Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4221/22.7T8VNG-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA
ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP202403194221/22.7T8VNG-B.P1
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A responsabilização de um administrador pela qualificação da insolvência de uma sociedade comercial, exige que esse administrador exerça essas funções como administrador de direito, de direito e de facto, ou só de facto.
II - Não se apurando nenhuma dessas qualidades, não pode a referida responsabilização ter lugar, por esta via.
III - No âmbito do incidente da qualificação da insolvência, a medida da indemnização aos credores deve ser determinada também em função da culpa do atingido por essa qualificação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 4221/22.7T8VNG-B.P1

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Sumário

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Relator: João Diogo Rodrigues;
Adjuntos: Maria Eiró;
Ramos Lopes.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto,

I- Relatório

1- Declarada a insolvência da sociedade, A..., Unipessoal, Ldª, apresentou o Administrador da Insolvência nomeado o seu parecer, pugnando para que a referida insolvência seja qualificada como culposa, sendo por essa qualificação afetados os seus gerentes de direito e de facto, AA, BB e CC.

Isto porque, em síntese, foi celebrado entre a insolvente e a sociedade, B... Unipessoal, Ldª (que tem como gerente o pai do gerente da insolvente e como única sócia a sua companheira), um contrato de prestação de serviços através do qual eram prestados pela insolvente à referida sociedade serviços de mecânica, pintura automóvel, chaparia e limpeza e, em contrapartida, passou esta sociedade a assumir os salários e subsídios devidos aos trabalhadores da insolvente, as obrigações sociais e fiscais. Tal negócio foi ruinoso porque apenas contribuiu para o aumento do passivo junto da Segurança Social e da Autoridade Tributária e dos trabalhadores e foi celebrado em proveito de outra sociedade e em prejuízo da sociedade insolvente.

Por outro lado, os trabalhadores da insolvente e as instalações onde se encontra a sua sede, foram alocados à atividade dessa outra sociedade, B... Unipessoal, Ldª, esvaziando o escopo lucrativo da insolvente e aumentando o seu passivo porque a atividade lucrativa da insolvente passou a ser exercida por outra sociedade, deixando a primeira apenas com dívidas.

Acresce que inexiste contabilidade organizada, o que se traduz num prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da insolvente, não tendo sido aprovadas as contas, bem como não foram submetidas à devida fiscalização e depositadas.

A sociedade insolvente está ainda em incumprimento, pelo menos, desde 2017, perante a Administração Fiscal e, desde 2016, perante a Segurança social, sendo que este incumprimento consubstancia violação do dever de requerer a insolvência.

2- No sentido da mesma qualificação e afetação se pronunciou o Ministério Público.

3- Contra a referida pretensão manifestou-se a requerida, CC, uma vez que nunca exerceu qualquer função de gerência da insolvente, função essa que foi sempre exercida pelo requerido, BB e pelo seu filho, AA.

Para além disso, também nunca exerceu qualquer função de gerência na sociedade, B... Unipessoal, Ldª.

4- Terminados os articulados, foi, entre o mais, conferida a validade e regularidade da instância, identificado o objeto do litígio e selecionados os temas da prova.

5- Posteriormente, foi realizada a audiência final, após a qual foi proferida sentença na qual se decidiu:

“1. Qualificar a insolvência da sociedade “A..., Unipessoal, Lda.” como culposa;

2. Declarar afetados pela qualificação da insolvência como culposa os requeridos AA e BB, absolvendo-se a requerida CC.

3. Decretar a inibição de AA para administrar patrimónios de terceiros pelo período de dois anos e a inibição de BB para administrar patrimónios de terceiros pelo período de seis anos.

4. Declarar AA inibido para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de dois anos e o requerido BB inibido para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de seis anos.

5. Determinar a perda de quaisquer créditos dos requeridos AA e BB sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, condenando-os na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.

6. Condenar os requeridos AA e BB a indemnizarem os credores da insolvente no montante de €100.000,00 (cem mil euros)”.

6- Inconformado com esta sentença, dela recorre o Requerido, AA, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões:

“I. Por sentença proferida nos presentes autos, em 25-01-2022, foi decidido

“1. Qualificar a insolvência da sociedade “A..., Unipessoal, Lda.” como culposa;

2. Declarar afetados pela qualificação da insolvência como culposa os requeridos AA e BB, absolvendo-se a requerida CC.

3. Decretar a inibição de AA para administrar patrimónios de terceiros pelo período de dois anos e a inibição de BB para administrar patrimónios de terceiros pelo período de seis anos.

4. Declarar AA inibido para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de dois anos e o requerido BB inibido para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de seis anos.

5. Determinar a perda de quaisquer créditos dos requeridos AA e BB sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente, condenando-os na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.

6. Condenar os requeridos AA e BB a indemnizarem os credores da insolvente no montante de €100.000,00 (cem mil euros).

Custas pelos requeridos AA e BB.”

II. decisão com a qual não se concorda e de que se recorre.

III. Não se concordando, desde logo, quanto à matéria de facto, com o facto que resultou provado na alínea h) dos factos dados como provados que “Essa sociedade foi constituída com um capital social de €2.000,00, sendo sócia única a requerida CC e como gerente o requerido BB.”

IV. Quando deveria ter resultado provado que essa sociedade foi constituída com um capital social de €2.000,00, sendo sócia única a requerida CC e como gerente o requerido BB, o qual cessou funções em 10-12-2018, sendo nomeada gerente CC, cargo que ocupou até 06-03-2022.

V. Como o comprova a certidão da Conservatória de Registo Comercial respeitante à sociedade “B... Unipessoal, Lda.”, junta aos autos em 08-05-2023, à qual é feita menção na motivação dos factos dado como provados em g) e h), nas Ap. ... e Ap. ....

