Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1342/19.7T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MENDES COELHO
Descritores: REIVINDICAÇÃO DE IMÓVEL
USUCAPIÃO
SUCESSÃO NA POSSE
Nº do Documento: RP202403181342/19.7T8AVR.P1
Data do Acordão: 03/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Na ação de reivindicação de imóvel, faz todo o sentido a alegação da aquisição derivada e a alegação da aquisição originária, pois a aquisição derivada não é constitutiva, mas apenas translativa de direitos, e para se concluir pela existência do direito de propriedade pode ser necessária a invocação e prova da usucapião, que integra forma de aquisição originária.
II – O sucessor do possuidor, por morte deste, sucede na respetiva posse e, como previsto no art. 1255º do C. Civil e consentaneamente com o também previsto na parte final do nº1 do art. 2050º do mesmo diploma, independentemente da sua apreensão material da coisa; além disso, tal posse continua a ser a antiga, com todos os seus caracteres.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº1342/19.7T8AVR.P1
(Comarca de Aveiro – Juízo Central Cível de Aveiro – Juiz 3)

Relator: António Mendes Coelho
1º Adjunto: Jorge Martins Ribeiro
2º Adjunto: Ana Paula Amorim

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I Relatório

AA e mulher, BB, intentaram acção declarativa comum contra CC, alegando, em síntese:

- autor e réu são irmãos;

- por partilha efectuada na sequência de inventário que correu termos após a morte da mãe de ambos, foram adjudicados ao autor dois prédios urbanos contíguos, que identifica e descreve, que são constituídos pelos edifícios principais, diversos anexos e logradouros, os quais confrontam na estrema norte de ambos com um prédio rústico, também partilhado no mesmo inventário, e que foi adjudicado ao réu;

- os falecidos progenitores de autor e réu e respectivos antecessores, há mais de trinta, cinquenta e mesmo cem anos, possuíram de forma contínua, inicialmente as respectivas parcelas de terreno e as primitivas construções e, depois de neles implantarem as edificações actualmente existentes, aqueles prédios, praticando actos usuais de um proprietário à vista de toda a gente, continuamente e sem oposição de ninguém, no pressuposto de estarem a exercer um direito próprio e nessa convicção; 

- antes da partilha esses prédios urbanos estavam na posse do réu;

- o réu, já depois de efectuada a partilha, procedeu, contra a vontade dos autores, a diversas modificações, que concretizaram, nos prédios adjudicados a estes, e vedou-lhes o acesso a construções/anexos e logradouros dos mesmos, causando-lhe com isso prejuízos cujo montante só poderá ser apurado quando cessar a ocupação dos mesmos pelo réu, quando se determinar o período de tempo em que se viram esbulhados de parte de tais prédios e quando se fizer um orçamento preciso das obras necessárias para os repor no estado em que se encontravam antes daquela actuação.

Concluem pedindo que o réu seja condenado a:

a) Reconhecer o autor como legítimo proprietário de cada um dos prédios identificados em 3º desta petição, com as áreas, limites e configurações constantes das plantas juntas supra como documentos nº 9, 12 e 16;

b) Desocupar e restituir aos autores, livres de pessoas e bens, a parte da edificação que integra o prédio sito na Rua ..., ..., inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia, concelho de Ílhavo, sob o artigo ...58 e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o nº ...40, bem como os currais que integram o prédio sito na mesma Rua, com o nº ...46, inscrito na mesma matriz predial sob o artigo ...31 e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o nº ...60, bem como os demais anexos e os dois logradouros que integram os dois identificados prédios propriedade do autor, com as áreas, limites e configurações constantes das plantas juntas supra como documentos nº 9, 12 e 16, que abusivamente ocupa;

c) Pagar aos autores uma indemnização pelos prejuízos acima referidos, no montante que vier a ser liquidado em execução de sentença.

O réu deduziu contestação, alegando, em síntese:

- os prédios urbanos adquiridos pelos autores não têm as áreas que constam das cadernetas e descrições prediais;

- durante muitos anos, os prédios urbanos agora propriedade dos autores e o prédio rústico propriedade do réu foram utilizados, pelos pais e avós dos mesmos, como se de uma única unidade se tratasse, levando a que fossem realizadas construções que ocupam, simultaneamente, mais do que um prédio;

- os prédios dos autores e do réu não têm linhas divisórias definidas e são todos eles confrontantes uns dos outros;

- ainda em vida, a mãe do Autor marido e do Réu doou a este último dois dos prédios, nomeadamente o prédio urbano correspondente ao artigo ...58 e o prédio rústico correspondente ao artigo ...70;

- por esse motivo, até ao termo do processo de inventário, o réu residiu na casa que lhe havia sido doada pela sua mãe;

- os prédios urbanos cuja propriedade pertence aos autores são apenas compostos pelas suas construções que confinam com a via pública, sendo que os logradouros e anexos existentes atrás dos mesmos foram implantados no prédio rústico propriedade do réu e as aberturas para esses logradouros feitas pelo próprio réu quando residiu no art. 258º;

- todas as construções e alterações efectuadas pelo réu foram levadas a efeito no seu prédio rústico ou, no urbano, quando este ainda era da sua propriedade, e pelo mesmo suportadas;

- atenta a possibilidade de não lhe virem a ser adjudicados os prédios urbanos, o réu optou por levar a efeito algumas alterações que impedissem, por exemplo, o acesso dos mesmos aos logradouros, uma vez que estes estavam situados no prédio rústico que era propriedade de outra pessoa.

- que as construções anexas às moradias de que os autores são proprietários encontram-se implantadas no seu prédio rústico e são, por isso e por haverem sido por si construídas, sua propriedade;

- que há mais de vinte anos que, por si e antecessores, vem possuindo a parcela do prédio onde se encontram implantadas tais construções, ininterruptamente, sem oposição de quem quer que seja, à vista de toda a gente, assim agindo por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade sobre tal parcela de terreno, pelo que adquiriu a plena propriedade de tal parcela por usucapião.

Na sequência de tal alegação, deduziu reconvenção na qual, referindo-se à construção por si próprio das referidas construções e à sua aquisição por usucapião da parcela de terreno onde as mesmas se encontram implantadas e alegando ainda que autores e réu são donos de prédios que confinam entre si e cujas estremas não se encontram demarcadas, deduziu os seguintes pedidos:

i. o reconvinte ser declarado proprietário da parcela de terreno onde se encontram implantadas as construções identificadas como A2, A5 e A1;

ii. O reconvinte ser declarado proprietário das construções identificadas como A2, A5 e A1;

iii. ser declarado que as construções identificadas como A2, A5 e A1 fazem parte do artigo rústico inscrito na matriz da ... n.º ...70.

iv. fixar-se as estremas, as áreas e a localização das parcelas de Autores e Réu;

v. proceder-se à demarcação dos prédios objecto do presente litígio mediante a cravação de marcos no terreno”.

Os autores apresentaram articulado de resposta, impugnando a factualidade alegada pelo réu como fundamento da reconvenção e, nessa sequência, defenderam a improcedência desta.

Realizou-se audiência prévia, tendo-se nesta proferido despacho saneador – em sede do qual se admitiu a reconvenção – e ulterior despacho de identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.

Procedeu-se a julgamento, tendo na sua sequência sido proferida sentença em que se decidiu nos seguintes termos:

Pelo exposto, julga-se a presente acção procedente por provado e em consequência:

A) Reconhece-se o autor como proprietário dos prédios identificados no ponto 3 a) e 3 b) desta petição, com as áreas, limites e configurações constantes das plantas juntas supra como documentos nº 9, 12 e 16, com excepção da área referida no levantamento topográfico realizado no âmbito deste processo e que já estará incluída no prédio descrito no ponto 4 dos factos provados;

B) Condena-se o Réu a desocupar e restituir aos autores, livres de pessoas e bens, em conformidade com o exposto na alínea A) deste dispositivo, a parte da edificação que integra o prédio sito na Rua ..., ..., inscrito na matriz predial urbana daquela freguesia, concelho de Ílhavo, sob o artigo ...58 e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o nº ...40, bem como os currais que integram o prédio sito na mesma Rua, com o nº ...46, inscrito na mesma matriz predial sob o artigo ...31 e descrito na competente Conservatória do Registo Predial sob o nº ...60, bem como os demais anexos e os dois logradouros que integram os dois identificados prédios propriedade do autor.

C) Determina-se a improcedência dos pedidos reconvencionais formulados em b) i, b) ii e b iii).

D) Decide-se que a linha de demarcação entre os prédios descritos no ponto 3 da matéria provada e o prédio descrito no ponto 4, no que respeita à confrontação norte/sul de ambos é a linha assinalada no levantamento topográfico efectuada no âmbito deste processo e que assinala essa estrema como uma linha perpendicular com as estremas nascente e poente do prédio identificado no ponto 4 dos factos provados.

