Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3047/22.2T8FNC.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
CADUCIDADE DO CONTRATO
USUFRUTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: (do relator):
I - Em princípio (cf. art.º 1052.º do CC), tendo o usufrutuário dado de arrendamento um imóvel, o contrato caducará com a sua morte, ante a cessação do usufruto, nos termos conjugados dos artigos 1476.º, n.º 1, al. a), 1.ª parte, e 1051.º, al. c), 1.ª parte, ambos do CC.
II - Mas tal caducidade não se verifica em situações como a dos autos, em que o contrato de arrendamento em apreço foi celebrado (em 08-01-1973) pela então proprietária da fração, na qualidade de senhoria, e o pai do Réu, na qualidade de arrendatário, vindo o direito ao arrendamento a transmitir-se ao Réu por morte do pai (em 14-02-1999), e aquela senhoria a falecer depois (em 14-07-2021), quando era usufrutuária do imóvel.
III - Efetivamente, não obstante a senhoria fosse usufrutuária à data da sua morte, não se mostra preenchida a previsão do art.º 1051.º, al. c), do CC, uma vez que não o era à data em que celebrou o contrato de arrendamento, tendo doado o imóvel já arrendado (em 20-11-1997), em comum e em partes iguais, aos Autores, os quais, com a consolidação da propriedade plena, se tornaram senhorios do contrato de arrendamento, que se manteve em vigor (cf. art.º 1057.º do CC), não se tendo verificado a sua extinção, ope legis, por caducidade.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO

A. interpôs o presente recurso de apelação da sentença que julgou procedente a ação declarativa que, sob a forma de processo comum, contra si foi intentada por B. e C.
Os autos tiveram início em 03-06-2022, com a apresentação de Petição Inicial, em que os Autores peticionaram que fosse:
a) declarada D. como senhoria do contrato de arrendamento para fins habitacionais sub judice;
b) declarada a caducidade do contrato de arrendamento celebrado entre D. e o Réu, por morte da senhoria usufrutuária e extinção do respetivo usufruto, nos termos dos artigos 1051.º, al. c), 1443.º, 1.ª parte, e 1476.º, n.º 1, al. a), do Código Civil;
c) o Réu condenado a restituir aos Autores a fração designada por “1BC” do prédio urbano localizado à (…), livre e devoluto de pessoas e bens e, consequentemente;
d) fixado para o efeito um prazo não superior a tinta dias a partir da “notificação da sentença definitiva”.
Para tanto e em síntese, alegaram os Autores que:
- Os Autores são os atuais donos e legítimos proprietários do prédio urbano supra identificado, composto por 3 (três) frações/andares suscetíveis de utilização independentes: 1BB, 1BC e 1BD;
- No dia 08-01-1973, a anterior proprietária, D., deu de arrendamento para habitação a fração 1.º BC do prédio urbano supramencionado a E., na qualidade de arrendatário;
- No dia 20-11-1997, no Cartório Notarial de Câmara de Lobos, D. doou, em comum e em partes iguais, aos ora Autores, o prédio urbano supra identificado, reservando para si o usufruto;
- O arrendatário, E., permaneceu com o filho, ora Réu, nesta fração até à data da sua morte, a 14-02-1999;
- O falecimento daquele arrendatário não foi comunicado à senhoria D.;
- Pelo falecimento do seu pai, E., o Réu assumiu a posição de arrendatário no contrato de arrendamento;
- Com o óbito de D., verificado a 14-07-2021, os Autores adquiriram a propriedade plena do prédio urbano supra identificado;
- Na qualidade de comproprietários do aludido prédio urbano, os Autores comunicaram ao Réu, o falecimento da senhoria D., bem como a caducidade do contrato de arrendamento por extinção do usufruto, e requereram ao Réu a restituição do imóvel devoluto e livre de ónus e encargos no prazo de 6 meses;
- Em resposta, no dia 14-09-2021, o Réu opôs-se à desocupação do imóvel, invocando já ter completado a idade superior a 65 anos e o facto de residir no prédio há mais de 15 anos;
