Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
664/23.7T8AGD-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO RAMOS LOPES
Descritores: DEVER DE SIGILO
ADVOGADO
Nº do Documento: RP20240319664/23.7T8AGD-A.P1
Data do Acordão: 03/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O dever de sigilo do advogado não é absoluto - não existe relativamente a meras comunicações ou declarações de ciência que não traduzam qualquer negociação (qualquer proposta ou cedência mútua em vista de colocar termo ao diferendo ou litígio), como ocorre com interpelações para cumprimento de obrigações, com denúncias de defeitos, com solicitações de reparação de obra e/ou o respectivo agendamento – em todas estas situações releva actividade desenvolvida ainda no âmbito da relação jurídica a que as partes estão adstritas, que concernem a actos que devem pela parte ser praticados em vista de fazer valer o seu direito (assim, p. ex., a interpelação para cumprimento de obrigação pura e a denúncia dos defeitos na empreitada) ou até a cumprir obrigação (assim, as comunicações havidas entre empreiteiro e dono da obra quanto ao cumprimento da obrigação de reparação). II - Todas estas comunicações (interpelações, denúncias e comunicações relacionadas com o cumprimento da obrigação), ainda que feitas pelos mandatários, são realizadas no âmbito do relacionamento negocial que vincula as partes (mandantes), integrando factualidade constitutiva da obrigação – e por isso que se trata de matéria (de comunicações – documentos) destinada a sustentar a pretensão (e posição) da parte e, assim, a ser invocada/alegada em defesa do cliente, não incluída no dever de sigilo, podendo tais documentos ser juntos e valorados (como prova) nos autos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 664/23.7T8AGD-A.P1

Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: João Proença
    Rui Moreira

Acordam no Tribunal da Relação do Porto


RELATÓRIO

Apelante: AA (autor reconvindo).
Apelada: A..., Ld.ª (ré reconvinte).

Juízo local cível de Águeda – T. J. da Comarca de Aveiro.


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Na acção comum em que é autor reconvindo AA e ré reconvinte A..., Ld.ª, proferido saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, foi proferida decisão com o seguinte teor (decisão que, por os considerar abrangidos no dever de sigilo do advogado, não admitiu fossem juntos aos autos dois documentos oferecidos pelo autor com a sua petição inicial sob os números 2 e 3 – documentos que se consubstanciam em correspondência de correio electrónico trocada pelos mandatários das partes):

Quanto aos documentos nºs 2 e 3 juntos pelo autor, veio a ré arguir a inadmissibilidade da valoração dos mesmos como meio de prova, por terem sido juntos em violação de segredo profissional de advogado.

Respondeu o autor, dizendo que os documentos em questão representam tão só a resposta à interpelação directa da ré, feita através do Avogado do autor, acerca de como aquela desejaria solucionar os problemas relativos às desconformidades das obras realizadas na casa do autor, pelo que não contêm qualquer informação coberta pelo segredo profissional.

Cumpre decidir.

Nos termos do art.º 92º, nº 1 do Estatuto da Ordem dos Advogados, advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante;

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações Dispõe ainda o nº 3 do citado artigo: rofissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos Comina o nº 5 a violação do preceituado com a sanção de não fazerem prova em juízo os actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional.

O segredo profissional é, segundo Manzini (citado por Alfredo Gaspar, in ‘Estatuto da Ordem dos Advogados Anotado’, pg. 138), ‘o limite posto por uma vontade juridicamente autorizada à confidencialidade de um facto ou de uma coisa, de modo que estejam destinadas a permanecer ocultas a toda a pessoa diversa do depositário, ou, ao menos, daquelas aos quais não os revela aquele que tem o poder de fazer desaparecer as

Decidiu o Ac. RC de 9/3/1995, in CJ, t. I, pg. 67, a propósito desta matéria do segredo profissional de advogado: ‘Não se encontra no art.º 81º, nºs 1 e 3 do Estatuto da Ordem dos Advogados uma proibição genérica de revelação ou de junção a processo de correspondência trocada entre Advogados em representação dos seus mandantes, ou entre advogados e a parte contrária ou seu mandante.

