Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1109/21.2PSLSB.L1-5
Relator: MANUEL ADVÍNCULO SEQUEIRA
Descritores: ERRO DE JULGAMENTO
PROVA DIRECTA
PRESUNÇÃO JUDICIAL
CONFISSÃO
ARREPENDIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade do relator):
I - O erro de julgamento não se confunde com o erro notório na apreciação da prova e logo que este, como é sua característica, se evidencie do texto da sentença, não há que ajuizar sobre a concreta produção de provas que imponham decisão diversa sobre a mesma factualidade.
II - Quando dos factos apurados por prova directa resulte presunção judicial sobre outros alegados e não contemplados por tal prova, a demonstração destes é estabelecida pelas regras de experiência comum, como impõe o artº 127º do Código de Processo Penal.
III - A exigência exclusiva de prova directa para o apuramento dos factos equivale ao fracasso do processo penal ou, para o evitar, o forçar-se a confissão, constituindo a tortura a característica mais notória do sistema de prova taxada e o seu máximo expoente, o que qualquer civilização digna do nome rejeita em absoluto.
IV - Sempre que em concreto for possível decidir a causa, o tribunal de recurso deve fazê-lo, ainda que perante causa abstracta de reenvio para novo julgamento.
V - A confissão normalmente significa arrependimento, devendo ser tomada como atenuante. O silêncio deve ser inócuo em sede de medida da pena. E a negação, harmonicamente, tem de contar como agravante.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
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AA foi absolvida da acusação deduzida que lhe imputava a prática de um crime de receptação p. e p. pelo nº 1 do artº 231º do Código Penal.
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Interpôs o Ministério Público o presente recurso concluindo, em resumo:
“(...) considerando a matéria dada como provada, designadamente a constante dos pontos 6 e 7, à luz das regras da experiência comum, não é possível concluir de modo diverso do que no sentido da participação, ainda que indirecta, da Arguida no logro de que a Ofendida foi objecto, na medida em que, apesar de concordamos que não foi feita prova de que a Arguida tivesse conhecimento de que as quantias em causa haviam sido obtidas nos termos descritos nos pontos 1 a 5 dos factos provados da sentença recorrida, resulta, pelo menos, que a mesma não podia deixar de ter previsto a origem ilícita de tais quantias monetárias, considerando a condição de quem lhe proporcionou o acesso às mesmas (pessoa que a Arguida mal conhecia, desconhecendo o nome completo da mesma, assim como a sua morada concreta) sendo que, não obstante, não se assegurou previamente da sua legítima proveniência.
C. Impõe-se chegar a tal conclusão através conjugação das declarações da Arguida (cfr. sessão de julgamento do dia 14/9/2023, ficheiro nº 2023091410659_20505738_2871130, com particular relevância a partir do minuto 03:00, assim como a partir do minuto 04:30, altura em que assume a autorização que deu para o acesso à sua conta e o posterior levantamento do dinheiro), com as declarações da Ofendida (cfr. sessão de julgamento do dia 4/10/2023, ficheiro nº 20231004143032_20505738_2871130, com particular relevância a partir do segundo 01:34, sendo que a partir do minuto 06:20 refere que foi ao banco e se apercebeu que, em vez de ter recebido dinheiro pela venda do sofá, lhe retiraram dinheiro da sua conta, sem a sua autorização) e dos documentos de fls. 10, 19 a 47 e 52, que demonstram que foram feitas, a partir da conta titulada pela Ofendida, três transferências de 750€ e uma de 250€, para a conta da Arguida.
