escritura identificada em 4 dos Factos Provados declararam que o destaque da parcela para aumento do prédio urbano da donatária DD é a destacar do prédio da verba quinta (artigo 1430) – fls. 23/25 (E).

6 - Por escritura pública de retificação, celebrada no 2º Cartório Notarial de Santa Maria da Feira, a 05/05/1995 (além do mais que não interessa reproduzir), todos os intervenientes na escritura pública identificada em 4 dos Factos Provados declararam que o prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ... já possuía um logradouro com a área descoberta de 590 m2 que, por lapso, não foi indicado, e que por esta escritura retificam aquela de doação, no tocante às áreas do logradouro já existente à data da doação, passando o identificado prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo ... a ter a área coberta de 50 m2 e logradouro com 1320 m2 – fls. 25v./28v. (F).

7 - Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar, sob o nº ... da freguesia ..., o seguinte prédio: misto, situado na Rua ..., em ..., ..., com a área total de 915,12 m2, a área coberta de 127,92 m2, a área descoberta de 787,2 m2, composto de casa térrea de habitação, com a superfície coberta de 127,92 m2, a superfície descoberta de 154,71 m2 e terreno de cultura com 632,49 m2, inscrito na matriz urbana sob o artigo ... e na matriz rústica sob o artigo ... – fls. 31 (G).

8 - Pela AP. ... de 2008/11/07, o prédio foi inscrito a favor de AA, casado com BB no regime de comunhão de adquiridos, por dissolução da comunhão conjugal e partilha da herança de EE, casado com KK no regime de comunhão geral – fls. 31 (H).

9 - O prédio identificado em 7 dos Factos Provados foi adjudicado aos R. marido por escritura de Habilitação e Partilha celebrada em 29 de agosto de 2008 no Cartório Notarial de Espinho, lavrada a partir de fls. 125 do Livro ......, por óbito de EE, pai do A. marido e do R. marido, falecido em 1 de outubro de 1979 – fls. 32/34v. (I).

10 - KK faleceu a 20/01/2010, no estado de viúva de EE – fls. 35 (J).

11 - EE adquiriu o prédio identificado em 7 dos Factos Provados para ali instalar a sua habitação e do seu agregado familiar (K).

12 - O referido EE viveu em tal prédio até à sua morte (01/10/1979), e a sua mulher, KK, residiu no mesmo até meados de 2008, altura em que foi viver para o Centro Social ..., em ... (L).

13 - O prédio identificado em 1 dos Factos Provados confronta, do lado sul, com o prédio identificado em 7 dos Factos Provados (M).

14 - Os RR. residem na Rua ..., em ..., noutro imóvel, sito a escassos metros da casa dos AA. (N).

15 - Em outubro de 2020, os RR. procederam à demolição do seu prédio e iniciaram obras de construção de um novo prédio, composto por casa de habitação, anexo e muros (O).

16 - No dia 7 de outubro de 2020, o A. marido recebeu uma carta remetida pelo Drº LL, na qualidade de Advogado do R. marido, na qual - sob o assunto de “incumprimentos de regras de boa vizinhança” – referia que o A. marido “… abriu uma janela para o lado do terreno do qual ele (R. marido) é proprietário …”, havia retirado um marco de delimitação das propriedades, que devia colocar rufos e caleiras encostados à parede do telhado, para evitar a queda de águas para o prédio dele, R. marido, e devia retirar os tubos de gás do seu prédio, que se encontram na propriedade do R. marido, colocando os mesmos na propriedade do A. marido, concedendo um prazo de 15 dias para o efeito – fls. 42 (P).

17 - Em resposta, a 8 de outubro de 2020, a mandatária dos AA. enviou e- mail de fls. 71/72, que aqui se dá por reproduzido ao mandatário dos RR. (Q).

18 - A janela existente no quarto de vestir do anexo do prédio dos AA. dá para o quintal do prédio dos RR., composto por árvores e plantas, e está situada por cima do muro de casa dos RR. (R).

19 - Os doadores HH e mulher GG entregaram aos ora AA. o prédio identificado em 1 dos Factos Provados em 1970.

20 - Os AA. procederam à demolição da casa existente (correspondente ao artigo ... urbano) e, entre 1970 e 1973, os AA. construíram um prédio novo, composto por casa de habitação, anexo e quintal.

21 - Este prédio foi inscrito fiscalmente como prédio urbano novo, em 1974, em nome do A. marido – fls. 17v. e fls. 29.

22 - O referido prédio sofreu obras de ampliação e conservação em 1989, tendo sido, então, edificado um salão em parte do quintal.

23 - O anexo foi transformado numa verdadeira habitação, composta por dois quartos, cozinha, quarto de banho, quarto de vestir/despensa e corredor, para ali residir a filha dos AA., MM, que casou em 23 de julho de 1989.

24 - Posteriormente, em 1997, o prédio dos AA. sofreu nova ampliação, tendo sido construído um coberto para apoio à carpintaria implantada em parte destacada do quintal, depois, transformado em garagem – fls. 29v..

25 - Esta é a composição (casa de habitação, salão, anexo para habitação, garagem e quintal) que o prédio dos AA. mantém até hoje (fls. 9/28).

26 - Todas as portas, janelas e outras aberturas existentes na parte habitacional do prédio dos AA. (casa e anexo) existem desde a sua construção original (1973), com as medidas atuais.

27 - E, desde 1989, sempre o prédio dos AA. foi composto por duas habitações distintas, acedendo-se à do anexo, desde a via pública, atravessando o pátio e o salão dos AA. (fls. 9/28).

28 - O prédio dos RR. identificado em 7 dos Factos Provados foi comprado por EE entre 1940 e 1950.

29 - Aquando da adjudicação do prédio identificado em 7 dos Factos Provados ao R. marido (2008), no mesmo estavam construídas, do lado norte, no sentido poente – nascente, junto à estrada, uma cozinha e, a seguir, uma casa de habitação, ambas de construção antiga e em degradado estado de conservação.

30 - Os finados pais do A. marido e R. marido, durante os mais de 50 anos em que ocuparam o prédio identificado em 7 dos Factos Provados, sempre reconheceram e aceitaram o prédio dos AA., com a composição e descrição supra referidas, bem como com todas as aberturas, portas e janelas nele existentes.

31 - O mesmo sucedendo com os RR. até 2020.

32 - Estes conhecem a composição do prédio que adquiriram, por o R. marido aí ter nascido e crescido; e também conhecem, perfeitamente, a composição/descrição e aberturas do prédio dos AA. por ser contíguo ao seu prédio (artigo ... urbano de ...).

33 – Os RR. encostaram o muro da nova construção ao prédio dos AA..

34 - Os RR. construíram:

a) muro de vedação, a nascente, para a rua, com uma altura total ao passeio de cerca de 2,20 metros, nesta se incluindo um envidraçado superior com 45 centímetros;

b) parede de empena a norte, virada para o pátio frontal dos AA., com 3,55 centímetros de altura;

c) bem como muro para tal pátio, com 1,85 cms;

d) muro e chapas, a norte, viradas para o logradouro traseiro dos AA., com 2,55 cms de altura;

e) e muro de vedação, a sul do seu prédio, e virado para a via pública, com cerca de 3,05 a 3,40 metros de altura.