E) Condena-se o Réu a pagar aos autores uma indemnização pelos prejuízos sofridos no montante que vier a ser liquidado em execução de sentença;”.

De tal sentença veio o réu interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

I. No presente recurso o Apelante pretende impugnar e ver alterada a douta Decisão de Facto, com reapreciação da prova gravada.

II. Os concretos factos da Douta Decisão de Facto que se consideram incorrectamente julgados e que, por via do presente recurso, se pretende sejam alterados, são os seguintes (seguindo a numeração da Douta Sentença recorrida): Factos provados: os elencados sob os números 26, 37, 39, 43, 44, 45 [o seu último segmento — “na edificação mais recente e recuada do prédio inscrito sob o artigo matricial ...58, prédio descrito em 3 b)”], 57, 58, 59 e 65; Factos não provados: os elencados sob as alíneas A), E), I), J), M) e N).

III. No modesto entender do ora Apelante, a correcta decisão daqueles pontos é a de considerar não provados os factos precedentemente enumerados do elenco dos factos provados, e considerar como provados os factos das precedentemente discriminadas alíneas do elenco dos factos não provados.

IV. Isso resulta do teor dos depoimentos precedentemente identificados e transcritos, concretamente,

a) Depoimento de parte do Réu CC, prestado na Sessão de 30/11/2022 da Audiência Final, e gravado das 9h49m41s às 11h00m05s;

b) Declarações de parte do Autor AA, prestado na mesma Sessão e gravado das 11h04m42s às 11h36m55s;

c) Depoimento da testemunha DD, prestado na mesma Sessão e gravado das 14H12m27s às 14h21m21s;

d) Depoimento da testemunha EE, prestado na mesma Sessão e gravado das 14h23m01s às 14h34m38s;

e) Depoimento da testemunha FF, prestado na mesma Sessão e gravado das 14h38m31s às 14h43m59s;

f) Depoimento da testemunha GG, prestado na mesma Sessão e gravado das 15h41m17s às 15h49m49s;

g) Depoimento da testemunha HH, prestado na mesma Sessão e gravado das 16h03m24s às 16h21m51s;

h) Depoimento da testemunha II, prestado na mesma Sessão e gravado das 16h23m41s às 16h39m46s;

i) Depoimento da testemunha JJ, prestado na Sessão da Audiência Final de 03/12/2021 e gravado das 9h49m37s às 10h04m34s;

j) Depoimento da testemunha KK, prestado na mesma Sessão e gravado das 10h10m26s às 10h15m05s;

k) Depoimento da testemunha LL, prestado e gravado na mesma Sessão, das 10h17m31s às 10h40m36s;

l) Depoimento da testemunha MM, prestado na mesma Sessão e gravado das 10h40m49s às 10h45m05s;

m) Depoimento da testemunha NN, prestado na mesma Sessão, gravado das 10h45m13s às 11h01m34s;

n) Depoimento da testemunha OO, prestado na mesma Sessão e gravado das 11h01m47s às 11h01m54s;

o) Depoimento da testemunha PP, prestado na mesma Sessão e gravado das 11h10m02s às 11h25m41s.

V. Da transcrição daqueles depoimentos e do seu cotejo com as Actas da Audiência Final vê-se que se procedeu à transcrição integral da toda a produção oral de prova,

VI. Sendo a apreciação da integralidade da produção oral de prova essencial para uma apreciação da mesma quanto aos factos provados e apreciação da douta Fundamentação da douta Decisão de Facto ora impugnada, bem como da matéria referente aos Factos Não Provados, uma vez que isso não resulta de um depoimento ou de determinado segmento de um depoimento destacado dos demais, pois no caso concreto só da sua apreciação integral pode extrair-se correctamemte o seu significado e alcance, em termos de se poder ver e concluir inelutavelmente que

a. As partes e as testemunhas depuseram sem registo e identificação da quase totalidade dos documentos que lhes foi dado ou solicitado visualizar, sendo questionadas com expressões e referências absolutamente vagas e de concretização impossível, do género “é aqui”, ´”é ali”, “é por ali”, “era só esta parte”, e outras expressões do mesmo género, daí resultando a completa ininteligibilidade de grande parte, ou de parte muito significativa, senão a totalidade, daqueles depoimentos;

b. Em nenhum desses depoimentos foi referida qual a intenção, o pensamento, ou a convicção dos empreendedores dos acrescentos de edificação que foram sendo feitos ao longo dos anos pelos Avós e pelos Pais do Autor Marido e do Réu ou por este;

c. Da perícia realizada nada se extrai quanto à localização e configuração e, até, extensão, da estrema Sul do prédio rústico que foi doado ao Réu e que, após isso, lhe foi adjudicado no Inventário decorrido entre ele e o Irmão (Autor), resvalando-se para meras suposições e recurso à “lógica” para estabelecer uma linha recta perpendicular à estrema Nascente, por ser o mais racional — quando, como é da experiência comum, o mais lógico e racional é que as estremas dos prédios rústicos, como toda a gente sabe, são, por regra, irregulares e com as configurações mais inverosímeis que se possa imaginar,

d. Assim não merecendo qualquer crédito o relatório pericial e as plantas que o acompanham e ilustram, que foram exclusivamente fruto da imaginação, sem qualquer confirmação testemunhal ou documental;

e. Aliás, existem nos Autos documentos aceites por acordo das Partes, dos quais o Autor se socorre (e certifica) para fundamentar a sua pretensão e que, inequivocamente e ao invés, demonstram que tal conclusão não tem qualquer fundamento.

VII. O Autor invoca e certifica o processo de Inventário que decorreu entre ele e o Irmão, ora Réu, em que os prédios que lhe couberam (e a que se reporta a presente acção foram descritos e avaliados com precisão,

VIII. Como se extrai da certidão do Inventário por ele junta, como doc.º n.º 2, com a douta petição inicial, integrando o “Auto de Declarações de Cabeça de Casal”, a “Relação de Bens”, “Descrições Matriciais”, “Mapa da Partilha” e douta Sentença homologatória da mesma,

IX. Dali se vendo que foi, no âmbito daquele inventário, promovida (inclusivamente, a pedido do Autor) a avaliação dos bens a partilhar, de onde resultou a enorme subida dos valores dos mesmos, seja dos urbanos que couberam ao Autor e ora ajuizados, seja do rústico que coube ao Réu e que na presente acção, também se discute.

X. Na sua douta contestação, o Réu e ora Apelante documentou o relatório da avaliação efectuada conforme ordenado no dito inventário e da qual resultou a detalhada descrição e determinação dos valores daqueles bens, conforme documento (não impugnado) junto, como doc.º n.º 1, com aquele douto articulado.

XI. Daí resultou a fixação das áreas e composição dos urbanos que couberam ao Autor – idêntica, aliás, à sua descrição matricial e registral, com rigorosa determinação das respectivas áreas.

XII. No mesmo relatório, com grande rigor e inquestionável primor técnico, descreve-se, mede-se e valoriza-se o rústico que foi adjudicado ao Réu e ao qual também se reporta a presente acção.

XIII. Ali se regista e confirma, quanto ao urbano/verba n.º 5, que coube ao Autor e que este inclui na sua pretensão na presente acção, a descrição matricial e registral do mesmo, coincidente com os documentos existentes nos Autos (de inventário e nos presentes Autos), designadamente, quanto a áreas,

XIV. Mais se registando naquele relatório que adjacentemente ao mesmo foram sendo construídas outras dependências agrícolas que mais não são do que barracas que foram implantadas no solo integrante do vizinho prédio rústico do Art. 675 — que, como resulta do alegado e documentado pelo próprio Autor, é, precisamente, o rústico do Réu com o qual os urbanos do Autor confrontam pelo Norte e cuja estrema Sul (do rústico do Réu) é, necessariamente, como resulta daquele relatório, uma linha irregular (como por regra acontece com os prédios rústicos) e, não, a racional linha recta perpendicular à estrema Nascente idealizada por que fez os desenhos, relatório e depoimento prestado por quem desenhou plantas e foi ouvido na presente acção — mas que ninguém confirmou nem referiu como sendo realidade..

XV. Se as pessoas ouvidas não confirmam a pretensão do Autor, também não o podem confirmar quaisquer fotografias ou qualquer visualização (designadamente, a inspecção judicial) do local, pois o que aí se vê é o que foi sendo feito pelos ascendentes das partes e pelo próprio Réu, e não mais do que isso,

XVI. Em respeito, aliás, pelas descrições matriciais e registrais dos prédios, incluindo as respectivas áreas,

XVII. Com as quais foram descritos e avaliados no inventário, onde esses elementos se estabilizaram e foram definitivamente aceites entre as partes, que são as mesmas da presente acção,

XVIII. Sendo precisamente isso o que o Autor adquiriu, o que foi avaliado e o que conscientemente e informadamente quis adquirir,

XIX. E, não, a coisa diferente que o Autor vem agora, sem qualquer justificação, invocar e trazer para a presente acção e que nunca esteve em cima da mesa nem foi objecto de partilha no inventário, sem qualquer invocação de erro sobre as qualidades do objecto.