VI. Mais não se concorda que tivesse resultado provado na sentença de que se recorre o facto dado como provado na alínea w) dos factos dados como provado, “O requerido BB foi sempre a pessoa que, na insolvente, rececionava e procedia à entrega dos veículos, fazia a cobrança dos serviços prestados, geria as contas bancárias da insolvente, contratava trabalhadores e dava ordens e instruções aos trabalhadores da insolvente.”

VII. Não se concordando que dos testemunhos de DD e EE se pudesse dar como provado tal facto, como o motiva a sentença de que se recorre.

VIII. Isto porque, a testemunha DD, referiu que a Requerida contactava com os clientes e dava ordens aos funcionários, as quais recebia tanto da Requerida CC e do Requerido BB, efetuava pagamentos aos funcionários e determinava como seria de faturar as despesas, quando enviava para recados, ver testemunho DD aos 00:04:38 minutos aos 00:04:41 minutos, aos 00:05:01 minutos a 00:05:22 minutos 00:05:27 minutos a 00:05:29 minutos, 00:06:33 minutos a 00:06:48 minutos, 00:10:06 minutos a 00:10:08 minutos, aos 00:11:45 minutos a 00:11:51 minutos, aos 00:13:09 minutos a 00:13:11 minutos, aos 00:15:35 minutos a 00:15:53 minutos aos 00:21:54 minutos a 00:22:54 minutos.

IX. Referindo que ambos mandavam na Insolvente, ver testemunho DD aos 00:03:45 minutos a 00:04:00 minutos,

X. O que sucedeu mesmo após a criação da empresa B... Unipessoal Lda. e pelo mesmo até setembro de 2020,

XI. Mesmo possuindo a Requerida CC outros negócios.

XII. E que a dada altura foi a própria Requerida que afirmou que iria “endireitar” a empresa insolvente e o Requerido BB já não mandava, ver testemunho DD aos 00:21:54 minutos a 00:22:54 minutos.

XIII. O Tribunal a quo não pós em causa a credibilidade de tal testemunho, dado o princípio da mediação,

XIV. tendo sido prestado de forma esclarecedora e mais completo em relação aos restantes, quanto ao funcionamento da Insolvente.

XV. Testemunho que deverá ser considerado isento, pois não possuí a testemunha em causa qualquer relação de dependência ou subordinação com a Insolvente, foi trabalhadora da Insolvente até setembro de 2020, como consta na petição inicial, na qual requereu a declaração de insolvência ou da empresa B..., Unipessoal Lda.

XVI. O que não sucedeu com os demais testemunhos, EE, contabilista de ambas as empresas, FF, GG e HH, atualmente trabalhadores da referida empresa B... e obviamente comprometidos por tal subordinação.

XVII. Sendo que, a testemunha EE, admitiu que mesmo após o ano de 2018, e da Requerida ter cedido a sua quota na insolvente, este continuava a endereçava-lhe e-mails respeitantes à mesma, dos quais obtinha respostas, como sucedeu no e-mail que lhe enviou em 12-20-2020 e junto em sede de audiência de discussão e julgamento, respeitantes à questão de fiscalização pelo ACT, ver testemunho EE aos 00:13:29 aos 00:13:32 minutos, 00:14:08 aos 00:14:12 minutos, aos 00:14:39 minutos aos 00:14:41 minutos.

XVIII.  Mais, a própria Requerida CC, no testemunho que prestou em sede de audiência de discussão e julgamento, admitiu no seu testemunho que ela própria preparava orçamentos, contactava com fornecedores, fazia pagamentos e recebia dinheiro, bem como movimentava a conta bancária da Insolvente, à qual confessou ter acesso, ver testemunho Requerida CC aos 00:02:19 minutos a 00:04:50 minutos,

XIX. Pelo que, dos testemunhos em causa e dos documentos juntos em sede de audiência de discussão e julgamento não poderia ter resultado provado no facto w) dos factos dados como provados, que só o requerido BB foi sempre a pessoa que, na insolvente, rececionava e procedia à entrega dos veículos, fazia a cobrança dos serviços prestados, geria as contas bancárias da insolvente, contratava trabalhadores e dava ordens e instruções aos trabalhadores da insolvente,

XX. devendo resultar provado que o requerido BB e CC foram sempre as pessoas que, na insolvente, rececionavam e procediam à entrega dos veículos, faziam a cobrança dos serviços prestados, geriam as contas bancárias da insolvente, contratavam e davam instruções aos trabalhadores da insolvente.

XXI. Sendo que com os mesmos fundamentos, consequentemente, não deveria ter resultado não provado, na alínea b) dos factos dados como não provados, que “A requerida CC nos três últimos anos anteriores ao início do processo de insolvência geriu a atividade da insolvente, sendo ela que dava ordens e instruções aos trabalhadores da insolvente, que os contratou, que movimentava as contas bancárias da insolvente e que contatava com fornecedores e clientes.”,

XXII. facto que deveria ter resultado provado.

XXIII.  No que concerne à matéria de direito,

XXIV.  atentas as alterações à matéria de facto acima referidas deverá entender-se que quanto à Requerida CC resultou provado que a mesma foi gerente de facto da insolvente, devendo ser esta afetada pela qualificação da insolvência como culposa,

XXV. e não ser absolvida, como o fez a sentença proferida pela Tribunal de 1ª instância.

XXVI.  a qual foi a única sócia da empresa B... Unipessoal Lda. Até ao ano de 2023 e sua gerente, desde dezembro de 2018 a março de 2022,

XXVII. empresa que como ficou provado, celebrou com a Insolvente um contrato em prejuízo desta e em benefício da referida empresa Idêntica,

XXVIII. contrato que não foi cumprido e gerou mais dívida à Insolvente, como também resultou provado,

XXIX. negócio celebrado e que se manteve em vigor enquanto a Requerida CC era gerente e única sócia da empresa Idêntica,

XXX.   O que motivou que o Ministério Público, no seu parecer para efeitos do art.º 188, nº 3 do C.I.R.E. tivesse concluído que a Requerida CC era gerente de facto da insolvente, em conformidade com entendido no relatório do Exmo. Sr. Administrador Judicial de Insolvência

XXXI. Pelo que, quanto à Requerida em causa, também em virtude disso, deverá entender-se preenchida a previsão legal das alíneas d) e e) do art. 186º do C.I.R.E.