- Os Autores exigiram novamente a restituição do imóvel pelo ora Réu no prazo de 6 meses contados a partir do dia 26-08-2021;
- O imóvel não foi entregue pelo Réu, mantendo-se no locado com a oposição dos proprietários, ora Autores;
- Com o óbito da usufrutuária e a inerente extinção do direito de usufruto, deu-se a consolidação da propriedade plena e a caducidade do contrato de arrendamento, uma vez que “o arrendamento foi originariamente celebrado com base no direito de usufruto constituído a favor desse primitivo locador”, nos termos dos artigos 1051.º, al. c), 1443.º e 1476.º, n.º 1, al. a), do CC;
O Réu apresentou Contestação, em que se defendeu por impugnação motivada, de facto e de direito, e por exceção, alegando, em suma, que:
- Os Autores não são parte legítima, porque o Autor carece de estar acompanhado em juízo pela sua mulher;
- O contrato de arrendamento não caducou por morte da anterior proprietária, pois houve transmissão do direito ao arrendamento por óbito do arrendatário, pai do Réu, cujo contrato de arrendamento foi celebrado pela anterior proprietária em 08-01-1973, portanto, não na qualidade de usufrutuária, como alegam os Autores.
- O Réu reside há mais de 15 anos no locado e tem mais de 65 anos de idade.
Os Autores apresentaram articulado de Resposta, pronunciando-se pela improcedência da exceção.
Realizou-se audiência prévia, em que não foi possível obter a conciliação das partes.
Foi proferido despacho saneador por escrito, julgando improcedente a exceção dilatória da ilegitimidade ativa.
Realizou-se a audiência final de julgamento, com produção de prova testemunhal.
Em 23-11-2023 foi proferida a sentença (recorrida) cujo dispositivo tem o seguinte teor:
«Pelo exposto, julgo a presente acção procedente, por provada, e, em consequência:
a) declaro D. como senhoria do contrato de arrendamento para fins habitacionais da fracção designada por “1BC” do prédio urbano localizado na (…) Funchal, em propriedade total com três andares ou divisões susceptíveis de utilização independente, designadamente as fracções ”1BB”, “1BC” e “1BD”, de três pisos, inscrito na matriz predial respectiva com o artigo (…) da freguesia de Santa Maria Maior (Funchal), concelho do Funchal, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número (…) da freguesia de São Gonçalo;
b) declaro a caducidade do contrato de arrendamento celebrado entre D. e E. (a quem sucedeu na posição de arrendatário o réu A.), por morte da senhoria usufrutuária e extinção do respectivo usufruto, nos termos dos artigos 1051.º, al. a), 1143.º, 1.ª parte, e 1476.º, n.º 1, al. a), do Código Civil;
c) condeno o réu A. a restituir aos autores B. e C. a fracção designada por “1BC” do prédio urbano localizado na (…) Funchal, em propriedade total com três andares ou divisões susceptíveis de utilização independente, designadamente as fracções ”1BB”, “1BC” e “1BD”, de três pisos, inscrito na matriz predial respectiva com o artigo (…) da freguesia de Santa Maria Maior (Funchal), concelho do Funchal, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número (…)da freguesia de São Gonçalo., livre e devoluto de pessoas e bens, no prazo de 60 (sessenta) dias a partir da data do trânsito em julgado da presente decisão.
Condeno o réu A. no pagamento das custas processuais, fixando-se a taxa de justiça em 2UC.
Registe e notifique.»
É com esta decisão que o Réu não se conforma, tendo interposto o presente recurso de apelação, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:
A) Com o presente recurso visa, o Recorrente, questionar sobre matéria de direito, normas jurídicas interpretadas e aplicadas, a cuja apreciação feita do que resultará ser posta em crise a douta decisão na parte respeitante aos Recorridos, visando, ver reapreciados e alterada a decisão.
