Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1993/23.5T8VFX.L1-3
Relator: HERMENGARDA DO VALLE-FRIAS
Descritores: PRESCRIÇÃO
CADUCIDADE
PROCESSO CONTRAORDENACIONAL
NEMO TENETUR SE IPSUM ACCUSARE
AUTO DE NOTÍCIA
FACTOS RELEVANTES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I. De entre as características distintivas próprias relativas às duas formas fundamentais de extinção de direitos - caducidade e prescrição, as mais notadas são:
Enquanto a caducidade pode proceder de um acto jurídico privado ou da lei, a prescrição tem sempre a sua origem na lei.
A finalidade da prescrição é dar por extinto um direito que, por não ter sido exercido pelo seu titular, se pode presumir que dele abriu mão.
A finalidade, na caducidade, é a determinação antecipada do tempo de duração da possibilidade de exercício de um direito (veja-se o art.º 298º nº 2 Cód. Civil).
Assim, enquanto na prescrição se toma em consideração a razão subjectiva do não exercício do direito [o não uso], isto é, a negligencia real ou suposta do titular, na caducidade atende-se apenas ao facto objectivo que é a sua [do direito] falta de exercício dentro do termo prefixado (veja-se o art.º 298º do Cód. Civil).
Daqui se infere que a prescrição extingue acções e direitos através de uma excepção, enquanto que a decadência [caducidade] opera a extinção de uma maneira directa e automática.
Em termos processuais, isto significa também que, perante o decurso de um prazo de caducidade, o juiz há-de tê-lo necessariamente em consideração (art.º 333º do Cód. Civil).
Já se o prazo for de prescrição, então terá de ser alegado por quem dele se aproveite (art.º 303º do mesmo Cód. Civil), e o juiz terá em atenção essa alegação para julgar extinto o direito.
Na prescrição admitem-se causas de suspensão e interrupção do respectivo prazo, o que não acontece na caducidade, em que essas causas não têm influência no respectivo decurso, precisamente porque, em princípio, o efeito extintivo é automático.
II. Os prazos previstos no art.º 48º, n.ºs 2 e 3 da Lei Quadro das Contraordenações Ambientais (LQCOA) são indicativos, como decorre, desde logo, claramente da simples leitura do disposto no 41º (nº 2, al. d)) do referido regime, de onde resulta que o excesso do prazo de instrução, no entanto, impõe um termo às medidas cautelares que estejam vigentes no processo.
III. O princípio nemo tenetur se ipsum accusare significa, fundamentalmente, que ninguém pode ser obrigado a testemunhar contra si próprio, a produzir prova contra si mesmo ou a fornecer coactivamente qualquer tipo de declaração ou informação que o possa incriminar.
Estando nós perante o exercício de uma actividade licenciada, sujeita a fiscalização, impondo-se ao beneficiário o exercício de diversas obrigações como decorrência daquele licenciamento, a obrigação que impende sobre o beneficiário da licença é a de demonstrar que exerce a actividade dentro dos limites da lei e da respectiva autorização, sem que esta exigência possa ser entendida como violação daquele princípio.
IV. O art.º 46º, nº 1 da citada LQCOA não impõe a menção no auto de notícia do elementos subjectivos relativo à infracção, sendo que também essa obrigação não decorre do próprio art.º 243º, nº 1 do Cód. de Proc. Penal, aplicável por força do artigo 41º, nº 1 do RGCO.
V. Como decorrência da sua natureza, paredes-meias com a criminal, a decisão contraordenacional tem de ser fundamentada, seguindo estrutura similar à de uma sentença penal, tal como decorre do art.º 58º do RGC-O citado, e por referência ao disposto no art.º 374º do Cód. Proc. Penal.
A decisão que proceda à descrição dos factos imputados à recorrente, desde logo aqueles que se afiguram indispensáveis á caracterização da actuação imputada (objectiva e subjectivamente) e à individualização da infracção, precisa, permitindo um cabal exercício do direito de defesa é, como tal, isenta de nulidade.
VI. O argumento resultante da jurisprudência de que quando o legislador quer sancionar a título de contraordenação o incumprimento do dever de comunicar fá-lo, dando-se disso exemplos, não deixa de ser apenas isso mesmo, um argumento. Quando, de facto, ao não prever directamente algumas das situações, limitando-se a deixar funcionar as remissões legais aplicáveis sem lhes impor um rumo pré definido (porque redutor, ao contrário do que se pretende com a tutela do ambiente), o legislador está, aceitando a realidade de superior e potencial risco de uma actividade que pode ser nociva do ambiente, a obrigar ao cumprimento das concretas clausular contratadas, pois que dessas não se pode alegar qualquer desconhecimento, sendo nessa obrigação que consiste a padronização para efectivação do princípio da legalidade.
Ou seja, a padronização dos comportamentos, sejam deveres/direitos, por reporte directo às autorizações dos serviços municipalizados, vistas as respectivas licenças de actividade, como forma de medir aqueles direitos/deveres, ao contrário de constituírem uma iniquidade, constituem sim um mecanismo de salvaguarda da protecção ambiental e de controlo das respectivas autorizações e licenças.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 3ª Sec. Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.

Relatório
Pelo Juízo Local Criminal de V. Franca de Xira – J2 – foi proferida Decisão sobre o recurso de contraordenação identificado que decidiu do seguinte modo:
(…)
Em face do exposto, decide-se julgar o recurso interposto por ... parcialmente procedente, por parcialmente provado, e em consequência, decide-se:
i. Revogar a condenação da recorrente ... pela prática de uma contra-ordenação ambiental muito grave, prevista pelo artigo 12.º e artigo 48.º, n.º 1, al. e), do Decreto-Lei n.º 183/2009, de 10 de Agosto, absolvendo a recorrente da sua prática.
ii. Manter a condenação da recorrente ... pela prática de uma contra-ordenação ambiental muito grave, prevista e punida pelos artigos 9.º, n.º 2, 23.º e 67.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 73/2011, de 17 de Junho, e 22.º, n.º 4, al. b), 23.º-A e 23.º-B, da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, alterando-se a decisão administrativa no que respeita à medida da coima, condenando-se a recorrente na coima de €12.000,00 (doze mil euros).
iii. Manter a condenação da recorrente ... pela prática de uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pelos artigos 111.º, n.º 2, alínea e), do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de Agosto, e 22.º, n.º 3, al. b), 23.º-A e 23.º-B da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, alterando-se a decisão administrativa no que respeita à medida da coima, condenando-se a recorrente na coima de €6.000,00 (seis mil euros).
iv. Em cúmulo jurídico, decide-se condenar a recorrente na coima única de €15.000,00 (quinze mil euros).
v. Condenar a recorrente no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs, devendo ser tidos em consideração (descontados) os valores da taxa de justiça já liquidados pela recorrente no âmbito do presente recurso de impugnação (artigos 92.º, 93.º, n.ºs 3 e 4, 94.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, e artigo 8.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais), as quais acrescem às custas do processo administrativo.
(…)
Inconformada, a requerida ... interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
(…)
A) O presente Recurso é interposto da sentença proferida pelo Juiz 2 do Juízo Local Criminal de Vila Franca de Xira do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, que julgou improcedente a caducidade do procedimento contra-ordenacional, que julgou improcedentes as nulidades alegadas pela Recorrente que determinavam a nulidade da decisão proferida pelo Exmo. Senhor Inspector-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território, e que julgou parcialmente procedente o Recurso de Impugnação apresentado pela Recorrente, condenando-a ao pagamento de uma coima única no montante de €15.000,00 (quinze mil euros), pela alegada prática das seguintes contra-ordenações: (i) Contra-ordenação muito grave, prevista e punida pelos artigos 9.º, n.º 2, 23.º e 67.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 73/2011, de 17 de Junho, e 22.º, n.º 4, alínea b), 23.º A e 23.º B da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto; e (ii) Contra-ordenação grave, prevista e punida pelos artigos 111.º, n.º 2, alínea e) do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de Agosto e 22.º, n.º 3 alínea b), 23.º-A e 23.º-B da Lei n.º 50/2006 de 29 de Agosto.
B) Salvo o devido respeito, o tribunal a quo interpretou erradamente o que se encontra estabelecido nos n.ºs 2 e 3 do artigo 48.º da LQCOA devendo o processo contra-ordenacional, em face da manifesta violação dos prazos de instrução estabelecidos naquelas disposições legais, ser declarado caducado.
C) O n.º 2 do artigo 48.º da LQCOA estabelece que “o prazo para a instrução é de 180 dias contados a partir da data de distribuição ao respectivo instrutor” e o n.º 3 do mesmo artigo 48.º da LQCOA dispõe que “se a instrução não puder ser concluída no prazo indicado no número anterior, a autoridade administrativa pode, sob proposta fundamentada do instrutor, prorrogar o prazo por um período até 120 dias” (sublinhados da Recorrente).
D) Através dos n.ºs 2 e 3 do artigo 48.º da LQCOA, o legislador – ao contrário do que definiu em outros regimes jurídicos contra-ordenacionais - estabeleceu um regime que não prevê a possibilidade de prorrogações sucessivas ad aeternum dos prazos estabelecidos para a instrução e, sobretudo, um regime no qual apenas se prevê um único período prorrogatório, de até 120 dias.
E) A Recorrente não ignora a jurisprudência relativa ao regime de contra-ordenações laborais que entende que o artigo 24.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, contém uma disposição sobre os prazos de cariz aceleratório, com vista a obrigar os instrutores a trabalharem de forma mais eficiente e célere e que a única cominação resultante do seu incumprimento seria uma infracção disciplinar dos próprios instrutores. Este entendimento fundamenta-se nessa disposição legal prever que os prazos para instrução podem ser sucessivamente prorrogados, por iguais períodos, tantas vezes quantas as vezes que o instrutor considere necessárias.
F) O que não acontece no regime aplicável às contra-ordenações ambientais e tipificado nos n.ºs 2 e 3 do artigo 48.º da LQCOA, uma vez que, contrariamente ao regime de contra-ordenações laborais, nestas disposições legais o legislador optou por dispor um prazo para instrução substancialmente superior, de 180 dias, estabelecendo-se, expressamente, que este apenas poderia ser prorrogado “por um período até 120 dias”.
G) Contrariamente ao regime de contra-ordenações laborais, o regime estabelecido nos artigos 48.º, n.ºs 2 e 3 da LQCOA não prevê a possibilidade de prorrogações sucessivas ad aeternum dos prazos estabelecidos para a instrução e, sobretudo, um regime no qual apenas se prevê um único período prorrogatório, de até 120 dias.
H) O regime expressamente estabelecido nos n.ºs 2 e 3 do artigo 48.º da LQCOA, justifica-se plenamente pela necessidade da protecção da tutela da confiança e do direito, constitucionalmente garantida, de que as decisões sejam tomadas em prazos razoáveis e mediante processos equitativos – cfr. n.º 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (adiante “CRP”) -, sob pena de inconstitucionalidade dos n.ºs 2 e 3 do artigo 48.º da LQCOA, que desde já se suscita.
I) Como é expressamente indicado na sentença recorrida, a Recorrente foi notificada para se pronunciar sobre o processo de contra-ordenação através da carta da IGAMAOT e recebida pela Recorrente em Maio de 2019, tendo apresentado a sua defesa escrita, junto da IGAMAOT, no dia 12 de Junho de 2019 (doravante “Defesa Escrita”) e só foi notificada da decisão proferida pela IGAMAOT – i.e. da Decisão Recorrida - em 4 de Janeiro de 2023. Ou seja, a Recorrente só foi notificada da Decisão Recorrida passados mais de três anos e meio desde que apresentou a sua defesa escrita.
J) Salvo o devido respeito, para além da clara violação da lei aplicável, não é admissível que num estado de direito, com uma política de Modernização do Estado e da Administração Pública, uma autoridade administrativa possa “manter na gaveta” um processo durante mais de três anos e meio, devendo tal processo em face da manifesta violação dos prazos de instrução estabelecidos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 48.º da LQCOA, ser declarado caducado, pelo que a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por douto Acórdão que julgue o recurso de impugnação procedente e que declare a caducidade do procedimento contra-ordenacional.
K) Caso se entenda que o procedimento não caducou – o que não se concede mas por mera cautela de patrocínio se pondera – a sentença recorrida deveria ter revogado a Decisão Recorrida (proferida pela IGAMAOT), por nulidade das provas recolhidas pela IGAMAOT e pela nulidade da Decisão Recorrida porque assente num auto de notícia nulo.
L) A sentença recorrida, na parte que condena a Recorrente na alegada prática de uma contra-ordenação muito grave, prevista e punida pelos artigos 9.º, n.º 2, 23.º e 67.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro e 22.º, n.º 4, alínea b), 23.º A e 23.º B da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto e de uma contraordenação grave, prevista e punida pelos artigos 111.º, n.º 2, alínea e) do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de Agosto e 22.º, n.º 3 alínea b), 23.º A e 23.º B da Lei n.º 50/2006 de 29 de Agosto, assenta em provas nulas, pois essas provas foram recolhidas em manifesta violação do princípio da autoincriminação.
M) A sentença recorrida fundamenta a improcedência da nulidade arguida a este respeito pela Recorrente no seu recurso de impugnação, alegadamente, porque «no caso vertente, toda a documentação que a IGAMAOT solicitou à recorrente e lhe foi entregue por esta, quer a tenha solicitado no âmbito da acção inspectiva ocorrida a 13/11/2018, quer a tenha solicitado posteriormente, na sequência de tal acção de inspecção, encontra-se abrangida pelo dever de cooperação que assiste ao operador económico, no âmbito do exercício de actividade sujeita a licenciamento, inclusivamente, ambiental, pelo que nenhum vício se verifica a este nível, e em particular, as proibições de prova estabelecidas no artigo 126.º, n.º 1, e n.º 2 al. a), do Código de Processo Penal».
N) Salvo o devido respeito, não está em causa, nem é disputada pela Recorrente, a possibilidade de realização de acções inspectivas por parte da IGAMAOT, nem o dever de cooperação dos operadores económicos expressamente estabelecida na lei aplicável. O que, na verdade, importava saber, para efeitos da nulidade das provas recolhidas pela IGAMAOT em que assentam a sua decisão, era se a informação recolhida em sede da acção inspectiva promovida pela IGAMAOT e, em especial, a informação recolhida posteriormente à realização da mesma inspecção poderia ser utilizada para, sem qualquer notificação prévia, condenar a Recorrente pela alegada prática de uma contra-ordenação, em claro prejuízo do princípios constitucionalmente consagrados da presunção de inocência e sobretudo da concretização deste no princípio da não auto-incriminação.