XXXII. Não podendo de deixar de ser a mesma afetada pela qualificação da insolvência como culposa.

XXXIII. Para além disso, a sentença de que se recorre conclui que a insolvência deve ser qualificada como culposa nos termos do art.º 186.º, n.º 2, alíneas b), e) e f), e n.º 3, al. a), do C.I.R.E.,

XXXIV. Porém, como o próprio Tribunal de 1ª instância considerou na sentença recorrida, quanto ao nº 3 do art.º 186 do CIRE “… não foi alegada e, consequentemente, não resultou provada qualquer factualidade que nos permita concluir que a falta de depósito das contas na Conservatória do Registo Comercial causou ou agravou a situação de insolvência.”

XXXV. Pelo que, assim sendo a insolvência não deverá ser qualificada como culposa nos termos do art.º n.º 3, al. a), do C.I.R.E..

XXXVI. Por fim e no que respeita à condenação dos Requeridos AA e BB a indemnizar os credores da insolvente no montante de €100.000,00 (cem mil euros).

XXXVII. sempre seria de atribuir a ambos valores diferentes,

XXXVIII. atendendo a que a gravidade das condutas é diferente, como se refere na sentença de que se recorre e que determinou a condenação em prazos diferentes, quanto à inibição para administrar patrimónios de terceiros e de inibição para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa,

XXXIX. pelo que, deverá o Requerido AA ser condenado, ponderada a sua culpa, apenas na medida em que o prejuízo deva ser atribuído a tal ato, correspondendo ao montante que traduz o agravamento da situação de insolvência causado pela não apresentação no momento prescrito pela lei, por comparação da situação patrimonial da insolvente no momento em que a apresentação devia ter sido feita e comparando a medida em que a mesma permitiria satisfazer o passivo social nesse momento e a medida em que o produto da liquidação do ativo irá agora permitir satisfazê-lo, sendo esse o limite da indemnização exigível ao afetado. Nesse sentido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 21/04/2022, processo nº 3668/18.8T8STS- B.P1, do Relator Paulo Dias da Silva”.

Termina pedindo que se julgue procedente o presente recurso e que se decida em conformidade com o ora requerido.

8- A Requerida, CC, respondeu, arguindo a intempestividade do recurso e, subsidiariamente, pugnando pela confirmação do julgado, por não se verificarem os fundamentos alegados pelo Recorrente para a alteração do decidido.

9- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la.


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II- Da alegada intempestividade do recurso:

A sentença recorrida foi notificada às partes por ofício eletrónico expedido no dia 21/06/2023. Assim, presume-se que as partes dela tiveram conhecimento no dia 26/06/2023 (artigo 248.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) “ex vi” artigo 17.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).

A partir de então, as partes tinham o prazo de 15 dias para impugnar a referida sentença, sendo esse prazo acrescido de 10 dias, no caso de pretenderem impugnar a matéria de facto (artigo 9.º, n.º 1, do CIRE e artigo 638.º, n.ºs 1 e 7, do CPC). O que o Apelante, AA, cumpriu, visto que apresentou o seu recurso no dia 21/07/2023, impugnando a matéria de facto.

Assim, ao contrário do sustentado pela Apelada, entende-se que este recurso é tempestivo.

Como tal nada obsta, mesmo desse ponto de vista, ao conhecimento do seu objeto.


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III- Mérito do recurso

A- Definição do seu objeto

Inexistindo, no caso presente, questões de conhecimento oficioso, o objeto deste recurso, delimitado, como é regra, pelas conclusões das alegações do recorrente [artigos 608º, nº 2, “in fine”, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, todos do Código de Processo Civil (CPC), “ex vi” artigo 17.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)], resume-se a saber se:

a) Deve haver lugar à requerida modificação da matéria de facto;

b) A Requerida deve ser afetada pela qualificação da insolvência;

c) A insolvência não deve ser qualificada como culposa, nos termos da al. a), do n.º 3, do artigo 186.º, do CIRE;

c) A medida da indemnização a cargo do Apelante deve ser inferior à estabelecida na sentença recorrida.


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B- Fundamentação

B.1- Na instância recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:

a) A sociedade, A..., Unipessoal, Ldaª, foi constituída em 21 de outubro de 2014 tendo por objeto social a “Manutenção e reparação de veículos automóveis, comércio a retalho de peças e acessórios para veículos automóveis, comercio de veículos automóveis ligeiros e outras atividades de serviços de apoio às empresas”, com sede na Rua ..., .... ... Vila Nova de Gaia.

b) Essa sociedade foi constituída com um capital social de 5.000,00€, sendo sócio único o requerido AA e gerente o requerido BB.

c) Em 05/02/2015 foi registada a cessação da gerência de BB por renúncia apresentada em 15/12/2014 e nomeado gerente o requerido AA.

d) Em 12/11/2015 foi registada a transmissão da quota única da insolvente a favor da requerida CC.

e) Em 01/10/2018 foi registada a transmissão da quota única da insolvente a favor do requerido AA.

f) As últimas contas da insolvente depositadas na Conservatória do Registo Predial dizem respeito ao ano de 2017.

g) Em 01/10/2018 foi constituída a sociedade, B... Unipessoal, Ldª, tendo por objeto social a “Manutenção e reparação de veículos automóveis. Pintura e acabamento de estruturas e mobiliário. Comércio a retalho de automóveis e peças auto”, com sede na Rua ..., .... ... Vila Nova de Gaia.