XX. Ou seja: documentada e confessadamente, o Autor adquiriu exclusivamente os urbanos com a descrição e as áreas (e valores) constantes do processo de inventário - sendo isso e só isso o que efectivamente quis e representou,

XXI. O mesmo sucedendo com o Réu — o qual, por essa razão, delimitou e acrescentou o seu prédio nos termos fixados no inventário,

XXII. E de acordo com os títulos emergentes daquele processo.

XXIII. Por consequência, da prova produzida, quer oral (e gravada), quer documental, resulta não se ter provado a matéria dos factos precedentemente elencados considerados provados na douta Decisão de Facto.

XXIV. Em conformidade com aqueles meios de prova, deverão considerar-se provados os factos precedentemente discriminados e referidos nas respectivas alíneas do acervo de factos não provados elencados na douta Decisão de Facto.

XXV. Do exposto resulta dever igualmente revogar-se a douta Decisão de Direito, desde logo, porque o proprietário de vários prédios, contíguos ou não, após a respectiva aquisição não pode adquirir o que quer que seja relativo aos mesmos por usucapião, pois a sua posse é inequivocamente legítima e inquestionada e a aquisição por usucapião exige outro polo e contraponto da relação aquisitiva, o que, no caso, não verifica (ninguém vai usucapir contra si mesmo!...) — assim estando na douta Sentença recorrida o disposto no Artigo 1296.º do C.Civil.

XXVI. Também está vedada a possibilidade de confusão de prédios — pois se trata de figura do domínio das obrigações (Artigo 868.º do C.Civil) e, não, do domínio dos direitos reais, em que impera o princípio do “numerus clausus”, como decorre do disposto no Artigo 1306.º do C.Civil.

XXVII. Os acrescentos feitos pelos ascendentes do Autor e do Réu, não sendo licenciados nem licenciáveis, não conferem qualquer legalidade às edificações,

XXVIII. E, encontrando-se em terreno com descrição diferente dos urbanos que foram adjudicados ao Autor, nem sequer conferem o direito de acessão, pois os ascendentes de Autor e Réu eram os donos do prédio rústico e a acessão pressupõe que o autor da incorporação e o titular do terreno sejam pessoas distintas — o que, manifestamente, não é o caso, como se extrai do disposto no Artigo 1325.º do C.Civil.

XXIX. O que foi sucedendo ao longo do tempo foi uma coisa muito simples e habitualíssima — os ascendentes do Autor e do Réu, ao longo dos anos e sem quaisquer preocupações, foram usando os prédios como muito bem lhes apeteceu, sem quaisquer intenções que signifiquem coisa diversa disso mesmo ou que determinem qualquer entendimento que invalide as descrições matriciais e registrais (incluindo as áreas) dos prédios.

XXX. Como disse o Autor na sua douta petição inicial, as edificações ou acrescentos feitos pelos Avós e pelos Pais foram, todos, sem licenciamento — situação que se mantém.

XXXI. O Autor não cuidou, sequer, de alegar e provar que fossem ou sejam licenciáveis.

XXXII. Pelo que se vê dos desenhos e fotografias, adquire-se a firme convicção de que não são mesmo licenciáveis — pelo que, regressando à impugnação da douta Decisão de Facto, tratando-se de edificações ilegais, sem correspondência entre a sua configuração material e as descrições matriciais e registrais, é óbvio que não podem ser arrendadas — daí, também, e inequivocamente, que não possa em nenhuma circunstância dar-se como provado o Facto n.º 65 do elenco dos Factos Provados.

XXXIII. Ainda em sede de impugnação da douta Decisão de Facto, a prova do facto da alínea M) dos Factos não provados, resulta, inequivocamente, do depoimento da testemunha LL, designadamente, conforme registado nos minutos 00:09:51 até 00:18:22 da respectiva gravação.

XXXIV. No que respeita à determinação da estrema Sul do rústico do Réu, na douta Sentença recorrida invoca-se e aplica-se o disposto no Artigo 1354.º do C.Civil.

XXXV. Mas, sem fundamento, pois o Autor não adquiriu mais do que consta do respectivo título (no que aos urbanos se refere) emergente do Inventário, assim não podendo querer mais do que adquiriu, não tendo posse de absolutamente mais nada.

XXXVI. Por sua vez, o Réu dispõe de título emergente do mesmo Inventário e das descrições matricial, registral, do relatório de avaliação e da posse efectivamente exercida pelos seus antepossuidores, que no seu rústico acrescentaram edificações no uso dos seus poderes de fruição, assim sendo absolutamente desnecessária, no que a ele respeita, a delimitação.

XXXVII. Na douta Sentença recorrida foram violadas todas as disposições legais precedentemente citadas.

Os recorridos apresentaram contra-alegações, defendendo que deve ser negado provimento ao recurso e confirmada na íntegra a decisão recorrida. Nelas defendem ainda que, quanto à anunciada impugnação da matéria de facto por parte do recorrente, não se mostra observada a exigência prevista no art. 640º nº1 b) do CPC, pelo que deve o recurso ser rejeitado nessa parte.

Subidos os autos a este Tribunal da Relação, veio neles a ser proferido acórdão no qual se decidiu rejeitar o recurso quanto à impugnação da matéria de facto nele deduzida (com fundamento na não observância das exigências referidas sob as alíneas b) do nº1 e a) do nº2 do art. 640º do CPC) e manter a decisão de direito proferida pelo tribunal de primeira instância.

De tal acórdão foi interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo na sua sequência sido proferido acórdão que, revogando o proferido por este Tribunal da Relação, determinou a baixa dos autos para por este ser conhecida a impugnação da decisão relativa à matéria de facto e ser proferida decisão de direito em conformidade.

Baixados os autos a este tribunal, ocorreu renúncia ao mandato por parte dos advogados constituídos pelo autor/recorrido, cuja notificação pessoal a este veio a concretizar-se a 24/10/2023.

A 6/11/2023, pelo autor foi junta procuração a constituir mandatária.

Na sequência de jubilação do 1º juiz adjunto inicialmente designado, procedeu-se a sorteio de novo adjunto.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

Considerando o objeto do recurso e o determinado no acórdão proferido nos autos pelo Supremo Tribunal de Justiça, são as seguintes as questões a tratar:

a) – apurar da alteração do julgamento da matéria de facto efetuado pelo tribunal recorrido relativamente aos pontos indicados pelo recorrente;

b) – apurar da repercussão da reapreciação da decisão da matéria de facto na solução jurídica do caso, sendo nesta sede de analisar da usucapião invocada pelos autores, a par da partilha, para aquisição dos prédios urbanos que identificam e composição dos mesmos e ainda da procedência da demarcação efetuada na sentença recorrida.


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II – Fundamentação

Vamos à questão enunciada sob a alínea a).

É a seguinte a matéria de facto constante da sentença recorrida:

Factos Provados

1 - Os autores são casados entre si no regime da comunhão de adquiridos.

2 - Para partilha da herança aberta por óbito de QQ, ocorrido em 12.10.2006, da qual os aqui autor marido e réu são filhos e únicos e universais herdeiros, correu termos no Juízo de Competência Genérica de Ílhavo do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro Inventário Judicial com o nº 32/09.3TBILH.

3 - Por partilha concretizada no sobredito processo, homologada por sentença, transitada em julgado em 08.09.2017, o autor adquiriu os seguintes bens imóveis:

a) Prédio composto por casa de rés-do-chão e 1.º andar, destinada a habitação sita na Rua ..., freguesia ..., concelho de Ílhavo, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...31 e então omisso na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo, ali relacionado sob a verba n.º 4;

b) Prédio composto por casa de rés-do-chão destinada a habitação, sita na Rua ..., freguesia ..., concelho de Ílhavo, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...58 (antigo artigo ...01) e então omisso na Conservatória do Registo predial e ali relacionado sob a verba n.º 5.

4 - Por sua vez, através da mesma partilha, o aqui réu adquiriu o prédio rústico composto por terra de semeadura e regadio, com área de 3.000 m2, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho de Ílhavo, omisso na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo e inscrito na matriz predial sob o artigo ...70 (antigo artigo ...75).

5 - Atualmente, o prédio descrito em 3 a) encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Ílhavo sob o nº ...60, como casa de rés-do-chão e 1º andar com área descoberta, com área total de 105 metros quadrados, sendo 76 m2 de área coberta e 29 m2 de área descoberta.