O) Como resulta dos factos provados, o presente processo de contra-ordenação decorre de uma acção de inspecção, realizada pela IGAMAOT, no dia 13 de Novembro de 2018, ao ASMC, que foi muito além do objectivo definido pela IGAMAOT de verificação do cumprimento da legislação ambiental, tendo incidido sobre a «verificação física das actividades desenvolvidas no estabelecimento, a prestação de esclarecimentos quanto ao funcionamento do estabelecimento, bem como a solicitação de documentação considerada necessária para análise posterior», que a sentença recorrida omite.
P) Como se demonstra no Relatório de Inspecção n.º 799/2018 e no Auto de Notícia n.º 447/2018, a IGAMAOT solicitou a disponibilização de toda a informação e de toda a documentação referente às instalações do Aterro Sanitário de … e à actividade no mesmo desenvolvida, na data da inspecção e posteriormente a essa data já sabendo que iria instaurar o presente procedimento contra-ordenacional, que foram de boa-fé facultadas pela Recorrente.
Q) Com base na informação e documentação fornecida pela Recorrente, que foi requerida pela IGAMAOT - na data da realização da acção inspectiva e posteriormente a essa data já sabendo que iria instaurar o presente procedimento contra-ordenacional -, a IGAMAOT instaurou o processo de contra-ordenação contra a Recorrente, sem que, contudo, em algum momento, tenha transmitido que a informação solicitada se destinaria ou poderia ser utilizada na condenação da Recorrente pela alegada prática de ilícito contra-ordenacional.
R) A IGAMAOT ao instaurar o presente processo de contra-ordenação com base na informação e documentação fornecida de boa-fé pela Recorrente, ao abrigo do seu dever de cooperação estabelecido no artigo 18.º da LQCOA, violou claramente os direitos fundamentais da Recorrente, em especial o direito à presunção da sua inocência até ao trânsito em julgado da Decisão Recorrida – manifestação do princípio “in dubio pro reo” – o direito ao silêncio e à não incriminação, previstos no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”), bem como o direito de defesa, previsto no artigo 20.º da CRP e no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
S) Por força do princípio da presunção de inocência – estabelecido no artigo 32.º, n.º 2 da CRP, no artigo 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no artigo 6.º, n.º 2 da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos e Liberdades Fundamentais – a IGAMAOT não podia servir-se das provas por si recolhidas através do cumprimento, pela Recorrente, do mencionado dever de colaboração, para instaurar um processo de contra-ordenação, sobretudo sem antes informar a Recorrente que a entrega dessas provas poderia conduzir à sua condenação em sede de responsabilidade contra-ordenacional.
T) Neste sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 4 de Dezembro de 2012, proferido no processo 594/11-5TAPDL-L1-5, disponível para consulta em www.dgsi.pt, onde se decidiu que: “Iº As garantias próprias do processo penal têm vindo a ser paulatinamente adquiridas pelo processo contra-ordenacional e pelo direito sancionatório em geral; IIº O princípio da não auto-incriminação surge como uma emanação do catálogo dos direitos de defesa consagrados para os ilícitos contra-ordenacionais no art.º 32, nº 10 da Constituição da República Portuguesa, devendo prevalecer sobre o direito de, as autoridades administrativas, utilizarem elementos fornecidos pelos arguidos; IIIº Não obstante o princípio nemo tenetur – seja na sua vertente de direito ao silêncio do arguido, seja na sua dimensão de “privilégio” do arguido contra uma auto-incriminação – não estar expressa e directamente plasmado no texto constitucional, a doutrina e a jurisprudência portuguesas são unânimes não só quanto à sua vigência no direito processual penal português, como quanto à sua natureza constitucional; IVº Quando os poderes de supervisão e de aplicação de coimas estão concentrados na mesma entidade, há que distinguir cada um deles, como forma de assegurar os direito constitucionalmente garantidos aos arguidos; Vº Tendo a companhia aérea em causa, agindo de boa fé e em cumprimento do disposto no Contrato de Concessão de Serviços Aéreos Regulares que havia celebrado com o Estado Português para determinada rota, apresentado o Relatório de Execução, não podia a entidade administrativa, com poderes de supervisão e de aplicação de coimas, instaurar processo de contra-ordenação contra a mesma, com base naquele relatório, sem que a advertência de tais elementos podiam servir para a instauração de um processo; VIº O princípio da transparência e o respeito pelos direitos da arguida exigiria que, no mínimo, a entidade administrativa referisse à arguida que os elementos que remeter podiam servir para a instauração de um processo de contraordenação; VIIº Ao instaurar o processo de contra-ordenação, com base naquele relatório e sem aquela advertência, a entidade administrativa, recolheu elementos de prova de forma ilegítima, desse modo suprimindo o direito à não auto-incriminação da arguida, violando o princípio da proporcionalidade (art.18, nº2 da C.R.P.), na sua vertente de necessidade, já que optou pelo meio de prova mais lesivo para os direitos fundamentais da arguida, sem curar de ponderar e optar por outros meios de obtenção de prova; VIIIº A utilização daqueles meios enganosos, através dos quais se obteve a prova junto da arguida, perturbou a liberdade de os seus representantes decidirem, pelo que são ofensivos da integridade moral das pessoas, sendo, por isso, nulas as provas consubstanciadas no Relatório de Execução, o que, de acordo com o entendimento dominante, na esteira da chamada teoria dos frutos da árvore envenenada, projecta-se à distância, abrangendo as outras provas posteriores que se referem aos mesmos factos”.
U) E nesse mesmo sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa, de 15 de Fevereiro de 2011, proferido no processo 3501/06.3TFLSB.L1-5, disponível para consulta em www.dgsi.pt, que decidiu que: «Iº Não obstante o princípio nemo tenetur – seja na sua vertente de direito ao silêncio do arguido, seja na sua dimensão de “privilégio” do arguido contra uma auto-incriminação – não estar expressa e directamente plasmado no texto constitucional, a doutrina e a jurisprudência portuguesas são unânimes não só quanto à vigência daquele princípio no direito processual penal português, como quanto à sua natureza constitucional; IIº As garantias próprias do processo penal têm vindo a ser paulativamente adquiridas pelo processo contra-ordenacional e pelo direito sancionatório em geral, o que é comprovado pelo art.º 32, nº 10, da Constituição da República Portuguesa; IIIº Determinando o art.41, nº 1, do RGCO, a aplicação subsidiária das normas do processo penal ao processo contra-ordenacional e sendo este estruturado em moldes idênticos ao processo crime, não existem razões para excluir, a vigência do direito ao silêncio e à não incriminação, do processo contra-ordenacional; IVº A partir do momento que adquirem notícia do ilícito contra-ordenacional, as autoridades administrativas, devem despir as vestes de Administração, substituindo-as pelas de Autoridade Administrativa com poderes sancionatórios, sendo também esse o momento a partir do qual vigoram as garantias processuais dos visados nos processos contra-ordenacionais; Vº No caso dos processos contra-ordenacionais investigados, instruídos e decididos pela Comissão do Mercado dos Valores Mobiliários, os interesses constitucionalmente protegidos, a saber: a incumbência do Estado promover o funcionamento eficiente dos mercados e a estruturação legal do sistema financeiro de modo a garantir a formação, captação e a segurança das poupanças, estão no mesmo plano constitucional que o direito à não incriminação, com o qual conflituam no caso concreto; VIº Tendo a CMVM pedido elementos e informações “no exercício da supervisão” e tendo usado os mesmos para instruir o processo contra-ordenacional, recorreu a “meios enganosos” para instruir, investigar e decidir o processo, traduzindo-se a supressão do direito à não incriminação da arguida numa violação do princípio da proporcionalidade, na sua vertente de necessidade, na medida em que aquela autoridade administrativa optou pelo meio de prova mais lesivo para os direitos fundamentais da arguida, sem curar de ponderar por outros meios de obtenção de prova (…)».
V) No caso sub judice, os elementos documentais, bem como as informações e esclarecimentos prestados pela Recorrente, através de seus representantes, em especial os requeridos pela IGAMAOT em data posterior à data da realização da acção inspectiva (e destinados a instruir o processo de contra-ordenação em apreço), foram obtidos sem que lhe tivesse sido comunicada a intenção de a IGAMAOT instaurar um processo de contra-ordenação, estando a Recorrente convencida de que os documentos e informações solicitados pela IGAMAOT se destinariam somente ao exercício dos seus poderes de inspecção, no âmbito dos quais a Recorrente estava obrigada a prestar toda a colaboração solicitada,
W) Naturalmente que a utilização do dever de colaboração da Recorrente com a IGAMAOT para obter provas incriminatórias junto da própria Recorrente, perturbou a liberdade de os seus representantes decidirem, pelo que são ofensivas da integridade moral, sendo tais provas, nos termos do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 126.º do CPP e do artigo 32.º, n.º 2 e n.º 8 da CRP, nulas. X) Por outro lado, a sentença recorrida na parte que condena a Recorrente na alegada prática das duas supra citadas contra-ordenações é, igualmente, nula porque assenta num auto de notícia nulo.
Y) Como é reconhecido na sentença recorrida, o Auto de Notícia n.º 447/2018 – que veio dar origem à instauração do presente processo de contra-ordenação – não contém alguns dos elementos exigidos, nos termos do artigo 46.º, n.º 1 da LQCOA, nomeadamente: (i) a identificação e residência dos Administradores da Recorrente (sendo somente indicada a identificação de um administrador), nem (ii) a residência da testemunha, nem (iii) a categoria do autuante. Acontece que, sem prejuízo desse reconhecimento, a sentença recorrida considerou improcedente a nulidade arguida pela Recorrente a este respeito, alegadamente, porque na letra do artigo 46.º, n.º 1 da LQCOA “não estabelece a obrigatoriedade absoluta de tais elementos figurarem no auto de notícia, prevendo que o auto de notícia ou a participação devem mencionar tais elementos “sempre que possível”.
Z) Salvo o devido respeito, o tribunal a quo interpretou erradamente o que se encontra estabelecido no artigo 46.º da LQCOA. Naturalmente que a expressão “sempre que possível” constante do artigo 46.º da LQCOA deverá ser interpretada no sentido de poderem não ser mencionados os elementos exigidos nessa disposição quando os mesmos, no momento em que é lavrado o auto de notícia, não sejam conhecidos ou não sejam possível conhecer. O que não aconteceu nos presentes autos, pois é evidente que o autuante conheceria a sua categoria, bem como conheceria a residência da testemunha (ou poderia questionar a testemunha sobre qual a sua residência), bem como conhecia a identificação e residência dos Administradores da Recorrente, pois foi-lhe facultada cópia da certidão permanente do registo comercial da Recorrente.
AA) A falta de indicação no auto de notícia da identificação e residência dos Administradores da Recorrente, da residência da testemunha e da categoria do autuante impediram a Recorrente de exercer devidamente o seu direito de defesa, sobre estes aspectos – e continuam a impedir -, pois até ao presente momento, a Recorrente desconhece esses elementos que deveriam, nos termos da lei, constar do auto de notícia. Nomeadamente, a Recorrente viu-se impedida de exercer devidamente o seu direito de defesa quanto ao regime de responsabilidade dos administradores previsto no artigo 8.º da LQCOA, pois impediu-a de conhecer quais os eventuais administradores que seriam identificados no auto de notícia; ou quanto à categoria do autuante averiguar se o mesmo teria poderes para proceder à acção inspectiva e para lavrar o auto de notícia.
BB) A obrigação legal do serem mencionados tais elementos no auto de noticia decorre de ser este documento que impulsiona a instauração do processo de contra-ordenação, sendo fundamental que do mesmo constem todos os elementos enunciados no artigo 46.º, n.º 1 da LQCOA, na medida em que são esses elementos que enformam a “acusação” que será posteriormente formulada pela entidade administrativa contra o alegado infractor, configurando a nulidade prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 120.º do CCP e não uma mera irregularidade prevista no artigo 118.º, n.º 2 do CCP, conforme é defendido na sentença recorrida.
CC) A Decisão Recorrida é também nula porque do Auto de Notícia n.º 447/2018 não conta qualquer elemento/facto/documento atinente ao “animus” das intenções supostamente praticadas pela Recorrente, pelo que nunca poderia a IGAMAOT ter concluído em sentido inverso, já que é com base nos factos descritos naquele documento que aquela autoridade administrativa estava obrigada a tomar uma decisão, fosse a mesma de condenação ou de absolvição. Nem se diga que a conclusão da IGAMAOT teve como base outros elementos para além daqueles que constavam do referido Auto de Notícia n.º 447/2018, na medida em que dos elementos adicionais considerados pela Decisão Recorrida não consta qualquer facto/elemento/documento que permita concluir que a Recorrente agiu com culpa.
DD) Neste contexto, forçoso será concluir que a Recorrente nunca poderia ser responsabilizada pela prática das infracções que ora lhe são imputadas, porquanto do auto de notícia não resultam factos que apontem inquestionavelmente para a sua culpa, elemento este que sempre seria essencial para a sua condenação.
EE) À semelhança do que ocorre com os elementos objectivos do tipo, os elementos subjectivos do tipo têm de se traduzir em factos concreto reais, para que o Tribunal em sede de apreciação de requerimento de impugnação judicial possa igualmente sindicar. O que não sucedeu. Consequentemente, deverá ser declarada a nulidade do Auto de Notícia n.º 447/2018 e da Decisão Recorrida, por violação do artigo 58.º, n.º 1, alínea c) do RGCO e dos artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a), ambos do CPP, aplicáveis ex vi artigo 41.º do RGCO.
FF) Caso se entenda que o procedimento não caducou e/ou que a Decisão Recorrida não é nula com os fundamentos indicados supra – o que não se concede mas por mera cautela de patrocínio se pondera – sempre se dirá que a sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por douto Acórdão que julgue o recurso de impugnação procedente e que declare a absolvição da Recorrente da alegada prática de uma contra-ordenação muito grave, prevista e punida pelos artigos 9.º, n.º 2, 23.º e 67.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei 178/2006, de 5 de Setembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 73/2011, e 22.º, n.º 4, alínea b), 23.º A e 23.º B da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto (alegada falta de licença para a actividade de tratamento e valorização de escórias) e de uma contra-ordenação grave, prevista e punida pelos artigos 111.º, n.º 2, alínea e) do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de Agosto e 22.º, n.º 3 alínea b), 23.º A e 23.º B da Lei n.º 50/2006 de 29 de Agosto (alegado incumprimento da licença ambiental).