h) Essa sociedade foi constituída com um capital social de 2.000,00€, sendo sócia única a requerida CC e como gerente o requerido BB.

i) A 27 de maio de 2022 DD requereu a declaração de insolvência da A..., Unipessoal, Ldª.

j) Por sentença de 17 de agosto de 2022 foi declarada a insolvência de A..., Unipessoal, Ldª.

k) O Sr. administrador da insolvência nomeado no processo de insolvência notificou o gerente da sociedade, AA, por carta registada com aviso de receção a 19/8/2022, notificando-o para entregar todos os elementos necessários para a tramitação do processo, designadamente para entrega dos documentos a que alude o art. 24.º do C.I.R.E.

l) O gerente AA remeteu ao Sr. administrador da insolvência a carta cuja cópia se encontra junta aos autos com o requerimento inicial cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

m)As contas de 2021 da insolvente foram apresentadas, mas não foram assinadas pelo gerente, nem aprovadas.

n) A insolvente está em incumprimento perante a Autoridade Tributária desde, pelo menos, 2017 e perante a Segurança social desde 2016.

o) A insolvente tem registada a seu favor a propriedade do veículo automóvel de matrícula ..-..-ZR

p) BB foi notificado por este tribunal em maio de 2023 para informar a localização do veículo automóvel de matrícula ..-..-ZR, bem como para informar a que respeitam os investimentos financeiros, com o valor de 4.711,93€ (rubrica ... – IES do ano 2021) e os outros ativos correntes, com o valor de 337,38 € (rubrica ... – IES Informação Empresarial Simplificada do ano 2021) que foram apreendidos para a massa insolvente da sociedade, A..., Unipessoal, Ldª.

q) O mesmo nada respondeu.

r) O Sr. administrador da insolvência não apreendeu para a massa o veículo automóvel mencionado em o) por desconhecer o seu paradeiro.

s) Em outubro de 2018 a Insolvente celebrou com a empresa, B... Unipessoal Ldª, um acordo nos termos do qual a insolvente prestaria serviços a esta de mecânica, chapeiro, pintura automóvel e limpeza, e, como contrapartida, a B... Unipessoal Ldª, assumiria a responsabilidade pelo pagamento de todas as quantias a título de salários e subsídios devidos aos trabalhadores da empresa declarada Insolvente, bem como as quotizações destes trabalhadores junto da Segurança Social e as inerentes obrigações fiscais.

t) A insolvente prestou os serviços mencionados em s) à B... Unipessoal, Ldª.

u) A B... Unipessoal, Ldª, no entanto, não cumpriu com os termos desse acordo.

v) As instalações onde se encontra a sede da insolvente foram alocados à atividade da sociedade, B... Unipessoal, Ldª.

w) O requerido BB foi sempre a pessoa que, na insolvente, rececionava e procedia à entrega dos veículos, fazia a cobrança dos serviços prestados, geria as contas bancárias da insolvente, contratava trabalhadores e dava ordens e instruções aos trabalhadores da insolvente.

x) Nos três últimos períodos fiscais – 2019, 2020 e 2021 – consta como passivo da insolvente os montantes de, respetivamente, 199.650,04€; 208.487,84€; 237.901,39€.

y) No apenso de reclamação de créditos foram reconhecidos créditos sobre a insolvente no valor global de 350.337,70€, tendo sido reconhecidos créditos a trabalhadores, à Autoridade Tributária e à Segurança Social, sendo que foram classificados como privilegiados parte dos créditos reconhecidos à Autoridade Tributária e à segurança social por se terem constituído nos 12 meses anteriores à data do início do processo de insolvência.

z) O Técnico Oficial de Contas da insolvente renunciou às suas funções em abril de 2022, não tendo este sido substituído.


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B.2- Na mesma sentença não se julgaram provados os factos seguintes:

a) A insolvente não mantinha contabilidade organizada.

b) A requerida CC nos três últimos anos anteriores ao início do processo de insolvência geriu a atividade da insolvente, sendo ela que dava ordens e instruções aos trabalhadores da insolvente, que os contratou, que movimentava as contas bancárias da insolvente e que contatava com fornecedores e clientes.

c) O requerido AA geria de facto a atividade da insolvente, sendo ele que dava ordens e instruções aos trabalhadores da insolvente, que os contratou, que movimentava as contas bancárias da insolvente e que contatava com fornecedores e clientes.

d) Em abril de 2022 o gerente AA renunciou às funções de gerente.


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B.3- Análise dos fundamentos do recurso

Está nele em causa, em primeiro lugar, a questão de saber se deve haver lugar à requerida modificação da matéria de facto.

E, nesse âmbito, pretende o Apelante, antes de mais, que se complete o teor da al h), dos Factos Provado, de modo a nele incluir a menção de que o Requerido, BB, cessou funções como gerente da sociedade, B... Unipessoal, Ldª, no dia 10/12/2018, tendo sido nomeada para o mesmo cargo, a Requerida, CC, que nele se manteve até ao dia 06/03/2022.

Ora, perante o teor da certidão junta aos autos no dia 08/05/2023, não há dúvida de que o Apelante, no essencial, tem razão. Daquela certidão, na verdade, resulta comprovada a primeira alteração indicada e quanto à cessação das funções de gerência, por parte da aludida Requerida, também daquela certidão resulta que a mesma renunciou ao cargo no dia 03/03/2022, facto que foi levado ao registo no dia 06/03/2022.

Assim, impõe-se a alteração da citada alínea (h), a qual, doravante, passará a ter a seguinte redação:

“Essa sociedade foi constituída com um capital social de 2.000,00€, sendo sócia única a Requerida, CC, e gerente o Requerido, BB, o qual cessou funções no dia 10/12/2018, tendo sido nomeada gerente aquela Requerida, que renunciou também ela ao cargo no dia 03/03/2022, facto que foi levado ao registo no dia 06/03/2022”.