B) Foi celebrado entre D. e E. um contrato de arrendamento em 08 de Janeiro de 1973, nas respectivas qualidades de proprietária/senhoria e arrendatário.
C) Foi celebrado por escritura pública entre D. um contrato de doação em 20 de Novembro de 1997 e B. e C., ora Recorridos, com reserva de usufruto, do prédio referenciado nos autos, objecto do contrato de arrendamento celebrado em 08 de Janeiro de 1973.
D) A transmissão, do prédio arrendado, por parte do senhorio os adquirentes do direito com base no qual foi celebrado o contrato sucedem nos direitos e obrigações do locador, sem prejuízo das regras do registo, artigo 1057.º do Código Civil.
E) A D., passou a ser senhoria/usufrutuária do prédio, objecto dos autos, desde a data de 20 Novembro de 1997, data da doação do prédio.
F) Por óbito de E., ocorrido em 14 de Fevereiro de 1999, foi transmitido ao A., Réu, ora Recorrente, seu filho, o respectivo direito ao arrendamento, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 85.º do RAU, Lei em vigor à data do óbito.
G) Houve a transmissão da posição de arrendatário, não foi celebrado novo contrato de arrendamento com a D., senhoria/usufrutuário na data do óbito de E..
H) Posteriormente, em 14 de Julho de 2021, faleceu a senhoria/usufrutuária D..
I)O Recorrente reside no arrendado desde 1973, tem mais de 65 anos.
J) A douta sentença recorrida, interpretou e aplicou em sentido diverso, no entender do Recorrente, o disposto nos artigos, 1476º, nº 1, alínea a), 1051º, alínea c) e 1057.º, todos do Código Civil, devendo ser revogada.
K) É de conhecimento do Tribunal e feita a prova, de que não houve celebração de novo contrato de arrendamento entre a D., na qualidade de Senhoria/usufrutuária e E., nem entre a D. e A., ora Recorrente, pelo que o contrato de arrendamento não caducou pela morte da senhoria usufrutuária, por consequência extinção do usufruto, mantendo-se o mesmo válido e em vigor.
Terminou o Apelante requerendo que seja concedido provimento ao recurso e alterada em conformidade a decisão recorrida.
Foi apresentada alegação de resposta, em que os Apelados defendem que se mantenha a sentença recorrida, concluindo, no que ora importa, nos seguintes termos:
(…) i. Ao contrário do que é alegado pelo Recorrente, cumpre realçar que a Decisão Recorrida, nem os próprios Recorridos colocam em causa a transmissão da posição de arrendatário para o ora Recorrente, após a morte do seu pai em fevereiro de 1999;
j. Assim, não se verificou qualquer celebração de novo contrato entre a Sra. D., na qualidade de senhoria usufrutuária, com o ora Recorrente ou com o seu pai, arrendatário primitivo, mas sim uma mera transmissão da posição de arrendatário;
k. De realçar que a transmissão do imóvel, por doação, com a reserva usufruto a favor da Senhoria não implica a celebração de novo contrato de arrendamento após a doação do imóvel com reserva de usufruto, ou o conhecimento do Recorrente relativamente à transmissão imóvel;
l. A transmissão da propriedade, por doação, acima indicada para os Recorridos não afetava a validade do contrato de arrendamento, não sendo necessário a celebração de um novo contrato, verificando-se, a caducidade do contrato de arrendamento quando ocorre a extinção do usufruto por morte da senhoria-usufrutuária, aplicando-se, independentemente, da transmissão da posição de arrendatário ou da falta de conhecimento do mesmo, ao contrário do que é alegado pelo Recorrente;
m. De notar que a Decisão Recorrida, conforme acima exposto, pronuncia-se sobre a celebração do contrato de arrendamento inicial, a transmissão, por doação, do imóvel por parte da senhoria e da transmissão da posição de arrendatário para o Recorrente, após a morte do arrendatário primitivo, ao contrário do que é referido pelo Recorrente.