GG) Quanto à alegada falta de licença para a actividade de tratamento e valorização de escórias, a Recorrente alegou no seu recurso de impugnação – nomeadamente, nos pontos 142, 143, 146, 147, 153, 154, 184 e nas conclusões II, JJ e CCC - que, tendo solicitado à CCDR-LVT a renovação do alvará de licença n.º 005/2010, em 17 de Março de 2015, antes da data do indeferimento desse pedido pela CCDR-LVT – i.e. 23 de Dezembro de 2015 -, já há muito tinha sido ultrapassado o prazo de 90 dias previsto na lei aplicável – i.e. o artigo 108.º do CPA, na redacção aplicável à data da prática dos factos – para o deferimento tácito desse pedido de renovação do alvará de licença, pelo que, naturalmente, antes da data da realização da acção inspectiva pela IGAMAOT, a Recorrente era substancialmente detentora de licença para a actividade de tratamento e valorização de escórias.
HH) Apesar da particular relevância da questão jurídica relativa ao deferimento tácito do alvará de licença em causa ter sido alegada pela Recorrente, a sentença recorrida não se pronuncia sobre esta questão, nem sobre a mesma retira os respectivos efeitos jurídicos, pelo que, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do CCP, a sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia.
II) Neste mesmo sentido decidiu o Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 21 de Dezembro de 2023, no processo 3501/06.3TFLSB.L1 – i.e. outro processo de contra-ordenação instaurado pela IGAMAOT contra a Recorrente, sobre a alegada falta da mesma licença em 2017 -, defendendo, nomeadamente, que: «Do conjunto do que vimos de expor decorre que a decisão recorrida não apreciou a questão do deferimento tácito. É certo que deu como provada alguma factualidade que tem interesse na apreciação jurídica da matéria, nos termos que se deixaram assinalados; mas essa apreciação jurídica não existiu. O que está em debate, em apertada síntese, é saber se a Arguida estava ou não juridicamente autorizada, à data da inspeção, para desenvolver a atividade de tratamento de resíduos, e sobre este ponto a defesa invocada pela Arguida tem por argumento crucial a invocação do deferimento tácito. Concluir pela ausência de semelhante autorização sem uma palavra de justificação jurídica sobre a não valia do deferimento tácito, como o faz o tribunal a quo, fragiliza a decisão a um ponto que na verdade não pode aceitar-se, à luz das razões que atrás enunciámos como subjacentes à exigência de fundamentação das sentenças. Assim é que, nesta parte, julgar-se-á nula a decisão recorrida e reenviar-se-ão os autos à primeira instância para nova decisão, que aprecie as questões suscitadas pela Arguida a respeito do invocado deferimento tácito e proceda a novo enquadramento jurídico dos factos correspondentes [cfr. art.º 75º, nº 2, alínea b) do RGCO e os arts. 374º, nº 2, 379º, nºs 1, alínea c) e 3 e 410º, nº 3, do CPP, aplicáveis por via do art.º 41º, nº 1 do RGCO] (…)» (destaques e sublinhados da Recorrente) (Doc. n.º 1). JJ) Caso não se julgue nula a sentença recorrida, por omissão de pronúncia – o que não se concede mas por mera cautela de patrocínio se pondera -, sempre se dirá que ao pedido de renovação do alvará de licença n.º 005/2010, apresentado pela Recorrente à CCDR_LVT, em 17 de Março de 2015, é aplicável o CPA (na redacção aplicável a essa data, ou seja o Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 6/96, de 31 de Dezembro e pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de Janeiro), que, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 108.º do CPA (na redacção aplicável à data de apresentação do pedido de renovação do alvará de licença n.º 005/2010) estabelece que: “1 - Quando a prática de um acto administrativo ou o exercício de um direito por um particular dependam de aprovação ou autorização de um órgão administrativo, consideram-se estas concedidas, salvo disposição em contrário, se a decisão não for proferida no prazo estabelecido por lei. 2 - Quando a lei não fixar prazo especial, o prazo de produção do deferimento tácito será de 90 dias a contar da formulação do pedido ou da apresentação do processo para esse efeito”.
KK) Dos Factos Provados da sentença recorrida, resulta que a Recorrente apresentou o pedido de renovação do alvará de licença n.º 005/2010, em 17 de Março de 2015, e que a CCDR-LVT somente informou a Recorrente da decisão de indeferimento desse pedido, em 23 de Dezembro de 2015. Ou seja, a CCDRLVT não comunicou à Recorrente a sua decisão sobre o pedido de renovação do alvará de licença n.º 005/2010 no prazo de 90 dias após a sua apresentação, pelo que o mesmo foi tacitamente deferido, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 108.º do CPA, no dia 24 de Julho de 2015 (i.e. 90 dias úteis).
LL) Ora, tendo ocorrido o deferimento tácito do pedido de renovação do alvará de licença n.º 005/2010, para que cessassem os efeitos desse acto de deferimento tácito mostrar-se-ia necessário, nos termos da lei aplicável – cfr. artigo 138.º e ss. do CPA, na redacção aplicável à data -, que a CCRD-LVT tomasse uma decisão de revogação do acto de deferimento tácito.
MM) Conforme se esclarece no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 15/01/2015, proc. n.º 11726/14, disponível para consulta em www.dgsi.pt: “A revogação é o acto administrativo pelo qual a Administração destrói (revogação anulatória/revogação de actos inválidos (5)) ou faz cessar (revogação em sentido estrito (6)) os efeitos jurídicos de um acto administrativo anterior (neste sentido, cfr. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, 10ª ed., 7ª reimpressão, 2001, págs. 531 e 532; Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, Código de Procedimento Administrativo Comentado, 2ª Edição, 2003, pág. 667)”.
NN) A decisão de indeferimento do pedido de renovação do alvará de licença n.º 005/2010, tomada pela CCDR-LVT, em 23 de Dezembro de 2015, não corresponde a uma revogação expressa do acto de deferimento tácito, nem tão pouco alude à verificação da existência do acto de deferimento tácito do pedido de renovação do alvará de licença n.º 005/2010.
OO) Concedendo-se, hipoteticamente, que o acto da CCDR-LVT quanto ao indeferimento do pedido de renovação do alvará de licença n.º 005/2010, informado à Recorrente em 23 de Dezembro de 2015, poderia ser entendido como um acto revogatório implícito do acto de deferimento tácito do pedido de renovação do alvará de licença n.º 005/2010, o mesmo deveria ter respeitado a lei aplicável. O que não aconteceu.
PP) Com efeito, nos termos do n.º 1 do artigo 141.º do CPA (na redacção aplicável à data do procedimento em curso), “os actos administrativos que sejam inválidos só podem ser revogados com fundamento na sua invalidade e dentro do prazo do respectivo recurso contencioso (…)”.
QQ) Nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 58.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (“CPTA”), o prazo geral de recurso contencioso é de 3 meses.
RR) Consequentemente, nos termos conjugados do n.º 1 do artigo 141.º do CPA e da alínea b) do n.º 2 do artigo 58.º do CPTA, a revogação implícita do deferimento tácito pela CCDR-LVT deveria ter sido efectuada até ao dia 24 de Outubro de 2015 – i.e. até três meses após a formação do acto tácito de deferimento.
SS) Tendo a CCDR-LVT tomado a decisão de indeferimento do pedido de renovação do alvará de licença n.º 005/2010, em 23 de Dezembro de 2015, a mesma é manifestamente extemporânea, em violação do n.º 1 do citado artigo 141.º do CPA, e, assim, não constitui um acto de revogação implícita do acto de deferimento tácito do pedido de renovação do alvará de licença n.º 005/2010, mantendo-se na ordem jurídica o acto de deferimento tácito desse pedido.
TT) Neste sentido, se pronunciou pacificamente a jurisprudência. Por exemplo, num caso em tudo semelhante ao presente, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/06/2013, proc. n.º 351/11.9TBGMR-B.G1, disponível para consulta em www.dgsi.pt, que no sumário refere que: “1 – O facto de existir um prazo a partir do qual se presume o deferimento tácito da pretensão formulada, não obsta a que, posteriormente, a competente entidade aprecie e indefira a referida pretensão expressamente, porquanto pode ser revogado o acto de deferimento tácito com fundamento na sua ilegalidade. 2 – Mas a revogação dos actos administrativos, ainda que tácitos, só pode ocorrer dentro do prazo do respetivo recurso contencioso, sendo que tal prazo geral de recurso é de três meses”.
UU) Pelo exposto, à data da realização da acção inspectiva da IGAMAOT, a Recorrente era substancialmente detentora de licença para a actividade de tratamento e valorização de escórias, por deferimento tácito do pedido de renovação do alvará de licença n.º 005/2010 por si apresentado.
VV) Sem prejuízo de a decisão da CCDR_LVT de indeferimento do pedido de renovação do alvará de licença n.º 005/2010, de 23/12/2015, não revogar o acto de deferimento tácito, a sentença recorrida enferma também em manifesto erro de interpretação e de aplicação da lei e em erro notório na apreciação da prova, que deverá ser apreciado, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea c) do CCP.
WW) A sentença recorrida considerou que a Recorrente não apresentou o pedido de renovação do alvará de licença n.º 005/2010 com uma antecedência de 120 dias, não actuando de forma diligente. O que não se verificou, pois a Recorrente em nada contribuiu para o manifesto atraso na tomada de decisão por parte da CCDR-LVT, que só o fez mais de 9 meses depois do pedido apresentado e fundamentado em razões da sua inteira responsabilidade – alegada incompatibilidade da localização da instalação com instrumentos de gestão territorial -, que nunca antes tinha transmitido à Recorrente, como foi demonstrado claramente nos depoimentos das testemunhas AA e BB, mas é totalmente omitido na sentença recorrida.
XX) A Recorrente sempre actuou diligentemente, tendo acompanhado junto da CCDR-LVT a evolução do processo, numa postura totalmente colaborativa, mesmo verificando-se o deferimento tácito da licença, pelo que, como resulta da matéria provada e da experiência comum, a existir negligência, a mesma só poderá ser imputada à CCDR-LVT que não cumpriu os prazos legais estabelecidos para uma resposta expressa (no prazo de 90 dias) ao pedido de renovação do alvará de licença.
YY) Como resulta da experiência comum, o alegado atraso na apresentação do pedido renovação do alvará de licença n.º 005/2010, em 17 de Março de 2015, em nenhuma circunstância, poderia estar relacionado ou influir com a alegada falta de licença para a actividade de tratamento e valorização de escórias na data de realização da acção inspectiva.
ZZ) Relativamente ao alegado incumprimento da Licença Ambiental, salvo o devido respeito, o tribunal a quo interpretou e aplicou erradamente a lei aplicável e as regras e condições constantes da Licença Ambiental, da autorização de descarga emitida pelos SMAS de Vila Franca de Xira (“Autorização de Descarga”) e do Regulamento de Descarga.
AAA) A respeito dos “pontos de emissão”, a Licença Ambiental define no quadro 12 do ponto 2.2.2.2 quais os “pontos de descarga de águas residuais e pluviais para águas de superfície” e estabelece que “a monitorização e as análises das águas residuais, após o pré-tratamento na ETAL e encaminhadas para o ponto de descarga ED1 e ED2 devem ser realizadas de acordo com o especificado na Autorização dos SMAS de Vila Franca de Xira”.
BBB) Por força do quadro 12 do ponto 2.2.2.2 da Licença Ambiental a Recorrente deverá realizar a monitorização e as análises das águas residuais de acordo com a autorização de descarga. Ou seja, por força do quadro 12 do ponto 2.2.2.2 da Licença Ambiental, a Recorrente deverá realizar a monitorização e as análises das águas residuais de acordo com as condições previstas no ponto 4 da Autorização de Descarga, que define quais os parâmetros a controlar e a frequência da monitorização. O que foi feito pela Recorrente.
CCC) Se em resultado de algumas das monitorizações realizadas, foram, pontualmente, ultrapassados VLE’s previstos para alguns parâmetros no Regulamento de Descarga, tal não significa que a monitorização não tenha sido feita de acordo com a autorização da descarga, nem tão pouco que tenha sido incumprido o ponto 2.2.2.2 da Licença Ambiental.
DDD) Consequentemente, a Recorrente realizou a monitorização e as análises das águas residuais, após o pré-tratamento na ETAL e encaminhadas para o ponto de descarga ED1 e ED2 devem ser realizadas de acordo com o especificado na Autorização dos SMAS de Vila Franca de Xira, conforme definido no quadro 12 do ponto 2.2.2.2 da Licença Ambiental, pelo que carece de qualquer fundamento e viola o princípio da legalidade e da tipicidade a fundamentação da sentença recorrida de que se verificou um incumprimento do ponto 2.2.2.2 da Licença Ambiental.
EEE) Por outro lado, o n.º 3 da Licença Ambiental estabelece que “caso ocorra um acidente, incidente ou incumprimento da LA, nomeadamente das situações tipificadas no Quadro 12, o operador deverá: a) informar a EC, a APA IP e a CCDR no prazo máximo de 48 horas.
FFF) Assim, caberá verificar se «não tendo a recorrente comunicado a ultrapassagem dos VLEs descritos em 10., à Entidade Coordenadora, à APA e à CCDR no prazo de 48 horas após o seu conhecimento» essa conduta constitui, como é defendido na sentença recorrida, uma contra-ordenação grave estabelecida na alínea e) do n.º 2 do artigo 111.º do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de Agosto.
GGG) Nos termos da alínea e) do n.º 2 do artigo 111.º do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de Agosto, constitui contra-ordenação grave «a construção, alteração ou laboração de uma instalações que explora uma ou mais actividades constantes do anexo I com inobservância das condições fixadas na LA».