D. Deste modo, a matéria de facto dada como não provada deve passar a ser considerada provada, nos seguintes termos:
- indivíduo(s) não identificados (não obstante a Arguida referir que se tratou de pessoa que só sabe chamar-se BB) abordaram a Arguida no sentido de utilizarem a sua identificada conta bancária;
- por essa via, a Arguida deveria assumir a tarefa de proceder ao imediato levantamento e mobilização das quantias que fossem creditadas, por levantamento dos montantes recebidos na sua conta bancária;
- a arguida não podia deixar de prever a origem ilícita dos 2500 € que foram transferidos para a sua conta, tendo actuado nos termos descritos conformando-se com essa possibilidade, sem previamente se ter assegurado da sua legítima proveniência, e, nessa medida, sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
E. Sendo assim, e no seguimento do por nós referido em sede de alegações, a Arguida deve ser condenada pela prática, pelo menos, do crime de receptação p. e p. pelo art. 231º, nº 2, do CP, cuja moldura penal é de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 120 dias, sendo que consideramos que uma pena de multa ou uma pena de prisão substituída por pena não privativa da liberdade satisfazem as finalidades da punição que in casu se fazem sentir, atentas as circunstâncias apuradas e uma vez que a Arguida tem averbada uma condenação no seu CRC por crime que se afigura ser de natureza semelhante ao crime em causa nos presentes autos (crime de auxílio material).
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Neste Tribunal da Relação, o Ministério Público emitiu douto parecer no sentido da procedência do recurso.
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Respondeu a arguida, pugnando pela manutenção do julgado.
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Corridos os vistos, foram os autos à conferência.
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Fundamentação.
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A sentença recorrida estabeleceu os seguintes factos provados:
“1. Em Julho de 2021, CC colocou à venda no OLX, um sofá, por valor não inferior a 195 euros.
2. Nessa sequência, recebeu uma chamada telefónica de um indivíduo, afirmando que estava interessado no artigo.
3.Iniciaram o diálogo para combinar os detalhes de venda, tendo combinado a forma de pagamento.
4. Por forma não concretamente apurada, o indivíduo veio a remeter-lhe dados que lhe transmitiu e que aquela teria de inserir e a pedir-lhe outros, associando, desta forma, a conta bancária ao n.º de telemóvel na aplicação MB Way.
5. Por desconhecer o funcionamento da aplicação, a ofendida veio a inserir os códigos remetidos, possibilitando, inadvertidamente, àquele indivíduo a movimentação da sua conta bancária, através da transmissão dos códigos que lhe eram facultados.
6. Por essa via, veio aquele a lograr efectuar três transferências de €750 e uma transferência de €250, no total de €2.500, para o n.º MB Way ..., associado à conta com o IBAN ..., titulada pela arguida AA.
7. A arguida levantou, pelo menos parcialmente, tais quantias para entregar a pessoa não identificada.
8. A arguida vive com um companheiro, cinco filhos – sendo que dois trabalham e contribuem para as despesas comuns - e uma neta.
O agregado familiar vive numa casa pertencente à Câmara Municipal, pagando de renda €11,40.
A arguida é DD, ganhando, em média, entre 120 a 150 euros mensais.
O companheiro da arguida trabalha, auferindo a retribuição mínima mensal garantida.
9. A arguida já foi condenada por um crime de auxílio material, em pena de multa, datando os factos de Março de 2020 e o trânsito em julgado de Março de 2022.”
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E os seguintes factos não provados:
“que indivíduos desconhecidos tenham abordado a arguida AA, no sentido de utilizarem a sua conta bancária supra descrita;
que tivesse sido combinado que a arguida deveria assumir a tarefa de proceder ao imediato levantamento ou mobilização das quantias que lhes fossem creditadas, por levantamento dos montantes recebidos na sua conta bancária;
que a arguida tenha aderido a tal plano e que, como pagamento, a arguida tenha conservado para si montante não apurado, que gastou em proveito próprio;
que a arguida soubesse que os 2.500,00 euros tinham sido obtidos após indivíduo de identidade concretamente não apurada ter levado CC a associar o telemóvel, por aquela utilizado, ao sistema MBway da sua conta do ..., assim logrando aceder ao mesmo e transmitir quatro ordens de transferência bancária, tudo sem a autorização ou conhecimento da sua legítima titular;
que a arguida, não obstante estar ciente de tais factos, tenha fornecido o NIB e MBWay associado da conta bancária por si titulada, a fim de que aqueles montantes fossem transferidos para a mesma e posteriormente levantados em ATM e em numerário, com o intuito de obter uma vantagem patrimonial para si e para terceiro de identidade não apurada, agindo com esse propósito e intenção.
que a arguida tenha agido sempre de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.”