6 - E da descrição matricial encontra-se descrito como casa de r/c e 1º andar, destinada a habitação com 2 divisões no r/c e seis no 1º andar, sendo a área total do terreno de 105 m2, a área de implantação do edifício de 76 m2, área bruta de construção 152 m2, área bruta dependente de 66 m2 e área bruta privativa com 86 m2, estando a aquisição a favor do autor está registada através da apresentação ...32 de 2017/10/31.

7 – A construção que integra o imóvel 3 a) foi edificada pelos progenitores de autor e réu, durante os anos de 1954 e 1955.

8 - Aquando da partilha, na sequência de divórcio, do património comum do dissolvido casal dos progenitores de autor e réu, o prédio com entrada pelo nº ...46, então ainda inscrito na matriz urbana sob o artigo ...77, era descrito como “composto de rés-do-chão e 1º andar” e “quintal”.

9 - A aquisição a favor do autor do prédio descrito em 3 b) está registada através da apresentação ...94 de 2017/10/20.

10 – Encontra-se descrito na Conservatória de Registo Predial sob o n.º ...20, como casa de rés do chão destinada a habitação, dependências e logradouros com área total de 135 m2m sendo 95 m2 de área coberta e 40 m2 de área descoberta.

11 - A casa térrea ... esteve inscrita na matriz predial urbana da freguesia ... sob o artigo ...01, que mais tarde deu origem ao atual artigo urbano ...58.

12 - Da descrição matricial prédio é composto por casa térrea de adobos, de 4 divisões, tendo 2 portas e 2 janelas, revestida de azulejos, sendo a área total do terreno de 135 m2, a área de implantação do edifício de 95 m2, a área de construção de 95 m2, a área dependente de 15 m2 e a área bruta privativa de 80 m2.

14 - Aquando da partilha, na sequência de divórcio, do património comum do dissolvido casal dos progenitores de autor e réu, era ali descrito como sendo composto por “casa térrea”, “dependências” e “logradouro”

15 - O réu residiu na moradia referida em 3 a) com a sua primeira mulher, desde 1983 até 1992, altura em que o casal fixou residência na Rua ..., ... ....

16 - Após o seu divórcio passou a residir na Avenida ..., também na ..., onde vem residindo desde então até hoje.

17 - No período em que habitou a casa sita na Rua ..., fê-lo por tolerância da mãe, sua proprietária, e na companhia desta, a qual, após a sua construção, sempre ali manteve a sua residência permanente.

18 – A mãe do Autor marido e do Réu, doou a este último, por escritura pública realizada a 31 de março de 2006, o prédio urbano correspondente ao artigo ...58 e o prédio rústico correspondente ao artigo ...70.

19 - Quando foi requerido o inventário e concretizada a partilha, os bens descritos em 3 encontravam-se em poder do ora réu.

20 – O prédio com o n.º de porta ...44 só foi entregue ao autor na sequência de execução para entrega de coisa certa que correu termos no próprio processo de Inventário.

21 - Os prédios referidos em 3 confinam a sul com a Rua ..., ... e a norte com o prédio pertença do réu, identificado em 4, ao longo de toda a estrema sul deste.

22 - Os dois referidos imóveis do autor confinam entre si, ficando a parede exterior que limita do lado nascente a edificação com rés-do-chão e primeiro andar e entrada pelo nº ...46 daquela rua, encostada à parede exterior que limita do lado poente a construção térrea com entrada pelo nº ...44 da mesma rua.

23 - Existindo entre aquelas duas edificações contíguas à rua, uma garagem coberta, que integra o prédio com entrada pelo nº ...44, mas cuja parede limite, a poente, é a parede do prédio contíguo (nº 146), com uma porta que dá acesso à casa de R/C e 1º andar.

24 – Nessa garagem existia uma porta, na traseira, a norte, para o logradouro através do qual se acedia ao n.º 144 e ainda uma abertura.

25 - A construção que integra o imóvel descrito em 3 a) foi edificada pelos progenitores de autor e réu, durante os anos de 1954 e 1955.

26 - É composta pelo edifício principal de dois pisos, para habitação e por uns currais, nas suas traseiras a norte, que formam um “L” invertido, com a parte inferior – ou, neste caso e dado que invertido, superior – virada para nascente e por uma área de terreno descoberta, a poente e nas traseiras da casa.

27 - Para permitir que a parcela de terreno descoberta a poente da edificação tivesse uma largura que permitisse a passagem de um carro, os progenitores de autor e réu afastaram a implantação de toda a edificação para nascente e, em consequência, a esquina sul / poente ficou a 4,60 metros de distância da estrema poente da parcela de terreno e a esquina norte / poente ficou a cerca de 1,70 metros desse limite.

28 - Fazendo com que a parede poente da edificação, em vez de ficar paralela em relação à estrema desse lado e perpendicular ao eixo da via, ficasse em diagonal em relação à Rua ....

29 - E com que os currais deixassem de formar um “L” perfeito, mas antes “descaído” para nascente.

30 - A casa de habitação tem quatro janelas abertas na parede poente abertas para a parcela descoberta do próprio terreno.

31 - Tinha também uma porta na parede norte.

32 - Por sua vez a casa térrea para habitação com entrada pelo nº ...44, descrita em 3 b) é composta por uma construção retangular paralela à Rua ..., a sul, para a qual tem abertos um portão, uma porta e duas janelas,

33 – Tinha também mais duas portas e três janelas abertas na parede lateral do lado nascente.

34 - Esta casa foi edificada pelos avós maternos de autor e réu, há mais de oitenta anos.

35 - Posteriormente, após o óbito da avó materna, no estado de viúva, ocorrido em 1965, os pais de autor e réu levaram a cabo nesta edificação obras de restauro e alteraram as suas divisões interiores, ali instalando dois apartamentos tipo T2, para habitação.

36 - Prolongaram a parede confinante com a Rua ... para poente até à parede nascente da casa com entrada pelo nº ...46, na qual colocaram um portão e uma cobertura, assim edificando a actual garagem que integra o prédio com entrada pelo nº ...44, onde antes existia uma parcela de terreno entre os dois edifícios.

37 - E ampliaram a casa primitiva, acrescentando-lhe uma nova edificação retangular térrea, de menores dimensões que a existente, que se desenvolve na traseira do edifício primitivo para norte deste, paralelamente e encostada à estrema nascente do prédio.

38 - Esta edificação destinava-se a apoio dos dois apartamentos existentes no corpo frontal e nela foram instalados tanques para lavar roupa, despensas e arrecadações.

39 - A norte desta nova edificação e no seu alinhamento foram ainda implantados dois galinheiros e dois currais,

40 - A parede nascente desta nova edificação não é totalmente alinhada com a parede nascente do primitivo edifício, estendendo-se mais para nascente, pelo que a sua fachada a sul, vai para além da parede traseira da primitiva edificação em cerca de 1,70 metro.

41 - Assim formando um canto, em ângulo reto, onde existia uma porta de acesso para a nova edificação, referida em 38.

42 - Na traseira, a norte, das duas edificações com entrada pelos nºs ...44 e ...46 existe um logradouro desde o limite nascente daquele e a estrema poente deste, nele existindo a norte dos currais, no alinhamento da casa de rés-do-chão e 1º andar, uma eira.

43 - Os falecidos progenitores de autor e réu e respetivos antepossuidores, há mais de trinta anos, cinquenta e mesmo cem anos, usaram de forma contínua inicialmente as respetivas parcelas de terreno e as primitivas construções e, depois de neles implantarem as edificações atualmente existentes, os prédios acima descritos, residindo habitual e continuadamente nas duas edificações, dando, mais tarde, de arrendamento a terceiros os dois apartamentos, anexos e logradouro que integram o prédio com entrada pelo nº ...44, celebrando os respetivos contratos de arrendamento e cobrando e fazendo suas as rendas recebidas, mandando realizar e custeando as obras de conservação e manutenção dos edifícios, lavrando e plantando os terrenos correspondentes aos logradouros que os integram, criando animais nos currais e galinheiros, pagando as respetivas contribuições autárquicas e demais impostos por eles devidos.

44 - Tudo à vista de toda a gente do lugar, continuamente, sem interrupções e sem oposição de ninguém, no pressuposto de estarem a exercer um direito próprio e nessa convicção.

45 - Acontece que, em junho de 2017, já depois de os prédios propriedade do autor lhe terem sido adjudicados no processo de inventário, o réu iniciou, sem consentimento do autor trabalhos de demolição e colocação de uma estrutura em metal na edificação mais recente e recuada do prédio inscrito sob o artigo matricial ...58, prédio descrito em 3 b).