HHH) Atendo o disposto na alínea e) do n.º 2 do artigo 111.º do Decreto-Lei n.º127/2013, de 30 de Agosto, naturalmente que a contra-ordenação grave prevista nesta disposição não se aplica a todas e quaisquer condições estabelecidas na Licença Ambiental, mas sim àquelas que digam respeito às condições operacionais da instalação, de modo a que seja atingido o objectivo da Licença Ambiental.
III) A ultrapassagem de VLE’s não se enquadra nas condições operacionais da instalação, mas sim nas condições de funcionamento da instalação, pelo que a falta de comunicação da ultrapassagem dos VLE’s às autoridades competentes, no prazo de 48 horas, não tipifica a contra-ordenação grave estabelecida na alínea e) do n.º 2 do artigo 111.º do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de Agosto.
JJJ) Neste mesmo sentido decidiu o citado douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido em 21 de Dezembro de 2023, no processo 3501/06.3TFLSB.L1, 9.ª Secção (Doc. 1), ao julgar o seguinte: «De acordo com a lógica subjacente à decisão recorrida, a comunicação às entidades competentes da ultrapassagem dos valores limite de emissão no prazo máximo de 48 horas é uma das «condições fixadas na LA»; e estando o estabelecimento da Arguida em «laboração», ter-se-á concluído que se estava em presença de um caso de «laboração (…) com inobservância das condições fixadas na LA». Daqui decorre, se bem vemos as coisas, que a linha interpretativa seguida pelo tribunal a quo é a de que estaremos potencialmente perante esta contraordenação sempre que o estabelecimento laborar com violação de qualquer dos deveres previstos na licença ambiental. Estamos em crer que essa abordagem não é a mais acertada. Expliquemos porquê. A contraordenação não pode estar prevista na licença ambiental; a contraordenação tem que estar prevista em lei, visto que vigora (também) na área contraordenacional o princípio da legalidade, como se encontra abertamente plasmado no art.º 1º do RGCO e, especificamente na área de que cuidamos, no art.º 3º da Lei nº 50/2006, de 29/08. É bem conhecido, todavia, não o ignoremos, o fenómeno das normas penais em branco. Do que se trata é de normas que não preveem com exatidão o comportamento que é proibido ou imposto e que o fazem por reenvio para uma outra disposição legal [Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Parte Geral, Introdução e Teoria da Lei Penal, Verbo (2001), pgs. 234-235]. Se essa técnica legislativa, em si mesma, passa o crivo constitucional quanto ao direito penal, nenhuma razão há para que deva ser recusada no direito contraordenacional e até seja aqui aplicado com uma flexibilidade adicional, como tem sido amplamente reconhecido, por menores serem as exigências nesta área do princípio da legalidade e do seu corolário da tipicidade. Ponto é: que a norma do direito de mera ordenação social garanta um mínimo de determinabilidade e que o elemento mutável do tipo de ilícito esteja diretamente dependente de critérios de natureza técnica (cfr. Acs. do TC nºs 353/2021, 78/2013, 635/2011, 299/92, 427/95, 534/98 e 115/08). Em suma, a norma do direito de mera ordenação social tem que configurar o essencial do conteúdo do ilícito, de forma a que se compreendam os bens jurídicos em causa e o tipo de factos lesivos dos mesmos que se pretende evitar e que a norma densificadora, que não tem que revestir a natureza de lei, podendo traduzir-se num ato administrativo, se inscreva no círculo de ilicitude para que aponta a norma sancionatória em branco (cfr. ainda o Ac. do TC nº 41/2004 e o Ac. da RE de 11.07.2013, relatado por João Gomes de Sousa). Ora, a seguir-se a linha interpretativa do tribunal a quo que atrás deixámos enunciada, isto é, a entender-se que a violação de qualquer dos deveres previsto na licença ambiental implica o preenchimento da contraordenação em presença, afigura-se-nos que estaria a ser trilhado um caminho problemático do ponto de vista da legalidade e da tipicidade, mesmo admitindo o menor peso destas no campo das contraordenações – é que a licença ambiental é objetivamente extensa, posto que composta por 26 páginas e contém múltiplos deveres a observar pela Arguida em diferentes áreas tocadas pela atividade tida em vista. Estamos em crer que uma interpretação da norma sancionatória em conformidade com o princípio da legalidade exige uma abordagem de alcance mais limitado. Recorde-se o conceito de «licença ambiental» plasmado no art.º 3º, alínea ii) do D.L. nº 127/2013, de 30/08: «[a] decisão que visa garantir a prevenção e o controlo integrados da poluição proveniente das instalações que desenvolvem uma ou mais atividades constantes do anexo I, estabelecendo as medidas destinadas a evitar, ou se tal não for possível, a reduzir as emissões para o ar, água e solo, a produção de resíduos e a poluição sonora, constituindo condição necessária da exploração dessas instalações». A licença ambiental tem assim um objetivo («garantir a prevenção e o controlo integrados da poluição proveniente das instalações»); e implementa o caminho para o atingir («estabelecendo as medidas destinadas a evitar, ou se tal não for possível, a reduzir as emissões para o ar, água e solo, a produção de resíduos e a poluição sonora»). Por outro lado, diz-nos a norma contraordenacional prevista no artigo 111º, nº 2, alínea e) do Decreto Lei 127/2013, de 30/08, que o que se pune é «a construção, alteração ou laboração de uma instalação que explore uma ou mais atividades constantes do anexo I com inobservância das condições fixadas na LA». Ora, quando aqui vemos referido «a construção, alteração ou laboração de uma instalação», estamos em crer que aquilo a que o legislador pretende aludir é às condições operacionais de base do estabelecimento, que a licença ambiental toca, nomeadamente em tudo quanto respeite à sua localização, ao tipo de atividades desenvolvidas e às suas condições técnicas operacionais, nomeadamente, quanto a estas, às capacidades instaladas e aos sistemas de monitorização criados, isto é, do que se trata, fazendo a associação com a própria definição legal de licença ambiental, é da garantia de que o estabelecimento esteja construído e funcione em ordem a evitar ou, não sendo isso possível, reduzir, as emissões. O dever de informar as entidades competentes da ultrapassagem dos valores limite de emissão é algo que releva já da dinâmica regular de funcionamento do estabelecimento que é exterior a todo aquele quadro logístico e operacional de base, surgindo em relação a este como algo de complementar ou acessório. Se bem vemos as coisas, o incumprimento da licença em matéria de valores limite de emissão, em si mesmo, é que poderia traduzir-se na «laboração» com objetiva inobservância das «condições fixadas na licença ambiental»; já não o incumprimento do dever de o comunicar. De resto, estamos em crer que quando o legislador pretende sancionar a título de contraordenação o incumprimento do dever de comunicação de um incidente em matéria ambiental, di-lo expressamente: vejam-se os casos previstos no art.º 26º, nºs 1, alínea e), 2, alíneas h) e i) e 3, alínea a) do D.L. nº 147/2008, de 29/07. Em suma, entendemos que não se encontra verificado o tipo de ilícito em apreço.»
KKK) Pelo exposto, não se verificando o preenchimento do tipo objectivo, nem subjectivo, da infração deverá ser revogada a sentença em crise, com a consequente absolvição da Recorrente da alegada prática de uma contraordenação grave, prevista e punida pelos 111.º, n.º 2, alínea e) do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de Agosto e 22.º, n.º 3 alínea b), 23.º A e 23.º B da Lei n.º 50/2006 de 29 de Agosto.
Termos em que, deve o recurso interposto ser julgado procedente e, em consequência, ser a sentença recorrida ser revogada e substituída por Douto Acórdão que:
a) Declare a caducidade do procedimento contra-ordenacional, devendo a Recorrente ser absolvida da coima única aplicada e o processo julgado extinto e arquivado; Ainda que assim não se entenda, o que não se concede, mas se pondera,
b) Declare a nulidade das provas recolhidas pela IGAMAOT, devendo a Recorrente ser absolvida da coima única aplicada e o processo julgado extinto e arquivado; Ainda que assim não se entenda, o que não se concede, mas se pondera,
c) Declare a nulidade da Decisão Recorrida porque assente num auto de notícia nulo, devendo a Recorrente ser absolvida da coima única aplicada e o processo julgado extinto e arquivado; Ainda que assim não se entenda, o que não se concede, mas se pondera,
d) Declare a absolvição da Recorrente da alegada prática de uma contra-ordenação muito grave, prevista e punida pelos artigos 9.º, n.º 2, 23.º e 67.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei 178/2006, de 5 de Setembro e 22.º, n.º 4, alínea b), 23.º A e 23.º B da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto e de uma contra-ordenação grave, prevista e punida pelos artigos 111.º, n.º 2, alínea e) do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de Agosto e 22.º, n.º 3 alínea b), 23.º A e 23.º B da Lei n.º 50/2006 de 29 de Agosto a absolvição da Recorrente da coima única aplicada.
(…)
O Ministério Público na primeira instância respondeu ao recurso, sem formular conclusões, concluindo pela improcedência do recurso.
***
O recurso foi admitido, com tempo, modo e efeitos correctamente fixados.
Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto limitou-se a colocar o seu Visto.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a Conferência.
***
Objecto do recurso
Resulta do disposto conjugadamente nos arts. 402º, 403º e 412º nº 1 do Cód. Proc. Penal que o poder de cognição do Tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o Tribunal está ainda obrigado a decidir todas as questões que sejam de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem a decisão, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 daquele diploma, e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do mesmo Cód. Proc. Penal, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito, tal como se assentou no Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995 [DR, Iª Série - A de 28.12.1995] e no Acórdão para Uniformização de Jurisprudência nº 10/2005, de 20.10.2005 [DR, Iª Série - A de 07.12.2005].
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º, por remissão do art.º 424º, nº 2, ambos do mesmo Cód. Proc. Penal, resulta ainda que o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão (art.º 379º do citado diploma legal);
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela chamada impugnação alargada, se deduzida [art.º 412º], a que se segue o conhecimento dos vícios enumerados no art.º 410º nº 2 sempre do mesmo diploma legal.
Finalmente, as questões relativas à matéria de direito.
A recorrente, nas conclusões do recurso, fixa o objecto de apreciação requerida nas seguintes questões:
I. a caducidade do procedimento contraordenacional
II. a nulidade da decisão recorrida porque assente em prova nula
III. a nulidade do auto de notícia
IV. a nulidade do auto de notícia e da decisão recorrida
V. a nulidade da decisão por omissão de pronúncia
VI. errada interpretação feita pelo tribunal a quo que aplicou erradamente a lei e as regras e condições constantes da Licença Ambiental, da autorização de descarga emitida pelos SMAS de Vila Franca de Xira (“Autorização de Descarga”) e do Regulamento de Descarga
***
Fundamentação
O Tribunal recorrido limitou a decisão ao objecto do recurso, como devia, com isso, fixando a seguinte matéria de facto:
(…)
1. No dia 13/11/2018, pelas 11h, a IGAMAOT efectuou uma acção de inspecção no «Aterro Sanitário de …» (AS…), sito em ..., na freguesia de ..., concelho de …, estabelecimento pertencente à ..., de que CC era Presidente do Conselho de Administração, tendo DD, responsável técnica do aterro, acompanhado a acção inspectiva.
2. O referido Aterro encontrava-se em laboração, desenvolvendo a actividade de deposição de resíduos não perigosos em aterro e de tratamento e valorização de escórias, sendo a arguida titular da Licença Ambiental (LA) n.º 620/1.0/2016, emitida pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) em 27 de Junho, válida até 27/06/2026, para as actividades de deposição de resíduos em aterro e tratamento e valorização de escórias.
3. Ao abrigo da LA n.º 620/1.0/2016 (ponto 2. Condições operacionais de exploração §2.º) “O operador deverá cumprir com as condições gerais e específicas estabelecidas nos Alvarás de licenças das seguintes operações: Deposição de resíduos em aterro e; Tratamento e valorização de escórias”.
4. Entre o período de 01/01/2017 e 13/11/2018 a arguida não detinha licença válida para a actividade de deposição de resíduos não perigosos em aterro e para a actividade de tratamento e valorização de escórias.
5. A arguida era titular do Alvará de licença para a realização de operações de gestão de resíduos n.º 83/2010/CCDR-LVT, emitido em 02/11/2010 e válido até 19/03/2013, e efectuou um pedido de renovação do Alvará de licença de operações de gestão de resíduos, enviado à entidade licenciadora através do ofício com a Ref.ª E-2012/1534, de 19/11/2012, bem como o comprovativo de pagamento do mesmo em 28/09/2018.
6. A renovação do Alvará de licença para a realização de operações de gestão de resíduos não foi emitida até à data da acção de inspecção.
7. A arguida efectuou o pedido de renovação do alvará de licença de operações de gestão de resíduos (Alvará de licença n.º 05/2010/CCDR-LVT, emitido em 13/01/2010 e válido até 07/04/2015), submetido no Sistema Integrado de Licenciamento do Ambiente (SILiAmb) em 23/10/2018, com a Ref.ª PL20180921003226, o documento único de cobrança com a Ref.ª ..., emitido em 23/10/2018 pela APA, bem como o comprovativo de pagamento do mesmo em 29/10/2018, sendo que a renovação do Alvará em apreço não foi emitida até à data da acção de inspecção.
8. Do normal funcionamento do estabelecimento da arguida são produzidos efluentes que incluem, nomeadamente, os lixiviados provenientes das seis células que constituem o aterro e as águas residuais resultantes da ITVE. Após pré-tratamento dos efluentes produzidos no estabelecimento na Estação de Tratamento de Águas Lixiviantes (ETAL) existente no mesmo, é realizada a sua descarga no sistema de drenagem municipal dos Serviços Municipalizados de Água e Saneamento (SMAS) de Vila Franca de Xira, no ponto ED1, sendo o receptor deste efluente a Estação de Tratamento de Águas Residuais (ETAR) de ..., detendo a arguida para o efeito a Autorização de descarga n.º AT-0008/2016, emitida em 22/12/2016 e válida até 31/12/2018.