35 - No dia 22 de fevereiro de 2021, da parte da manhã, os AA. ouviram barulhos provenientes das traseiras do anexo do seu prédio, e, tendo entrado dentro do mesmo, constataram que a “janela” existente no quarto de vestir estava a ser tapada pelos RR. com uma chapa de ferro que cravaram no seu muro.

36 - Assim impedindo a entrada de luz e condicionando a entrada do ar.

37 – Posteriormente esta chapa foi substituída por uma chapa em policarbonato alveolar de cor opal com 1,00 metro de largura, 2,10 metros de altura e 16 milímetros de espessura.

38 – Esta chapa em policarbonato situa-se a cerca de 15 centímetros da janela referida em 35 dos Factos Provados.

39 – A referida “janela” tem 0,43 cms. de altura e 0,65 cms. de largura, situa-se a 1,80 centímetros a contar do solo (interior do anexo), tem sistema de abertura basculante de cerca de 40º, a que corresponde, na parte superior, uma abertura de cerca de 22 milímetros, que abre para o interior do prédio dos AA., com vidro transparente, e sem qualquer grade ou malha colocada no exterior da parede.

40 - Esta “janela” existe no aludido anexo há cerca de 47 anos.

41 – É impossível utilizar esta abertura, atenta a sua altura, tamanho e forma de abertura basculante, para se debruçar para fora ou sacudir tapetes.

42 - A dependência, onde tal janela existe, é utilizada pelo neto dos AA. como quarto de vestir.

43 - A colocação da chapa opalina condiciona a entrada de luz e a ventilação do compartimento, uma vez que aquela é a única abertura para o exterior, não havendo qualquer possibilidade de se criar uma abertura alternativa.

44 – E provocou o aparecimento de mofo e humidades na roupa e mobiliário, provocados por um insuficiente arejamento e falta de luz.

45 - A referida “janela” confronta com o quintal do prédio dos RR. e não causa qualquer devassa ao referido quintal ou limitação de uso do mesmo para o fim a que se destina.

46 - A parede norte da casa antiga onde viviam os pais do A. marido e do R. marido seguia dois alinhamentos, sendo o primeiro, junto ao arruamento, a cerca de 80 centímetros do muro de vedação dos AA., numa extensão de cerca de quatro metros de comprimento (sentido poente – nascente). O alinhamento subsequente situava-se a cerca de 15/20 centímetros das construções existentes no prédio dos AA..

47 - Os RR., no final de 2020, após terem regressado da Suíça onde se encontravam emigrados há vários anos, demoliram tal prédio e construíram um novo, igualmente encostado ao dos AA., ou seja, na extrema dos ditos prédios.

48 - Nessa altura, os RR. procederam à construção de um muro na restante extrema norte do seu prédio, respeitando o alinhamento já existente, ou seja, o que era conferido pela antiga parede norte da casa dos seus pais e pelas construções existentes no prédio dos AA..

49 - Tais construções foram acompanhadas pelos AA., que, inclusivamente, permitiram aos RR. aceder ao seu prédio para acabarem as suas obras do lado voltado ao prédio dos AA..

50 - O anexo construído no prédio dos AA. foi licenciado para cozinha de forno e arrumos.

51 - Tal anexo é servido por várias janelas e portas voltadas para o prédio dos AA..

52 – Os AA., no ano 2000, fizeram passar parte da canalização e tubagem do gás, durante três a quatro metros, por fora do seu muro de vedação, pelo espaço de cerca de 80 centímetros de largura referido em 45 dos Factos Provados.

53 – Tal canalização encontra-se agora soterrada com a construção da parede da casa dos AA..

54 – A estrema dos prédios é uma linha reta que começa no arruamento e coincide com as construções efetuadas pelos AA., nomeadamente muro, salão e anexos.


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2. FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provou qualquer outro facto com interesse para a boa decisão da causa, designadamente que: a) as duas habitações implantadas no prédio dos AA. são independentes; b) inicialmente a entrada para o anexo, fazia-se pelo quintal do prédio dos AA., e, desde a construção do coberto/garagem, em 1997, faz-se por esta; c) os AA., quando edificaram o seu muro de vedação, a sul, afastaram este da linha divisória entre os prédios, deixando uma faixa de terreno livre, com 15/20 cms de largura e ao comprimento de toda a confrontação entre a casa dos AA. e a casa dos RR., com cerca de 20 metros, por ali passar a canalização e tubagem do gás para a sua casa, e assim permitir o fácil acesso, em caso de necessidade de reparação ou manutenção daquelas; d) os RR. ocuparam a faixa de terreno, que pertence aos AA., referida na alínea c) dos Factos Não Provados, a sul do prédio dos AA.; e) as construções do prédio dos RR. estão todas devidamente licenciadas e publicitadas.


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II.B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1º- Da correção de lapso de escrita.

Resulta evidente na economia do processo a existência de lapso de escrita quando se refere abertura com as “dimensões de 0,43 cms. de altura por 0,65 cms. de largura situada a 1,80 metros a contar do solo do interior, com sistema de abertura basculante para o interior de cerca de 40º, a que corresponde uma abertura de 22 mm” (negrito nosso), lapso este notório e ostensivo e que, por isso, cabe corrigir, por forma a passar a figurar, em vez de cms, metros e em vez de mm centímetros, medidas estas, desde logo, apuradas, pacificamente, pela perícia.
Com efeito, certo sendo que uma vez proferida a decisão fica esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (cfr. nº1, do artigo 613.º) e que transitada a mesma em julgado ela forma caso julgado material, com força obrigatória dentro e fora do processo (nº1, do art. 619º), impedindo nova decisão da questão, certo é que, ainda assim, é lícito ao juiz proceder à retificação da sentença depois dessa altura (cfr. nº2, do artigo 613.º), mesmo depois do trânsito em julgado, corrigindo “erros materiais” e  “inexatidões” devidas a “lapso manifesto” nos termos do artigo 614.º[3], sem que tal contenda com o caso julgado formado, dado o decidido nenhuma alteração substancial sofrer, mantendo-se, integralmente, o sentido decisório apenas se corrigindo um erro/lapso detetado, materializado no texto de tal peça processual.
Com efeito, estatui o nº2, do art. 613º:
 “É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes”.
E com a epígrafe “Retificação de erros materiais”, estabelece o artigo que se convoca para a retificação – o art. 614º, do CPC:
“1 - Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.
2 - Em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação.
3 - Se nenhuma das partes recorrer, a retificação pode ter lugar a todo o tempo”.
Assim, proferida a sentença/acórdão, embora, por razões de certeza e segurança jurídica, se esgote o poder jurisdicional do juiz (pelo que, em regra, apenas pode a mesma ser modificada por via de recurso, a ser este admissível), com o sedimentar de dois efeitos:
- um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão proferida;
- outro negativo, que consiste na proibição de o tribunal que proferiu a decisão a modificar ou revogar[4],
certo é que nas situações excecionais contempladas na lei, fora do regime de recursos, pode a sentença, por decisão do juiz, sofrer alteração, desde logo nas situações contempladas no nº1, do artigo 614º.
E, como deste preceito resulta, de modo expresso, retificação que seja necessário operar, pode ter lugar a todo o tempo, em nada contendendo isso com o caso julgado, pois que não nos movemos no âmbito de alteração substancial ao decidido, a manter inteiramente, mas em mera “retificação” (formal) de lapso de uma sentença, sendo que a correção que seja efetuada constitui parte integrante da mesma, meramente a conformando com o que dela, e dos autos, já transparecia.
Na verdade, “O erro ou lapso que pode ser rectificado, ao abrigo do art. 667º, nº 1, do anterior CPC – ou 614º, nº 1, do actual CPC – é apenas o erro material cuja existência pressupõe uma divergência entre a vontade real do juiz e aquilo que escreveu na sentença (o juiz escreveu coisa diversa daquela que queria escrever) e que não se confunde com o erro de julgamento (que ocorre quando o juiz disse aquilo que pretendia, mas julgou ou decidiu mal)” e “Para que o erro material possa ser rectificado, ao abrigo das normas citadas, é ainda necessário que o mesmo seja manifesto, ou seja, é necessário que ele seja apreensível externamente através do contexto da sentença ou despacho, de tal forma que possa ser percebido por outrem (e não apenas pelo juiz que os proferiu) que o juiz escreveu coisa diversa daquela que pretendia e que, como tal, o erro em causa não é um erro de julgamento[5].
O erro material “verifica-se quando o juiz escreveu coisa diversa do que queria escrever, quando o teor da decisão não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real”[6]. E os erros materiais suscetíveis de retificação, nos termos previstos pelo n.º2, do art.º 614.º do CPC, são aqueles que se enquadram na disciplina do art.º 249.º do Código Civil, a propósito dos negócios jurídicos, ou seja, o simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita[7]. Com efeito, o “erro material só pode ser retificado se for ostensivo, evidente e devido a manifesto lapso: é preciso que, ao ler o texto, se veja que há erro e logo se entenda o que se queria dizer (RG 22-11-18).[8].