46 - O aqui autor interpelou o réu para que se abstivesse de realizar quaisquer obras no edifício que já lhe havia sido adjudicado.

47 - Não obstante, o réu prosseguiu as obras elevando o corpo mais a norte da edificação que integra tal prédio, sobre o qual colocou uma cobertura.

48 - Colocou na parte daquela parede que excede para nascente a edificação primitiva, a sul, uma porta nova na abertura já existente, sobre a qual implantou um pequeno “telheiro” com telhas de barro e tijolo de vidro,

49 - Aí colocou também uma caixa de correio e o número de porta “144 B”, apesar de não ter solicitado qualquer autorização para o efeito junto da Câmara Municipal de Ílhavo.

50 - O réu, sempre contra vontade do autor, arrancou o contador de água que existia na parede sul, a nascente do portão da garagem, do mesmo prédio (artigo ...58) e colocou-o na parede nascente da mesma edificação.

51 - O réu tapou com tijolos as duas portas e duas das três janelas existentes na parede nascente da primitiva construção com entrada pelo nº ...44.

52 - Entre a esquina norte / poente da casa de rés-do-chão e primeiro andar, com entrada pelo nº ...46 colocou uma chapa metálica, não amovível,

53 - Além disso e como o Autor se apercebeu apenas quando foi empossado dos prédios que adquiriu através do inventário, o réu tapou com tijolos e cimento a porta existente na parede norte do prédio com entrada pelo nº ...46, de acesso aos currais e logradouro,

54 - Vedou com tijolo e cimento a porta existente na parte de trás da garagem e tapou a abertura ampla existente na traseira (a norte) da garagem que deita para os logradouros dos dois prédios com uma parede formada por tijolos de cimento ocos

55 - Ainda na garagem arrancou as tubagens que, a partir do contador, também arrancado, existente no exterior junto ao respetivo portão, forneciam água da companhia à casa de rés-do-chão e 1º andar, com entrada pelo nº ...46.

56 - Finalmente, encerrou uma porta interior da casa térrea, com entrada pelo nº ...44, que dava acesso à zona posterior do corpo mais antigo da mesma edificação e, através desta, ao logradouro do prédio

57 - A zona coberta do prédio com entrada pelo nº ...44, incluindo as edificações mais antiga e mais recente, tem uma área total de implantação ao solo de 208 m2 (duzentos e oito metros quadrados).

58 - Por sua vez a casa com entrada pelo nº ...46 tem uma área total de implantação ao solo de 95 m2 (noventa e cinco metros quadrados), a que acrescem 40 m2 (quarenta metros quadrados) dos currais.

59 - Com o descrito procedimento, o réu vedou e impede todo e qualquer acesso do autor:

- Pelo exterior Rua ... – aos logradouros e anexos dos dois prédios propriedade do autor;

- A uma parcela da edificação mais antiga e confinante com a rua, com entrada pelo nº ...44, com uma área de 58 m2 (cinquenta e oito metros quadrados);

- Ao corpo mais recente e mais recuado do mesmo edifício, com uma área de 75 m2 (setenta e cinco metros quadrados);

- O acesso aos logradouros, currais e demais anexos dos dois identificados prédios do autor, pelo interior das edificações.

60 - Após o decesso da mãe de autor e réu, os dois imóveis ora reivindicados e as edificações neles implantadas mantiveram-se devolutos.

61 - A ligação de água canalizada, tal como de energia elétrica, ao prédio de rés-do- chão e 1º andar com entrada pelo nº ...46 da Rua ... foi requerida pela mãe de autor e réu, na qualidade de sua proprietária.

62 - O respetivo contador foi instalado no local indicado na petição inicial com base na ligação de água canalizada então requerida.

63 - Na conferência de interessados realizada em 14.10.2011, no âmbito do referido processo de inventário nº ...9..., o aqui reconvindo, através do seu mandatário, declarou, nos termos do disposto no art. 1362º, nº 1, do CPC, que pretendia licitar os bens doados ao ora reconvinte, ali relacionados sob as verbas nºs 5 e 6.

64 - No mesmo processo, na conferência de interessados realizada em 02.06.2014, o autor licitou os bens imóveis ali relacionados sob as verbas nº 4 e 5.

65 - Desde que desocupados e recuperados, cada um dos apartamentos em que está dividido o prédio com o nº ...44, bem como o edifício com o n.º 146 renderiam rendas mensais não concretamente apuradas.

Factos não provados

Não se provou que

A) Durante muitos anos, os prédios urbanos agora propriedade dos Autores e o prédio rústico propriedade do Réu fossem utilizados, pelos pais e avós dos mesmos, com se de uma única unidade se tratasse, levando a que fossem realizadas construções que ocupam, simultaneamente, mais do que um prédio.

B) Até ao términus do processo de inventário, o Réu residisse na casa que lhe havia sido doada pela sua mãe

C) A entrada dos dois prédios dos Autores fosse uma entrada conjunta, que se efectuasse pelo portão da casa de rés-do-chão.

D) A casa de primeiro andar que ora é propriedade dos Autores, quando ainda era propriedade da mãe do Réu não tivesse acesso ao lado norte, tendo sido aberta uma porta pelo Réu para aceder ao seu prédio rústico quando para lá foi morar.

E) Os prédios urbanos pertencentes aos Autores sejam apenas compostos pelas suas construções que confinam com a via pública, sendo que os logradouros e anexos existentes atrás dos mesmos tenham sido implantados no prédio rústico do Réu.

F) Os anexos existentes, vulgarmente denominados de currais, fossem construídos pelo próprio Réu desde 1984 até 2004, sendo que antes disso, apenas existiam as moradias principais.

G) Os progenitores do Autor e do Réu construíssem a casa “em diagonal” ao eixo da via porque os pais da progenitora apenas lhe doaram a “terra” necessária a construir a casa, e nem mais um metro.

I) As construções identificadas como A1, A5 e parte da A2 na planta que constitui o documento 16 junto com a petição inicial se encontrem implantadas no prédio rústico do Réu

J) Desde 1984 até 2004, ininterruptamente, o Réu ocupasse os prédios objeto da presente lide.

K) O Réu adquirisse um contador de água para a casa com o n.º 146.

L) Depois de essa casa não lhe ter sido adjudicada fosse aos competentes serviços questionar sobre a admissibilidade desta mudança para o seu prédio rústico, tendo-lhe sido referido que o podia fazer.

M) Fosse por solicitação do vizinho que o Réu procedesse ao fecho de duas janelas da parede nascente

N) Há mais de vinte anos que o Réu, por si e os seus antecessores, venham possuindo a parcela do prédio onde se encontram implantadas as construções, A2, A5 e A1 da planta que constitui o documento 16 junto com a petição inicial, ininterruptamente e sem qualquer contestação, oposição ou violência de quem quer que seja, vista de toda a gente e, mormente, das pessoas residentes nas suas proximidades, com respeito geral, fazendo-o de modo pacífico, contínuo e público, perfeitamente convicto de estar a exercer um direito de propriedade sobre tal imóvel.

O) A abertura referida no ponto 24 dos factos provados fosse ampla.

P) Os galinheiros e currais referidos no ponto 39 dos factos provados se destinassem a ser utilizados pelos ocupantes de cada um dos ditos apartamentos, os quais plantassem, cada um, o seu pequeno quintal no logradouro do prédio.

Q) Nas paredes poente das edificações referidas em 38 e 39 que integram o prédio com o nº ...44 havia portas e janelas e na parede norte dessas edificações existisse uma porta todas abertas para o logradouro.

R) A porta referida em 31 desse diretamente para o restante logradouro.

S) As habitações do n.º 144 no mercado de arrendamento valessem, cada uma, 300 € e a habitação do art. 146 valesse, no mercado de arrendamento, 600 €.


*

O recorrente pretende a alteração do julgamento da matéria de facto efetuado pelo tribunal recorrido relativamente aos factos provados constantes sob os nºs 26, 37, 39, 43, 44, 45 [este quanto ao segmento “na edificação mais recente e recuada do prédio inscrito sob o artigo matricial ...58, prédio descrito em 3 b)”], 57, 58, 59 e 65 e relativamente aos factos não provados constantes sob as alíneas A), E), I), J), M) e N), defendendo que todos aqueles factos provados devem ser considerados como não provados e que todos aqueles factos não provados devem ser considerados como provados (conclusões II e III do seu recurso).

Baseia tal pretensão na globalidade dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, transcrevendo a totalidade de cada um na motivação do recurso por referência aos minutos da respetiva gravação (depoimento de parte do réu, declarações de parte do autor e depoimentos das testemunhas DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO e PP). Alude ainda ao relatório pericial junto aos autos e plantas que o acompanham, às peças do processo de inventário identificado sob o nº2 dos factos provados juntas aos autos (certidão a fls. 30 e sgs. junta com a p.i.) e ao relatório de avaliação junto por si com a contestação como documento nº1 (fls. 122 a 1429), conforme se vê das conclusões VI, alíneas c) e d), VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII e XIV.