Defende, depois, o Apelante que se deve julgar demonstrado que “o requerido BB e CC foram sempre as pessoas que, na insolvente, rececionavam e procediam à entrega dos veículos, faziam a cobrança dos serviços prestados, geriam as contas bancárias da insolvente, contratavam e davam instruções aos trabalhadores da insolvente”. Isto, em substituição do que consta da al. w) dos Factos Provados, que se refere unicamente ao Requerido, BB. Com os mesmos fundamentos, pois, e “consequentemente, não deveria ter resultado não provado, na alínea b) dos factos dados como não provados, que “[a] requerida CC nos três últimos anos anteriores ao início do processo de insolvência geriu a atividade da insolvente, sendo ela que dava ordens e instruções aos trabalhadores da insolvente, que os contratou, que movimentava as contas bancárias da insolvente e que contatava com fornecedores e clientes”, facto que deveria ter resultado provado”.

No fundo, o que o Apelante pretende é que se julgue demonstrado o exercício da gerência da Insolvente, em termos de facto.

Mas, como veremos, esta pretensão não pode ser acolhida.

Comecemos por recordar aquilo que se escreveu na sentença recorrida, a este propósito:

“O Sr. administrador da insolvência e o Ministério Público pediram a afetação do requerido AA, enquanto gerente de direito da insolvente, e dos requeridos BB e CC como gerentes de facto da insolvente.

A alegação da gerência de facto feita pelo Sr. administrador da insolvência e pelo Ministério Público é totalmente conclusiva, não tendo, nem o Sr. administrador da insolvência, nem o Ministério Público concretizado porque razão entendiam que estes requeridos eram gerentes de facto.

Produzida a prova apurou-se, através dos depoimentos prestados em audiência pelas testemunhas DD (ex-trabalhadora da insolvente), EE (contabilista da insolvente), FF (trabalhador), GG (trabalhadora), HH (trabalhadora), que o requerido BB, era a pessoa que fazia a gestão da insolvente, contratando os trabalhadores, dando-lhes ordens e instruções, geria a conta bancária, determinava pagamentos da insolvente, dava orçamentos a clientes, contatava com os clientes e fornecedores, sendo que todo os trabalhadores inquiridos foram perentórios ao esclarecer que identificavam como seu patrão o requerido BB, pelo que foi dada como assente a factualidade ínsita na alínea w).

Os mesmos foram claros ao afirmar, de forma coincidente e esclarecida, que era esse requerido o responsável pela gestão da insolvente, sendo que todos eles foram coincidentes ao esclarecer que o requerido AA, que era o gerente de direito, era um trabalhador como eles, não se tendo feito prova clara que este geria de facto a insolvente pelo que não foi dada como assente a alínea c) dos factos não provados.

Já quanto à requerida CC dos depoimentos das testemunhas resultou que a mesma foi companheira do requerido BB e que durante algum tempo fazia, na insolvente, trabalho no escritório. Desses depoimentos também resultou que a requerida CC foi tendo outros negócios, sendo certo que do depoimento das testemunhas FF e GG (trabalhadores) resultou que nunca a viram como sendo a “patroa”, não recebendo da mesma quaisquer ordens ou instruções.

Dos depoimentos dos trabalhadores da insolvente resultou também evidente que a requerida CC tinha outros negócios pessoais (corroborando o que a mesma afirmou no seu depoimento).

Entendemos, assim, que não obstante a testemunha DD ter mencionado que a requerida CC dada ordens e que sempre a considerou como patroa, este tribunal não ficou convencido dessa factualidade, já que os demais trabalhadores da insolvente não corroboraram esse depoimento. Aliás, a irmã dessa testemunha, GG (também trabalhadora da insolvente) referiu que “não a via como patroa” referindo-se à requerida CC.

Assim, entende este tribunal que não foi feita prova bastante que esta requerida geria, de facto, a insolvente nos três últimos anos anteriores a início do processo de insolvência, tanto mais que a mesma afirmou que a partir de meados de 2018 deixou de estar na insolvente, o que foi corroborado pela testemunha HH, sendo que as testemunhas FF e GG também afirmaram que, a partir de determinada altura (que não precisaram com certeza) a requerida CC deixou de estar presente com assiduidade na insolvente.

Assim, embora se tivesse apurado que a mesma vivia em união de facto com o requerido BB e que se deslocava às instalações da insolvente, onde permanecia no escritório, não foi feita prova bastante de que a mesma exercia de facto a gerência da insolvente, sendo certo que o ónus da prova da gerência de facto incumbia ao Sr. administrador da insolvência e ao Ministério Público que propuseram a sua afetação.

Conjugada, assim, toda a prova produzida foi dada como não provada a factualidade ínsita na alínea b) dos factos não provados”.

Poderá esta motivação considerar-se errónea, no que diz respeito à Requerida, CC, e, diversamente, julgarem-se provadas as afirmações indicadas pelo Apelante; ou seja, que, esta Requerida, exercia também a gerência de facto da Insolvente, designadamente, a partir do ano de 2018?

Como já adiantámos, entendemos que não.