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E como motivação do que antecede, explanou a sentença recorrida:
“O Tribunal baseou-se, para concluir pelo juízo de provado associado aos factos dados como assentes, nas declarações de CC, que explicou que colocou à venda um sofá na plataforma OLX, e narrou os acontecimentos posteriores, envolvendo o contacto de um indivíduo que disse estar interessado e a convenceu a fazer uma série de operações, envolvendo transmissão de códigos, vindo a descobrir que inadvertidamente, por essa via, tinha facultado o acesso de tal indivíduo à sua conta bancária.
Em conjugação com as declarações da ofendida, foi importante a análise dos documentos de fls. 10, 19 a 47, 52, que demonstram que foram feitas, a partir da conta titulada pela ofendida, três transferências de €750 e uma de €250, para a conta da arguida.
A arguida negou ter conhecimento da proveniência ilícita de tais montantes, explicando que foi uma amiga de nome BB, que morava no mesmo bairro e que lhe pediu se poderia fazer transferências para a sua conta bancária, provenientes de vendas, uma vez que não tinha MBWay.
A arguida aceitou e, posteriormente, foi com essa amiga levantar o dinheiro e entregou‑lhe.
Não foi produzida qualquer prova no sentido de a arguida ter agido em conluio com terceiro, sabendo que a origem do dinheiro, que receberia na sua conta bancária, era ilícita, ou de ter recebido uma contraprestação monetária pela cedência da sua conta bancária para utilização nos termos descritos.
Igualmente não foram apurados outros factos que permitissem corroborar ou infirmar a versão da arguida.
Relativamente à situação sócio-económica da arguida, foram valoradas as suas declarações prestadas em audiência de julgamento.
Foi ainda analisado o certificado de registo criminal da arguida.”
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Cumpre apreciar.
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Atendendo às conclusões apresentadas é questão elementar a resolver o alegado erro de julgamento e apenas na eventualidade de correspondente alteração factual, as consequências jurídico-penais a extrair.
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Erro de julgamento.
O recurso começa por afirmar, em substância, que a sentença sob recurso padece de erro notório na apreciação da prova, pois que “considerando a matéria dada como provada, designadamente a constante dos pontos 6 e 7, à luz das regras da experiência comum, não é possível concluir de modo diverso do que no sentido da participação (...) da Arguida no logro de que a Ofendida foi objecto.”
Mas logo depois vira a argumentação para o erro de julgamento, ao apontar as provas que imporiam solução diversa – “Impõe-se chegar a tal conclusão através conjugação das declarações da Arguida (...) altura em que assume a autorização que deu para o acesso à sua conta e o posterior levantamento do dinheiro, com as declarações da Ofendida (...) refere que foi ao banco e se apercebeu que, em vez de ter recebido dinheiro pela venda do sofá, lhe retiraram dinheiro da sua conta, sem a sua autorização e dos documentos (...) que demonstram que foram feitas, a partir da conta titulada pela Ofendida, três transferências de 750€ e uma de 250€, para a conta da Arguida.”
Mas estas mais não são do que as provas directas que serviram para fixar a factualidade apurada, tal como se encontra na sentença, pelo que tudo desemboca naquela primeira observação: dos factos obtidos por prova directa inferem-se necessariamente aqueles que foram dados por não provados.
Resta, pois, saber se efectivamente desses factos dados por provados, à luz de regras de experiência comum e segundo o que dispõe o artº 127º do Código de Processo Penal, se retira, ou não, a presunção sobre a factualidade da acusação tida por indemonstrada, eventualmente, ou não, com a modificação sugerida no recurso.
Na verdade e conforme resulta do nº 1 do artº 428º do Código de Processo Penal as relações conhecem de facto e de direito.
E a decisão sobre a matéria de facto pode ser impugnada por duas vias:
Com fundamento no próprio texto da decisão, por ocorrência dos vícios a que alude o nº 2 do artº 410º do Código de Processo Penal (impugnação em sentido estrito, no que se denomina de “revista alargada” equivalente a “error in procedendo”); ou
Mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se referem os nos 3, 4 e 6 do artigo 412º do Código de Processo Penal (impugnação em sentido lato, ou ampla, equivalente a “error in judicando” na sua vertente “error facti”).