9. A IGAMAOT analisou os seguintes Relatórios de Ensaio (RE) emitidos pelo Laboratório da SUMA (laboratório acreditado pelo Instituto Português da Acreditação com o Certificado n.º L0335), no que se refere ao controlo efectuado ao efluente descarregado:
i) RE n.º 1713853, emitido em 11/08/2018 e relativo à colheita de amostra realizada em 05/07/2017;
ii) RE n.º 1801340, emitido em 15/03/2018 e relativo à colheita de amostra realizada em 25/01/2018;
iii) RE n.º 1804567, emitido em 10/04/2018 e relativo à colheita de amostra realizada em 22/03/2018;
iv) RE n.º 1805711, emitido em 25/05/2018 e relativo à colheita de amostra realizada em 12/04/2018;
v) RE n.º 1808743, emitido em 14/06/2018 e relativo à colheita de amostra realizada em 30/05/2018; e
vi) RE n.º 1811888, emitido em 30/08/2018 e relativo à colheita de amostra realizada em 19/07/2018.
10. Dessa análise verificou-se que foram ultrapassados os VLE estabelecidos na mencionada Autorização de descarga, relativamente aos seguintes parâmetros:
- Sólidos suspensos totais: em 05/07/2017 o valor de 1920 mg/l, sendo o VLE de 1000 mg/l;
- Azoto amoniacal: em 22/03/2018 o valor de 60,8 mg/l NH4, bem como em 30/05/2018 o valor de 63,1 mg/l NH4, sendo o VLE de 60 mg/l NH4;
- Sulfitos: em 25/01/2018 o valor de 11,2 mg/l SO3, bem como em 12/04/2018 o valor de 1,7 mg/l SO3, sendo o VLE de 1 mg/l SO3;
- Alumínio: em 12/04/2018 o valor de 13,5 mg/l Al, bem como em 19/07/2018 o valor de 11,3 mg/l Al, sendo o VLE de 10 mg/l Al; - Carência química de oxigénio: em 19/07/2018 o valor de 1.780 mg/l O2, sendo o VLE de 1.500 mg/l O2.
11. De acordo com o ponto “2.2.2.2. Pontos de emissão” da LA vigente (n.º 620/1.0/2016), “A monitorização e as análises de águas residuais, após pré-tratamento na ETAL e encaminhadas para o ponto de descarga ED1 e ED2 devem ser realizadas de acordo com o especificado na Autorização dos SMAS de Vila Franca de Xira”, sendo acompanhado da identificação dos pontos de emissão no “Quadro 12 – Pontos de descarga de águas residuais e pluviais para águas de superfície”, onde se inclui o ponto ED1, ponto a que se refere o emissário que está ligado ao colector municipal pertencente aos SMAS de Vila Franca de Xira.
12. No ponto “3. Prevenção e controlo de acidentes/Gestão de situações de emergência” da mesma LA estatui-se que “caso ocorra um acidente, incidente ou incumprimento desta licença, nomeadamente nas situações tipificadas no quadro 12, o operador deverá informar a EC, a APA, IP e a CCDR no prazo máximo de 48 horas, por qualquer via disponível que se mostre eficiente”.
13. No “Quadro 13 - Situações que obrigam notificação” do mesmo ponto da LA é identificada como situação de notificação obrigatória a essas entidades o “registo de emissão que não cumpra com os requisitos desta licença”.
14. A recorrente não comunicou os resultados descritos em 10. à Entidade Coordenadora, à APA, IP e à CCDR, quer no prazo de 48 horas após a descarga, quer no prazo de 48 horas após o seu conhecimento.
15. Arguida exerce actividade industrial regulada por lei, pelo que tinha obrigação de conhecer e cumprir com o ali prescrito para o exercício da mesma, in casu o Decreto-Lei n.º 183/2009, de 10/08, o Decreto-Lei n.º 178/2006 de 05/09, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 73/2011, de 17/06, e o Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30/08, relativamente aos licenciamentos de aterros e de actividades de tratamento de resíduos, assim como à observância das condições da LA.
16. Ao laborar sem deter alvará de licença válido para a actividade de tratamento e valorização de escórias, a arguida, através dos seus legais representantes e/ou funcionários, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz, de modo a conformar o exercício da sua actividade com a legislação vigente para o seu ramo de actividade.
17. Ao não ter comunicado os resultados descritos em 10. à Entidade Coordenadora, à APA, IP e à CCDR, no prazo de 48 horas após o seu conhecimento, a arguida, através dos seus legais representantes e/ou funcionários, não agiu com a diligência necessária e de que era capaz, de modo a conformar o exercício da sua actividade com a legislação vigente para o seu ramo de actividade.
18. A recorrente procedeu a um número não concretamente apurado de insistências, quer por telefone, quer formalmente por escrito, nomeadamente junto da CCDRLVT, no sentido de apurar qual o estado do processo relativo ao pedido de renovação do alvará de licença para a realização de operações de gestão de resíduos no ASMC.
19. A Recorrente, não tendo recebido qualquer informação da entidade licenciadora relativamente ao pedido de renovação do alvará n.º 83/2010, para a deposição de resíduos não perigosos no ASMC, veio solicitar esclarecimentos sobre qual o ponto de situação, por ofício de 13 de Janeiro de 2014, com a referência n.º E-2014/000046.
20. Em face da total ausência de resposta da CCDR-LVT, a Recorrente reiterou esse pedido de esclarecimentos, em 20 de Maio de 2015, por ofício com a referência n.º E-2015/000500, onde se pode ler, nomeadamente, que “Tendo o novo pedido de licenciamento sido entregue há mais de dois anos, e verificando-se, a esta data, que não foi emitido o documento em assunto, nem a ... recebeu informação quanto ao estado do pedido de licenciamento, sendo uma condicionante à exploração do Aterro Sanitário …, vem a ... solicitar a V. Exa. informação quanto à emissão do novo pedido de licenciamento e, consequentemente, da renovação do alvará de licença”.
21. Mantendo-se a ausência de resposta por parte da CCDR-LVT, a recorrente reiterou o pedido de esclarecimentos, em 5 de Outubro de 2015, através do ofício com referência n.º E-2015/00970, consignando que a “situação condiciona a actividade do ASMC e a entrada em exploração da sua célula 3, daí solicitarmos informação sobre o ponto de situação destes processos que nos permita responder a entidades oficiais e em sede de auditorias externas quando questionados sobre a caducidade da licença ambiental e do alvará de licença”.
22. Antes, e entre o envio das referidas cartas, a recorrente foi realizando reiterados contactos telefónicos com a CCDR-LVT.
23. A CCDR-LVT, em carta que aquela entidade remeteu à APA em 21 de Outubro de 2015, com referência n.º S06644-201505-DSA/DLA, e que deu conhecimento à recorrente, consignou que “de acordo com o princípio da boa prática administrativa e da decisão estabelecidos nos artigos 5.º e 103.º do CPA, e ainda do disposto no artigo 130.º do mesmo diploma a CCDR-LVT, enquanto entidade coordenadora do licenciamento, considera que ocorreu o deferimento tácito e, consequentemente, prossegue com a tramitação do licenciamento de operações de gestão de resíduos nos termos do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro, na sua actual redacção, se até ao dia 01-07-2015 não for recebida a informação solicitada”.
24. Posteriormente a 21/10/2015, a CCDR-LVT veio solicitar esclarecimentos, os quais foram atempadamente prestados pela recorrente.
25. A CCDR-LVT, em ofício datado de 14 de Maio de 2018, consigna que “Iniciada a análise técnica do processo, verificou-se que encontra-se devidamente instruído com os elementos exigidos”.
26. O pedido de renovação do alvará de licença n.º 83/2010 foi instruído com os elementos exigidos.
27. Após o envio da comunicação da recorrente, datada de 16/08/2018, a CCDR-LVT emitiu as guias relativas à taxa devida pela renovação do alvará de licença n.º 83/2010, que foi pago pela recorrente, em 28/09/2018.
28. Uma vez paga a taxa devida pela renovação do alvará de licença n.º 83/2010 e desconhecendo a recorrente qual a razão da não emissão do título formal dessa renovação, a recorrente veio, por missiva datada de 14/12/2018, solicitar uma reunião com o Senhor Vice-presidente da CCDR-LTV com o intuito de ser emitido o título formal de renovação do alvará de licença n.º 83/2010.
29. Comunicação essa que não obteve resposta por parte da CCDR-LTV.
30. A recorrente era titular do alvará de licença para a realização de operações de gestão de resíduos n.º 005/2010, válido até 07/04/2015, para tratamento e valorização de escórias (“ITVE”)
31. A recorrente, em 17 de Março de 2015, através da carta com a referência n.º E-2015-300, solicitou a renovação do alvará de licença n.º 005/2010.
32. Nessa sequência, a recorrente recepcionou o ofício da CCDR-LVT de 23 de Dezembro de 2015, com referência n.º S14142-201512-DSA/DLA, que veio informar que o pedido de renovação do alvará de licença n.º 005/2010 foi indeferido.
33. De acordo com este ofício da CCDR-LVT, o indeferimento do pedido de renovação do alvará de licença n.º 005/2010, justificava-se em desconformidades da localização da instalação com normas previstas no Plano Director Municipal de Vila Franca de Xira (“PDM”) e do Regime Jurídico da Reserva Ecológica Nacional (“RJREN”).
34. Perante a questão relativa à REN, a recorrente solicitou à CCDR-LVT esclarecimentos e requereu junto das entidades competentes, a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira e a própria CCDR-LVT, a resolução da situação.
35. Em 28 de Março de 2018, a CCDR-LVT, entidade responsável pela gestão da REN, publicou em Diário da República, na 2.ª Série, com o n.º 62, o Aviso n.º 4199/2018, o qual, fazendo referência expressa ao facto de a proposta visar “a regularização (…) de uma unidade existente de gestão de resíduos, na instalação de tratamento e valorização de escórias, localizada na união de freguesias ... e ...”.
36. O Aviso n.º 4199/2018 indicava que o licenciamento “fica condicionado à apresentação de estudo geotécnico que comprovasse a inexistência de riscos para a segurança de pessoas e bens”.
37. O estudo geotécnico foi apresentado pela recorrente à CCDR-LVT por ofício datado de 24 de Agosto de 2018.
38. A CCDR-LVT veio, por ofício datado de 7 de Setembro de 2018, informar que o pedido de renovação configurava «(…) um processo novo, devendo o mesmo ser apresentado através da plataforma eletrónica – SILiamb (…)».
39. A recorrente submeteu o processo de renovação da licença na plataforma em 23 de Outubro de 2018.
40. Após a submissão do processo de renovação da licença na plataforma SILiamb, foi emitido o DUC relativo à taxa devida pela renovação do alvará de licença n.º 005/2010, em 23/10/2018, que foi pago pela recorrente, em 30/10/2018.
41. Uma vez paga a taxa devida pela renovação do alvará de licença n.º 005/2010 e desconhecendo a recorrente qual a razão da não emissão do título formal dessa renovação, a recorrente veio, por missiva datada de 14/12/2018, a solicitar uma reunião com o Senhor Vice-presidente da CCDR-LTV com o intuito de ser emitido o título formal de renovação do alvará de licença n.º 005/2010.
42. Comunicação essa que não obteve resposta por parte da CCDR-LTV.
43. Os resultados da monitorização e análise aos parâmetros estabelecidos no Quadro I da Autorização de Descarga dos SMAS de Vila Franca de Xira não são imediatos, e a entidade contratada para o efeito, a SUMALAB, não consegue enviar os resultados imediatamente à recorrente.
44. A recorrente reportou os resultados constantes dos Relatórios de Ensaio descritos no ponto 9 da matéria de facto provada, alíneas i) a v) na comunicação aos SMAS de Vila Franca de Xira realizada no âmbito do reporte trimestral dos resultados. Mais se provou que:
45. A recorrente tem como objecto social a “Exploração e gestão do sistema multimunicipal de triagem, recolha, valorização e tratamento de resíduos sólidos urbanos das regiões de Lisboa e do Oeste, abreviadamente designado por sistema de Lisboa e do Oeste, integrando como utilizadores originários os municípios de Alcobaça, Alenquer, Amadora, Arruda dos Vinhos, Azambuja, Bombarral, Cadaval, Caldas da Rainha, Lisboa, Loures, Lourinhã, Nazaré, Óbidos, Odivelas, Peniche, Rio Maior, Sobral de Monte Agraço, Torres Vedras e Vila Franca de Xira. A exploração e a gestão referidas no numero anterior incluem o projecto, a construção, extensão, reparação, renovação, manutenção e melhoria das obras e equipamentos necessários para o desenvolvimento das actividades previstas nos números anteriores”.
46. No âmbito do NUI/CO/000203/20.1..., a recorrente foi condenada pela prática de uma contra-ordenação ambiental grave, prevista e punida pelos artigos 8.º, al. b), e artigo 29.º, n.º 2, alínea e), do Decreto-Lei n.º 39/2018, de 11 de Junho, e artigo 22.º, n.º 3, als. a) e b), da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, na coima de €6.000,00.
47. No período relativo ao exercício de 2017 a recorrente apresentou um lucro tributável no valor de € 6.718.050,32.
48. No período relativo ao exercício de 2022 a recorrente apresentou um prejuízo fiscal no valor de €6.177.006,34.
(…)
O Tribunal recorrido fundamentou a decisão nos termos para que se remete, concluindo como inicialmente se citou.
Vejamos, então, na perspectiva desta Relação se merece acolhimento a pretensão do arguido recorrente.
I. a caducidade do procedimento contraordenacional
Começou o Tribunal a quo por abordar esta questão, sendo que o fez correctamente, atenta a natureza de excepção da matéria da caducidade, que importa, desde logo, a ser procedente, a extinção da acção com prejuízo para o demais.
A figura da caducidade é da maior importância no nosso ordenamento.
Muitas vezes confundida com a prescrição, a diferença entre ambas é substancial.
Todos nos recordaremos, certamente, de termos espantado os olhos com as palavras de Vaz Serra, no seu brilhante e fundamental trabalho que se dividiu por sucessivos números do Boletim do Ministério da Justiça, única forma, como os livros em geral, de pesquisar ideias nos idos de oitenta.
Com mais curta análise, até porque os conhecimentos se sedimentaram entretanto, a doutrina assinala a estas duas formas de extinção de direitos - caducidade e prescrição - características muito próprias.
As mais notadas são:
Enquanto a caducidade pode proceder de um acto jurídico privado ou da lei, a prescrição tem sempre a sua origem na lei.
A finalidade da prescrição é dar por extinto um direito que, por não ter sido exercido pelo seu titular, se pode presumir que dele abriu mão.
A finalidade, na caducidade, é a determinação antecipada do tempo de duração da possibilidade de exercício de um direito (veja-se o art.º 298º nº 2 Cód. Civil)1.
