Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5079/22.1T8STB.L1-2
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: PROVA PERICIAL
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. Se o despacho pelo qual o tribunal aprecia nulidades secundárias não é notificado às partes, que dele apenas tomam conhecimento depois da notificação do despacho final, aquele primeiro despacho não produz efeitos, tudo se passando como se o tribunal tivesse omitido pronúncia sobre o requerimento de arguição de nulidades, tendo a parte prejudicada o direito de, perante essa omissão, ver as nulidades apreciadas e decididas neste recurso.
II. A realização de perícia à mercadoria, sem que as partes tenham sido notificadas de data e hora de início da diligência, impede-as de assistir à mesma, de se fazer assistir por assessor técnico, e de fazer aos peritos as observações que entendam (direitos que lhes são conferidos pelo artigo 480.º, n.ºs 3 e 4, do CPC), pelo que a referida omissão é suscetível de influir na apreciação da causa.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acórdão

I. Relatório
«BB», S.A. e «CC», LDA., requeridas no presente procedimento de produção antecipada de prova (artigo 419.º do CPC) em que é requerente «AA», S.A., notificadas do despacho final proferido em 11/01/2024 que determinou o arquivamento dos autos, e com ele não se conformando, interpuseram o presente recurso.
A apreciação e decisão do recurso impõem que se tenham presentes os seguintes factos, constituídos pelo atos mais relevantes do processo:
1. O processo teve início em 11/08/2022, com requerimento de produção antecipada de prova pericial colegial a ter por objeto a análise da batata-doce que as requeridas forneceram à requerente de modo a aferir:
- Qual a quantidade percentual de batata-doce fornecida pelas requeridas à requerente sem que a mesma possuísse o calibre entre o intervalo de 200g a 700g; e,
- Qual a quantidade percentual de batata-doce que as requeridas forneceram à requerente sem que apresentasse as condições para constituir um produto comercializável, isto é, que se encontrava danificada por estar partida, raspada, ferida e ou com sulcos significativos.
Com o requerimento inicial a requerente indicou como perita a Prof. Doutora «DD».
2. Por despacho de 21/09/2022, o Tribunal de Setúbal, onde o processo tinha sido instaurado, julgou-se territorialmente incompetente, tendo os autos, na sequência, transitado para o Tribunal do Montijo.
3. Por despacho de 28/09/2022, foi deferido o requerimento de perícia colegial e determinada a notificação das requeridas para se pronunciarem sobre o objeto da perícia e indicarem perito.
4. Por despacho de 18/10/2022, foi ordenada a perícia colegial com o objeto proposto pela requerente, constando, ainda, desse despacho: «A perícia será a executar pela Ex.ma Sr.ª Dr.ª «DD», identificada no requerimento inicial e por dois peritos a indicar pelo Tribunal (atenta a ausência de indicação por parte das Requeridas), os quais desde já se nomeiam».
5. Em 26/10/2022, a secretaria oficiou à Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa que indicasse duas pessoas que pudessem ser nomeadas para a perícia dos autos.
6. A Faculdade deu resposta em dezembro de 2022, tendo os indicados peritos e a inicialmente indicada pela requerente sido, ato contínuo (sem precedência de outro despacho) sido notificados pela secretaria, em 14/12/2022, para procederem à realização da perícia.
7. Compulsados os autos verifica-se que a identidade e/ou os contactos dos peritos indicados pela Faculdade não foi notificada às partes; os ofícios pelos quais os peritos foram notificados para realizarem a perícia não foram notificados às partes; não se mostra agendada data de início para a perícia (pelo que as partes também não tiveram dela conhecimento).
8. Por relatório de 16/01/2023, subscrito pela perita «DD», foi concluído:
«1. Não é possível efetuar nova amostragem, uma vez que a batata doce é perecível e se demonstrou ter-se degradado de forma relevante
2. A quantidade percentual de batata doce que as Requeridas forneceram à Requerente sem que a mesma possuísse o calibre entre o intervalo de 200 g e 700 g é igual a 33% com uma margem de erro de 2%, com 95% de confiança
3. A quantidade percentual de batata doce que as Requeridas forneceram à Requerente sem que apresentasse as condições para constituir um produto comercializável, isto é, que se encontrava danificada por estar partida, raspada, ferida e ou com sulcos significativos é igual a 3.30%, não sendo possível o calculo da margem de erro.»