Com efeito, sem escamotear a relação pessoal que esta mesma Requerida manteve com o Requerido, BB, com o qual viveu em união de facto, e mesmo sem desprezar o facto daquela Requerida ter trabalhado nos escritórios da Insolvente (sendo que aquele e o respetivo filho, o Requerido, AA, também trabalhavam nas mesmas instalações, mas, por regra, no chão da oficina, conforme foi atestado pelas testemunhas, DD, GG, HH, que também aí trabalharam em funções distintas), já não se pode acompanhar a conclusão do Apelante de que tal Requerida foi, efetivamente, gerente de facto da Insolvente. Mais concretamente, que essa mesma Requerida, CC, tenha, designadamente, nos três últimos anos anteriores ao início do processo de insolvência, gerido a atividade da insolvente, “sendo ela que dava ordens e instruções aos trabalhadores da insolvente, que os contratou, que movimentava as contas bancárias da insolvente e que contatava com fornecedores e clientes”. Não está em causa que ela não pudesse ter realizado algumas destas atividades, em termos materiais ou operacionais. Mas, no que diz respeito ao processo decisório, concordamos com o Tribunal recorrido, no sentido de que não há prova que o demonstre em termos inequívocos. Até porque aquela mesma Requerida, como atestaram as já referenciadas testemunhas e ela própria assumiu, a partir de determinada altura, passou a ter atividades próprias que exercia, fora das instalações da Insolvente.

Não ignoramos, com isto, que, por exemplo, a testemunha, DD, a determinada altura do seu depoimento, disse que sempre consideraram aquela Requerida como “patroa”. Mas, antes, já tinha dito também que quem tratava de tudo era o Requerido, BB.  E, depois de ter prestado um depoimento ambíguo a propósito do poder de direção daquela Requerida (ao dizer, por exemplo, que as encomendas era feitas pela HH, empregada de escritório, ou, “secalhar”, pela CC), acrescentou, numa das instâncias a que foi sujeita, que a própria Requerida lhe terá dito que só fazia as transferências que o Requerido BB lhe mandava. Isto, sendo certo que também reconheceu que a Requerida desenvolveu outros negócios e que, a partir de determinada altura, só às vezes aparecia nas instalações da Insolvente. Ou seja, o seu depoimento, apreciado no seu todo, não se pode considerar tão decisivo, no sentido de demonstrar a gerência de facto desta Requerida (em relação à Insolvente), como o Apelante advoga.

E se a isso acrescentarmos os depoimentos das outras testemunhas inquiridas (indicadas pelo Apelante), que escutámos na íntegra, como, por exemplo, o da testemunha, GG, que disse que quem a contratou para trabalhar na oficina foi o Sr. BB e que este é que era o seu patrão e não a Requerida, o que foi corroborado pela irmã desta, HH, logo concluímos que as certezas do Apelante não podem ser confirmadas. Até porque a testemunha, EE, deu a entender que todas as situações relativas à Insolvente eram tratadas com o Sr. BB e que com a Requerida lidou, é certo, mas para operacionalizar “as coisas” perante as entidades oficiais. Não no que diz respeito ao processo decisório, em termos de gerência. O que não resulta infirmado pela documentação junta aos autos, inclusive na audiência de julgamento (realizada no dia 05/06/2023).

Ou seja, em síntese, como já dissemos, cremos não poder concluir que, no aspeto ora analisado, a Instância recorrida tenha incorrido em manifesto erro de julgamento. Daí que se mantenha inalterada a indicada matéria de facto.

E, mantendo-se inalterada tal matéria de facto, bem se vê que a Requerida, CC, não pode ser afetada pela qualificação da insolvência da sociedade, A..., Unipessoal, Ldaª.

Como resulta do disposto no artigo 186.º, n.ºs 1 a 3, do CIRE, a responsabilização pela qualificação da insolvência tem de resultar de uma atuação dos administradores da insolvente[1]. Sejam eles só de direito, de direito e de facto, ou só de facto. Não há margem para qualquer dúvida, uma vez que a lei se refere textualmente aos “administradores, de direito ou de facto”.

Ora, a referida Requerida, não assumiu, em relação à Insolvente, nenhuma destas qualidades, no período legalmente relevante (3 anos anteriores ao início do processo de insolvência). Pelo menos, não se provou que a tivesse assumido. Logo, não pode ser responsabilizada por tal resultado.

É certo que se provou que a mesma foi gerente de uma outra sociedade, a B... Unipessoal, Ldª, no período que mediou entre 10/12/2018 e 03/03/2022, e que esta sociedade, antes, em outubro de 2018, celebrou com a Insolvente um contrato de prestação de serviços que não veio a cumprir [als. s), t) e u), dos Factos Provados]. Mas nem se provou que a iniciativa da celebração deste contrato tivesse partido da Requerida (que, à data do seu início, repetimos, ainda não era gerente de tal sociedade, mas, antes, o Requerido, BB), nem as implicações do incumprimento desse contrato podem ser repercutidas, neste âmbito, perante terceiros, que não assumam nenhuma das qualidades legalmente enunciadas. A lei, como vimos, é inequívoca: no que diz respeito à administração das sociedades comerciais, só os seus administradores de direito, de direito e de facto, ou só de facto, podem ser responsabilizados pela insolvência.

Logo, porque não se apurou que a Requerida tivesse assumido, em relação à Insolvente, nenhuma destas qualidades, não pode a mesma ser afetada, inclusive, pelas consequências danosas daí decorrentes.

Esclarecido este aspeto, verificamos que, de seguida, o Apelante questiona a qualificação desta insolvência. Fá-lo nestes termos:

“(…) a sentença de que se recorre conclui que a insolvência deve ser qualificada como culposa nos termos do art.º 186.º, n.º 2, alíneas b), e) e f), e n.º 3, al. a), do C.I.R.E.,

Porém, como o próprio Tribunal de 1ª instância considerou na sentença recorrida, quanto ao nº 3 do art.º 186 do CIRE “… não foi alegada e, consequentemente, não resultou provada qualquer factualidade que nos permita concluir que a falta de depósito das contas na Conservatória do Registo Comercial causou ou agravou a situação de insolvência.”

Pelo que, assim sendo a insolvência não deverá ser qualificada como culposa nos termos do art.º n.º 3, al. a), do C.I.R.E.” (cls. XXXIII a XXXV).