Quanto aos vícios (impugnação em sentido estrito) - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova - sendo de conhecimento oficioso, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a quaisquer provas documentadas, limitando-se a actuação do tribunal de recurso à sua verificação na sentença e não podendo saná-los, à determinação do reenvio, total ou parcial, do processo para novo julgamento, nos termos do nº 1 do artº 426º do Código de Processo Penal.
Quanto à segunda modalidade (impugnação ampla), impõe-se, conforme resulta dos nos 3 e 4 daquela artº 412º, que o recorrente especifique os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, bem como que indique as provas que, no seu entendimento, impõem decisão diversa da recorrida, e não apenas a permitam, assim como que especifique, com referência aos suportes técnicos, a prova gravada (neste sentido e por todos, Ac. da R.L. de 9.1.2024 - procº nº 762/21.1PCAMD.L1).
Por isso que é de erro notório que ressalta do texto da própria sentença que se trata neste caso e em bom rigor.
O material probatório recolhido (neste como em qualquer outro julgamento) tem de ser articulado entre si, pois que isolado pode inclusivamente não fazer sentido, sequer.
Há, pois, que ter uma visão de conjunto sobre a prova produzida em relação a cada facto e ver depois o quadro geral que se apresenta, à luz da normalidade das atitudes humanas e aplicando regras de experiência e senso comuns.
Nomeadamente quando, como no caso sucedeu, inexiste prova directa ou facilmente visível atinente à factualidade penalmente relevante.
Na verdade, a prova pode ser directa ou indirecta/indiciária.
Enquanto a prova directa se refere directamente ao tema da prova, a prova indirecta ou indiciária refere-se a factos diversos do tema da prova, mas, que permitem, com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto aquele.
Daí que haja necessidade de tais ilações serem sempre motiváveis. A livre apreciação da prova é indissociável do princípio da oralidade. É que uma coisa é ouvir, ver, apreciar gestos, olhares, as hesitações ou o tom de voz e outra, bem diferente, é ler a transcrição do que foi dito de viva voz, ou mesmo e já agora, ouvir apenas o que se disse, as mais das vezes em redutor suporte magnético de baixa qualidade, como são todos os que “equipam” os tribunais nacionais.
Nem mesmo a anunciada e adiada captação e registo vídeo se mostra com outro tipo de virtualidade, nem tanto atendendo à sua habitual má qualidade (a que seguramente seria fornecida aos tribunais e nem assim...) mas porque não logrará captar toda a riqueza do depoimento, mormente por ser efectuada em duas dimensões e sem possibilidade de enquadrar a totalidade de linguagem facial e gestual que constituem parte importantíssima daquele.
As “... conclusões ou ilações que as instâncias extraem da matéria de facto são elas mesmo matéria de facto que exorbita o poder de cognição do S.T.J. enquanto tribunal de revista” (Ac. do S.T.J. de 21.10.2004, em C.J., tomo III, pág. 197), onde se ensina que “o juízo valorativo do tribunal tanto pode assentar em prova directa do facto como em prova indiciária da qual se infere o facto probando, não estando excluída a possibilidade do julgado, face à credibilidade que a prova lhe mereça e as circunstâncias do caso, valorar preferencialmente a prova indiciária, podendo esta por si só conduzir à sua convicção”.
E salvo o devido e elevado respeito pela posição adversa (que mesmo assim e não obstante ser claramente “contra legem”, está longe de ser minoritária no universo dos chamados operadores judiciários, reunida no dogma: em processo penal não há presunções) continua aquela que em nosso entender constitui superior lição de sapiência acerca do âmago do múnus de julgar, “por isso que, em sede de apreciação, não dispensa a prova testemunhal um tratamento cognitivo por parte de restantes meios de prova, sendo que a mesma, tal qual a prova indiciária de qualquer natureza, pode ser objecto de formulação de deduções ou induções, correcção de raciocínio mediante a utilização das regras da experiência.