9. Por relatório de 17/01/2023, os peritos «EE» e «FF» concluíram:
«Os intervalos de confiança dos estimadores de rácio têm uma amplitude reduzida (margem de erro aproximada de 2%), apontando para que o rácio em peso da batata doce regular apurado (aproximadamente 67%) esteja muito distante do valor mínimo admissível de 80%; estes estimadores são adequados para amostras maiores, merecendo algumas reservas.
Se fosse possível, com o objetivo de corroborar estes resultados, seria interessante implementar uma nova perícia nos mesmos moldes em que se implementou a anterior, mas com uma dimensão amostral de cerca de 30 palotes. Para o efeito é necessário que alguém dessa especialidade nos assegure que a batata não se degradou (mirrou, grelou, apodreceu) de forma significativa desde o momento em que foi armazenada».
10. Notificadas destes relatórios, as requeridas vieram dizer que não foram notificadas da indicação de peritos pela Faculdade, nem da sua nomeação, nem da sua identificação, nem da data e local de início da diligência, não tendo, como tal, tido oportunidade de assistir à mesma, nem de fazer-se assistir por assessor técnico, nem fazer ao perito as observações ou de lhes solicitar os pedidos de esclarecimentos que tivessem por bem.
A omissão dos indicados atos constitui irregularidade que influi no exame ou na decisão da causa, sobretudo na elaboração do relatório pericial (que é o objeto destes autos), omissão que produz a nulidade da perícia e respetivos relatórios.
Acrescentam, ainda, que não sabem se as batatas analisadas  foram por si fornecidas, se foram contabilizados os palotes existentes nas instalações, se há registos de entrada dos mesmos, se foi pesada a mercadoria para verificação da correspondência com as quantidades que a requerente afirma ter recebido.
Finalmente, alegam que os peritos realizaram as perícias, não obstante expressarem que a batata-doce se encontra “(…) em muito más condições (podres e mirradas, pelo facto de serem material perecível e ter passado cerca de 1 ano desde a sua chegada ao armazém (…)” («DD»), ou que “O universo a ser estudado restringe-se à batata doce existente em armazém e nas condições de conservação verificadas no momento da amostragem. Isto pode não coincidir com o estado da batata no momento em que foi depositada em armazém” («EE» e «FF»).
11. Notificada do antecedente, a requerente respondeu, pugnando pela improcedência das arguidas nulidades e, não tendo sido pedidos esclarecimentos aos peritos ou sequer solicitada a sua comparência em audiência, que se considerar findo o processo.
12. Por despacho de 17/02/2023, o tribunal pronunciou-se nos seguintes termos:
«Não obstante o exposto supra, desde já consigno que, por ofício de notificação de 18 de outubro de 2022, as Requeridas, através da sua Ilustre Mandatária, foram notificadas do despacho que determina a perícia, exarado nessa data, onde se nomeiam os Senhores Peritos (estando um deles devidamente identificado), pelo que não se concebe que as Requeridas hajam sido surpreendidas com a junção dos relatórios periciais aos autos, não se olvidando que é da sua inteira responsabilidade a não indicação oportuna de Perito, faculdade que optou por não exercer.
Desta forma, não foi negada qualquer intervenção nos termos da lei, nos termos e para os efeitos plasmados no artigo 480.º do Código de Processo Civil, não subsistindo qualquer vício na elaboração do relatório pericial, tudo sem prejuízo de se pedirem os esclarecimentos necessários aos Senhores Peritos, reclamando contra o relatório pericial, na observância do vertido no artigo 485.º do Código de Processo Civil.
Quanto às considerações substanciais incidentes sobre o relatório pericial, estas não o invalidam, até porquanto o mesmo é livremente apreciado pelo Tribunal (artigo 489.º do Código de Processo Civil), não estando o Julgador vinculado às suas conclusões.
Pelo exposto, e sem necessidade de mais extensas considerações, improcede a arguida nulidade do relatório pericial.
Notifique.»
13. O despacho de 17/02/2023 não foi, em momento algum, notificado às partes.
14. Imediatamente após a prolação do despacho de 17/02/2023, foi aberta nova conclusão em 23/02/2023, com a informação de que «consta no sistema Citius, que os Exms. Srs. mandatários, têm acesso normal ao processo eletrónico, pelo que solicito a V.Exª., se digne ordenar o que tiver por conveniente».