Cumpre notar que, nos termos do art. 607º nº5 do CPC, o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (essa livre apreciação só não abrange as situações referidas na segunda parte de tal preceito), não se podendo esquecer que o tribunal, nos termos do art. 413º do CPC, “deve tomar em consideração todas as provas produzidas”.

Ou seja, a prova deve ser apreciada globalmente, sendo de evidenciar em sede de recurso o disposto no art. 662º nºs 1 e 2, alíneas a) e b), do CPC, de onde se conclui que a Relação “tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia” (como refere António Santos Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª edição, 2018, pág. 287). De referir ainda que além da sua autonomia decisória relativamente à apreciação da matéria de facto nos termos que supra se referiu, a Relação não está limitada à reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes, devendo atender a todos quantos constem do processo, independentemente da sua proveniência (conforme refere aquele autor naquela mesma obra, a págs. 293).

Apreciemos então.

Quanto ao nº26 dos factos provados

A factualidade dele contante foi confirmada pelas seguintes testemunhas: HH, ex-esposa do réu que, enquanto casada com ele, viveu na casa ali referida entre 1983 e 1992 e confirmou a existência daqueles currais nas traseiras e com aquela forma;  JJ, que, enquanto pequeno, morou numa das habitações em que estava dividida a casa térrea que se situa ao lado daquela durante 5 anos – os seus pais eram inquilinos dos pais do autor e do réu – e confirmou também a existência daqueles currais nas traseiras daquela outra casa, onde havia um quintal; II, que há mais de 50 anos e juntamente com a sua mãe e mais 4 irmãos, enquanto arrendatários, viveu também numa das habitações em que estava dividida aquela casa térrea (a que se situava da parte de trás em relação à parte que faz frente com a rua) e confirmou a existência nas traseiras da casa de rés do chão e primeiro andar de um quintal e daqueles currais; LL, que morou na casa situada ao lado da que tem o nº144 (que é a casa térrea) até 1987 e conhece desde a sua infância autor e o réu, de quem é amiga, a qual, denotando conhecer a casa do rés do chão e primeiro andar, confirmou também a existência nas suas traseiras daqueles currais e de um quintal; NN, que viveu também numa das habitações em que estava dividida aquela casa térrea (a que se situava da parte de trás ) – disse que nasceu lá, em 1970, e viveu lá, com os seus irmãos, até por volta de 1993, sendo arrendatários os seus pais – e confirmou igualmente a existência nas traseiras da casa de rés do chão e primeiro andar (que era, como disse, a “dos senhorios”) daqueles currais e quintal.

Aliás, o próprio réu, em sede de depoimento de parte, conforme assentada lavrada em ata (fls. 339), confessou que, tendo como referência as construções identificadas na planta que integra o documento nº16 junto com a petição inicial (constante de fls. 79), “os currais existentes em A5 (…) foram construídos pelos seus pais, após os prédios terem sido herdados dos seus avós”.

Por outro lado, as construções referidas sob aquele nº26 e a configuração dos currais são bem percetíveis no levantamento topográfico levado a cabo nos autos e constante de fls. 293 e 294 (entrado nos autos a 4/3/2020) e nos documentos 9, 12 e 16 juntos com a petição inicial (constantes, respetivamente, de fls. 70, 75 e 79), sendo que, quanto à área descoberta ali referida, já na escritura de partilha subsequente ao divórcio dos pais do autor e do réu, efetuada em 5/8/1981 e constante de fls. 143 a 151 dos autos, tal prédio foi ali descrito (verba vinte) como de “rés-do-chão e primeiro andar” e “quintal”.

Além disso, de nenhum depoimento testemunhal se extrai o que quer que seja que contrarie aquela factualidade.

Assim, improcede a impugnação quanto a tal ponto.

Quanto aos nº37 dos factos provados

A factualidade ali constante, referida à edificação em que foram instalados tanques para lavar a roupa a que alude o nº38, foi dada como provada com base nos depoimentos das testemunhas HH, II, JJ, já referidas supra, e OO (que viveu até aos seus 12 anos de idade numa das habitações em que estava dividida a casa térrea, no caso a situada na frente, junto à estrada, dos quais os seus pais eram arrendatários; saiu de lá por volta de 1988), pessoas que viveram nas casas arrendadas e tinham acesso aos anexos que se situavam nas respetivas traseiras, tendo confirmado a existência daquela divisão onde estavam os tanques.

A construção que constitui o acrescento ali referido mostra-se ainda bem visível na foto constante de fls. 80 (doc. 17 junto com a petição inicial) e ainda na foto, anterior àquela (pois nela ainda não é visível a estrutura metálica aposta sobre ela que naquela se vê), constante de fls. 78 (doc. 15 junto com a petição inicial).

De nenhum dos depoimentos testemunhais produzidos em audiência resulta qualquer prova em contrário (aliás, o recorrente não concretiza, quanto a tais depoimentos, quaisquer passagens dos mesmos e/ou uma sua qualquer interpretação no sentido da sua contraprova).

Assim, improcede a impugnação quanto a tal ponto.

Quanto ao nº39 dos factos provados

Os anexos constituídos pelos currais e galinheiros ali referidos foram confirmados, designadamente, pelas testemunhas HH, II e JJ, cujo conhecimento das casas e suas dependências já acima se evidenciou.

  De nenhum dos depoimentos testemunhais produzidos em audiência resulta qualquer prova em contrário.

Assim, improcede a impugnação quanto a tal ponto.

Quanto aos nºs 43 e 44 dos factos provados

A matéria ali constante foi dada como provada com base no que “resultou do conjunto da prova produzida” (como se diz na motivação da decisão de facto).

Tal matéria, além de decorrer da factualidade já dada como provada sob os nºs 7, 8, 11, 14, 17, 25, 26, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38 – onde avulta a construção do prédios identificados sob as alíneas a) e b) do nº3, respetivamente, pelos pais do autor e réu durante os anos de 1954 e 1955 e pelos avós maternos do autor e réu há mais de 80 anos, e a realização posterior de obras levados a cabo nos mesmos pelos pais de autor e réu –, resulta confirmada pela ponderação dos depoimentos das testemunhas HH, JJ, II, LL e NN, que, além de confirmarem a utilização das construções que integram os prédios em discussão e anexos neles existentes, confirmaram também a celebração dos arrendamentos ali referidos, como senhorios, por parte dos pais de autor e réu.

A propriedade daqueles prédios foi, entretanto, adquirida pela mãe do autor e do réu, de nome QQ, por via de partilha subsequente a divórcio que teve lugar a 5/8/1981 (escritura constante de fls. 143 a 151 dos autos, constando tais prédios sob as verbas dezanove e vinte).

Dos depoimentos de todas as testemunhas referidas acima resulta claramente que os pais do autor e do réu são referenciados como donos dos prédios e a suas atuações como próprias de donos, tendo tido lugar nos termos referidos sob o nº44.

Além disso, de nenhum dos depoimentos testemunhais produzidos em audiência resulta qualquer prova em contrário.

Assim, improcede a impugnação quanto a tais pontos.

Quanto ao nº45 dos factos provados e apenas relativamente ao seu segmento “na edificação mais recente e recuada do prédio inscrito sob o artigo matricial ...58, prédio descrito em 3 b)

A edificação aqui em referência é a que se mostra provada sob o nº37 dos factos provados e é bem visível na foto constante de fls. 80 (doc. 17 junto com a petição inicial) que a estrutura em metal está colocada em cima dela.

Assim, improcede a impugnação quanto a tal ponto.

Quanto aos nºs 57 e 58 dos factos provados

A matéria deles constante foi dada como provada com base na planta junta a fls. 79, que integra o documento 16 junto com a apetição inicial, já que, como se considerou na motivação da decisão de facto, “quanto à disposição e áreas dos prédios nele descritas, não foi impugnado” (aliás, diga-se, tal planta foi até expressamente considerada pelo réu no artigo 23º da sua contestação).

Realmente, em tal planta referem-se, no canto inferior direito, as áreas das construções ali referidas e identificadas com as menções “A1”, “A2”, “A3”, “A4” e “A5”,  e delas decorre que o prédio referido no nº57 (casa térrea) e seus anexos tem a área total ali referida de 208 m2 (correspondente às construções identificadas com as menções “A1”, “A2”  e “A3” – 75 m2 + 58 m2 + 75 m2) e que o prédio referido sob o nº58 tem a área de implantação no solo ali referida de 95 m2 (correspondente à “A4”) acrescida de 40 m2 dos currais (que correspondem a “A5”).