Desde logo, é legítimo o recurso a tais presunções, uma vez que são admissíveis em processo penal as provas que não forem proibidas por lei (artº 125º do CPP) e o artº 349º do C. Civil prescreve que as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido, sendo admitidas as presunções judiciais nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (artº 351º).
Depois, as presunções simples ou naturais (as aqui em causa) são simples meios de convicção, pois que se encontram na base de qualquer juízo. O sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções”.
Importam, neste âmbito, as chamadas presunções naturais ou “hominis” que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido.
As presunções naturais são, afinal, o produto das regras de experiência. O juiz, valendo‑se de um certo facto e das regras da experiência, conclui que esse facto denuncia a existência de outro facto. “Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (...) ou de uma prova de primeira aparência” (cf. Vaz Serra, “Direito Probatório Material”, BMJ, nº 112 pág. 190).
A presunção permite, deste modo, que perante os factos (ou um facto preciso) conhecidos, se adquira ou se admita a realidade de um facto não demonstrado directamente, na convicção, determinada pelas regras da experiência, de que normal e tipicamente certos factos são a consequência de outros. No valor da credibilidade do percurso e na força da conexão causal entre dois acontecimentos, está o fundamento racional da presunção e na medida desse valor está o rigor da presunção. A consequência tem de ser credível; se o facto base ou pressuposto não é seguro, ou a relação entre o indício e o facto adquirido é demasiado longínqua, existe um vício de raciocínio que inutiliza a presunção (cj. Vaz Serra, ibidem).
Deste modo, na passagem do facto conhecido para a aquisição (prova) do facto desconhecido, têm de intervir, pois, juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável de um facto conhecido.
A presunção intervém, assim, quando as máximas da experiência da vida e das coisas, baseadas também nos conhecimentos retirados da observação empírica dos factos, permitem afirmar que certo facto é a consequência típica de outro ou outros. A ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável.
Há-de, pois, existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido. A existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência segundo as regras de experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo já da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões.
As considerações efectuadas são essenciais porquanto dão a entender a postura do tribunal perante o material de que dispõe em face do que são afirmações vulgares feitas publicamente perante a comunidade (até por tribunais) e que relevam da posição que criticámos, escorada em dogma que invariavelmente desemboca na genérica afirmação sobre a falta de prova factual com a consequente absolvição, escorada naquela ausência de factos que, afinal, estão cabalmente demonstrados (em boas contas, muitas das reclamações correntes acerca da existência de erros judiciários, não passam assim justamente de reivindicações dos verdadeiros erros judiciários a que corresponderia a impunidade dos penalmente responsáveis apenas por inexistência de prova directa total dos seus crimes).
“Quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua actuação pelo que, evidentemente, é frequente a ausência de provas directas. Exigir a todo o custo, a existência destas provas implicaria o fracasso do processo penal ou, para evitar tal situação, haveria de forçar-se a confissão o que, como é sabido, constitui a característica mais notória do sistema de prova taxada e o seu máximo expoente: a tortura” (J. M. Asencio Melado, Presunción de Inocência y Prueba Indiciária, 1992, citado por Euclides Dâmaso Simões, in Prova Indiciária, Revista Julgar, n.º 2, 2007, pág. 205).
E para concluir que a sentença revidenda incorre claramente em erro notório na apreciação da prova.
Como não considerar, segundo elementares regras de experiência comum e à luz da normalidade expectável dos comportamentos humanos, que a arguida não soubesse de tudo o que anteriormente se tinha passado, ou, pelo menos, de semelhante realidade não tivesse o conhecimento geral?
O burlão que logrou enganar a vítima iria depois confiar o produto da sua “habilidade” a quem não confiasse plenamente, arriscando ficar sem o dinheiro e ainda ser denunciado?
É flagrante, salvo o elevado respeito, que a arguida de tudo sabia e a tudo se prestou, obviamente para também lucrar, pelo que os factos alcançados por prova directa, impõem a presunção sobre os demais constantes da acusação e sem qualquer tipo de hesitação ou modificação.
A confiança entre todos os agentes do crime necessária para o sucesso da actividade em causa e na sua totalidade, depende do conhecimento que todos têm daquela, não sendo sequer de aventar uma noção diminuída sobre aqueles.