15. E nesse mesmo dia 23/02/2023 foi proferido o despacho: «Informando do teor do termo de conclusão que antecede, notifique Requerente e Requeridas para, no prazo de 10 dias, dizerem o que tiverem por conveniente.»
16. O despacho de 23 de fevereiro de 2023 foi notificado às partes, mas o de 17 do mesmo mês nunca chegou a sê-lo.
17. Para que se perceba a conclusão e o despacho de 23/02/2023, há que dizer que, em vários requerimentos juntos aos autos, durante praticamente todo o processado, ambas as partes foram-se queixando da falta de acesso ao Citius.
O tribunal foi pedindo informações à secretaria e ao IGFEJ, dizendo estes que o acesso era o normal.
Nas alegações de recurso, as recorrentes dão nota de ter tomado entretanto conhecimento de que o procedimento de produção antecipada de prova se pauta pela sua indisponibilidade para consulta dos mandatários na plataforma Citius, à semelhança do que ocorre com os procedimentos cautelares, pelo que as partes sempre estiveram dependentes das notificações (da secretaria ou entre partes) para tomarem conhecimento do andamento dos autos (artigo 8.º das alegações).
18. Por despacho de 10/10/2023, o tribunal a quo disse:
«Atento o lapso temporal decorrido, notifique Requerente e Requeridas para, no prazo de 10 dias, dizerem o que tiverem por conveniente, com a advertência de que, nada dizendo e realizada a perícia, serão os presentes autos arquivados.»
19. Em 18/10/2023, as requeridas responderam:
«1. Que se mantém, na presente data, a indisponibilidade do processo para consulta na plataforma Citius, podendo tratar-se de limitação própria do sistema, na medida em que a presente forma processual é tratada de forma similar aos procedimentos cautelares (igualmente inacessíveis através do Citius) – tal como transmitido no requerimento de 02.03.2023, com a ref.ª 44879373.
2. Que continua por decidir a questão das nulidades da perícia e/ou dos relatórios periciais, suscitada pelas Requeridas no seu requerimento de 02.02.2023, com a ref.ª 44606343, pelo que não estão reunidas as condições para se proceder ao arquivamento dos presentes autos.»
20. Em 27/11/2023, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
«Requerimento recebido em 18/10/2023: No atinente ao ponto 1, diga a Secção o que tiver por conveniente. Quanto ao ponto 2, notifique a Requerente para, no prazo de 10 dias, dizer o que tiver por conveniente.»
21. A requerente pronunciou-se pelo indeferimento.
22. O despacho subsequente foi o final, proferido em 11/01/2024, com o seguinte teor:
««AA, S.A.» requereu nos vertentes autos, contra «BB, S.A.» e «CC, Lda.», a produção antecipada da prova, ao abrigo do plasmado no artigo 419.º do Código de Processo Civil, consistente na realização de uma perícia colegial, com o objeto centrado em saber-se: qual a quantidade percentual de batata-doce que as Requeridas forneceram à Requerente sem que a mesma possuísse o calibre entre o intervalo de 200g a 700g; qual a quantidade percentual de batata-doce que as Requeridas forneceram à Requerente sem que apresentasse as condições para constituir um produto comercializável, isto é, que se encontrava danificada por estar partida, raspada, ferida e ou com sulcos significativos.
Após o devido contraditório, foi ordenada a perícia colegial com o objeto acima descrito, por despacho proferido em 18 de outubro de 2022. Mais foi determinado que, caso a perícia não possa ser realizada com segurança para responder ao objeto acima enunciado, os Senhores Peritos deverão fundamentar essa conclusão, incluindo se, como afirmam as Requeridas, se tal situação se deve à decorrência do tempo, significando que o tempo passado não permite, com segurança, responder ao supramencionado objeto.
Em 17 de janeiro de 2023 foi junto relatório pericial.
Por despacho exarado em 17 de fevereiro de 2023, foi considerada improcedente a arguida nulidade do relatório pericial. Este despacho foi notificado aos sujeitos processuais (nas pessoas dos respetivos Ilustres Mandatários), por ofício datado de 24 de fevereiro de 2023.