n. Apesar de o contrato de arrendamento vigorar antes da entrada em vigor da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro (NRAU), a verdade é que o regime desta lei se aplica aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, aplicando-se, igualmente, o disposto no artigo 1051.º, n.º 1, alínea c), e 1053.º, ambos do Código Civil;
o. Independentemente do conhecimento ou falta de conhecimento por parte do Recorrido relativamente à doação e reserva de usufruto a favor da Senhoria, a morte desta determinava a extinção imediata do usufruto, dado que a lei não faz depender esse efeito da verificação de qualquer outro facto,
p. Não se verificou qualquer celebração de novo contrato de arrendamento ou renovação do contrato junto do Recorrente, conforme resulta do disposto nos artigos 1056.º e 1054.º, ambos do Código Civil, e ficou provado na Decisão Recorrida;
q. Ao contrário do que é alegado pelo Recorrente, a idade superior a 65 anos do mesmo não se aplica ao caso em apreço, verificando-se sempre a caducidade do contrato, conforme os motivos supra descritos e conforme consta da Decisão Recorrida,
r. Posto isto, cumpre sublinhar que a transmissão do arrendamento para o Recorrente não afeta a validade do contrato de arrendamento, bem como a transmissão da propriedade, por doação, com reserva de usufruto para a senhoria, para os Recorridos não afetava, igualmente, a validade do contrato;
s. Verificou-se uma mera transmissão da posição de arrendatário para o Recorrente aquando da morte do seu pai, não sendo necessário a celebração de um novo contrato com a senhoria-usufrutuária nessa mesma qualidade,
t. Assim sendo, caducidade do contrato de arrendamento ocorre com a extinção do usufruto por morte da senhoria-usufrutuária, ao abrigo do disposto nos artigos 1476.º, n.º 1, alínea a), 1051.º, alínea c), do Código Civil, independentemente do conhecimento da doação do imóvel por parte do Recorrente.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

***

II - FUNDAMENTAÇÃO

Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
A única questão a decidir é a de saber se o contrato de arrendamento em apreço, celebrado em 08-01-1973, não caducou pela morte da senhoria usufrutuária, em virtude da extinção do usufruto, antes se mantendo válido e em vigor, não assistindo aos Autores os direitos a que se arrogam.

Factos provados

Na sentença foram considerados provados os seguintes factos:
A) Os Autores são donos e legítimos proprietários do prédio urbano localizado na (…) Funchal, em propriedade total com três andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, designadamente as frações ”1BB”, “1BC” e “1BD”, de três pisos, inscrito na matriz predial respetiva com o artigo (…) da freguesia de Santa Maria Maior (Funchal), concelho do Funchal, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número (…) da freguesia de São Gonçalo.
B) O prédio urbano referenciado em A) teve origem no prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 2231 da freguesia de São Gonçalo, concelho do Funchal, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número (…), do Livro n.º (…), da freguesia de São Gonçalo.
C) Ao prédio urbano referenciado em A) foi emitido o Alvará de Licença de Habitação n.º (…)/1961, pela Câmara Municipal do Funchal.
D) No dia 8 de janeiro de 1973, D., na qualidade de anterior proprietária, deu de arrendamento para habitação a fração 1.º “BC” do prédio urbano referenciado em A) a E., pai do Réu.
E) Por sua vez, no dia 20 de novembro de 1997, no Cartório Notarial de Câmara de Lobos, D., viúva de F., com quem foi casada no regime de separação de bens, doou, em comum e em partes iguais, aos Autores, o prédio urbano referenciando em A), reservando para si o usufruto.
F) O contrato de arrendamento referenciado em D) manteve-se em vigor, com D. na qualidade de senhoria.
