Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1800/21.3T8LRS-A.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: DOCUMENTO
DEPOIMENTO
CONTRADITÓRIO
PRINCÍPIO DE PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Um documento com um depoimento de um arguido prestado no decurso de um inquérito apenas perante um agente da Polícia Judiciária, não é um documento que tenha um depoimento prestado num processo com audiência contraditória do autor a quem o réu quer opor esse depoimento; pelo que, não podendo o depoimento valer sequer como princípio de prova (art.º 421/1 do CPC) o documento que o contém não deve ser, como não foi, bem, admitido (artigos 415 e 130 do CPC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

Neste processo em que é réu o Banco-SA, e autor C, no dia 14/02/2023 foram designados para audiência final os dias 29 e 30/05/2023.
No dia 08/05/2023, o réu requereu a junção de 11 documentos, incluindo 5 (docs. 7 a 11) depoimentos colhidos no âmbito de um inquérito crime, sendo o doc. 8 um auto de interrogatório de arguido, feito pela PJ, só na presença do arguido e de mais ninguém.
A 22/05/2023, o autor veio dizer, na parte que importa, que:
19\ Finalmente e no que se refere aos documentos 7 a 11 são totalmente inadmissíveis como prova para os presentes autos.
20\ Segundo o entendimento unânime tanto da doutrina como da jurisprudência, o que constitui caso julgado é a decisão, e não, directamente, os fundamentos ou depoimentos prestados noutro processo.
21\ Para que os factos provados num processo (e estamos aqui perante meros depoimentos prestados noutro processo, de natureza totalmente diferente da presente) possam ser invocados e valorados noutro processo é pressuposto indispensável que tenham sido objecto de "audiência contraditória" entre as mesmas partes, o que manifestamente não sucedeu na presente demanda.
22\ Isto porque, como refere o Prof. ANTUNES VARELA (ob. cit. p. 492), "desde que na produção da prova se tenham concedido às partes as garantias essenciais à sua defesa, nada repugna, com efeito, aceitar que a prova possa ser utilizada contra a mesma pessoa num outro processo, para fundamentar uma nova pretensão, seja da pessoa que requereu a prova, seja de pessoa diferente, mas apoiada no mesmo facto".
23\ E, ainda que não careçam de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções, os factos de que o tribunal se pode servir por deles ter adquirido conhecimento no exercício das suas funções, são apenas os factos já julgados pelo mesmo juiz noutro processo, e não os factos julgados por outro juiz em tribunal diferente.
24\ Sobre a interpretação deste preceito, no segmento que se refere aos "factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções" [que no Código de 1939 figurava no art.º 518], o Prof. JOSÉ ALBERTO DOS REIS (em CPC anotado, vol. III, 3.ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, p. 264), escreve que: "O facto há-de constar de qualquer processo, acto ou peça avulsa em que o juiz tenha intervindo como tal". Esclarece ainda que, na sessão de 23/11/1937 da Comissão Revisora do Texto do CPC, tal como consta da Acta n.º 20, págs. 24 e 25, "acordou-se que o artigo se refere a conhecimentos obtidos (pelo mesmo juiz) noutro processo e que é sempre necessário juntar a documentação dos mesmos".
25\ Também o Prof. LEBRE DE FREITAS (em CPC anotado, vol. 2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, p. 430), escreve que este normativo "constitui manifestação do princípio geral da eficácia do caso julgado ou do valor extraprocessual das provas", esclarecendo que os factos aqui abrangidos são apenas os de que "o juiz tem conhecimento funcional", para acrescentar que: "Mas, porque tal resultaria na utilização do saber privado do juiz, que é inadmissível, não constitui facto que o tribunal conheça por virtude do exercício das suas funções o respeitante a processo que corra ou tenha corrido em outro tribunal", ou seja, perante juiz diferente.
26\ Ora, os depoimentos constantes dos documentos 7 a 11 foram tomados em processo de natureza criminal, ainda por cima na fase de inquérito, julgados por juiz diferente e em tribunal diferente, o que os exclui do âmbito do conhecimento funcional do juiz que irá proferir a decisão nos presentes e, consequentemente, os coloca fora do âmbito da sua admissibilidade em qualquer outro processo judicial.