A sujeição de documentos a segredo profissional apenas impede a revelação ou junção de documentos quando, dado o seu conteúdo, daí resulte violação do dever de segredo.

O que se impede no art.º 81º, nºs 1 e 3 do Estatuto é a revelação e utilização de factos revelados pela parte contrária, pessoalmente ou através de representante, durante negociações para acordo amigável.’

Os documentos cuja junção a ré reputa de inadmissível, por violador do segredo profissional, são os juntos como docs. nºs 2 e 3 da p.i.

Examinados os mesmos, constata-se que são constituídos por 3 e-mails trocados entre os Ils. Mandatários das partes, com vista à realização de reparações na obra, em que a Il. Mandatária da ré comunica ao seu Il. Colega que o seu cliente aceita fazer ‘essas’ reparações, e as condições em que o aceita.

Ou seja, estamos perante missivas trocadas entre Advogados das partes, as quais se reportam, no seu conteúdo, à questão em litígio nestes autos, concretamente, à forma de resolução consensual do mesmo.

Como tal, e salvo melhor entendimento, estamos no âmbito de factos de que o Il. Mandatário teve conhecimento no âmbito das negociações malogradas em que teve intervenção, com vista a pôr termo ao litígio. Através dos documentos em questão, é revelada a posição da ré face a defeitos invocados pelo autor posição essa que não coincide inteiramente com a que vem assumida nos presentes autos.
Em face do que fica exposto, decido não admitir os docs. nºs 2 e 3 juntos com a p.i., determinando o desentranhamento dos mesmos.
Inconformado, pretendendo a sua revogação e substituição por outra decisão que admita os documentos em causa para que sejam valorados como prova no processo, apela o autor reconvindo, terminando as alegações com a formulação das seguintes conclusões:
I. O aviso de confidencialidade consta dos e-mails da ilustre mandatária da ré após o final dos respectivos textos e também já depois das assinaturas, tratando-se, pois, utilizadas como ‘template’ ou ‘modelo’ por um Advogado, relegadas para local abaixo da respetiva assinatura e não repetidas ou assinaladas em qualquer oura parte da mensagem não sendo suficientes para concluir pela subsunção das comunicações de que constam ao regime especial do sigilo vertido no Estatuto da Ordem dos Advogados.
II. Nem toda a correspondência enviada por um advogado a outro está abrangida pelo dever de sigilo. Apenas está sujeita a sigilo profissional a correspondência trocada entre mandatários, quando se verifique que do seu conteúdo, tendo em conta a relação de confiança existente entre as partes quanto à reserva dos factos transmitidos exista um interesse objectivo em que esses factos se mantenham reservados.
III. Os três e-mails constantes dos dois documentos em causa configuram a interpelação do mandatário do autor à ré para a reparação dos defeitos da obra empreitada, a que respondeu a ilustre mandatária da ré, para dizer que aceitava a reparação, retorquindo o mandatário do autor que este aceitava a reparação e obtendo como última resposta que da ilustre
IV. Tais comunicações não contêm matéria sigilosa, desde logo porque, manifestamente, se destinavam, por natureza, a ser transmitidas pelos destinatários aos respectivos clientes, sendo que as respostas que, implicitamente, cada uma de tais comunicações suscitavam, não poderia ser dadas em que o teor dos emails fosse da a conhecer aos mandantes;
V. Ao contrário do que a douta decisão pressupôs, os emails em causa nem sequer constituíam negociação destinada a resolver, pois foram enviados com o objectivo, por um lado, de interpelação e de marcar posição dos direitos e interesses dos clientes de ambos os advogados em relação à contraparte e, por outro, de serem retiradas consequências práticas e jurídicas, sem carácter negocial.
VI. A douta decisão recorrida, interpretou e aplicou erradamente ao caso as normas Artº 92, nº 1, alínea f) e nº 5, do Estatuto da Ordem dos Advogados (lei 115/2015, de 9 de Setembro).

Não foram apresentadas contra-alegações.


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            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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            Objecto do recurso.