Por requerimento de 18 de outubro de 2023, vêm as Requeridas invocar que continua por decidir as questões das nulidades da perícia e / ou dos relatórios periciais, suscitadas pelas Requeridas no seu requerimento de 02 de fevereiro de 2023.
A Requerente propugna que não deve ser atendido o requerimento das Requeridas.
Reza o artigo 419.º do Código de Processo Civil que, «Havendo justo receio de vir a tornar-se impossível ou muito difícil o depoimento de certas pessoas ou a verificação de certos factos por meio de perícia ou inspeção, pode o depoimento, a perícia ou a inspeção realizar-se antecipadamente e até antes de ser proposta a ação».
A prova a produzir – perícia colegial –, objeto do vertente processo, mostra-se concluída, pelo que, tendo as nulidades arguidas sido decididas por despacho proferido em 17 de fevereiro de 2023 (notificado aos Ilustres Mandatários das Partes por ofício de 24 de fevereiro de 2023) e, portanto, transitado em julgado (porquanto não colocado em crise até ao presente momento), nada mais há a decidir.
Notifique.
Após, proceda ao arquivamento dos presentes autos, caso nada haja a contar e / ou a liquidar.»
23. As requeridas não se conformaram e recorreram, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«I – A decisão recorrida julga improcedentes as nulidades invocadas pelas Recorrentes porque estas, “(…) através da sua Ilustre Mandatária, foram notificadas do despacho que determina a perícia (…)”, concluindo de seguida que “(…) não foi negada qualquer intervenção nos termos da lei, nos termos e para os efeitos plasmados no artigo 480º do Código de Processo Civil, não subsistindo qualquer vício na elaboração do relatório pericial (…)”.
II – Entendimento esse que as Recorrentes não podem deixar de colocar em causa no presente recurso.
III – O artigo 478º, nº 1 do CPC refere que, “No próprio despacho em que ordene a realização da perícia e nomeie os peritos, o juiz designa a data e local para o começo da diligência, notificando-se as partes”.
IV – Todavia, tal não viria a suceder in casu, pois, do aludido despacho, não constava a identificação (de dois) dos peritos designados pelo Tribunal, nem a “data e local para o começo da diligência”.
V – Sendo consequentemente negada às Recorrentes a faculdade de “intervir nesses atos nos termos da lei”, nomeadamente de assistir à diligência e fazer-se assistir por assessor técnico, fazer aos peritos as observações que entendam ou prestar os esclarecimentos que os peritos julguem necessários (v. artigo 480º, nº 3 e 4 do CPC).
VI – Desconhece-se se o próprio Tribunal terá sido informado da data e hora da realização da diligência de perícia, mas o que é certo é que as partes não foram notificadas quanto à realização da mesma.
VII – A omissão de notificação obstou ao exercício dos direitos das partes previstos nos normativos supra citados, ofendendo o princípio do contraditório, o que constitui nulidade processual, nos termos do nº 1 do artigo 195º do CPC.
VIII – Nestes termos, deveria ter sido declarada a nulidade processual da diligência de perícia, bem como do processado subsequente dela dependente (cfr. nº 2 do artigo 195º do CPC).
IX – Além disso, a decisão recorrida padece do vício de falta de fundamentação previsto no artigo 615º, nº 1, b) do CPC, limitando-se a concluir pela improcedência dos argumentos das Recorrentes sem justificar devidamente a sua conclusão, vício esse que acarreta a nulidade da decisão.
X – Salvo melhor opinião, não basta afirmar que as Recorrentes foram notificadas do despacho que determinou a realização da perícia para considerar a inexistência de nulidade, quando desse despacho não constava a identificação de todos os peritos nomeados (muito menos os seus contactos), nem a “data e local para o começo da diligência”.
XI – Acrescendo que, na fundamentação da decisão, parecem também ter sido ignorados os argumentos que as Recorrentes invocaram no que toca aos vícios apontados ao relatório pericial per si, não sendo efetuada qualquer análise crítica dos mesmos.
XII – Vícios esses que não se vislumbra terem sido alvo de ponderação na douta decisão recorrida, até porque a mesma afirma que aqueles não invalidam o relatório pericial, escudando-se na livre apreciação do julgador, mas sem concretizar quaisquer fundamentos para o efeito.