27\ Prescreve o art.º 421/1 do CPC que, “Salvo disposição em contrário, não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas”;
28\ Ao autor não foi possível exercer o contraditório aquando da recolha das indicadas declarações, prestadas na fase de inquérito de processo crime, sendo que no caso dos documentos 7 a 10, nem se trata de depoimento de testemunhas,
29\ Mas de autos de interrogatório de arguido, em que os interrogados nem sequer estão obrigados a responder com verdade.
30\ Trata-se assim de meio de prova não admissível e proibido, pelo que se impugnam tais documentos de forma expressa,
31\ Mais se requerendo assim o desentranhamento imediato dos indicados documentos 7 a 11.
Ocorreram sessões adicionais de audiência final nos dias 14/06 e 30/10/2023. Na última sessão, o autor disse prescindir do depoimento de testemunha P.
Por despacho de 31/10/2023 não foi admitida a junção aos autos do doc. 8 com a seguinte fundamentação:
Por requerimento junto a fl. 266 verso e seguintes veio o réu requerer a junção de 11 documentos alegando serem pertinentes para a prova dos factos relacionados com os temas de prova 2 e 3 e contraprova dos factos invocados na petição inicial.
O autor pronunciando-se sobre a requerida junção nos termos constantes do requerimento de fls. 300 a 302, cujo teor se dá por reproduzido.
Resulta do disposto no art.º 423 do CPC que os documentos destinados a fazer a prova dos fundamentos da acção ou da defesa podem ser apresentados: (i) regime regra - os documentos destinados à prova dos factos que fundamentam as pretensões das partes devem ser juntos aos autos com o articulado em que se alegam os respectivos factos; (ii) não sendo juntos com o articulado no qual os factos são alegados, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, podendo a parte ser condenada em multa se não provar que não os pode oferecer com o articulado; (iii) após este referido limite temporal, só serão admitidos documentos numa de duas situações: documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento; documentos cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
Os documentos cuja junção é requerida destinam-se a fazer prova dos fundamentos da defesa e contraprova de factos alegados na petição inicial e mostram-se relevantes para a discussão dos autos e decisão a proferir e por isso, se admite a sua junção aos autos.
Tais documentos, atenta a data constante dos mesmos, poderiam ter sido apresentados com a contestação, não tendo o réu no momento em que pede a junção dos mesmos justificado a sua não apresentação em momento anterior.
Tal não impede a sua junção neste momento sendo, porém, a parte condenada em multa, nos termos previstos no preceito legal.
Quanto aos documentos id. sob os nºs 7 a 11: reportam os mesmos a declarações prestadas no âmbito do processo crime que correu termos sob queixa apresentada pelo autor.
Reportam as declarações prestadas por pessoas indicadas como testemunhas nestes autos. Assim, mais que não seja para aferir da fiabilidade e genuinidade dos depoimentos prestados por essas testemunhas nestes autos tais documentos são relevantes e assim, admite-se a sua junção, excepção feita ao documento 8 que reporta as declarações prestadas por P, uma vez que as partes prescindiram do depoimento daquele.
Assim, e pelo exposto, admite-se a junção aos autos dos documentos nºs 1 a 7 e 9 a 11 […].”
O réu recorre de tal despacho – para que seja admitida a junção aos autos do doc. 8 - terminando as suas alegações com as seguintes conclusões.
A\ O presente recurso insere-se numa acção de responsabilidade civil proposta pelo autor contra o réu na qual o autor requer a condenação do réu a pagar-lhe uma indemnização de 338.390,18€ a título de danos por responsabilidade pré-contratual e extracontratual.
B\ Os factos controvertidos da presente acção foram já alvo de uma extensa investigação do Ministério Público, em que se colheram vários depoimentos e foram realizadas várias diligências de modo a permitira ponderação do MP quanto à oportunidade de dedução de acusação. […].
C\ De entre os depoimentos referidos foi colhido o de P […].
D\ Ora, no contexto da presente acção, o réu requereu a junção de vários documentos, incluindo diversos depoimentos colhidos no âmbito do referido inquérito, assinados pelos respectivos inquiridos, tendo o tribunal a quo admitido todos, com excepção do auto de interrogatório de P.