Concluindo, a sentença recorrida padece de erro notório na apreciação da prova, vício contemplado na alínea c) do nº 2 do artº 410º do Código de Processo Penal.
Sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento” (...), nos termos do que dispõe o nº 1 do artº 426º do Código de Processo Penal, sob a epíografe “Reenvio do processo para novo julgamento”.
Sucede que neste caso é possível decidir a causa sem necessidade de retrocesso processual, sempre de evitar e por razões que de tão óbvias dispensam qualquer tipo de consideração adicional.
Para tanto, considerar-se-ão provados os factos da acusação tidos por não provados, em tanto e assim procedendo o recurso, na parte que respeita à factualidade a considerar.
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A conduta da arguida integra assim a previsão do nº 1 do artº 231º do Código Penal.
Ali se dispõe que “quem, com a intenção de obter, para si..., vantagem patrimonial... adquirir... ou de qualquer forma assegurar, para si ou para outra pessoa, a sua posse... coisa que foi obtida por outrem, mediante um facto ilícito típico contra o património... é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
Na verdade e como resulta da factualidade supra fixada, a arguida teve na sua conta bancária soma proveniente de conta bancária de vítima de crime de burla, com o fito de a entregar a outro indivíduo, lucrando também, o que bem sabia e quis.
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O crime é punível com pena de multa ou prisão, pelo que, em primeiro lugar, se deverá optar por uma ou outra, nos termos do artº 70º do Código Penal.
O passado criminal da arguida desaconselha a opção pela pena de multa, por, neste caso, ser insuficiente para lhe fazer sentir a gravidade do ilícito, a clamar por medida detentiva, já que averba condenação recente por crime de idêntica natureza cometido anteriormente. E ainda que a condenação seja posterior aos factos aqui em juízo, não deixam de revelar propensão para este tipo de criminalidade que, por isso, se impõe atalhar.
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Há que apreciar, à luz do artº 71º do Código Penal, a culpa da arguida, bem como a sua personalidade e todas as circunstâncias que rodearam os factos, para, pesando as necessidades de prevenção geral e especial, encontrar a concreta medida da pena, dentro daquela moldura abstracta e na medida da culpa da arguida.
Razões de prevenção geral estão sempre presentes na determinação de qualquer pena, desde logo porque importa alertar os potenciais delinquentes para as penalidades e, deste modo, tentar evitar que se pratiquem crimes que claramente afectam a tranquilidade e ordem públicas.
Cumpre também atender à prevenção especial, na medida em que a arguida tem de ser avisada para a gravidade do seu comportamento, de modo a corrigir-se, evitando-se assim futuros actos de delinquência.
O modelo de prevenção acolhido pelo Código Penal, porque de protecção de bens jurídicos, determina que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.
Dentro dessa medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima – limite superior e limite inferior da moldura penal), o tribunal, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o “quantum” concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.
Moldura essa “cujo máximo é constituído pelo ponto mais alto consentido pela culpa do caso e cujo mínimo resulta do quantum de pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias.” Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, p. 243.
Desta forma, o “quantum” da pena não poderá nunca descer abaixo daquele limiar a partir do qual se ponha “em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais.” F. Dias, Ob. cit., p. 243.
Só então, e dentro desta moldura de prevenção, actuarão as finalidades de prevenção especial.
Razão de prevenção especial, tanto negativa (ou de prevenção da reincidência), como positiva (ou de prevenção especial de socialização).
Destarte, as razões de prevenção geral devem ser determinantes na fixação da medida das penas, em função da reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para apaziguamento dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano.
Tem-se em vista, na aplicação das penas, necessidades de prevenção geral positiva (tutela das expectativas da comunidade quanto à validade da norma jurídica violada), valorada em concreto e exigências de prevenção especial positiva ou de socialização, para o agente. A prevenção geral positiva funciona como limite mínimo da pena e a culpa como limite máximo.
Porém, tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar a responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito, do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afectados, seguindo-se aqui de perto a doutrina do Acórdão do STJ, de 21.10.2009, processo nº 589/08.6PBVLG.S1.