A questão a decidir consiste em apreciar se os documentos juntos pelo autor com a sua petição sob os nº 2 e 3, que se consubstanciam em correspondência de correio electrónico trocada pelos mandatários das partes, estão ou não abrangidos pelo sigilo profissional do advogado (art. 92º, nº 1 e 3 do Estatuto da Ordem dos Advogados) e, assim, se pode ou não admitir-se a sua junção nos presentes autos a fim de que sejam valorados para formação da convicção sobre os factos relevantes à decisão da causa.


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FUNDAMENTAÇÃO

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            Fundamentação de facto

Importa considerar, como relevante para a decisão, a seguinte matéria, que se reconduz ao teor da correspondência trocada entre os mandatários das partes (por correio eletrónico), cuja junção aos autos foi julgada inadmissível pelo despacho recorrido:

- Comunicação de 31/10/2022 enviada por BB (mandatária da ré) para CC (mandatário do autor)

‘Bom dia Dr CC

Ilustre Advogado

Apresento-lhe os meus melhores cumprimentos.

Apenas para dar uma nota ao Exmo. Colega, no sentido de informar que o meu cliente aceita fazer essas reparações. Não aceita é a presença dele aquando da realização das mesmas. Dependendo das condições de trabalho é que vem, essa solução final.

Votos de uma boa semana.

A colega ao dispor,’

- Comunicação de 3/11/2022 enviada por CC (mandatário do autor) para BB (mandatária da ré):

‘Exma. Colega, boa tarde:

Fico agradecido pela comunicação.

O meu cliente tem, obviamente, de aceita a reparação integral.

Não se sabe quantos dias a reparação irá durar e não me parece viável, nem exigível, que o meu cliente não possa frequentar a sua própria casa.

Naturalmente, como se trata do cumprimento de uma obrigação de resultado, o meu cliente não interferirá não realização dos trabalhos e evitará contactos, de qualquer natureza, com as pessoas que os irão realizar.

Peço à Exa. Colega indicação das datas em que a S/Cliente inicie e execute os trabalhos.

Cumprimentos do Colega ao dispor,’   

- Comunicação de 4/11/2022 enviada por BB (mandatária da ré) para CC (mandatário do autor)

‘Exmo. Sr. Dr. CC

Distinto Colega

Apresento-lhe os meus melhores cumprimentos

Serve o presente para informa que a minha cliente vai reunir os materiais necessários, e logo que tenham tudo marcam a data para início dos trabalhos.

A colega ao dispor’.


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            Fundamentação de direito

            Qual ‘regra de ouro da advocacia e um dos mais sagrados princípios deontológicos’, o segredo profissional do advogado encontra fundamento ético-jurídico ‘no princípio da confiança e na natureza social da função forense’, sendo ‘o pressuposto e contrapartida da confiança do cliente’, pois que ‘confiança e sigilo dão as duas faces da mesma relação’[1]. Além de tal fundamento ético-jurídico, justifica-se o segredo profissional do advogado também pelo ‘manifesto interesse público, ligado à função do advogado como participante indispensável da administração da Justiça’ – reconhecendo a lei a honra, dignidade e eminente função social da advocacia (artigos 20º, nº 2 e 208 da Constituição da República Portuguesa e artigos 3º, d), 24º, 88º e 90º do EOA, aprovado pela Lei 145/2015, de 9/09), reconhece, do mesmo passo, a natureza pública da profissão, e dessa concepção da advocacia como exercício duma função pública de administração da justiça (um órgão dessa administração ou um órgão independente da justiça) resulta que o advogado ‘só pode exercer cabalmente o seu ministério de ordem pública se estiver defendido de revelar, perante quaisquer autoridades, os segredos de que é depositário’[2].

           Segredo profissional que constitui obrigação do advogado e que, como resulta do art. 92º, nº 1 e 3 do EOA, respeita a ‘todos os factos ou documentos de que tenha conhecimento por revelação do cliente ou por outrem a seu mando, por virtude de cargo desempenhado na Ordem, por comunicação de colega associado que lhe tenha prestado colaboração, bem como do co-autor, co-réu ou co-interessado do cliente ou seu representante, e por causa de negociações relativas à pendência, malogradas ou não’, obrigação que existe ‘quer o serviço solicitado ou prestado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não aceitado o serviço ou a representação’ e que se estende a ‘todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço’ (colega substabelecido para determinada diligência, estagiários, empregados e colaboradores do escritório ou juristas e peritos consultados)[3].