Bem esclarece o STJ: “I. Os erros materiais da decisão, a que se alude no artº 614º/1 do CPC, têm lugar quando há divergência entre a vontade declarada e a vontade real do juiz, ou seja, no caso em que o juiz tenha escrito uma coisa diferente daquela que queria, de facto, escrever. II. Tal divergência deve ressaltar, de forma clara e ostensiva, do teor da própria decisão, só desta, do seu contexto ou estrutura, sendo possível aferir se ocorreu ou não esse erro. Ou seja, é o próprio texto da decisão que há-de permitir ver e perceber que a vontade declarada não corresponde à vontade real do juiz que proferiu a decisão…”[9].
Cabe, pois, interpretar a sentença vista no seu todo e aferir da existência ou não do apontado erro material, sendo que “A interpretação das sentenças não se queda pelo apontado elemento literal, importando atender ao seu elemento sistemático, bem como ao elemento teleológico e funcional (STJ 8-5-19, 3167/17)”[10].
Estamos perante um erro manifesto quando se refere cms e mm - o qual já resultava da petição inicial e fotografia junta, e foi passando ao longo do processo - quando é manifesto/evidente pretender-se referir o acima mencionado.
Dado que, como se viu, a norma do artigo 614.º prevê que a retificação deste tipo de lapsos possa ter lugar, mesmo por própria iniciativa do juiz, tendo havido recurso e sendo notado o lapso nada impede que se considere efetuada a retificação do lapso evidente, manifesto e ostensivo, o que se determina, passando, pois, todas as referências ás dimensões da abertura a ser as que se seguem:
“com as dimensões de 0,43 metros de altura por 0,65 metros de largura situada a 1,80 metros a contar do solo do interior, com sistema de abertura basculante para o interior de cerca de 40º, a que corresponde uma abertura de 22 centímetros”.