Assim, enquanto na prescrição se toma em consideração a razão subjectiva do não exercício do direito [o não uso], isto é, a negligencia real ou suposta do titular, na caducidade atende-se apenas ao facto objectivo que é a sua [do direito] falta de exercício dentro do termo prefixado (veja-se o art.º 298º do Cód. Civil).
Daqui se infere que a prescrição extingue acções e direitos através de uma excepção, enquanto que a decadência [caducidade] opera a extinção de uma maneira directa e automática.
Em termos processuais, isto significa também que, perante o decurso de um prazo de caducidade, o juiz há-de tê-lo necessariamente em consideração (art.º 333º do Cód. Civil).
Já se o prazo for de prescrição, então terá de ser alegado por quem dele se aproveite (art.º 303º do mesmo Cód. Civil), e o juiz terá em atenção essa alegação para julgar extinto o direito.
Na prescrição admitem-se causas de suspensão e interrupção do respectivo prazo, o que não acontece na caducidade, em que essas causas não têm influência no respectivo decurso, precisamente porque, em princípio, o efeito extintivo é automático.
Alega a recorrente que os prazos previstos no art.º 48º, n.ºs 2 e 3 da Lei Quadro das Contraordenações Ambientais (LQCOA) foram ultrapassados, razão pela qual deve ser declarada a caducidade do procedimento contraordenacional, com a sua consequente extinção e arquivamento.
O Tribunal recorrido, reconhecendo ser aquele o regime legal aplicável, uma vez que à requerente são imputadas infracções qualificadas como contraordenações ambientais, no entanto, considerou não verificada essa matéria de excepção.
Ora, estabelece o art.º 48º da LQCOA, nos seus n.ºs 2 e 3 que o prazo para a instrução é de 180 dias contados a partir da data de distribuição ao respetivo instrutor (nº 2) e que se a instrução não puder ser concluída no prazo indicado no número anterior, a autoridade administrativa pode, sob proposta fundamentada do instrutor, prorrogar o prazo por um período até 120 dias (nº 3).
O Tribunal a quo - verificando que a norma não tem paralelo no Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), aprovado pelo Decreto Lei nº 433/82 de 27.10, e lançando mão do argumento segundo o qual, no regime que mais se assemelha a esta redacção escolhida pelo legislador, que considera ser o das contraordenações laborais previstas na Lei nº 107/2009 de 14.09 -, entendeu aplicar, por semelhança, as razões por que a jurisprudência vem entendendo que o referido prazo não é um único e com uma única prorrogação possível, com isso se permitindo uma conclusão que, bem vistas as coisas, impõe entender o referido prazo como indicativo.
E tem razão o Tribunal a quo.
De facto, não precisava sequer de invocar-se aquele regime de paralelo, já que a natureza do prazo, meramente indicativo, decorre do próprio diploma, desde logo do art.º 41º (nº 2, al. d)) do referido regime, de onde resulta que o excesso do prazo de instrução, no entanto, impõe um termo às medidas cautelares que estejam vigentes no processo.
De facto, não era preciso qualquer outro argumento, já que a possibilidade daquele excesso está prevista no próprio diploma que, ao não remeter para qualquer dos números do art.º 48º, se impõe concluir que se destina a todos e, como tal, à possibilidade de findo o termo inicial, haver sucessivas prorrogações.
O que o art.º 48º prevê é a excepcionalidade daquelas prorrogações, ao afirmar que a prorrogação é fundamentada sempre pela autoridade administrativa.
Assim, por todos os fundamentos aduzidos na decisão recorrida, que se reconhecem e devem manter-se, sobretudo quando retira do citado art.º 41º a natureza indicativa do prazo a que alude o art.º 48º, impõe-se concluir que não estamos perante um caso de caducidade do direito, valendo apenas as normas sobre prescrição ínsitas no respectivo art.º 40º.
É certo, como alega o recorrente, que o facto de se pretender viver num Estado de Direito Democrático tem, como inerência, as responsabilidades decorrentes do funcionamento das instituições de modo credível e garantido o mais célere funcionamento, desde logo, da justiça, ainda que contraordenacional.
No entanto, esta que é uma consideração de conteúdo ético correcta, não invalida a constatação de que, sem simplificação legislativa, sem formação ética dos cidadãos, sem recursos humanos e materiais suficientes, tecnicamente dotados, desde logo para fiscalizar e investigar as violações legais, muito dificilmente pode o legislador exigir dos prazos [à excepção, por razões óbvias, do processo criminal] uma peremptoriedade que sabe perfeitamente ser inviável processualmente.
Por isso, com a excepção das medidas cautelares, que pela sua natureza podem restringir fortemente as capacidades produtivas e económicas dos visados, o legislador impõe prazos indicativos, até porque, caso o não fossem, nem a lei faria, em si mesma, qualquer sentido.
Estes prazos, no entanto, ainda que meramente programáticos ou ordenadores, devem ser cumpridos, até para garantir a justeza do procedimento, mas não se lhes comina qualquer caducidade.
Pelo exposto, sem necessidade de outras considerações, improcede nesta parte o recurso.
II. a nulidade da decisão recorrida porque assente em prova nula
A recorrente vem alegar que:
(…)
A sentença recorrida, na parte que condena a Recorrente na alegada prática de uma contra-ordenação muito grave, prevista e punida pelos artigos 9.º, n.º 2, 23.º e 67.º, n.º 1, alínea d) do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro e 22.º, n.º 4, alínea b), 23.º A e 23.º B da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto e de uma contraordenação grave, prevista e punida pelos artigos 111.º, n.º 2, alínea e) do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de Agosto e 22.º, n.º 3 alínea b), 23.º A e 23.º B da Lei n.º 50/2006 de 29 de Agosto, assenta em provas nulas, pois essas provas foram recolhidas em manifesta violação do princípio da autoincriminação.
(…)
O Tribunal a quo, por seu lado, entre o mais, entende que:
(…)
O direito à não auto-inculpação (nemo tenetur se ipsum accusare), isto é, o princípio segundo o qual ninguém deve ser obrigado a contribuir para a sua própria incriminação, que abrange o direito ao silêncio e o direito de não facultar meios de prova, não tem assento expresso na Constituição da República Portuguesa (CRP), porém, a doutrina e a jurisprudência portuguesas têm vindo a aceitar pacificamente a vigência daquele princípio no direito processual penal português, e sua natureza constitucional, quer baseando-o nas garantias processuais consagradas genericamente nos artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, n.º 1, CRP, quer conexionando-o com a protecção dos direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana, nos termos do artigo 1.º CRP (PAULO SOUSA MENDES, “As garantias de defesa no processo sancionatório especial por práticas restritivas da concorrência confrontadas com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem”, in Revista da Concorrência e Regulação, n.º 1, Jan./Mar 2010, pp. 125-1262 ).
O Código de Processo Penal tutela expressamente o princípio, na vertente do direito ao silêncio, incluindo expressamente o direito ao silêncio no elenco dos direitos do arguido (artigos 61.º, n.º 1, alínea d), 141.º, n.º 4, alínea a), 343.º, n.º 1, e 345.º, n.º 1, in fine, do Código de Processo Penal).
Noutro plano, também a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (doravante, TEDH), tem vindo a acolher a protecção do princípio nemo tenetur, com respaldo no artigo 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, nomeadamente, no que respeita à valoração de documentos entregues pelo arguido (acórdão do TEDH de 25/02/1993, Funke vs. França e acórdão do TEDH de 03/08/2001, J.B. vs. Suíça).
Em processo contra-ordenacional o direito ao silêncio não tem consagração expressa, mas é aplicável subsidiariamente, por força do disposto no art.º 41.º, n.º 1, RGCO (PAULO SOUSA MENDES, ob. cit., p. 127).
(…)
Ora, o princípio nemo tenetur se ipsum accusare significa, fundamentalmente, que ninguém pode ser obrigado a testemunhar contra si próprio, a produzir prova contra si mesmo ou a fornecer coactivamente qualquer tipo de declaração ou informação que o possa incriminar.
A Constituição da República Portuguesa dá acolhimento expresso a este princípio, evidenciando-o no art.º 32º, nº 1, atentos os arts. 1º e 20º desse mesmo diploma.
Ao contrário do que muitas vezes se entende, este princípio não se restringe ao direito ao silêncio [art.º 61º do Cód. Proc. Penal], mas reporta-se também, e no que às contraordenações mais importará, ao direito de a pessoa não ser obrigada a apresentar elementos que provem/denunciem a sua culpabilidade.
Muito se tem falado desde princípio, desde logo no âmbito da actividade da CMVM e concorrência, importando ter presente, no entanto, que este não é senão um princípio, como tal não sendo absoluto e que se deve entender como sujeito à ponderação com outros interesses e com deveres e direitos de colaboração.
Aliás, como também refere o Tribunal a quo quando diz:
(…)
No âmbito contra-ordenacional, importa ter presente os condicionalismos decorrentes do exercício de actividades reguladas e/ou sujeitas a licenciamento e sujeitas a vigilância/supervisão por parte de entidades independentes, que pode implicar uma restrição dos direitos dos particulares, designadamente, mediante a previsão legal de deveres de informação, comunicação e cooperação, do que são exemplo os domínios das infracções rodoviárias, do mercado dos valores mobiliários, da concorrência, dos seguros, das instituições financeiras, do mercado das comunicações, da saúde, e das actividades com incidência ambiental.
(…)
Estamos perante o exercício de uma actividade licenciada, sujeita a fiscalização, impondo-se ao beneficiário o exercício de diversas obrigações como decorrência daquele licenciamento, sendo, como tal, sua obrigação a de demonstrar que exerce a actividade dentro dos limites da lei e da respectiva autorização.
Tal como diz também o Tribunal recorrido:
(…)
A actividade desenvolvida pela recorrente encontra-se sujeita a licenciamento, inclusivamente, ambiental, e especificamente, para as actividades de deposição de resíduos em aterro e para tratamento e valorização de escórias (cfr. artigos 9.º, n.º 2, 11.º e 23.º do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro, artigo 12.º do Decreto-Lei n.º 183/2009, de 10 de Agosto, e artigos 5.º e 11.º do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de Agosto).
A actividade desenvolvida pela recorrente encontra-se também sujeita a deveres de informação, monitorização e comunicação (cfr., a título meramente exemplificativo, os artigos 7.º, 10.º, 14.º e 30.º do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de Agosto).
Acresce que a actividade desenvolvida pela recorrente encontra-se sujeita a fiscalização/inspecção por parte da Inspecção-Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território (artigos 66.º do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro, 46.º do Decreto-Lei n.º 183/2009, de 10 de Agosto, e 109.º e 110.º do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de Agosto).
Ora, a exigência legal de licenciamento e a sujeição dos operadores económicos a acções de fiscalização e inspecção tem como fito garantir a idoneidade dos agentes económicos e a conformidade dos seus comportamentos com os regimes jurídicos aplicáveis e com as condições de licenciamento especificamente estabelecidas.
As actividades sujeitas a licenciamento nos termos do Decreto-Lei n.º 127/2013, de 30 de Agosto – como a que é desenvolvida pela recorrente – não são livremente exercidas, correspondendo a actividades de exercício condicionado. Ora, desde logo se estipula, no artigo 7.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 127/2013, como primeira das obrigações gerais do operador, “Cumprir o disposto no presente decreto-lei e as condições de licenciamento especificamente estabelecidas” (al. a), destacado nosso).
(…)
Pelo que, em rigor, exigir a colaboração do autorizado é só mesmo isso, mantê-lo como autorizado a exercer uma actividade de risco, não para si, neste caso, mas para todos nós, porque coloca em risco o ambiente que não é sua propriedade, e por isso é-lhe concedida a licença, que mais não é do que o reconhecimento potenciador de risco para o exercício de uma actividade que tem de ser controlada e a cujo controlo o mesmo se obriga.
Não vemos nisto qualquer violação de direitos do recorrente, conquanto sempre se diga que, em face da actividade que desenvolve, a não colaboração e a não fiscalização envolveria, pelo contrário, a violação de direitos de todos nós.
Tal como se lê, ainda, na decisão recorrida:
(…)
No âmbito da competência de fiscalização/inspecção que incumbe à Inspecção-Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território, estabelece o artigo 110.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 127/2013, que “A inspeção ambiental das atividades abrangidas pelo presente decreto-lei, inclui a verificação de toda a gama de efeitos ambientais relevantes das instalações, devendo os operadores prestar à IGAMAOT toda a assistência necessária para realizar visitas aos locais das instalações, colher amostras e recolher as informações consideradas necessárias” (destacado nosso).
(…)
Actualmente, dispõe o artigo 18.º da LQCOA, na redacção introduzida pela Lei n.º 25/2019, de 26 de Março:
“1 - Os procedimentos de inspeção e de fiscalização ambientais não devem ser antecedidos de comunicação ou notificação às entidades visadas ou aos responsáveis pelas instalações e locais a inspecionar.
2 - Excetuam-se do número anterior os casos em que, justificadamente, a comunicação prévia constitua um requisito fundamental para que a atividade de inspeção ou de fiscalização não fique condicionada ou prejudicada, nomeadamente:
a) Quando se tratem de procedimentos de inspeção ou fiscalização que impliquem a consulta de elementos documentais, ou outros, que devam ser previamente preparados pelos responsáveis dos espaços referidos no número anterior;
b) Quando seja necessário à entidade realizar diligências, com vista à preparação da inspeção ou fiscalização.
3 - Sempre que existir comunicação prévia, nos termos do número anterior, esta deve ser fundamentada por escrito.
4 - Às autoridades administrativas, no exercício das funções inspetivas, de fiscalização ou vigilância, é facultada a entrada livre nos estabelecimentos e locais onde se exerçam as atividades a inspecionar.
5 - Os responsáveis pelos espaços referidos no número anterior são obrigados a facultar a entrada e a permanência às autoridades referidas no número anterior e a apresentar-lhes a documentação, livros, registos e quaisquer outros elementos que lhes forem exigidos, bem como a prestar-lhes as informações que forem solicitadas.
6 - Em caso de recusa de acesso ou obstrução à ação inspetiva, de fiscalização ou vigilância, pode ser solicitada a colaboração das forças policiais para remover tal obstrução e garantir a realização e segurança dos atos inspetivos.