Tal planta, como se vê do artigo 5º da contestação, não foi impugnada pelo réu quanto ao seu conteúdo.

Além de tudo isto, tal planta e as áreas delas constantes foram confirmadas pelo seu autor, a testemunha EE, engenheiro que a solicitação do autor realizou o levantamento topográfico que a mesma corporiza (veja-se, em especial, minutos 2:05 a 2:43 do seu depoimento).

No relatório da avaliação efetuada no processo de inventário referido sob o nº2, datado de 31/12/2013 e junto pelo réu com a sua contestação como documento nº1, constante de fls. 122 a 134, não se procedeu a qualquer operação de medição de áreas dos prédios e respetivas construções. Como dele se vê, só se procedeu à avaliação dos bens relacionados para efeitos de fixar o seu valor naquele processo.

Como tal, improcede a impugnação quanto a tais pontos.

Quanto ao nºs 59 dos factos provados

A matéria dele constante foi dada como provada por se ter considerado como “facto bem patente” na inspeção ao local efetuada pelo tribunal em sede de audiência de julgamento, por tal matéria decorrer da matéria factual também dada como provada sob os nºs 48, 51, 52, 53 e 54 e ainda por tal matéria ter sido confessada pelo réu em sede de depoimento de parte.

E de facto, na sequência de tal depoimento de parte, foi lavrada a assentada a que se refere o art. 463º do CPC, onde se consignou que o réu “Admitiu também ter fechado todas as passagens para a parte traseira dos números 144 e 146, pois entende que o logradouro desses prédios integra já o prédio rústico que lhe foi adjudicado em partilhas”.

Assim, improcede a impugnação quanto a tal ponto.

Quanto ao nºs 65 dos factos provados

A matéria dele constante foi dada como provada com base nos depoimentos das testemunhas KK e MM, dos quais se entendeu concluir pela “possibilidade de, em abstracto, essas casas poderem ser arrendadas”.

É perfeitamente de sufragar tal análise probatória, pois a primeira daquelas testemunhas deu conta de ter contactado o autor para se inteirar da possibilidade de arrendar a uma pessoa sua conhecida alguma daquelas casas e a segunda testemunha referiu que ela própria chegou a manifestar interesse também em arrendar ali.

Aliás, as habitações em que estava dividida a casa térrea foram dadas de arrendamento pelos pais de autor e réu durante muitos anos, como deram conta variadas outras testemunhas que já se referiram acima (que ali viveram como filhos de arrendatários daquelas casas).

Além disso, de nenhum dos depoimentos testemunhais produzidos em audiência resulta qualquer prova em contrário.

Assim, improcede a impugnação quanto a tal ponto.

Quanto à alínea A) dos factos não provados

Considerou-se na motivação da decisão da matéria de facto, para a não prova da factualidade nela referida, que “resultou do depoimento de todas as pessoas ouvidas que as diversas construções e prédios sempre tiveram fins bem definidos e individualizados”, sendo que o nº146 era a casa dos pais do Autor e Réu e o nº144 era a casa dos seus avós, a qual foi depois arrendada.

Esta análise, que se subscreve, resulta da própria matéria dada como provada sob os nºs 25, 26, 27, 28, 29, 30, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41 e 43, e é claramente confirmada pelos depoimentos das testemunhas HH, JJ, II, LL, NN e PP, por via dos quais se perceciona a utilização autónoma das construções e espaços que integram cada um dos prédios urbanos em causa [a efetuada pelos pais do autor e do réu relativamente ao nº146 (casa de rés do chão e 1º andar) e, relativamente ao nº144, que é a casa térrea que tinha sido dos seus avós maternos e que foi posteriormente dividida em dois apartamentos pelos seus pais, pelos respetivos arrendatários].

De nenhum dos depoimentos testemunhais produzidos em audiência resulta qualquer elemento probatório no sentido de se poder dar como provada a factualidade em causa (aliás, o recorrente não concretiza, quanto a tais depoimentos, quaisquer passagens dos mesmos e/ou uma sua qualquer interpretação em tal sentido).

Assim, improcede a impugnação quanto a tal ponto.

Quanto à alínea E) dos factos não provados

A não prova da factualidade nela referida é manifesta, desse logo, face à factualidade, contrária à mesma, já dada como provada sob os nºs 26, 27, 32, 35, 37, 38, 40 e 42 dos factos provados.

Aliás, já na escritura de partilha subsequente ao divórcio dos pais do autor e do réu, efetuada em 5/8/1981 e constante de fls. 143 a 151 dos autos, o prédio com o nº...46 consta ali descrito (verba vinte) como composto de “rés-do-chão e primeiro andar” e “quintal” e o prédio com o nº...44 consta ali descrito (verba dezanove) como composto de “casa térrea”, “dependências” e “logradouro”, como respetivamente constante sob os nºs 8 e 14 dos factos provados.

De resto, de nenhum dos depoimentos testemunhais produzidos em audiência resulta qualquer elemento probatório no sentido de se poder dar como provada a factualidade em causa.

Assim, improcede a impugnação quanto a tal ponto.

Quanto à alínea I) dos factos não provados

A não prova da factualidade nela referida não é mais do que a decorrência do já dado como provado sob os nºs 26, 32, 34, 36, 37, 38, 42, 57 e 58.

Assim, improcede a impugnação quanto a tal ponto.

Quanto à alínea J) dos factos não provados

Considerou-se na motivação da decisão da matéria de facto, para a não prova da factualidade nela referida, que “para além do que resulta do ponto 15 dos factos provados e de ter sido referido que o Réu tinha nesses prédios animais, não se fez qualquer prova”.

Também se subscreve tal análise, sendo elucidativo o depoimento da testemunha PP, que mora na mesma rua, em frente (no nº137), há mais de 50 anos, e que referiu que o réu, depois de casado, ficou a morar lá até ele próprio construir casa e que agora o vê lá ir dar de comer a animais que lá tem (ovelhas e patos).  

Contra tal análise nada resulta de nenhum dos depoimentos testemunhais prestados em audiência.

Assim, improcede a impugnação quanto a tal ponto.

Quanto à alínea M) dos factos não provados

Motivou-se a não prova da respetiva factualidade nos seguintes termos: “embora a testemunha LL, que é a dona do prédio que confina a nascente com o n.º ...44, tenha afirmado que tenha falado com o Réu para fechar as janelas, não é, minimamente verosímil que tenha sido por isso que o réu as fechou. De facto, quando ele fez essas obras já o art. 144º tinha sido adjudicado ao irmão, no inventário”.

Ressalvando-se que nesta última frase se está ao aludir ao mesmo prédio com o nº...44 referido na primeira (a expressão “art.” terá sido mero lapso de escrita), é igualmente de sufragar tal análise probatória, pois é a que se coaduna com toda a conduta do réu dada como provada sob os nºs 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 56 e 59, toda ela já depois de ao autor terem sido adjudicados os prédios em causa no inventário.

Como tal, improcede a impugnação também quanto a tal ponto.

Quanto à alínea N) dos factos não provados

A sua não prova decorre necessariamente da matéria de facto, contrária à mesma, já dada como provada sob os nºs 43 e 44 dos factos provados, considerando, naturalmente, que nesta se tem em conta, além de toda a atuação dos pais de autor e réu sobre cada um dos prédios referida sob os nºs 25, 26, 27, 35, 36, 37, 38 e 39 dos factos provados, a composição de tais prédios também dada como provada sob os nºs 57 e 58 desses mesmos factos.

Assim, improcede também a impugnação quanto a tal ponto.

Mantendo-se a matéria de facto provada e não provada nos seus precisos termos, passemos agora às questões enunciadas supra sob a alínea b).

Comecemos por apurar da usucapião invocada pelos autores, a par da partilha, para aquisição dos prédios urbanos e composição dos mesmos.

Configurando-se a ação como de reivindicação e os pedidos nela formulados como claramente próprios dela, os autores alegaram a aquisição da propriedade dos prédios em causa por via de partilha judicial, e portanto a sucessão por morte, e também a aquisição de tal propriedade por via de usucapião (tais formas de aquisição, como se sabe, estão expressamente previstas no art. 1316º do C. Civil).

Aquela primeira forma de aquisição integra a chamada aquisição derivada e esta última integra uma forma de aquisição originária, como também se refere na sentença recorrida.

Faz todo o sentido a alegação de uma e de outra, pois a aquisição derivada não é constitutiva, mas apenas translativa de direitos, e para se concluir pela existência do direito de propriedade pode ser necessária a invocação e prova da usucapião, por integrar forma de aquisição originária[1].