           Sendo a regra a confidencialidade dos factos e documentos de que o advogado tenha conhecimento, directa ou indirectamente, no exercício das suas funções ou por causa delas, tem de ponderar-se que não estão incluídos no dever de sigilo os factos (e documentos) que ‘se destinem a ser invocados ou alegados em defesa do cliente’ – se destinados à defesa do cliente (a sustentar a sua pretensão), o dever de patrocínio impõe a sua utilização[4].

           O dever de confidencialidade não é, pois, absoluto - não existe relativamente a meras comunicações ou declarações de ciência que não traduzam qualquer negociação (qualquer proposta ou cedência mútua em vista de colocar termo ao diferendo ou litígio)[5], como ocorre com interpelações para cumprimento de obrigações, com denúncias de defeitos, com solicitações de reparação de obra e/ou o respectivo agendamento – em todas estas situações releva actividade desenvolvida ainda no âmbito da relação jurídica a que as partes estão adstritas e que concerne a actos que devem pela parte ser praticados em vista de fazer valer o seu direito (assim, p. ex., a interpelação para cumprimento de obrigação pura e a denúncia dos defeitos na empreitada) ou até a cumprir obrigação (assim, as comunicações havidas entre empreiteiro e dono da obra quanto ao cumprimento da obrigação de reparação).

Todas estas comunicações (interpelações, denúncias e comunicações relacionadas com o cumprimento da obrigação), ainda que feitas pelos mandatários, são realizadas no âmbito do relacionamento negocial que vincula as partes (mandantes), integrando factualidade constitutiva da obrigação – e por isso que se trata de matéria (de comunicações – documentos) destinada a sustentar a pretensão (e posição) da parte e, assim, a ser invocada/alegada em defesa do cliente.

Não se trata, a correspondência acima mencionada na fundamentação de facto, de comunicações havidas no âmbito de negociações (ainda que malogradas) para pôr termo ao litígio – trata-se de comunicações relacionadas com a execução do vínculo obrigacional a que as partes estavam adstritas (comunicações entre empreiteiro e dono da obra quanto ao cumprimento da obrigação de reparação), que assim não estão incluídas no dever de sigilo, podendo ser juntas valoradas (como prova) nos autos.

Breve parênteses para referir que do objecto do recurso está excluída (pois tal questão não foi tratada no despacho recorrido – e a decisão recorrida é, sempre, o ponto de partida do recurso e o limite primeiro do seu objecto) a questão de apurar se as comunicações provindas da mandatária da ré reconvinte tinham ou não carácter confidencial (art. 113º, nº 1 do EOA). Porém, sempre se adianta que para que a comunicação entre mandatários assuma tal carácter de confidencialidade (a valer independente da confidencialidade que se imponha em razão do dever de sigilo) é necessário que tal pretensão seja formulada de modo claro e expresso (que no caso não existe), não bastando para tanto um genérico aviso de confidencialidade automaticamente gerado sempre que é enviada mensagem de correio electrónio e que consta depois do final da mensagem elaborada pelo remetente.

Do exposto resulta a procedência da apelação, podendo sintetizar-se a argumentação decisória nas seguintes proposições:

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DECISÃO

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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível, em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogando a decisão apelada, em admitir a junção dos documentos referidos nos factos provados para que sejam atendidos como prova e, assim, valorados nos autos.

Custas pela apelada ré reconvinte.


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Porto, 19/03/2024
(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
João Ramos Lopes
João Proença
Rui Moreira

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[1] António Arnaut, Iniciação à Advocacia, História – Deontologia, Questões Práticas, 11ª Edição Revista, Coimbra Editora, pp. 107, 108 e 109.
[2] António Arnaut, Iniciação à Advocacia (…), p. 109.
[3] António Arnaut, Iniciação à Advocacia (…), pp. 110/111.
[4] António Arnaut, Iniciação à Advocacia (…), p. 111.
[5] Acórdão da Relação de Coimbra de 4/05/2020 (Barateiro Martins), no sítio www.dgsi.pt.