XIII – Nos termos do artigo 615º, nº 1, b) do CPC, “É nula a sentença quando (…) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
XIV – Nulidade essa que as Recorrentes expressamente invocam, para todos os efeitos legais.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, DEVE O RECURSO SER JULGADO TOTALMENTE PROCEDENTE E EM CONSEQUÊNCIA CONCLUIR-SE:
- Pela revogação da decisão proferida, que julga improcedentes as nulidades invocadas pelas aqui Recorrentes, e pela sua substituição por outra que concretize os fundamentos da decisão sobre todas as questões suscitadas pelas Recorrentes nesse âmbito e, a final, julgue procedentes as nulidades invocadas quanto à perícia e ao relatório pericial, com todas as consequências legais.»
24. A requerente não contra-alegou, voltando a dizer que não tinha acesso a todo o processo via Citius e que, por isso, não podia pronunciar-se.
25. Em 07/03/2024, o tribunal recorrido despachou:
«Porque tempestivo, tendo as Recorrentes legitimidade, tendo autoliquidado a taxa de justiça devida e sendo a decisão recorrível, admito o recurso interposto pelas aqui Requeridas, «BB, S.A.» e «CC, Lda.», através do requerimento de 30 de janeiro de 2024, o qual é ordinário de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo – artigos 627.º, 629.º/1, 631.º, 638.º, 639.º/1/2, 640.º, 644.º/1/a), 645.º/1/a) e 647.º/1, todos do Código de Processo Civil.
Notifique.
Após trânsito do presente despacho, e porquanto propugno pela inexistência de qualquer eventual vício arguido pelas aqui Requeridas / Recorrentes, com os fundamentos que se extraiam da análise do despacho em apreço, remeta o presente recurso ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, para Superior Apreciação.
Diligencie oportunamente pela autorização para o acompanhamento dos presentes autos pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, a efetuar-se através do sistema informático de suporte à atividade dos Tribunais.»
26. Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.
Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões:
a) Foram cometidas nulidades processuais que as recorrentes ainda estão em tempo de arguir?
b) A decisão final é nula por falta de fundamentação?
II. Fundamentação de facto
Os factos relevantes são os que constam do relatório.
III. Apreciação do mérito do recurso
Os presentes autos são constituídos por um procedimento de produção antecipada de prova, que se encontra previsto e regulado nos artigos 419.º e 420.º do CPC. Em rigor, estes artigos preveem a produção antecipada de prova, quer no âmbito do processo onde a prova em causa se realizaria, mas antes do seu momento processual próprio, quer a montante desse processo, em procedimento autónomo. Os presentes autos correspondem à última situação.
O pressuposto de um requerimento de produção antecipada de prova consiste no justo receio de o meio de prova em causa (o depoimento de certas pessoas ou a verificação de certos factos por meio de perícia ou inspeção) vir a tornar-se impossível ou muito difícil (artigo 419.º do CPC).
O procedimento encontra-se descrito no artigo 420.º do CPC: o requerente justifica sumariamente a necessidade da antecipação, menciona com precisão os factos sobre que há de recair; quando requeira a diligência antes de a ação ser proposta, indica sucintamente o pedido e os fundamentos da demanda.
Se se tratar de prova pericial, como in casu, aplicar-se-ão, ainda, as normas respetivas (artigos 467.º e seguintes do CPC).
O procedimento seguiu os seus termos e, por despachos de 28/09/2022 e de 18/10/2022, foi deferido o requerimento de perícia colegial e ordenada a realização da mesma com o objeto proposto pela requerente.
A requerente indicou perito logo no requerimento inicial; as requeridas não indicaram; o tribunal pediu a indicação de dois peritos à Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, tendo, no seu citado despacho de 18/10/2022 dito que a perícia seria a executar pela perita identificada no requerimento inicial e por dois peritos a indicar pelo tribunal (atenta a ausência de indicação por parte das requeridas), «os quais desde já se nomeiam».
Em nenhum despacho ou outro ato foi designado dia para o início da diligência.
A Faculdade indicou dois peritos e, ato contínuo, a secretaria notificou os três peritos para procederem à perícia.
As partes não foram notificadas da identidade nem dos contactos dos peritos indicados pela Faculdade, nem do ofício pelo qual o tribunal notificou os peritos para realizarem o trabalho.