7 - O disposto neste artigo é aplicável a outros espaços afetos ao exercício das atividades inspecionadas, nomeadamente aos veículos automóveis, aeronaves, comboios e navios.” (destacado nosso).
Estabelecem, assim, tais normativos, de forma expressa, um dever de cooperação a cargo dos operadores económicos.
No caso vertente, toda a documentação que a IGAMAOT solicitou à recorrente e lhe foi entregue por esta, quer a tenha solicitado no âmbito da acção inspectiva ocorrida a 13/11/2018, quer a tenha solicitado posteriormente, na sequência de tal acção de inspecção, encontra-se abrangida pelo dever de cooperação que assiste ao operador económico, no âmbito do exercício de actividade sujeita a licenciamento, inclusivamente, ambiental, pelo que nenhum vício se verifica a este nível, e em particular, as proibições de prova estabelecidas no artigo 126.º, n.º 1, e n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal.
(…)
Não tem, como tal, razão a recorrente, decorrendo da decisão a fundamentação justa e acertada sobre a exigibilidade da sua colaboração, à qual se vinculou quando se licenciou no âmbito da actividade que desenvolve, pelo que nenhuma nulidade de prova se verifica.
Por outro lado, também sabe a recorrente que, na sequência por exemplo de fiscalização, se se detectar alguma infracção, a decorrência necessária é a instauração de procedimento, com ou sem conhecimento da infractora. De facto, esta questão é, em si mesma, maioria das vezes, relativa, já que a beneficiária, em face das obrigações que assumiu, sabe que está em infracção, sendo uma redundância que se lhe dê conhecimento disso mesmo.
Não há o que acrescentar à decisão recorrida.
Improcedendo também este fundamento de recurso.
III. a nulidade do auto de notícia
A recorrente vem dizer, ainda, que a sentença recorrida na parte que a condena na alegada prática das duas supra citadas contraordenações é, igualmente, nula porque assenta num auto de notícia nulo, uma vez que o auto de notícia nº 447/2018 – que veio dar origem à instauração do presente processo de contra-ordenação – não contém alguns dos elementos exigidos, nos termos do artigo 46.º, n.º 1 da LQCOA, nomeadamente: (i) a identificação e residência dos Administradores da Recorrente (sendo somente indicada a identificação de um administrador), nem (ii) a residência da testemunha, nem (iii) a categoria do autuante. Acontece que, sem prejuízo desse reconhecimento, a sentença recorrida considerou improcedente a nulidade arguida pela Recorrente a este respeito, alegadamente, porque na letra do artigo 46.º, n.º 1 da LQCOA “não estabelece a obrigatoriedade absoluta de tais elementos figurarem no auto de notícia, prevendo que o auto de notícia ou a participação devem mencionar tais elementos “sempre que possível.
A este respeito, diz o Tribunal a quo que:
(…)
Estabelece o artigo 45.º da LQCOA:
“1 - A autoridade administrativa levanta o respetivo auto de notícia quando, no exercício das suas funções, verificar ou comprovar pessoalmente, ainda que por forma não imediata, qualquer infração às normas referidas no artigo 1.º, o qual serve de meio de prova das ocorrências verificadas.
2 - Relativamente às infrações de natureza contraordenacional cuja verificação a autoridade administrativa não tenha comprovado pessoalmente, a mesma deve elaborar uma participação instruída com os elementos de prova de que disponha.”.
Por seu turno, sob a epígrafe “Elementos do auto de notícia e da participação”, preceitua o artigo 46.º da LQCOA:
“1 - O auto de notícia ou a participação referida no artigo anterior deve, sempre que possível, mencionar:
a) Os factos que constituem a infração;
b) O dia, a hora, o local e as circunstâncias em que a infração foi cometida ou detetada;
c) No caso de a infração ser praticada por pessoa singular, os elementos de identificação do infrator e da sua residência;
d) No caso de a infração ser praticada por pessoa coletiva ou equiparada, os seus elementos de identificação, nomeadamente a sua sede, identificação e residência dos respetivos gerentes, administradores e diretores;
e) A identificação e residência das testemunhas;
f) Nome, categoria e assinatura do autuante ou participante.
2 - As entidades que não tenham competência para proceder à instrução do processo de contraordenação devem remeter o auto de notícia ou participação no prazo de 10 dias úteis à autoridade administrativa competente.”.
(…)
E que, não decorrendo qualquer obrigação legal de conteúdo mínimo, o auto é perfeitamente válido e, com isso, eficaz.
De facto, e como decorre da transcrição supra, o que a lei diz é que, preferencialmente, o auto deve conter aquelas indicações, mas não comina qualquer sanção para os casos em que tal se não verifica. E nem podia fazê-lo, pois que «sempre que possível» é isso mesmo, uma possibilidade.
Questão diferente seria a de saber se, em face daquela impossibilidade e, por isso, incumprimento, ainda estão verificados os elementos para que possa ser valorada a sua ponderação. E esta, é uma exigência perante a autoridade administrativa e perante o Tribunal a que se faz a impugnação.
No entanto, mesmo esta questão pode ser relativizada, atento a que, como se diz na decisão recorrida, o auto de notícia destina-se a dar notificação do cometimento de uma infracção, competindo à investigação/instrução do processo confirmar ou infirmar essas informações.
Ora, a circunstância de do auto não constar a identificação e residência dos administradores da recorrente (sendo apenas mencionada a identificação apenas de um administrador), a residência da testemunha, e a categoria do autuante, como resulta do supra exposto, não importa a nulidade dele e nem dos termos subsequentes do processo.
Como se diz a decisão recorrida, no domínio do processo contra-ordenacional, tem aplicação subsidiária o regime previsto nos artigos 118.º e seguintes do Código de Processo Penal (artigo 41.º, n.º 1, do RGCO). A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei (artigo 118.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), sendo que nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular (artigo 118.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
Tratando-se de mera irregularidade, como ali se diz, e bem, nos termos do art.º 123º, nº 1 do Cód. Proc. Penal, só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado, significando isto, tal como consta da decisão recorrida, que, tendo sido a recorrente notificada do auto de notícia aquando da notificação para exercício do direito de defesa (art.º 49º da LQCOA, cfr. fls. 70), invocando o apontado vício apenas nas suas alegações de recurso (com data de 01.02.2023 - fls. 294), sempre seria a alegação extemporânea.
De todo o modo, como ali também se diz, esta irregularidade do auto não se reporta à essencialidade dos elementos em que assenta o procedimento, não tendo afectado o direito de defesa da recorrente com benefício injustificado da autoridade administrativa. E quanto à interpretação do que deva entender-se como «sempre que possível», impõe-se concluir que, seja ela qual for, o facto objectivável é que o auto com insuficiências como as que lhe são apontadas, essas em concreto, não é nulo e menos ainda importa a nulidade do procedimento.
Improcede, como tal, também nesta parte o recurso.
IV. a nulidade do auto de notícia e da decisão recorrida
Diz a recorrente que a decisão [administrativa] recorrida é nula, também, porque do auto de notícia nº 447/2018 é nulo por não conter qualquer elemento/facto/documento atinente ao animus das intenções supostamente praticadas pela Recorrente, pelo que nunca poderia a IGAMAOT ter concluído em sentido inverso, já que é com base nos factos descritos naquele documento que aquela autoridade administrativa estava obrigada a tomar uma decisão, fosse a mesma de condenação ou de absolvição.
Sustenta, assim, a recorrente que não constando do auto de notícia nº 447/18 qualquer elemento/facto/documento que permitisse à IGAMAOT apurar o elemento subjectivo da infracção, e que a decisão, ao concluir pela existência de uma conduta negligente da recorrente, fê-lo em desconsideração total e absoluta do disposto no auto de notícia que, por si só, não continha quaisquer factos que fossem suficientes para concluir pela culpa da recorrente, razão pela qual sustenta que a decisão administrativa é nula, por violação do artigo 58.º, n.º 1, alínea c) do RGCO.
Analisando.
Como sabemos, a jurisprudência tem abordado esta questão vezes sem conta.
E são duas as vertentes desta questão, como bem salientou o Tribunal a quo.
Quanto à nulidade do auto, a decisão recorrida diz tudo, podendo aqui apenas remeter-se para a mesma pela sua profundidade de analise.
Como decorre do que acabou de se expor, o art.º 46º, nº 1 da citada LQCOA não impõe a menção no auto de notícia do elementos subjectivos relativo à infracção, sendo que também essa obrigação não decorre do próprio art.º 243º, nº 1 do Cód. de Proc. Penal, aplicável por força do artigo 41º, nº 1 do RGCO.
O que deve constar e aquilo que constitui o direito do visado no momento de confronto com o auto é a descrição dos factos, de forma objectiva se se quiser, ou naturalística como cita da jurisprudência a decisão recorrida.
E, em rigor, nem podia ser de forma diferente, pois que a subjectividade imputável é avaliada pelo decisor (administrativo ou judicial), dependendo da análise de pressupostos técnicos que não são observáveis no imediato como factos e pode nem estar na competência dos autuantes a capacidade para a referida avaliação.
Por isso é que a lei, ainda aqui, continua a fazer todo o sentido, uma vez que prevendo como nulidades aquelas que decorram da Lei, e não se cominando qualquer nulidade a este respeito, como já decorria do que antes se explicou, se impõe conclui que nenhuma nulidade inquina o auto em apreciação, sendo, como tal, também nessa parte, improcedente o recurso.
Questão diversa é a da nulidade da decisão que se invocou.
Estabelece o art.º 58º, nº 1 do Regime Geral das Contraordenações (Decreto-Lei nº 433/82, de 27.10), que a decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter:
a) a identificação dos arguidos;
b) a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;
c) a indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;
d) e a coima e as sanções acessórias.
Tal como se refere na decisão recorrida, tratando-se de decisão, deve entender-se que a al. b) abrange na factualidade relevante, e atento o princípio da culpa, aquela que integre os [vamos chamar também assim] elementos da tipicidade objectiva da infracção, mas também aqueles de onde possa retirar-se se o comportamento infractor é imputado a título de negligência ou dolo.
Como ali se diz:
(…)
Para além destes factos típicos, a decisão deve ainda conter os demais factos necessários para estabelecer o grau de participação do arguido, bem como todas as circunstâncias factuais relevantes para a determinação da sanção, sendo a decisão condenatória.
(…)
O que está em causa numa decisão que aplique sanções principais e acessórias, ainda que no âmbito de contraordenação, é assegurar o princípio da defesa ao visado, sobretudo.
Claro, será o de assegurar a certeza e segurança do processo e a sua transparência, de acordo com a máxima que perseguimos sempre do due process of law, mas, sobretudo, e porque isso garante quase todo o resto, está em causa a lealdade do processo, a garantia de que o visado, em face das imputações, possa defender-se delas.
Por isso, a decisão deve conter todos os elementos de onde se extraia o comportamento, a culpa (em qualquer das suas formas) as circunstâncias da actuação e as consequências [neste caso] jurídicas dos mesmos.
Como refere a nossa jurisprudência2:
(…)
III. No âmbito do direito de mera ordenação social a culpa traduz-se num juízo de censura de violação de um dever legal.
IV – O elemento subjetivo do tipo contraordenacional tem de ser analisado sob um ponto de vista flexível e adequado às concretas circunstâncias do caso, resultando de factos concretos imputados à arguida que levem à conclusão de que a mesma atuou de forma negligente ou dolosa.
(…)
O professor Eduardo Correia escreveu que a contraordenação é um aliud que se diferencia qualitativamente do crime na medida em que o respetivo ilícito e as reações que lhe cabem não são diretamente fundamentáveis num plano ético-jurídico.
O professor Jorge Figueiredo Dias assinala como critério para distinção entre crimes e contraordenações a neutralidade ética da conduta que integra o ilícito de mera ordenação social, por contraposição ao desvalor da conduta que integra o ilícito penal, indiferença ética que se situa necessariamente ao nível da conduta e não ao nível do ilícito3.
Como decorrência da sua natureza, paredes-meias com a criminal, a decisão contraordenacional tem de ser fundamentada, seguindo estrutura similar à de uma sentença penal, tal como decorre do art.º 58º do RGC-O citado, e por referência ao disposto no art.º 374º do Cód. Proc. Penal.
Tal como se diz na decisão aqui recorrida:
(…)
Neste âmbito, cumpre salientar que pese embora se exija que a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima ou outra sanção para uma contra-ordenação seja fundamentada, tem vindo a ser reiteradamente afirmado pela jurisprudência dos tribunais superiores, que as exigências de fundamentação da decisão da autoridade administrativa são menos profundas que as relativas às sentenças criminais [SIMAS SANTOS E LOPES DE SOUSA, Contraordenações - Anotações ao Regime Geral, p. 427, e, a título meramente exemplificativo, os acórdãos da Relação de Évora de 21/06/2016, proc. 170/15.3T8GDL.E1; de 15/12/2016, proc. 95/16.5T8GDL.E1, disponíveis em www.dgsi.pt).
(…)
Se atendermos à decisão administrativa de que conheceu o Tribunal a quo, podemos concluir que a mesma contém a descrição dos factos imputados à aqui recorrente, desde logo aqueles que se afiguram indispensáveis á caracterização da actuação imputada (objectiva e subjectivamente) e à individualização da infracção, sendo, como se diz na decisão aqui recorrida, precisa, permitindo um cabal exercício do direito de defesa.
Na verdade, a decisão da autoridade administrativa contém a descrição da factualidade imputada à arguida, contendo a descrição dos factos que integram os elementos dos tipos objectivos dos ilícitos contra-ordenacionais em causa, mas também dos factos que compõem os elementos subjectivos dos aludidos ilícitos contra-ordenacionais.
Pelo que, também quanto a isto, improcede o recurso.
V. ainda a nulidade da decisão por omissão de pronúncia
Vem também a requerente dizer que:
(…)
GG) Quanto à alegada falta de licença para a actividade de tratamento e valorização de escórias, a Recorrente alegou no seu recurso de impugnação – nomeadamente, nos pontos 142, 143, 146, 147, 153, 154, 184 e nas conclusões II, JJ e CCC - que, tendo solicitado à CCDR-LVT a renovação do alvará de licença n.º 005/2010, em 17 de Março de 2015, antes da data do indeferimento desse pedido pela CCDR-LVT – i.e. 23 de Dezembro de 2015 -, já há muito tinha sido ultrapassado o prazo de 90 dias previsto na lei aplicável – i.e. o artigo 108.º do CPA, na redacção aplicável à data da prática dos factos – para o deferimento tácito desse pedido de renovação do alvará de licença, pelo que, naturalmente, antes da data da realização da acção inspectiva pela IGAMAOT, a Recorrente era substancialmente detentora de licença para a actividade de tratamento e valorização de escórias.