E\ A junção desse documento foi recusada pelo facto de as partes terem prescindo do seu depoimento nos presentes autos, após sucessivas tentativas infrutíferas de notificação para comparência em audiência de julgamento.
F\ Ao fazê-lo, o tribunal a quo desconsiderou as normas legais relativas à admissibilidade e tempestividade da junção de documentos (artigo 423/2 do CPC) e ao valor extraprocessual das provas (artigo 421 do CPC) […]
G\ Quanto ao primeiro aspecto, conforme decorre da jurisprudência dos tribunais superiores acima transcrita, o crivo da admissibilidade de documentos ou inadmissibilidade de documentos juntos após a apresentação do articulado de onde constam os factos a que tais documentos se reportam depende de dois requisitos essenciais: (i) tempestividade do pedido e (ii) não impertinência ou desnecessidade.
H\ Ambos os requisitos estão cumpridos: (i) a junção foi requerida tempestivamente, tendo sido requerida nos 20 dias anteriores à realização da audiência final conforme dispõe o artigo 423/2 do CPC; e (ii) esta não é, face à matéria de facto assente e ao conteúdo do documento, impertinente ou desnecessária porquanto diz respeito à prova de factos controvertidos na presente acção, conforme o disposto não artigo 443/1 do CPC.
I\ Quanto ao segundo aspecto, a força probatória de um documento não constitui fundamento de recusa ou de inadmissibilidade da sua junção — pois que este é um juízo a ocorrer posteriormente conforme afirma a jurisprudência dos tribunais superiores acima referida.
J\ Note-se, em todo o caso, que o documento recusado sempre poderia ser invocado contra o autor por ter sido produzido num processo com audiência contraditória, tal como dispõe o artigo 421 do CPC [no corpo das alegações o réu diz: 33\ Com efeito, para além de queixoso, o aqui autor constitui-se como assistente no processo-crime, requereu abertura de instrução, na qual discutiu a prova produzida e, além do mais, foi "confrontado (...) com o teor das declarações proferidas pelos diversos intervenientes", tendo-lhe sido dada oportunidade de sobre elas se pronunciar; tudo conforme resulta expresso do despacho de arquivamento e do despacho que rejeita a abertura de instrução, juntos pelo réu como documentos n.ºs 6 e 7 da contestação apresentada nestes a autos.]
K\ Assim, mesmo por esta via, o fundamento avançado pelo tribunal para fundamentar a sua recusa de junção do auto de interrogatório de P não pode proceder.
L\ A entender-se em sentido contrário sempre estaria em causa uma violação do princípio do contraditório na vertente de direito à prova do réu uma vez que, o auto de interrogatório de P, é um dos meios de prova que o réu entendeu ser potencialmente relevante para prova dos factos que aduz.
M\ Nestes termos, a junção deste documento, produzido no âmbito do processo penal, havia de ter sido admitida pelo tribunal a quo; amparo que, aqui, expressamente se requer.
O autor não apresentou contra-alegações a tempo.
*
Questão que importa decidir: se o doc. 8 devia ter sido admitido.
*
Apreciação:
O art.º 421/1 do CPC, sobre o valor extraprocessual das provas, dispõe que “1 - Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 355.º do Código Civil; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova.”
A segunda parte do n.º 1 do artigo, desvaloriza o depoimento em causa para um princípio de prova no caso de o anterior processo, embora ainda contraditório, oferecer menos garantias do que o posterior; no caso de não haver contraditório, o depoimento não tem nenhuma eficácia.
Portanto, para que um depoimento produzido num processo – e a norma está pensada para um processo de partes - possa ser invocado noutro, exige-se o contraditório e que este tenha sido observado no decurso da produção da prova – não num momento diferido - e que a parte contra a qual é agora usado tenha sido parte no processo onde foi produzido (neste sentido, por exemplo, Lebre de Freita e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, 2017, páginas 233 a 237; nenhum dos acórdãos citados pelo réu sugere o contrário; no mesmo sentido, Antunes Varela e outros, Manual de processo civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1985, páginas 492 a 495; Maria José Capelo, A transferência de prova entre processos: um diálogo com a jurisprudência, RLJ 151/4033, Mar/Abr2022, págs. 238-256; Abrantes Geraldes  e outros, CPC anotado, vol. I, Almedina, 2018, anotação 4 ao art.º 421, página 497 dizem: “Qualquer dos referidos meios de prova apenas vale como princípio de prova se acaso o processo em que foi produzido proporcionar garantias inferiores […]. Ademais, nenhum efeito poderá ser extraído das provas produzidas se o processo, entretanto tiver sido anulado na parte da instrução. Igualmente sucede nos casos em que a prova tenha sido produzida sem contraditório […]”) [os sublinhados e os negritos são deste acórdão].