Consequentemente, nenhuma das partes pôde assistir à perícia
Nos termos do disposto no artigo 478.º do CPC, no próprio despacho em que ordene a realização da perícia e nomeie os peritos, o juiz designa a data e local para o começo da diligência, notificando-se as partes.
Por outro lado, de acordo com o estabelecido no artigo 480.º (n.ºs 3 e 4), as partes podem assistir à diligência e fazer-se assistir por assessor técnico, bem como podem fazer aos peritos as observações que entendam.
Não tendo tido conhecimento da identidade dos peritos nem do início da perícia, as partes, e nomeadamente as requeridas, não puderam exercer os direitos acima referidos.
Surpreendidas pela notificação dos relatórios periciais, vieram as requeridas dar nota das irregularidades acabadas de referir (falta de conhecimento da identidade dos peritos, falta de conhecimento da data da perícia, impossibilidade de a ela assistir e de nela intervir).
Após dar a palavra à parte contrária, o tribunal, por despacho de 17/02/2023, indeferiu a arguida nulidade.
O despacho de 17/02/2023 não foi, em momento algum, notificado às partes. Em 18/10/2023, as requeridas disseram isso mesmo ao tribunal. O tribunal conhecia, sem poder desconhecer, todos os atos processuais, não apenas os despachos que proferiu, mas todos os atos do processo, ao qual tem completo acesso. Ignorando todos os atropelos processuais praticados, por ação ou omissão, o tribunal a quo proferiu o despacho de arquivamento ora objeto de recurso.
No presente recurso, as recorrentes arguem as nulidades processuais que tinham oportunamente suscitado em requerimento sobre o qual recaiu o despacho de 17/02/2023, que nunca lhes foi notificado. Não tendo sido notificado às requeridas, o despacho de 17/02/2023 não produziu efeitos, entendendo-se que, para todos os efeitos, o tribunal omitiu pronúncia sobre o requerimento de arguição de nulidades, tendo as recorrentes o direito de, perante essa omissão, ver as nulidades apreciadas e decididas neste recurso.
As irregularidades cometidas consistiram em:
- não notificação da identidade dos peritos nomeados por conta do tribunal e das requeridas;
- falta de designação e de consequente notificação do dia de início da diligência.
Trata-se, em ambos os casos, de atos que a lei prescreve (v. os já acima referidos artigos 478.º e 480, n.ºs 3 e 4) e que foram omitidos, o que, nos termos do disposto no artigo 195.º, n.º 1, do CPC, produz nulidade quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
No que respeita à primeira omissão, não tendo as requeridas invocado que teriam razões para se opor à nomeação dos peritos em concreto (por impedimento ou suspeição, v. artigo 470.º do CPC), não podemos dizer que a omissão podia ter influído no exame da causa. Já quanto à segunda omissão, definitivamente, podia em abstrato influir e, no caso concreto, impediu efetivamente as requeridas de estarem presentes na perícia e de nela exercerem os direitos que o artigo 480.º, n.ºs 3 e 4, do CPC lhes atribui.
Assim sendo, anulam-se os atos subsequentes ao ofício da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, de 02/12/2022, que indicou como peritos «EE» e «FF» (ofício ref. Citius 34443543, de 13/12/2022) e que dele dependem, nomeadamente, anulam-se a perícia, os respetivos relatórios e os despachos de 10/10/2023 e de 11/01/2024. Na sequência, determina-se que seja designado dia e hora para o início da perícia, e que as partes sejam notificadas dessa despacho.
Fica prejudicada a outra questão suscitada: a da nulidade do despacho final por falta de fundamentação (artigo 615.º, n.º 1, b) do CPC).

IV. Decisão
Face ao exposto, julga-se a apelação procedente e, em consequência:
a) anulam-se os atos posteriores ao ofício da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, com a ref. Citius 34443543, de 13/12/2022, nomeadamente: i. as imediatas notificações aos peritos para realização da perícia, sem prévia designação de dia e hora para início da diligência e respetiva notificação às partes; ii. a perícia; iii. os respetivos relatórios; e, iv. os despachos de 10/10/2023 e de 11/01/2024; e,
b) determina-se que, na sequência do referido ofício, seja designado dia e hora para o início da perícia, devendo as partes ser notificadas dessa despacho.

Custas pela recorrida.
Lisboa, 09/05/2024
Higina Castelo
Inês Moura
António Moreira