Apreciando o caso, temos que o grau de ilicitude do facto é acentuado, pois a conduta da arguida reflecte desvalor em relação à ordem jurídica, nomeadamente o modo de execução, especialmente traiçoeiro.
A quantia retirada à vítima já é de alguma importância em face do rendimento médio nacional, pelo que também a a gravidade das consequências tem factor agravante.
Os sentimentos no cometimento do crime, comportamento egoístico e socialmente desajustado, joga no mesmo sentido, tal como os motivos e fins determinantes do mesmo, a ganância pelo património alheio.
Já a condição pessoal, social e económica da arguida joga em seu favor, temperada contudo com o passado criminal e bem assim a sua conduta em audiência.
Ao negar o cometido, ou seja, a verdade dos factos, o que por si e já que não é obrigado a prestar qualquer declaração, denota a arguida deformação grave de personalidade, distorcida, tenazmente avessa ao direito e claramente impreparada para se conduzir de acordo com as regras mais essenciais ao convívio em sociedade ou, por outras palavras, falta de preparação para manter uma conduta lícita - alínea f) do nº 2 daquele artº 71º e salvo o devido respeito por opinião adversa.
Visto o facto por outro prisma, não apresentou em audiência qualquer atitude crítica em relação aos seus actos. Tal atitude por si mesma não augura qualquer vontade de reinserção social relativamente ao seu crime, antes revela vontade de persistir na prática de idênticos delitos.
O não arrependimento da arguida consubstanciado na negação dos factos perante toda a comunidade, legalmente, tem pendor agravante.
Não desconhecemos corrente que afirma ser irrelevante tal circunstância, aconselhando até que se ignorem os factos em que a mesma se materializa (desconsideração que depois, à primeira vista contraditoriamente, não estende aos casos de confissão, a funcionarem como atenuante).
Diz-se então que o acusado não é obrigado a contribuir para a sua incriminação.
Sem dúvida, daí que tenha o direito a manter-se em silêncio, sem que tal opção o possa desfavorecer.
Mas diferente, muito diferente, de manter o silêncio é mentir perante a comunidade e a tanto equivale a negação dos factos em audiência.
Ali, exerce-se de forma livre um direito civilizacional inegável.
Aqui, demonstra-se publicamente desprezo pela norma violada, vítima atingida e comunidade em que se integra.
Daí que se a confissão normalmente significa arrependimento, devendo ser tomada como atenuante e o silêncio deva ser inócuo nesta sede, a negação, harmonicamente, tem de contar como agravante.
O direito penal e por isso o processual penal, não visam a protecção do criminoso, menos ainda com a dissimulação da verdade e aquela corrente só faz sentido nesta perspectiva, que por isso é de rejeitar, em absoluto e por maior brilhantismo que se reconheça a quem a advoga.
Mostra-se assim justa por adequada e proporcional à culpa da arguida a pena de 16 meses de prisão.
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Atenta a parcial inserção social da arguida da arguida e a sua situação pessoal ainda é razoável concluir que a ameaça de pena e a censura do facto serão bastantes para a afastar da criminalidade, pelo que a execução da pena deverá ser suspensa, por prazo adequado a tal reflexão, nos termos do artº 50º do Código Penal.
Deverá, contudo, tal suspensão ser condicionada à demonstração de início de conformação com os valores que violou.
Por isso, será fixada a condição de ressarcimento da vítima em montante adequado ao que perdeu, teve de gastar e tempo em que se viu e verá desembolsada, em prazo razoável e tendo em conta a condição da arguida.
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Consequentemente, procede o recurso.
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Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso e revogando a sentença recorrida condenam os AA, pela prática de um crime de receptação. p. e p. pelo nº 1 do artº 231º do Código Penal, na pena de dezasseis meses de prisão, suspensa na execução por dois anos, sob condição de pagamento a CC da quantia de dois mil e oitocentos euros, no prazo de um ano.
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Lisboa, 23 de Abril de 2024
Manuel Advínculo Sequeira
Carlos Espírito Santo
Luísa Maria da Rocha Oliveira Alvoeiro