HH) Apesar da particular relevância da questão jurídica relativa ao deferimento tácito do alvará de licença em causa ter sido alegada pela Recorrente, a sentença recorrida não se pronuncia sobre esta questão, nem sobre a mesma retira os respectivos efeitos jurídicos, pelo que, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do CCP, a sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia.
(…)
No entanto, mais uma vez, não lhe assiste razão.
Por duas ordens de ideias.
Primeira, porque a decisão recorrida se pronunciou, de facto, sobre essa circunstância, como resulta claramente de fls. 55 a 57 da decisão recorrida (fls. 466 e 467 dos autos), verificando-se que o Tribunal a quo é até particularmente cuidadoso nessa matéria, levando-a à fundamentação de facto, como devia fazer. E, fazendo-o, tratou a questão que tinha de ser tratada, ou seja, a decorrência do facto original (não renovação de cuja decisão foi notificada em 2015), já que este não é o objecto do auto de notícia por infracção, sendo objecto do auto a não existência da licença à data da fiscalização.
Aí se diz que4:
(…)
Com efeito, no que concerne à actividade de tratamento e valorização de escórias, a recorrente era titular do alvará de licença para a realização de operações de gestão de resíduos n.º 005/2010, válido até 07/04/2015.
A recorrente solicitou a renovação do referido alvará de licença n.º 005/2010 em 17 de Março de 2015 (fls. 193).
De acordo com o disposto pelo artigo 35.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 05 de Setembro (preceito vigente à data), “o pedido de renovação da licença é apresentado pelo operador de gestão de resíduos no prazo de 120 dias antes do termo do prazo de validade da licença em vigor (…)” (destacado nosso).
Ora, sendo o referido alvará válido até 07/04/2015 e tendo a respectiva renovação sido requerida em 17/03/2015, resulta evidente que a recorrente não solicitou tal renovação no prazo legalmente previsto, sem que tenha alegado ou demonstrado qualquer motivo que a tivesse impedido de observar tal prazo, pelo que se conclui que a recorrente não actuou com a diligência a que estava obrigada e de que era capaz.
Por outro lado, o pedido de renovação apresentado foi expressamente indeferido, o que foi comunicado à recorrente, por ofício de 23/12/2015 (fls. 195).
Acresce que a alteração da delimitação da Reserva Ecológica nacional para o Município de Vila Franca de Xira tendo como finalidade a “Renovação do Alvará de Licenciamento de Operações de Gestão de resíduos realizadas na Instalação de Tratamento e Valorização de Escórias localizada no Aterro Sanitário de …” foi aprovada em 18/12/2017 e publicada em Diário da República em 28/03/2018 pelo Aviso n.º 4199/201828 da CCDR-LVT (fls. 201), tendo sido nessa sequência que a recorrente renovou o pedido de renovação do alvará em Agosto de 2018 – por via formalmente desadequada, atento o desenvolvimento de uma plataforma electrónica para tramitação dos processos de licenciamento (SILiAmb) na sequência da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 75/2015, de 11/05 (fls. 222) – e via SILiAmb em 23/10/2023 (fls. 224 e ss.).
Ora, a partir da notificação da decisão de indeferimento expresso do pedido de licenciamento em Dezembro de 2015, não podia a recorrente deixar de saber que não dispunha de alvará de licença válido para as Operações de Gestão de resíduos realizadas na Instalação de Tratamento e Valorização de Escórias localizada no Aterro Sanitário de ….
E tanto assim foi que, na sequência do indeferimento expresso do pedido de renovação e do fundamento que o motivou, a recorrente diligenciou, designadamente, junto da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, no sentido de ser aprovada a necessária alteração da delimitação da Reserva Ecológica nacional para o Município de Vila Franca de Xira.
É certo que, na sequência do indeferimento do pedido, a recorrente diligenciou no sentido de reunir as condições necessárias para obter a renovação do alvará de licença para as Operações de Gestão de resíduos realizadas na Instalação de Tratamento e Valorização de Escórias.
Porém, tal não se confunde com o exercício da actividade de Operações de Gestão de resíduos realizadas na Instalação de Tratamento e Valorização de Escórias sem alvará de licença válido, o que, no período em análise (entre 01/01/2017 e 13/11/2018), a factualidade demonstrada permite concluir ter ocorrido, pois que, após o indeferimento expresso do pedido de renovação em Dezembro de 2015, e até 13/11/2018, não havia ocorrido qualquer alteração da decisão, fosse uma decisão expressa de concessão de alvará, fosse uma decisão tácita, sendo certo, porém, que desde a data da apresentação formalmente adequada do pedido de renovação (23/10/2018) e a data da inspecção (13/11/2018) não havia ainda decorrido o prazo máximo legalmente fixado para a decisão administrativa (30 dias, nos termos do artigo 35.º, n.º 6, do Decreto-Lei n.º 178/2006).
Ora, não tendo a recorrente requerido tempestivamente a renovação do alvará de licença n.º 005/2010 e tendo sido notificada do indeferimento expresso do pedido de renovação em Dezembro de 2015, impõe-se concluir que a recorrente, ao laborar sem alvará de licença válido para a actividade de gestão de resíduos de tratamento e valorização de escórias, não actuou com a diligência necessária e de que era capaz, de modo a conformar o exercício da sua actividade com a legislação vigente para o seu ramo de actividade.
Por seu turno, no que respeita à ausência de comunicação da ultrapassagem dos VLEs descritos em 10., à Entidade Coordenadora, à APA e à CCDR, cumpre assinalar, desde logo, que dependendo a constatação dos valores dos parâmetros aplicáveis do resultado de análises laboratoriais, a realizar por entidade acreditada para o efeito, que, naturalmente, não será exigível à recorrente a comunicação da ultrapassagem dos VLEs no prazo de 48 horas após a colheita da amostra, mas apenas no prazo de 48 horas após o seu conhecimento.
Ora, não tendo a recorrente comunicado a ultrapassagem dos VLEs descritos em 10., à Entidade Coordenadora, à APA e à CCDR no prazo de 48 horas após o seu conhecimento, sem que tenha alegado ou demonstrado qualquer motivo que a tivesse impedido de proceder a tal comunicação em tal prazo, impõe-se concluir que a recorrente não actuou com a diligência a que estava obrigada (nos termos impostos pela Licença Ambiental – pontos 2.2, 2.2.2.2 e 3, que remetem para a Autorização de descarga n.º AT-0008/2016 –), e de que era capaz, de modo a conformar o exercício da sua actividade com a legislação vigente para o seu ramo de actividade.
(…)
Segunda, e na decorrência, quase redundante, do que se disse no termo da primeira, porque o Tribunal a quo valorizou a questão, não como validade do acto ou actos à data a que a impugnante os reporta aqui, mas à data a que os mesmos podem realmente aqui ser atendidos – a fiscalização que o auto documenta.
Ou seja, o que está aqui neste processo em causa não é a validade ou adequação do procedimento concreto de validação/renovação de alvará de cujo indeferimento foi, aliás, a recorrente notificada em 2015, mas as decorrências dessa renovação ou não renovação que foi verificada pela fiscalização e documentada no auto que se impugnou.
Como se refere na decisão, e bem, pelo menos desde a notificação em Dezembro de 2015 que a recorrente sabia não estar nas condições devidas para o exercício da sua actividade, sendo o auto de Novembro de 2018.
Mais do que isso, o desdobramento da questão em duas (renovação de alvará e deferimento tácito), tal como a recorrente a coloca, apenas pretende trazer a esta impugnação um efeito que o tempo esgotou no seu incumprimento inicial, com isso voltando a discutir a questão quando, como resulta da decisão administrativa e da decisão judicial que impugnou, metade dessa questão nem sequer aqui está aqui em causa, porque o tempo a esgotou já anteriormente.
Tal como resulta claro da própria decisão administrativa a fls. 285 e seguintes, sendo isso evidenciado aí (maxime fls. 287, ou seja, fls. 5 daquela decisão), e vendo-se também o auto de notícia impugnado e o período factual a que o mesmo se reporta.
Pelo que, concluindo desde já porque nada mais se impõe acrescentar a este respeito, a decisão pronunciou-se sobre a questão, de facto, naquilo que tinha de a ponderar em face do auto de notícia por infracção ambiental que deu origem ao processo, nada tendo ficado por apreciar com relevância para este processo, razão pela qual, também quanto a este fundamento, improcede totalmente o recurso.
VI. sobre a alegada interpretação feita pelo Tribunal a quo que aplicou erradamente a lei e as regras e condições constantes da Licença Ambiental, da autorização de descarga emitida pelos SMAS de Vila Franca de Xira (“Autorização de Descarga”) e do Regulamento de Descarga
Relativamente a esta questão suscitada pelo recorrente, também não se vê onde possa assistir-lhe razão.
De facto, tal como resulta da decisão recorrida5, entre o mais e destacando-se apenas por resumo, ao contrário do que refere a recorrente:
(…)
Sustenta a recorrente que não praticou a contra-ordenação em apreço porquanto não incumpriu as condições fixadas na Licença Ambiental.
Porém, não assiste razão à recorrente.
Na verdade, para além dos segmentos já citados supra, a referida Licença Ambiental estabelece ainda, no seu 2.2., que “O operador deverá assegurar que a instalação cumpre os valores limite de emissão aplicáveis, fixados na licença ambiental (…)”.
Ora, a Licença Ambiental não contempla Valores Limite de Emissão para além dos que constam da Autorização de descarga n.º AT-0008/2016, sendo que neste âmbito a LA limita-se a remeter, no seu ponto 2.2.2.2., para a referida Autorização, ao estabelecer que “A monitorização e as análises de águas residuais, após pré-tratamento na ETAL e encaminhadas para o ponto de descarga ED1 e ED2 devem ser realizadas de acordo com o especificado na Autorização dos SMAS de Vila Franca de Xira” (destacado nosso).
No mesmo sentido, estatui a LA, no seu ponto 2.2.2.3.2. que “A monitorização das águas residuais tratadas no sistema de tratamento da instalação deve ser efectuada de acordo com as condições de descarga na rede, associada à ETAR de Alverca do Ribatejo, sob responsabilidade do SMAS de Vila Franca de Xira”.
Ora, face ao teor da Licença Ambiental em vigor, que remeteu quanto aos aspectos de monitorização, análises de águas residuais e aos parâmetros sujeitos a Valores Limite de Emissão, para o estabelecido na Autorização de descarga n.º AT-0008/2016, afigura-se-nos, que a ultrapassagem dos VLEs estabelecidos na Autorização de descarga está sujeita à obrigação de reporte prevista no ponto 3 da LA (em conjugação com o item 6 do Quadro 13), e a sua inobservância consubstancia um incumprimento das condições fixadas na Licença Ambiental.
Assim, e uma vez que resultou demonstrado que ao actuar do modo descrito, a recorrente não agiu com a diligência necessária e de que era capaz, conclui-se que a factualidade demonstrada permite concluir pelo preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos da contra-ordenação em apreço.
(…)
Como se percebe, nem que seja apenas pela leitura dos destaques, bem decidiu o Tribunal a quo, uma vez que permite inclusivamente a decisão discernir sobre o raciocínio feito, em explicação até do pensamento do legislador que impõe a conformação da questão com recurso a diversos normativos, permitindo-se a compreensão da questão e da respectiva solução.
Mas isso também já era explicado na decisão administrativa impugnada, tal como se fez constar a fls. 6 dessa decisão.
Em face do regime a que sucessivamente tem de fazer-se apelo para integrar a interpretação normativa, e que a decisão recorrida deixa perfeitamente claro nas linhas de raciocínio que evidencia, não se percebe sequer como podia a questão ser decidida de outra forma. A menos que fosse em violação das normas aplicáveis.
O argumento resultante da jurisprudência citada de que quando o legislador quer sancionar a título de contraordenação o incumprimento do dever de comunicar fá-lo, dando-se disso exemplos, não deixa de ser apenas isso mesmo, um argumento. Quando, de facto, ao não prever directamente algumas das situações, limitando-se a deixar funcionar as remissões legais aplicáveis sem lhes impor um rumo pré definido (porque redutor, ao contrário do que se pretende com a tutela do ambiente), o legislador está, aceitando a realidade de superior e potencial risco de uma actividade que pode ser nociva do ambiente, a obrigar ao cumprimento das concretas clausular contratadas, pois que dessas não se pode alegar qualquer desconhecimento, sendo nessa obrigação que consiste a padronização para efectivação do princípio da legalidade.
Ou seja, a padronização dos comportamentos, sejam deveres/direitos, por reporte directo às autorizações dos serviços municipalizados, vistas as respectivas licenças de actividade, como forma de medir aqueles direitos/deveres, ao contrário de constituírem uma iniquidade, constituem sim um mecanismo de salvaguarda da protecção ambiental e de controlo das respectivas autorizações e licenças.
E, neste caso, como resulta claramente demonstrado na decisão, os mecanismos de controlo são expressamente caracterizados com a referência expressa à Autorização dos SMAS e remissão para a respectiva LA, pelo que não suscita dúvidas a referida interpretação.
Assim, concluindo-se como o Tribunal a quo, é de julgar improcedente também nesta parte o recurso.
É, como tal, de julgar totalmente não provido o recurso, devendo manter-se a decisão recorrida.
Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso interposto por ..., mantendo-se integralmente a decisão do Tribunal a quo.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 5 UC’s e demais encargos legais.

Lisboa, 08 de Maio de 2024
Texto processado e revisto.
Redacção sem adesão ao AO
Hermengarda do Valle-Frias
Ana Paula Grandvaux
M. Elisa Marques
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1. Dias Marques - Noções Elementares de Direito Civil, 7ª ed., 1992, p. 118.
2. Ac. TRE de 08.11.2017 – www.dgsi.pt\tre..
3. Apud Ac. TRE de 09.06.2016 – base de dados Ecli/CSM.
4. Destaque nosso.
5. Mais uma vez, o destaque é nosso.