No caso vertente, dos factos provados sob os números 43 e 44 decorre a aquisição por usucapião, nos termos decididos na sentença recorrida (na qual se concluiu pela verificação dos respetivos requisitos), dos prédios referidos sob o nº3 daqueles mesmos factos, com a composição, quanto a cada um deles, que resulta dos factos provados sob os nºs 25 a 42, aquisição essa que ter-se-á verificado ainda na esfera jurídica dos progenitores de autor e réu, por via de posse relevante para tal exercida por estes e seus antecessores (note-se que é só a prática de atos de posse por parte dos falecidos progenitores de autor e réu e respetivos antepossuidores que está referida sob aquele nº 43, referindo-se ali que a mesma já ocorria há mais de trinta, cinquenta e mesmo cem anos).

Por outro lado, o autor, como sucessor dos seus progenitores já falecidos, sucedeu na posse destes, continuando-a, sendo de notar que tal sucessão na posse ocorre, como previsto no art. 1255º do C. Civil e consentaneamente com o também previsto na parte final do nº1 do art. 2050º do mesmo diploma, independentemente da sua apreensão material da coisa. Além disso, tal posse “continua a ser a antiga, com todos os seus caracteres[2].

Assim, além da aquisição da propriedade de tais prédios por via da partilha referida sob o nº3 dos factos provados, ao autor é de reconhecer, por via daquela posse já exercida pelos progenitores a quem sucedeu durante os mais de trinta, cinquenta e mesmo cem anos referidos sob o nº43, a aquisição da propriedade daqueles mesmos prédios por usucapião e com aquela referida composição, independentemente de tal composição corresponder à que consta do registo[3].

Passemos agora a averiguar da procedência da demarcação também efetuada na sentença recorrida.

Foi o réu, ora recorrente, quem pediu, na reconvenção que deduziu, a par de outros pedidos, que devia:

iv.  fixar-se as estremas, as áreas e a localização das parcelas de Autores e Réu.

v.   proceder-se à demarcação dos prédios objecto do presente litígio mediante a cravação de marcos no terreno”.

Tal reconvenção veio a ser admitida por despacho proferido aquando do despacho saneador e transitado em julgado e, nessa sequência, na sentença que veio a ser proferida, julgou-se improcedente aquela reconvenção quanto aos pedidos nela formulados em b) i, b) ii e b) iii, e, já quanto àqueles outros pedidos, decidiu-se que “a linha de demarcação entre os prédios descritos no ponto 3 da matéria provada e o prédio descrito no ponto 4, no que respeita à confrontação norte/sul de ambos é a linha assinalada no levantamento topográfico efectuada no âmbito deste processo e que assinala essa estrema como uma linha perpendicular com as estremas nascente e poente do prédio identificado no ponto 4 dos factos provados”.

Fundamentou-se assim tal decisão:

Nos presentes autos, está assente a propriedade dos prédios cujas estremas se discute quer por parte dos Autores, quer por parte dos Réus como resulta dos pontos 3 e 4 dos factos provados.

Resulta também da matéria provada que os prédios do A e RR confrontam um com outro na estrema norte/sul, conforme resulta do ponto 21 dos factos provados.

É óbvio, face ao teor dos articulados, que este limite é controvertido, não havendo acordo quanto ao local em que se encontra esta estrema.

Para sua definição estabelece a lei o regime previsto no art. 1354º do CC:

1 – A demarcação é feita de conformidade com os títulos de cada um, e na falta de títulos suficientes, de harmonia com a posse em que estejam os confinantes ou segundo o que resultar de outros meios de prova.

2 – Se os títulos não determinarem os limites dos prédios ou a área pertencente a cada proprietário, e a questão não puder ser resolvida pela posse ou por outro meio de prova, a demarcação faz-se distribuindo o terreno em litígio por partes iguais.

3 – Se os títulos indicarem um espaço maior ou menor do que o abrangido pela totalidade do terreno, atribuir-se-á a falta ou o acréscimo proporcionalmente à parte de cada um.

A lei estabelece assim critérios a observar sucessivamente verificado o insucesso do anterior. São eles:

- os títulos existentes;

- a posse dos confinantes ou o que resultar de outros meios de prova;

- a repartição do terreno em partes iguais ou na proporção dos respectivos títulos no caso de estes indicarem um espaço maior ou menor do que o abrangido pela totalidade do terreno.

No que se refere ao primeiro critério resulta da inscrição matricial junta que o prédio pertencente ao Réu tem 3000 m2, área que foi aceite pelas partes.

Passamos, assim, ao segundo critério - a posse dos confinantes ou o que resultar de outros meios de prova;

Quanto a este critério a posse dos Autores está comprovada nos termos anteriormente descritos.

Foi efectuado levantamento topográfico que, partindo do pressuposto que o prédio pertencente ao Réu, tem 3000 m2 e dando como assentes as estremas norte do prédio do réu, bem como as estremas nascente e poente que não constituíram o objecto deste processo, dá duas possibilidades de demarcação:

- ou estabelecendo uma linha perpendicular entre as estremas nascente e poente e a estrema sul do prédio do réu;

- ou estabelecendo a estrema sul desse prédio como sendo uma linha paralela à sua estrema norte.

Parecendo que da primeira solução resulta um traçado mais regular do prédio do Réu, opta-se pela primeira opção.

O recorrente, que foi quem pediu a demarcação e que agora até já defende que quanto ao seu prédio a mesma já não é precisa (como refere sob o nº41 da motivação e sob a conclusão XXXVI do seu recurso), apenas impugna de forma genérica o decidido quanto a ela, como bem se evidencia dos nºs 38 a 41 da motivação do recurso (passados quase integralmente para as conclusões XXXIV, XXXV e XXXVI).

Por outro lado, o levantamento topográfico que suporta a demarcação decidida mostra-se junto a fls. 294 e a linha nele assinalada e que se perfilhou para tal demarcação, além da consideração da área de 3000 m2 do prédio do réu (referida sob o nº4 dos factos provados), respeita a inclusão nos prédios dos autores das construções referidas sob os nºs 26, 37 e 38 dos factos provados e dela apenas exclui, como se refere na sentença recorrida, “uma pequena área e que poderá corresponder aos currais e galinheiros descritos no ponto 39 dos factos provados e que, conforme ponto P dos factos não provados, poderiam, de facto, não estar integrados no prédio com o n.º ...44”.

Portanto, aquela demarcação teve em conta os títulos existentes – a partilha em inventário, com identificação dos prédios e área do prédio rústico do réu – e o que resultou de outros meios de prova, designadamente toda a prova produzida nos autos sobre a composição dos prédios urbanos dos autores.

Como tal, é de confirmar o decidido quanto a ela.

Na sequência de tudo o que se veio de referir, é de julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença recorrida.

As custas do recurso são da responsabilidade do recorrente, que nele decaiu (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).


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Sumário (da exclusiva responsabilidade do relator – art. 663 º nº7 do CPC):

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III – Decisão

Por tudo o exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente.


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Porto 18/3/2024.
Mendes Coelho
Jorge Martins Coelho
Ana Paula Amorim
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[1] Vide, neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. III, Coimbra Editora, 2ª edição, 1987, pág. 115.
[2] Citamos Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. III, Coimbra Editora, 2ª edição, 1987, pág. 13.
[3] Como se refere no Acórdão do STJ de 19/9/2017, proferido no processo nº 120/14.4T8EPS.G1.S1 e disponível em www.dgsi.pt (ponto II do seu sumário), “Sendo a usucapião a base da nossa ordem jurídica, o que releva para alcançar as realidades prediais, objecto de direitos reais, são os actos possessórios verificados ao longo dos tempos, que incidam sobre tais realidades, físicas e concretas, e não os elementos identificativos em poder de entidades ou serviços públicos, como as descrições prediais ou as inscrições matriciais – estas, por maioria de razão –, que podem ser úteis na identificação ou localização daquelas realidades, mas não podem ter qualquer repercussão nas relações jurídico-privadas, nomeadamente delimitando o objecto sobre que incindem tais direitos, nada provando, por si só, quanto a esse objecto, designadamente quanto à respectiva área concreta”.
Na mesma linha, e entre outros, refira-se o Acórdão do STJ de 5/5/2016, proferido no processo nº 5562/09.4TBVNG.P2.S1, onde, aludindo-se a doutrina e a outros acórdãos também do STJ em tal sentido, se refere no respectivo texto que “Se bem que, de acordo com o estatuído no art.º 7.º, do Código do Registo Predial, a inscrição no registo predial faça presumir a titularidade do direito de propriedade, o certo é que essa presunção não abrange a área ou a definição da delimitação física do prédio. Afigura-se-nos ser entendimento pacífico que a presunção resultante da inscrição do direito não abrange a área, limites, estremas ou confrontações dos prédios descritos no registo pois que o registo predial, que não é constitutivo, não tem como finalidade garantir os elementos de identificação do prédio”.