Ora, a falta de oportuno depósito das contas na conservatória do registo comercial é fundamento para a qualificação da insolvência, mas nos termos da al. b) do n.º 3, do artigo 186.º, do CIRE, e não da al. a) desse mesmo normativo. E, quanto a essa falta, como o Apelante reconhece, o Tribunal recorrido concluiu expressamente que a mesma não era motivo para a dita qualificação. Logo, não pode o argumento esgrimido pelo Apelante servir de pretexto para a eliminação da qualificação baseada na al. a) do n.º 3, do artigo 186.º, do CIRE. Até porque o Apelante não questiona o pressuposto que serviu de fundamento para a qualificação da insolvência, por essa via; isto é, por não ter sido requerida oportunamente a insolvência da sociedade, A..., Unipessoal, Ldaª. Por conseguinte, este fundamento do recurso é de julgar improcedente.

Resta a questão de saber se, como defende o Apelante, a medida da indemnização aos credores, que lhe foi imposta na sentença recorrida, deve ser inferior aos 100.000,00€, estabelecidos naquela sentença.

Pois bem, qualificada a insolvência como culposa, como sucedeu neste caso, é inevitável que se decretem as consequências previstas na lei. O juiz, nesta matéria, não tem qualquer poder discricionário[2].

O que pode, e deve, graduar são essas consequências, quando a respetiva extensão não esteja legalmente determinada.

É o caso, por exemplo, dos efeitos previstos nas alíneas b) e c), do n.º 2, do artigo 189.º, do CIRE (com medidas inibitórias que variam entre 2 e 10 anos). Mas é também o caso do valor indemnizatório atribuído aos credores, que deve ser fixado tendo por referência o montante dos créditos não liquidados, embora nunca para além das forças do património do afetado pela qualificação de insolvência; ou seja, uma insolvência, a qualificada, nunca pode determinar outra insolvência (a dos atingidos por essa qualificação)[3].

Em qualquer das hipóteses, porém, é pertinente questionar se a dimensão dos referidos efeitos não deve ser também condicionada pelo grau de culpa das pessoas afetadas pela insolvência. O n.º 2, al. a), do citado artigo 189.º, parece apontá-lo, de modo inequívoco, quanto ao período concreto das medidas inibitórias[4]. Mas, nada diz quanto à indemnização. Daí a pertinência da referida questão.

Sobre esta temática é importante começar por ter presente que a lei não prima pela clareza.

Depois de impor ao juiz que, na sentença de qualificação, identifique as pessoas por esta afetadas “fixando, sendo o caso, o respetivo grau de culpa”, prescreve que se condenem também essas pessoas “a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios”, fixando o valor das indemnizações devidas se houver elementos para o efeito. Se o tribunal não dispuser desses elementos, deve estabelecer “os critérios a utilizar para a sua quantificação”, a efetuar em liquidação de sentença.

Ora, estes critérios, como sublinham, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda[5], não podem limitar-se a uma repetição da regra matricial primeiramente referida, que se traduz na diferença entre o valor global do passivo da insolvência e aquele que o ativo, resultante do património dos afetados pela qualificação, pode cobrir. Se assim fosse, não faria sentido a aludida especificação. Até porque, como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16/12/2015([6]), “[a] Lei Concursal espanhola, assumidamente a fonte inspiradora do legislador português, na redacção dada ao n.º 1 do art.º 172.º pela Lei 17/2014, de 30 de Setembro, coloca nas mãos do juiz a decisão de condenar (ou não) os afectados com a qualificação (el juez podrá) “a cobrirem, total ou parcialmente, o deficit, na medida em que a conduta que determinou a qualificação como culposa tenha criado ou agravado a insolvência”[7]. Da solução legal espanhola decorre agora claro, parece-nos, que o montante da condenação há-de ser fixado em função da incidência que a apurada conduta, que determinou a qualificação da insolvência como culposa e determinou a sua afectação, teve na criação ou agravação da situação de insolvência, entendimento que, de resto, já vinha sendo adoptado, resultando clarificado pela redacção ora introduzida[8]”.

Por isso, acrescenta-se no mesmo Aresto: “Tendo em conta tal solução da lei inspiradora e porque o severo regime que emerge da aplicação conjugada dos art.ºs 186.º e 189.º vincula a uma interpretação que salvaguarde precisamente o princípio da proporcionalidade, conjugando o teor das als. a) e e) do n.º 2 e o n.º 4 do art.º 189º, entendemos que encontra acolhimento no texto legal o entendimento de que na fixação do montante indemnizatório deve ser ponderada a culpa do afectado, que deverá responder na medida em que o prejuízo possa/deva ser atribuído ao acto ou actos determinantes dessa culpa”.

Desde que esteja assegurado este último pressuposto, parece-nos razoável que assim seja.

Imagine-se – como referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda – “que em determinado processo, a sentença considera um administrador de uma sociedade insolvente culpado apenas pela realização da venda ruinosa de um certo imóvel. Terá ele, ainda assim, de responder por todo o passivo a descoberto, mesmo quando ultrapasse (largamente!) o prejuízo causado aos credores com o ato determinante da culpa?”.

Parece-nos, como já adiantámos, que não. O que, como acrescentam os mesmos Autores, não deixará de se projetar na aplicação do n.º 4, do artigo 189.º, do CIRE[9].

Mas as dificuldades não se quedam por aqui.

Imagine-se, agora, que essa venda ruinosa foi feita por dois administradores da sociedade insolvente, que é de cariz familiar, e um deles, teve uma culpa claramente preponderante em relação ao outro, na realização desse contrato. Não se deve refletir também essa circunstância na indemnização que lhe deve ser exigida?