G) A doação do imóvel referenciado em A) foi registada a favor dos Autores pela AP. 40 de 09-12-1997.
H) Durante a vigência do arrendamento, E. habitava com o seu filho, A., Réu, na fração identificada como ”1BC” do prédio urbano referenciado em A), localizado na (…) Funchal.
I) E. permaneceu com o seu filho, Réu, nesta fração até à data da sua morte.
J) E. faleceu no dia 14 de fevereiro de 1999.
K) No dia 17 de fevereiro de 1999, foi remetida uma carta ao Réu pelo Dr. G., na qualidade de advogado, sem fazer referência a quem o mandatou para o efeito, solicitando a comparência deste no seu escritório a 23 de fevereiro de 1999 para “tratar de assunto do seu interesse, relacionado com o falecimento do seu pai”.
L) Os Autores não conhecem o que foi discutido na reunião realizada no dia 23 de fevereiro de 1999, dado que não foram estes, na qualidade de proprietários, a contactar com o Dr. G..
M) O Réu enviou carta a D., a 16 de junho de 2009, alegando ter dado conhecimento do falecimento do seu pai à senhoria e invocando a transmissão do arrendamento por morte do arrendatário primitivo (seu pai) para si em detrimento da caducidade do contrato de arrendamento.
N) O Réu, na qualidade de arrendatário, procedeu ao depósito, junto da conta titulada pela senhoria usufrutuária, D., na Caixa Geral de Depósitos, no montante de 6.772,00 escudos.
O) Desde o ano de 2002, D., na qualidade de senhoria, procedeu a diversas atualizações de renda, por comunicações dirigidas ao Réu.
P) No dia 26 de junho de 2009, D. outorgou uma procuração pela qual instituiu os Autores a “arrendarem, no todo ou na parte, pelo prazo, renda, condições que entenderem convenientes, receber rendas, passar e assinar recibos, renovar e prorrogar ou rescindir os respetivos contratos, realizar obras e atualizar rendas, bem como praticarem os demais actos, em sua representação, junto de quaisquer serviços públicos, relativos ao prédio urbano sito na freguesia de São Gonçalo, concelho do Funchal, (…), inscrito na matriz predial desta freguesia sob o artigo (…), do qual é usufrutuária e de que ambos são comproprietários”.
Q) Em 10 de outubro de 2009, D. requereu a avaliação ao prédio urbano referenciado em A) junto do Serviço de Finanças competente para efeitos de atualização de rendas ao abrigo do NRAU, a qual foi realizada no dia 30 de novembro de 2009.
R) Mais requereu D., para o mesmo efeito, a vistoria por parte da Câmara Municipal do Funchal.
S) O Réu conhecia a qualidade de senhoria de D..
T) Com a entrada em vigor do Novo Regime de Arrendamento Urbano, a 12 de novembro de 2012, foi desencadeado um processo de atualização de rendas.
U) A renda foi atualizada para 137,00 € mensais.
V) No dia 16 de março de 2017, os Autores, em nome e representação de D., promoveram a transição do contrato para o NRAU, procurando atualizar a renda para 350,00€ mensais, o que mereceu oposição do Réu em 28 de março de 2017.
W) D., senhoria, faleceu no dia 14 de julho de 2021, na freguesia de São Pedro, concelho do Funchal, no estado de viúva de F.
X) No dia 2 de agosto de 2021, os Autores entregaram o Imposto de Selo – Participação de Transmissões Gratuitas, junto do Serviço de Finanças competente, onde comunicaram a consolidação da propriedade plena do prédio imóvel objeto da escritura de doação outorgada a 20 de novembro de 1997.
Y) A 16 de agosto de 2021, os Autores, na qualidade de comproprietários do prédio urbano referenciado em A), comunicaram ao Réu o falecimento de D. e invocaram a caducidade do contrato de arrendamento em face da sua plena propriedade.