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2º - Da impugnação da decisão de facto: inobservância dos ónus de impugnação.
Esclarecido e retificado o lapso em que se laborou, cumpre começar por referir que, quanto à vertente da decisão de facto, apesar de os apelantes manifestarem discordâncias, não impugnaram a decisão da matéria de facto, mostrando-se, desde logo, inobservados ónus, para tanto, impostos ao recorrente que impugne a matéria de facto (questão adjetiva, prévia à análise da apreciação de mérito de impugnação que se pudesse considerar formulada). E verifica-se, no caso, que não vem pedida a “alteração ou anulação da decisão de facto”, mas sim a revogação da decisão de mérito, na parte referente ao conhecimento do abuso de direito que conduziu à procedência do pedido relativo à abertura.
Encontram-se os ónus de impugnação da decisão de facto enunciados nos nº1, do art. 639º e nos nº1 e 2, a), do art. 640º, decorrendo eles dos princípios da cooperação, da lealdade e da boa-fé processuais, visando garantir a seriedade e a consistência do recurso e assegurar o exercício do contraditório.
Comecemos por referir que, na verdade, os ónus legalmente impostos em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, constituem requisitos habilitadores a que o tribunal ad quem possa conhecer da impugnação.
Na verdade, a lei adjetiva, que no nº1, do art. 639º, consagra o ónus de alegar e de formular conclusões, estabelece que “o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”, sendo as conclusões das alegações de recurso que balizam a pronúncia do tribunal (art. 635º).
E o art. 640º consagra ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelecendo no nº1, que:
1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
O n.º 2, do referido artigo, acrescenta que:
“a) … quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Verifica-se, no caso, que não cumpriram os apelantes os referidos ónus que estão cometidos aos apelantes que pretendam impugnar a decisão da matéria de facto, sendo, recurso que se pudesse considerar ter por objeto essa vertente, de facto, de rejeitar, pois que não se mostram especificados nas conclusões das alegações, a delimitar o objeto do recurso, concretos pontos de facto incorretamente julgados a alterar (al. a), do referido nº1).
E como analisou o STJ, na Decisão de 27/9/2023, proferida no proc. nº2702/15.8T8VNG-C.S1 que, por bem esclarecedora, se cita:
Com ampla sedimentação na jurisprudência deste tribunal, no funcionamento dos efeitos do disposto nos artigos 640º e 662º, nº1, do CPC, devemos distinguir, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da  indicação dos concretos meios probatórios convocados e da decisão a proferir, a que aludem as alíneas a), b) e c) do nº1 do artigo 640º, que integram o denominado ónus primário, atenta a sua função de delimitação do objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto.
 De outro lado, o requisito da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo 640º, que integra um ónus secundário, para permitir que a Relação aceda de forma dirigida aos meios de prova gravados, que o recorrente entende necessários à reapreciação do sentido probatório dos factos impugnados.
 Ora, perante alguma dificuldade na aplicação do dispositivo legal em certas casuísticas, na aferição do cumprimento dos aludidos ónus pelo recorrente, devem perseverar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, modelando na medida necessária, os requisitos de forma.
Tal como reiterado em diversos arestos deste Supremo Tribunal, v.g., «I. Constitui jurisprudência do STJ que a verificação do cumprimento do ónus de alegação regulado no art. 640.º do CPC deve ser compaginada com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, atribuindo-se maior relevo aos aspectos de  ordem material em detrimento das questões formais.(…)»; «(…)III - De acordo com a orientação reiterada do STJ, a verificação do cumprimento do ónus de alegação do art. 640.º do CPC tem de ser realizada com respeito pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal.(...)» .[11]
 No mesmo percurso, salienta o Acórdão do STJ de 19.01.2023 - «Entre os corolários do ónus de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, consagrado no n.º 1 do art. 640.º do CPC, está o de que o recorrente deve sempre indicar nas conclusões do recurso de apelação os concretos pontos de facto que julgou incorrectamente julgados
Por último, ainda na órbita do debate das exigências previstas no artigo 640º,  nº1, do CPC, desenha-se como jurisprudência constante deste tribunal, o limite  do cumprimento do ónus primário ( al) a) nas conclusões de recurso , como  pontifica, entre outros, o Acórdão do STJ de 22.09.2022 - « II -Nesta linha  interpretativa, tem vindo a admitir-se que, no que se refere às exigências das alíneas b) e c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, possam as mesmas ser cumpridas apenas no corpo das alegações. Já quanto ao ónus da alínea a) da mesma disposição legal, afigura-se que a jurisprudência não se encontra estabilizada, não obstante se admitir que tem vindo a prevalecer o sentido de que o incumprimento de tal ónus nas conclusões recursórias implica a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto. »[12] (negrito e sublinhado nosso).
Pacífico vem sendo, na verdade, na Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que as conclusões, que balizam o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, têm de conter a indicação dos concretos pontos de facto cuja alteração se pretende, ónus este que permite circunscrever o objeto do recurso no que concerne à decisão de facto. Deste modo, mesmo na Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, vem a ser manifestada, reiteradamente, posição no sentido de, para cumprimento dos ónus impostos pelos art.s 639º e 640º, do CPC, o recorrente ter que indicar nas conclusões, com precisão, os pontos da matéria de facto que pretende que sejam alterados pelo tribunal de recurso, podendo os demais ónus impostos vir cumpridos apenas no corpo das alegações.
Com efeito, fixada foi, até, já, jurisprudência no sentido de “Nos termos da alínea c), do nº1, do artigo 640º, do Código de Processo Civil, o recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, nas alegações[13].
Ora, manifesto é que os Recorrentes não cumpriram aqueles ónus, pois que não indicaram nas conclusões do Recurso, a matéria de facto que pretendiam impugnar, como se pode verificar de uma leitura das conclusões, supra, e não indicou nas alegações, ao menos no seu corpo, a decisão alternativa pretendida para os concretos pontos que indicasse como impugnados (isto, que não efetuou, sequer, no corpo das alegações). Não circunscreveram os recorrentes o objeto do recurso no que concerne à matéria de facto, nos termos exigidos pelo legislador e interpretados pelos Tribunais Superiores, em obediência ao imposto pela citada al. a), do nº1, do art. 640º, do CPC, nem observaram os ónus exigidos pelas al.s b) e c), desse mesmo nº1, e, também, não cumpriram o estatuído na al. a), do nº2, do art. 640º.
Efetivamente, não indicam os apelantes concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados, de modo especificado, para além de não referirem as específicas alterações que consideram deverem ser introduzidas (não mencionando, especificamente, a decisão alternativa por si proposta por contraponto à decisão proferida quanto a cada ponto impugnado) e não indicam concretos meios probatórios que imponham decisão diversa. E não o faz nas conclusões das alegações nem no próprio corpo das alegações.
Assim, não tendo os apelantes cumprido os ónus que lhe estão cometidos pelo nº1 e 2, a), do referido artigo, os requisitos habilitadores ao conhecimento de impugnação que se pudesse considerar formulada, não estando preenchidos os pressupostos de ordem formal para se proceder à reapreciação da decisão de facto, não pode recurso, na vertente da impugnação da decisão de facto deixar de ser rejeitado.
No caso, não estão, pois, preenchidos os pressupostos de ordem formal da impugnação da decisão da matéria de facto, não vindo formulada pretensão recursória no sentido de alteração ou anulação da decisão de facto, que, assim, se mantém, passando-se, por isso, à análise de mérito.

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3. Da decisão de mérito:

3.1. Da questão do abuso de direito:

3.1.1 - Da admissibilidade da sua apreciação

Insurgem-se os Réus contra a sentença na parte em que, julgando verificada situação de abuso de direito por parte dos Recorrentes, os condenou “a reconhecer que os AA. têm direito a manter a “janela” (abertura) com as dimensões de 0,43 metros de altura por 0,65 metros de largura situada a 1,80 metros a contar do solo do interior, com sistema de abertura basculante para o interior de cerca de 40º, a que corresponde uma abertura de 22 centímetros, com vidro transparente e sem gradeamento ou malha no exterior da parede, (janela esta) existente no quarto de vestir do anexo e deita para o quintal do prédio dos RR”, considerando que do despacho que definiu o Objeto do Litígio e os temas da Prova, não resulta, nem como objeto do litígio nem como temas de prova, o abuso de direito por parte dos Recorrentes, pelo que tal “questão não podia ter sido apreciada pelo Tribunal a quo na sentença ora Recorrida”.

Sustentam que, de qualquer modo, se não verifica a situação de abuso de direito por não concordarem com a matéria de facto dada como provada nos pontos 36 (que tem a seguinte redação: “36. Assim impedindo a entrada de luz e condicionando a entrada do ar”) e 45 (com o teor: “45 - A referida “janela” confronta com o quintal do prédio dos RR. e não causa qualquer devassa ao referido quintal ou limitação de uso do mesmo para o fim a que se destina”), sempre se mostrando a utilização dada ao anexo ilícita.

Contra o referido se pronunciaram os requeridos conforme se deixou supra exarado.