Pelo menos no plano interno, parece-nos que sim. Ou seja, não obstante a responsabilidade desses administradores ser solidária (artigo 189.º, al. e), do CIRE), e, portanto, poder ser exigida a qualquer deles a totalidade da indemnização (artigo 512.º, n.º 1, do Código Civil), devem, ainda assim, ser diferenciadas as respetivas culpas, de modo a que, em sede de direito de regresso, se restabeleça o equilíbrio em função dessas mesmas culpas[10]. Sob pena destas se presumirem iguais e se atentar, claramente, contra o princípio da proporcionalidade (artigo 497.º, n.º 2, do Código Civil).

Podemos, portanto, concluir que a medida da indemnização a cargo dos afetados com a insolvência, além de limitada pelo montante dos créditos relativos à massa insolvente e ao respetivo património, deve igualmente ser ponderada em função da culpa destes últimos. Isto, para além de outras circunstâncias, como sejam a danosidade provocada pela conduta daqueles e pelo que eles fizeram, espontaneamente para mitigar ou eliminar essa danosidade.

Ora, o que verificamos, na situação em apreço, é que não se seguiu este critério. Ou seja, apesar de se terem diferenciado as culpas dos Requeridos, BB e AA, para efeitos inibitórios, a verdade é que não se repercutiu essa distinção no montante indemnizatório atribuído aos credores. Ambos os Requeridos foram condenados, solidariamente, a pagar-lhes 100.000,00€.

Mas, como resulta do já exposto, assim não devida ter sido.

A partir do momento em que se apurou que “[o] requerido BB foi sempre a pessoa que, na insolvente, rececionava e procedia à entrega dos veículos, fazia a cobrança dos serviços prestados, geria as contas bancárias da insolvente, contratava trabalhadores e dava ordens e instruções aos trabalhadores da insolvente” e que o Requerido, AA, por sua vez, não passou, a partir de 05/02/2015, de um mero gerente de direito, e que, devido a estas circunstâncias, se diferenciaram as respetivas culpas, respetivamente, em 6 anos e 2 anos de inibição para a administração do património de terceiros e para o exercício do comércio, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, não podia deixar de se refletir a mesma medida na responsabilidade pelo pagamento da indemnização aos credores. Ou seja, a medida da responsabilidade do Requerido AA, nunca podia, nem pode ser superior a, sensivelmente, 1/3 do valor global estabelecido, isto é, 33.000,00€, sem prejuízo naturalmente, da solidariedade legalmente prescrita e judicialmente já estabelecida, neste caso concreto. Daí que deva ser nesta medida que a referida indemnização deva ser estabelecida, soçobrando o presente recurso em tudo o mais, decidido.


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IV - Dispositivo

Pelas razões expostas:

a) Concede-se parcial provimento ao presente recurso e, consequentemente, fixa-se em 33.000,00€ (trinta e três mil euros), a obrigação de indemnização aos credores, por parte do Requerido, AA. Isto, sem prejuízo do regime de solidariedade legalmente estabelecido.

b) Quanto ao mais, nega-se provimento ao presente recurso e confirma-se o decidido na sentença recorrida.


*

- Em função deste resultado, as custas deste recurso serão suportadas pelo Apelante e Apelada/Requerida, na proporção de 1/3 e 2/3, respetivamente – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.


Porto, 19/3/2024
João Diogo Rodrigues
Maria Eiró
João Ramos Lopes
_______________
[1] Isto, sem prejuízo da responsabilização dos técnicos oficiais de contas e revisores oficiais de contas (artigo 189.º, n.º 2, al. a), do CIRE
[2] Foi esta a conclusão também retirada no Ac. RG de 18/12/2017, Processo n.º 92/16.0T8MTR-B.G1, consultável em www.dgsi.pt, elaborado pelo ora relator.
[3] Neste sentido, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2013, 5ª edição, Almedina, pág. 255.
[4] Neste sentido, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, Quid Juris, pág. 734.
[5] Ob cit., pág. 737.
[6] Proferido no Processo n.º 1430/13.3TBFIG-C.C1, e consultável em www.dgsi.pt
[7]Nota 14 do Acórdão transcrito: “Artículo 172 bis Responsabilidad concursal:
1. Cuando la sección de calificación hubiera sido formada o reabierta como consecuencia de la apertura de la fase de liquidación, el juez podrá condenar a todos o a algunos de los administradores, liquidadores, de derecho o de hecho, o apoderados generales, de la persona jurídica concursada, así como los socios que se hayan negado sin causa razonable a la capitalización de créditos o una emisión de valores o instrumentos convertibles en los términos previstos en el número 4.º del artículo 165, que hubieran sido declarados personas afectadas por la calificación a la cobertura, total o parcial, del déficit, en la medida que la conducta que ha determinado la calificación culpable haya generado o agravado la insolvencia.
Si el concurso hubiera sido ya calificado como culpable, en caso de reapertura de la sección sexta por incumplimiento del convenio, el juez atenderá para fijar la condena al déficit del concurso tanto a los hechos declarados probados en la sentencia de calificación como a los determinantes de la reapertura.
En caso de pluralidad de condenados, la sentencia deberá individualizar la cantidad a satisfacer por cada uno de ellos, de acuerdo con la participación en los hechos que hubieran determinado la calificación del concurso.
É a mesma a solução francesa – cf. Article L651-2 do Code de Commerce, na redacção da Lei n.º 2010-1512, de 9 de Dezembro de 2010”.
[8] Nota 15 do mesmo Aresto: “Cf. declarações de voto apostas ao acórdão proferido pelo Tribunal Supremo, Sala de lo civil, pleno, no recurso de cassação 473/2013, acessível em Buscador del sistema de jurisprudência”.
[9] Obra já citada, pág. 738.
[10] O Ac. RG de 19/01/2017, Processo n.º 391/16.1T8GMR-C.G1, consultável em www.dgsi, parece inclinar-se neste sentido, mas com uma fundamentação diversa da que já referimos ser sustentada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, no Aresto já indicado.