A observância do contraditório é, pois, requisito indispensável da eficácia extraprocessual de um depoimento.
Adaptando argumento de Alberto dos Reis, CPC anotado, vol. III, 3.ª edição, reimpressão, Coimbra Editora, 1981, páginas 344-350, especialmente página 345 (autor que também vai no sentido dos autores citados antes), estranho seria que um depoimento produzido sem observância do contraditório no próprio processo, não fosse admissível (art.º 415/1 do CPC: Salvo disposição em contrário, não são admitidas nem produzidas provas sem audiência contraditória da parte a quem hajam de ser opostas) e por isso não pudesse valer sequer como princípio de prova, e um depoimento produzido num outro processo, sem qualquer contraditório, já pudesse valer como princípio de prova.
Ora, um auto, num inquérito, de interrogatório de arguido, feito pela PJ, só na presença do arguido e de mais ninguém, não é uma prova produzida num processo contraditório, nem foi produzida com observância do contraditório.
O réu diz que o doc. 8 foi produzido num processo com audiência contraditória, mas é evidente que não o foi, e por isso é que o réu vai buscar elementos exteriores ao documento e que não tinha alegado antes (o autor referia no requerimento de admissão do documento: auto de interrogatório prestado no âmbito do processo de inquérito penal […]), invocando o que se terá passado a seguir numa instrução, para poder afirmar o contrário. Mas a instrução não é um inquérito e o depoimento não foi produzido numa instrução, mas num inquérito, e a observância do contraditório numa instrução não faz com que a produção do depoimento num inquérito se converta num depoimento prestado com observância do contraditório (isto é, em que o autor tivesse tido oportunidade de, apenas por exemplo, também fazer perguntas ao depoente, para esclarecer e completar o que estava a dizer).
Quer isto dizer que o depoimento não pode ter qualquer eficácia neste processo, nem mesmo como princípio de prova. Um depoimento que não pode ter eficácia, não é um elemento de prova e por isso não deve ser admitido como tal, nem que mais não fosse por ser um acto inútil (art.º 130 do CPC: Não é lícito realizar no processo actos inúteis.)
Estando em causa a ineficácia extraprocessual do depoimento como fundamento de não admissão do documento que o contém, não se está a valorar o depoimento para efeitos de não o admitir, pelo que não têm aplicação para o caso outros acórdãos que o réu cita. 
O despacho recorrido não admite o doc. 8 porque diz respeito a um depoimento de uma testemunha de que as partes prescindiram. Mas o facto de as partes (ou uma delas…) terem prescindido da prestação de um depoimento, não é o mesmo que o réu ter prescindido de tentar aproveitar um outro depoimento dessa mesma pessoa prestado noutro momento e cuja apreciação já tinha requerido antes disso. Assim, não se concorda com a fundamentação do despacho recorrido, mas isto em nada afasta a procedência daquele outro fundamento para a não admissão do documento em causa. E não importa que, com base neste fundamento, provavelmente não devessem, também, ter sido admitidos os outros documentos/depoimentos 7 e 9 a 11, pois que o réu, que é o recorrente, não se pode queixar disso, nem pode querer que um erro, apenas por existir, seja mais abrangente, ou seja necessariamente reproduzido só porque se verificou uma vez.
Assim, embora por via diversa do despacho recorrido, a decisão da não admissão do doc. 8 está certa.
Note-se que, apesar de se ter transcrito toda a argumentação do autor sobre a questão, a quase totalidade dela não tem aplicação: não se trata de dar eficácia a factos provados noutro processo, mas de dar ou não eficácia a meios de prova produzidos noutro processo.
*
Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas, na vertente de custas de parte, pelo réu.
Lisboa, 18/04/2024
Pedro Martins
Vaz Gomes
António Moreira