Cumpre apreciar.
Comecemos por deixar claro que, à “Base Instrutória” do anterior Código de Processo Civil, essa a conter, nos termos da alínea e), do nº 1, do artigo 508º-A e do artigo 511º, de tal diploma, a matéria de facto relevante para a decisão da causa, segundo as várias situações plausíveis da questão de direito e sobre a qual iriam incidir as diligências instrutórias, sucederam, no atual Código de Processo Civil, aplicável, os “Temas da prova” (cfr.nº1, do art. 596º), meramente destinados a servir de guião aos sujeitos processuais na fase de produção de prova, orientando-os nas questões a demonstrar, sendo pacífico que se não trata de uma peça processual de estanque seleção de factos controvertidos com relevância para a decisão da causa, mas, antes, uma mera enunciação de temas, não redutores dos factos, a submeter a instrução, devendo o Tribunal traçar genericamente a controvérsia entre as partes sobre as matérias principais, ficando para a decisão sobre a matéria de facto a pormenorizada descrição dos factos, quer a dos provados quer a dos não provados.
Deixou, pois, o legislador de impor qualquer seleção de factos (seja assentes seja controvertidos), antes revestindo a enunciação dos temas da prova um carácter genérico de temas, destituído de qualquer função de enunciação de factos concretos a formar a matéria de facto da fundamentação da sentença (seja provados seja não provados).
Como bem se analisou no Ac. da RP de 8/9/2020 (de que se referem no lugar próprio as respetivas notas) e citando “Paulo Pimenta[14], “Relativamente aos temas da prova a enunciar, não se trata mais de uma quesitação atomística e sincopada de pontos de facto, outrossim de permitir que a instrução, dentro dos limites definidos pela causa de pedir e pelas excepções deduzidas, decorra sem barreiras artificiais, com isso se assegurando a livre investigação e consideração de toda a matéria com atinência para a decisão da causa (…).
Relativamente aos critérios que deverão nortear a enunciação dos temas da prova, cumpre dizer, desde já, que o método a empregar é fluído, não sendo susceptível de se submeter a “regras” tão precisas e formais quanto as relativas ao questionário e mesmo à base instrutória (…).
“…a enunciação dos temas da prova deverá ser balizada somente pelos limites que decorrem da causa de pedir e das excepções invocadas. Nessa conformidade, os temas da prova serão aqueles que os exactos termos da lide justifiquem.
No limite, pode dizer-se que haverá tantos temas da prova quantos os elementos integradores do tipo legal em causa, o que implica que o juiz e os mandatários das partes atentem nisso.
Para essa ponderação contribuirá também a circunstância de, nos termos propostos, a enunciação dos temas da prova ocorrer logo em seguida à identificação do objecto do litígio, já que esta identificação logo demandará uma adequada consciencialização daquilo que estará realmente em jogo em cada acção”.
“Ao exigir a enunciação dos temas da prova, não pretendeu o legislador que o juiz elencasse factos descritos segundo a sua perspectiva sobre a distribuição do ónus da prova, mas apenas questões genéricas … que podem ser formuladas mediante o uso de qualificações jurídicas e que têm como referência a causa de pedir e as excepções alegadas pelas partes (embora com estes não se confundam, na medida em que não são factos concretos)”[15].
Como diz também Lília Oliveira[16], “Os temas da prova conferem ao juiz, na sua elaboração, uma grande margem de flexibilidade, podendo os enunciados ser mais vagos ou mais concretos, consoante as necessidades do caso. Esta peça vai desempenhar uma indubitável função de organização geral do processo, de orientação e preparação dos actos subsequentes, fixando os pontos controvertidos e deixando de lado os factos já demonstrados, a indicar depois pelo juiz no julgamento da matéria de facto, no intuito de esclarecer as partes em relação ao que vai ser discutido na audiência final, embora sem qualquer efeito preclusivo. Constituem, inegavelmente, um instrumento de síntese da controvérsia.
Devem também os temas da prova permitir a elucidação do autor e do réu relativamente aos pontos de facto sobre os quais a prova deve versar para o sucesso das suas pretensões, a fim de evitar o risco de surpresa para as partes, contudo tal trabalho terá sempre de pautar-se por uma ideia de cooperação entre as partes e o próprio juiz.”
Nesta conformidade, “os temas da prova consistem na indicação das grandes questões que interessam à boa decisão da causa e que carecem ainda de prova, devendo ser objecto da fase de instrução do processo. (…) Visam, essencialmente em primeiro lugar, constituir uma linha orientadora da fase de produção da prova e não condensar individualmente todos os factos essenciais alegados pelas partes, com vista a final, o tribunal pronunciar-se quanto aos mesmos em termos de provados ou não provados[17][18].
Assim, enunciar os temas de prova é atividade processual que se dirige primacialmente à fase da produção da prova, enquanto na sentença, ultrapassada que se encontra aquela fase, cabe ao juiz declarar quais os factos, densificados pelas partes, que julga provados e quais os que julga não provados[19], sendo a fonte destes os articulados e não os temas de prova enunciados.

Ora, no caso, verifica-se que o Tribunal a quo, identificou o objeto do litígio e enunciou, específicos, temas da prova, sem formulação genérica, e relegou, expressamente, a apreciação do abuso de direito para a sentença por tal depender de prova a produzir.

Na sentença, o juiz pronunciou-se sobre os factos e apreciou, como lhe era imposto do pedido, agora objeto do recurso, conhecendo do abuso de direito dos Requeridos como no saneador referiu ir efetuar e as partes, por isso, bem contavam.

Não há, pois, como vimos, “cristalização da matéria de facto na fase intermédia do processo, ficando relegada para a sentença, isto é, para depois de concluída a instrução, a definição do quadro fáctico da lide, o que é, aliás, uma decorrência do dever de o juiz considerar na decisão os factos complementares ou concretizadores que resultem da instrução (art. 5º, nº2, al. b))”[20], consagrando este preceito todos os factos a expor na decisão da matéria de facto (cfr. nº1, 2 e 3, de tal artigo).

Importa referir que a “maleabilidade ou plasticidade que a enunciação dos temas da prova confere à instrução não dispensa o juiz de, no momento em que proceder ao julgamento da matéria de facto, indicar, com precisão, os factos provados e não provados”[21], em obediência ao estatuído no nº 4, do art. 607º.

E na exposição dos factos, quer dos provados  quer dos não provados, “o juiz não deve orientar-se por uma preconcebida solução jurídica do caso, antes deve assegurar a recolha de todos os factos que se mostrem relevantes em função das diversas soluções plausíveis da questão de direito” pois “não é de excluir que, apesar de o concreto juiz entender que basta um determinado enunciado de factos provados ou não provados para que a ação proceda ou improceda, o tribunal superior, em sede de recurso, divirja daquela perspetiva e considere outras soluções dependentes do apuramento de outros factos.

Assim, tendo de ser analisados, para efeitos de serem considerados provados ou não provados, os factos alegados pelas partes, nos articulados da causa, bem foi, na consideração do pedido e dos factos da causa apreciado do abuso de direito como as partes bem contavam (cfr. petição inicial e despacho saneador), nenhum efeito preclusivo do direito se tendo gerado.


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3.1.2 - Da procedência ou não do pedido de reconhecimento do direito de manter a abertura.

Insurgem-se os Réus contra a sentença, na parte em que os condenou a reconhecer que os AA. têm direito a manter a abertura (com as dimensões de 0,43 metro. de altura por 0,65 metro de largura situada a 1,80 metros a contar do solo do interior, com sistema de abertura basculante para o interior de cerca de 40º, a que corresponde uma abertura de 22 centímetros, com vidro transparente e sem gradeamento ou malha no exterior da parede) existente, manifestando discordâncias sem que, contudo, tenham impugnado a decisão na vertente de facto.

Assim, na consideração do compósito dos factos provados, que se mantém, cumpre apreciar se cabe ou não manter a decisão quanto ao reconhecimento do direito a manter a abertura em causa, sendo esse o objeto do recurso.

Tendo-se provado que a mesma está no anexo do prédio dos AA. há 47 anos - f.p. nº 40 - e não é possível utilizá-la, dadas as suas dimensões e estrutura (altura, tamanho e forma de abertura basculante para o interior e com apenas 22 cms), para se debruçar para fora ou sacudir tapetes - f.p. nº 41 - reconheceu o Tribunal a quo o direito dos Autores de a manterem fundamentando:

“… existe no anexo da casa dos AA. há cerca de 47 anos – nº 40 dos FP. Os RR., por sua vez, são proprietários do imóvel contíguo desde 29/08/2008 – nº 9 dos FP – por lhes ter sido adjudicado em partilha da herança de EE, pai do A. e do R. maridos. Este EE adquiriu o prédio para ali instalar, como instalou, a sua casa de morada de família, tendo nela residido até à sua morte a 01/10/1979, e a esposa KK até meados de 2008, (…) – nºs. 11 e 12 dos FP.

Todas as portas, janelas e outras aberturas existentes na casa e anexo dos AA. existem desde a construção original em 1973 com as medidas atuais – nº 26 dos FP. Os pais do A. e R. maridos (EE e KK), durante os mais de 50 anos em que ocuparam o prédio identificado em 7 dos FP sempre reconheceram e aceitaram o prédio dos AA. com a composição e descrição referidas, bem como com todas as aberturas, portas e janelas nele existentes – nº 30 dos FP. O mesmo sucedendo com os RR. até 2020 – nº 31 dos FP –, os quais conheciam tal prédio perfeitamente, por o R. marido aí ter nascido e crescido – nº 32 dos FP.

Sendo assim, não podiam os RR. tapar, como fizeram, a “janela” do quarto de vestir existente no anexo da casa dos AA. – nºs. 35 a 38 dos FP, dependência que é utilizada pelo neto dos AA. – nº 42 dos FP. A referida “janela” confronta com o quintal do prédio dos RR. e não causa qualquer devassa ao quintal ou limitação do seu uso – nº 45 dos FP.

Quer dizer, o tapamento da “janela” feito pelos RR. é ato de pura emulação e de abuso de direito. Na verdade, os RR., com a sua conduta de dezenas de anos anterior tinham feito nascer e mantiveram nos AA. a confiança de que tolerariam a existência da “janela”. E é certo que nenhum prejuízo lhes advém da sua manutenção” (negrito e sublinhado nosso).
Estatui o art. 334º, do Código Civil:
“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
O abuso de direito, cuja aplicação depende de terem sido alegados os factos e provados os referidos pressupostos, de conhecimento oficioso, é uma válvula de segurança do sistema.  
“As regras jurídicas não se aplicam isoladamente. Em cada caso, é sempre a ordem jurídica, no seu todo, que é chamada a depor. Esta, através da boa-fé e dos princípios da tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente, está sempre disponível para o controlo interno do exercício dos direitos. Quando atuadas em contradição com a boa fé (com o sistema, no seu essencial), há abuso, normalmente manifestado através de algum dos tipos abusivos. (…) O abuso é, hoje, um instituto objetivo. Não depende de culpa do agente ou de quaisquer intenções suas”[22].
E a verificação de “desproporção entre a vantagem auferida pelo titular do direito e o sacrifício por ele imposto a outrem constitui … abuso de direito, por atentado à boa fé. Está em especial jogo o princípio da primazia da materialidade subjacente. As valorações subjacentes à atribuição de um direito subjetivo nunca são absolutas”[23].  
É, na verdade, abusivo o tapamento, pelos Réus, da abertura, de entrada de luz e ar - “com as dimensões de 0,43 metros de altura por 0,65 metros de largura situada a 1,80 metros a contar do solo do interior, com sistema de abertura basculante para o interior de cerca de 40º, a que corresponde uma abertura de 22 centímetros, com vidro transparente e sem gradeamento ou malha no exterior da parede, (janela esta) existente no quarto de vestir do anexo e deita para o quintal do prédio dos RR” -, existente no prédio dos Autores há 47 anos e que ao quintal não causa qualquer devassa nem limita o uso do mesmo para o fim a que se destina, após décadas a ser gerada, quer por aqueles e pelos anteriores proprietários (pais de Autor e Réu e de quem os Réus herdaram o seu imóvel) a confiança de aceitarem a mencionada abertura, como, mesmo, resulta provado terem efetivamente, aceite. 
O abuso decorre da inação prolongada associada a uma conduta não justificada por um legítimo interesse.
Estamos perante uma atuação desequilibrada, havendo um manifesto desequilíbrio e grave desproporção entre o benefício pretendido pelos Réus e o sacrifício imposto aos Autores[24], seja qual for o fim a que se destine o “quarto de vestir” do anexo onde se encontra a abertura em causa, vendo-se os Autores impedidos da entrada de luz e sendo-lhes condicionada a entrada do ar, em situação em que a abertura em causa não provoca aos Réus qualquer devassa ou limitação ao quintal (cfr. f.p.s nº 35 e 36[25] e fp. nº45[26]). 

Como se decidiu no Douto Acórdão da Relação de Guimarães de 15/11/2018, relatado pelo Senhor Desembargador José Amaral, e em que foram Senhores Desembargadores Adjuntos Helena Melo e Pedro Damião e Cunha, processo 1724/15.3T8VRL.G1, acessível in dgsi, com vasta citação de jurisprudência de outras Relações e do Supremo Tribunal de Justiça, a abertura em causa, não qualificável propriamente nem como janela, nem como fresta, seteira ou óculo, tratando-se de abertura adquirível por usucapião e integrando uma servidão atípica, não limita eventual construção futura na estrema do prédio serviente. Contudo, como bem nele se decidiu[27], não pode deixar de se convocar o instituto do abuso de direito e de, com esse fundamento, ser confirmada a sentença recorrida.
Nenhum prejuízo concreto advindo para os réus da manutenção da abertura e prejudicando a tapagem desta os autores, nenhum interesse, utilidade ou finalidade atendível se mostrando terem aqueles na colocação do que quer que seja em frente à mesma e quase encostado, bem foi reconhecida, na atuação abusiva dos Réus, o direito dos Autores a manterem a abertura.
Estando as consequências a retirar do abuso de direito compreendidas no pedido feito ao Tribunal, como o impõe o princípio dispositivo e bem tendo ponderado o Tribunal os valores fundamentais do sistema, justifica-se o decidido com base no abuso de direito dos Réus.

Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pelos apelantes, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.


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4. Da responsabilidade tributária.

As custas do recurso são da responsabilidade dos recorrentes dada a total improcedência da sua pretensão recursória (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil).


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III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.


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Custas pelos apelantes.


Porto, 18 de março de 2024

Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores
Eugénia Cunha
Fátima Andrade
Jorge Martins Ribeiro
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[1] Resumos elaborados com base na sentença.
[2] Foram eles os seguintes:
“1ºOs doadores HH e mulher GG entregaram aos ora AA. o prédio identificado em A) em 1970.
2ºOs AA. procederam à demolição da casa existente (correspondente ao artigo ... urbano), e, entre 1970 e 1973, os AA. construíram um prédio novo, composto por casa de habitação, anexo e quintal.
3ºEste prédio foi inscrito fiscalmente como prédio urbano novo, em 26 de outubro de 1973, em nome do A. marido – fls. 29.
4ºO referido prédio sofreu obras de ampliação e conservação em 1989, tendo sido então edificado um salão em parte do quintal.
5ºO anexo foi transformado numa verdadeira habitação, composto por dois quartos, cozinha, quarto-de-banho, quarto de vestir/dispensa e corredor, para ali residir a filha dos AA., MM, que casou em 23 de julho de 1989.
6ºPosteriormente, em 1997, o prédio dos AA. sofreu nova ampliação, tendo sido construído um coberto para apoio à carpintaria implantada em parte destacada do quintal, depois, transformado em garagem – fls. 29v..
7ºEsta é a composição (casa de habitação, salão, anexo para habitação, garagem e quintal) que o prédio dos AA. mantém até hoje.
8º Todas as portas, janelas e outras aberturas existentes na parte habitacional do prédio dos AA. (casa e anexo) existem desde a sua construção original (1973), com as medidas atuais.
9ºE desde 1989, sempre o prédio dos AA. foi composto por duas habitações distintas e independentes.
10ºInicialmente a entrada para o anexo, fazia-se pelo quintal do prédio dos AA., e, desde a construção do coberto/garagem, em 1997, faz-se por esta.
11ºO prédio dos RR. identificado em G) foi comprado por EE entre 1940 e 1950.
12ºAquando da adjudicação do prédio identificado em G) ao R. marido (2008), o mesmo correspondia a uma casa de construção antiga, em degradado estado de conservação.
13ºOs AA., quando edificaram o seu muro de vedação, a sul, afastaram este da linha divisória entre os prédios, deixando uma faixa de terreno livre, com 15/20 cms de largura e ao comprimento de toda a confrontação entre a casa dos AA. e a casa dos RR., com cerca de 20 metros, por ali passar a canalização e tubagem do gás para a sua casa, e assim permitir o fácil acesso, em caso de necessidade de reparação ou manutenção daquelas.
14ºOs finados pais do A. marido e R. marido, durante os mais de 50 anos em que ocuparam o prédio identificado em G), sempre reconheceram e aceitaram o prédio dos AA., com a composição e descrição supra referidas, bem como com todas as aberturas, portas e janelas nele existentes.
15ºO mesmo sucedendo com os RR..
16ºEstes conhecem a composição do prédio que adquiriram, por o R. marido aí ter nascido e crescido; e também conhecem perfeitamente a composição/descrição e aberturas do prédio dos AA. por ser contíguo ao seu prédio (artigo ... urbano de ...),
17ºOs RR. encostaram a nova construção ao prédio dos AA., ocupando a faixa de terreno, que pertence a estes, referida em 13º, a sul do prédio dos AA..
18ºE construíram: a) muro de vedação, a nascente, com 1,60 metros de altura, com colunas para aplicação de chapas com 55 cms, totalizando a altura de 2,05 cms; b) parede a norte, virada para o pátio frontal dos AA., com 3,70 cms de altura; c) bem como muro para tal pátio, com 1,85 cms; d) muro e chapas, a norte, viradas para o logradouro traseiro dos AA., com 2,55 cms de altura; e) e muro de vedação, a sul do seu prédio, e virado para a via pública, com mais de 5 metros de altura.
19ºNo dia 22 de fevereiro de 2021, da parte da manhã, os AA. ouviram barulhos provenientes das traseiras do anexo do seu prédio, e, tendo entrado dentro do mesmo, constataram que a janela existente no quarto de vestir estava a ser tapada pelos RR. com uma chapa de ferro que cravaram no seu muro.
20ºAssim impedindo a entrada de luz e condicionando a entrada do ar.
21ºA referida janela tem 0,48 cms. de altura e 0,70 cms. de largura, situa-se a 1,75 cms. a contar do solo (interior do anexo), tem sistema de abertura basculante, com vidro transparente, e sem qualquer grade ou malha colocada no exterior da parede.
22ºEsta janela existe no aludido anexo há cerca de 47 anos,
23ºA dependência onde tal janela existe é utilizada pelo neto dos AA. como quarto de vestir, e ficou privada da luz exterior, uma vez que aquela era a única abertura para o exterior, não havendo qualquer possibilidade de se criar uma abertura alternativa.
24ºA referida janela não causa qualquer devassa ao quintal do prédio dos RR. ou limitação de uso do mesmo para o fim a que se destina,
25ºA impossibilidade de abrir a janela provocou o aparecimento de mofo e humidades na roupa e mobiliário, provocados por um insuficiente arejamento e falta de luz.
26ºA parede norte da casa onde viviam os pais do A. marido e do R. marido encontrava-se encostada, há mais de 30 e 40 anos, às construções dos AA. na sobredita linha de extrema.
27ºOs RR. no final de 2020, após terem regressado da Suíça onde se encontravam emigrados há vários anos, demoliram tal prédio e construíram um novo, igualmente encostado ao dos AA., ou seja, na extrema dos ditos prédios.
28ºNessa altura os RR. procederam à construção de um muro na restante extrema norte do seu prédio, respeitando o alinhamento já existente, ou seja, o que era conferido pela antiga parede norte da casa dos seus pais e pelas construções existentes no prédio dos AA..
29ºTais construções devidamente licenciadas e publicitadas, foram acompanhadas pelos AA., que inclusivamente permitiram aos RR. acederem ao seu prédio para acabarem as suas obras do lado voltado ao prédio dos AA..
30ºO anexo construído no prédio dos AA., não são, nem podem ser habitação de ninguém, nem como tal estão licenciados.
31ºTal anexo é servido por várias janelas e portas voltadas para o prédio dos AA.. 32º - Os RR., no local em frente à abertura existente na parede dos AA., colocaram uma placa de PVC opaca a cerca de 20cm do prédio daqueles.
33ºA qual permite que no dito quarto de vestir continue a existir luz e arejamento, pela abertura em causa nos autos”.
[3] Cfr. Ac. do STJ de 1/7/2021, proc. 704/12.5TVLSB.L3.S1, in dgsi.pt
[4] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª Edição, Almedina, pág. 760 e Ac. RC de 17-4-12, 116/11, aí citado.
[5] Ac. RC de 10/3/2015, proc. 490/11.6TBOHP-D.C2, in dgsi.pt
[6] Abílio Neto, Idem, pág. 969.
[7] Ac. RP de 14/7/2021, proc. 1106/11.6T4AVR-A.P1, in dgsi.pt
[8] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa Idem, pág. 761.
[9] Ac. do STJ de 10/2/2022, proc. 529/17.1T8AVV-A.G1.S1, in dgsi.pt
[10] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Idem, pág. 761
[11] De 07-11-2019 – Revista n.º 162867/15.0T8YIPRT.L1.S1; de 08-02-2018, Revista 8440/14.1T8PRT.P1.S1, ambos desta 2ª secção, in www.dgsipt
[12] Na Revista n.º 3160/16.5T8LRS-A.L1-A.S1 in www.dgsi.pt.
[13] AUJ de 17/10/2023, proc. 8344/17.6T8STB.E1-A.S1
[14] In ““Os Temas da Prova”, páginas 25 a 27. No mesmo sentido, v. A. Geraldes/P. Pimenta/Luís Pires de Sousa, in CPC anotado, Vol. I, pág. 699.
[15] Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, in “CPC anotado”, Vol. II, pág. 670.
[16] In “A condensação do processo: do questionário aos temas da prova”, Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra no âmbito do 2.º Ciclo de Estudos em Direito (conducente ao grau de Mestre), na Área de Especialização em Ciências Jurídico-Civilísticas/Menção em Direito Processual Civil, sob a orientação do Professor Doutor Luís Miguel Andrade Mesquita, Coimbra 2016, páginas 73 e 74.
[17] Helena Cabrita, in “A fundamentação de facto e de direito da decisão cível”, pág. 150.
[18] Ac. da RP de 8/9/2020, proc15319/16.0T8PRT (Relator: Pedro Alexandre Damião e Cunha)
[19] Ac. da RL de 29.5.2014, proc. 444/12.5TVLSB.L1-6 (relator: António Martins), in dgsi.pt
[20] Ibidem, pág.725
[21] Ibidem, pág 725
[22] António Menezes Cordeiro (Coord.), Código Civil Comentado, I – Parte Geral, Almedina, pág. 941.
[23] Ibidem, pág. 940.
[24] Cfr. ob. cit. pág. 940.
[25] “35 - No dia 22 de fevereiro de 2021, da parte da manhã, os AA. ouviram barulhos provenientes das traseiras do anexo do seu prédio, e, tendo entrado dentro do mesmo, constataram que a “janela” existente no quarto de vestir estava a ser tapada pelos RR. com uma chapa de ferro que cravaram no seu muro.
36 - Assim impedindo a entrada de luz e condicionando a entrada do ar”.
[26] “45 - A referida “janela” confronta com o quintal do prédio dos RR. e não causa qualquer devassa ao referido quintal ou limitação de uso do mesmo para o fim a que se destina”.
[27] Tem o referido Acórdão o seguinte sumário:
“…6) A Doutrina e a Jurisprudência, a despeito do amplo conteúdo do direito de propriedade previsto no artº 1305º, CC, têm procurado traçar uma definição daquele segundo uma perspectiva mais actual orientada pela chamada função social da propriedade privada, menos “edilicamente ruralista” e individualista mas mais urbana, social, utilitária, económica e progressista, salientando os limites à plena in re postestas decorrentes, entre outras, e v.g., o nº 2, do artº 1344º, do abuso de direito previsto no artº 334º, CC.
7) Sendo proibida em qualquer construção a abertura de janelas que deitem directamente sobre o prédio vizinho se localizadas a menos de metro e meio deste, a sua existência em contravenção de tal norma pode importar a constituição de servidão de vistas por usucapião, caso em que a restrição de construir a menos de metro e meio delas passa a onerar o outro prédio – artºs 1360º, nº 1, e 1362º, CC.
8) Quanto às frestas, seteiras ou óculos para ar e luz e às janelas gradadas, nos termos e condições definidos nos artºs 1363º e 1364º, não se aplicam aquelas restrições.
9) Porém, as aberturas que não sejam janelas propriamente ditas e as frestas, seteiras ou óculos e as janelas gradadas que não satisfaçam as condições previstas nestas normas, podem, ainda assim, dar origem à constituição e manutenção de servidão predial atípica.
10) Todavia, mesmo que se entenda que, diferente do que acontece com a servidão prevista no artº 1362º, o proprietário vizinho não perde, em tal caso, o direito de construir até à linha divisória, quiçá tapando-as, esse direito pode ser paralisado nos termos dos artºs 1344º, nº 2, e 334º, do CC.
11) Tal sucede no caso em que, existindo, há mais de 20 anos, na parede de uma casa que deita para o prédio rústico vizinho, sem deixar qualquer intervalo em relação a este, duas aberturas, ambas com a largura de 60 centímetros por 80 centímetros de altura, cujo parapeito dista menos de um metro e oitenta do sobrado, uma das quais gradada e cuja malha é superior a cinco centímetros (portanto irregular), relativamente às quais está provado que, pelo menos desde 1979/1980 (a do 1º andar) e 1984/1985 (a do sótão), são utilizadas pelos autores para olhar em frente, receber por elas ar e luz do exterior nos respectivos compartimentos, à vista de todas as pessoas, sem a oposição de quem quer que seja, de forma ininterrupta, com a convicção de exercerem um direito próprio e, ainda, que a execução de tais aberturas foi, naquelas datas, autorizada e, até agora, consentida sem qualquer objecção de quem quer que fosse.
12) Nenhum prejuízo concreto advindo para os réus da manutenção das janelas, prejudicando a tapagem destas os autores, nenhuma razão e interesse, utilidade ou finalidade atendíveis se mostrando terem aqueles na colocação de um painel vertical apenas em frente das mesmas e quase encostado, mesmo no caso em que se considere constituir-se, apenas, servidão predial atípica, sempre os réus não tem o direito de manter aquele painel, senão nos termos do artº 1362º, pelo menos nos termos dos artºs 1344º, nº 2, e 334º, CC”.
E nele se decidiu ser “manifestamente sem qualquer fundamento, excessiva e desequilibrada por sem proveito, inconsequente por desligada de qualquer interesse e, portanto, como apenas destinada a prejudicar e arreliar os autores” a atuação dos Réus referindo “Mesmo que, portanto, a servidão atípica constituída quanto à janela do 1º andar não impedisse, em princípio, os réus de construir até à linha divisória, a verdade é que não se está sequer perante uma construção ou obra digna de tal consideração, não se descortina qual o interesse sério, seja na perspectiva social seja na real ou económico-patrimonial, que os motivou, perfilando-se a ideia que não agem de boa-fé, (…), o que tudo, além do mais, integra abuso de tal direito a que sempre importará obstar na medida em que é repugnante para a ideia de justiça e para o sentimento jurídico geral impor aos autores a privação de benefícios adquiridos mediante a colocação e manutenção de tão despropositada estrutura”,
citando: “Nos termos do artº 334º, CC, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifesta os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Como consta do já citado Acórdão da Relação de Coimbra, de 18-03-2014, citando o Prof. Menezes Cordeiro:
“O abuso de direito representa a fórmula mais geral de concretização do princípio da boa fé, constituindo um excelente remédio para garantir a supremacia do sistema jurídico e da Ciência do Direito sobre os infortúnios do legislador e as habilidades das partes, mas com aplicação subsidiária, desde que não haja solução adequada de Direito estrito que se imponha ao intérprete aplicar. Um dos casos tipo de aplicação do princípio da boa fé, em que se desdobra o abuso de direito, é constituído pelo desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, nomeadamente, em caso de desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto a outrem, de modo a que, ultrapassados certos limites, esse exercício se revele abusivo, por afrontar a boa fé. Esta variante do abuso de direito desenvolve-se através de um exercício jurídico, aparentemente, regular, embora desencadeie resultados, totalmente, alheios ao que o sistema poderia admitir, traduzindo um puro desequilíbrio objectivo, que pode fazer apelo ao princípio da materialidade subjacente”.
Como se refere no também já invocado Acórdão do STJ, de 14-12-2013, citando aí Manuel Andrade, Almeida Costa, Pires de Lima e Antunes Varela, o abuso de direito:
“é uma cláusula geral, uma válvula de segurança, uma janela por onde podem circular lufadas de ar fresco, para obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico inoperante em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido; existirá abuso de direito quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito; dito de outro modo, o abuso de direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo, mas este poder formal é exercido em aberta contradição, seja com o fim (económico e social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético jurídico (boa fé e bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu reconhecimento”.