Z) A comunicação enviada teve o seguinte teor: “Com referência ao contrato de arrendamento do imóvel sito na (…) concelho do Funchal, estabelecido pela usufrutuária D., na qualidade de Senhoria, na sequência do óbito do primitivo arrendatário do mesmo imóvel, Sr. E., a 14 de fevereiro de 1999, vêm os legítimos e plenos comproprietários comunicar o seu óbito, no passado dia 14 de julho de 2021 (...). O contrato de arrendamento celebrado pelo usufrutuário de um prédio, na qualidade de senhorio, caduca pela morte deste. (...) O falecimento da usufrutuária, sua Senhoria, acarreta necessariamente a cessação do contrato de arrendamento por caducidade, exigindo-se a restituição do imóvel devoluto e livre de ónus e encargos (decorrentes do seu uso e fruição) no prazo de 6 (seis) meses, contados da data da receção da presente comunicação.”
AA) Perante a devolução da carta enviada pelos Autores, estes procederam ao envio de uma 2.ª comunicação para o Réu, datada de 29 de agosto de 2021, pela qual transcreveram o conteúdo da comunicação anteriormente enviada.
BB) Os Autores requereram ao Réu a restituição do imóvel devoluto e livre de ónus e encargos (decorrentes do seu uso e fruição) no prazo de seis meses, contados da data limite para proceder ao levantamento da primeira missiva junto do posto dos CTT – Correios de Portugal, ou seja, dia 26 de agosto de 2021.
CC) Em resposta, a 14 de setembro de 2021, o Réu opôs-se à desocupação do imóvel, invocando já ter completado a idade superior a 65 anos e o facto de residir no prédio há mais de 15 anos, juntando, para o efeito, cópia de atestado da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior e cópia de assento de nascimento.
DD) A 20 de Setembro de 2021, os Autores enviaram uma nova comunicação ao Réu, de onde se lê que os dois argumentos apresentados pelo mesmo “não se aplicam às situações de caducidade do contrato de arrendamento, nem à possibilidade de os proprietários exigirem a desocupação do locado, com aviso prévio de 6 (seis) meses», pelo que o mesmo deveria considerar que «a extinção do direito de usufruto (...) acarreta necessariamente a cessação do contrato de arrendamento por caducidade”, devendo o imóvel ser restituído no prazo de 6 meses contados a partir de 26 de agosto de 2021.
EE) No dia 1 de outubro de 2021, por carta registada com aviso de receção, o Réu veio requerer aos Autores o envio da cópia do contrato de arrendamento, no prazo de 10 dias, reiterando a sua intenção de não desocupação do imóvel por “se encontrar consagrado no regime a proteção de pessoas idosas que sejam arrendatários e que residam no locado há mais de 15 anos, conforme a Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro”.
FF) A resposta pelos Autores seguiu para o Réu no dia 10 de outubro de 2021, por carta registada com aviso de receção, mencionando que todas as relações contratuais estabelecidas na sequência do óbito de E., primitivo arrendatário, não foram objeto de qualquer intervenção dos proprietários do prédio urbano referenciado em A).
GG) Nomeadamente, a comunicação daquele óbito à senhoria usufrutuária e o eventual acordo com a senhoria, D., na transmissão do arrendamento.
HH) Os Autores exigiram, novamente, a restituição do imóvel pelo Réu no prazo de 6 meses contados a partir do dia 26 de agosto de 2021, ou seja, até ao dia 26 de fevereiro de 2022, sob pena de interposição de ação judicial.
II) Por comunicação datada de 10 de fevereiro de 2022, enviada com aviso de receção, os Autores comunicaram ao Réu que este poderia permanecer no locado até ao dia 28 de fevereiro de 2022.
JJ) Solicitando, ainda, a entrega das chaves do imóvel até ao dia 1 de março de 2022, por carta registada com aviso de receção, restituindo-o devoluto de quaisquer ónus ou encargos ou, em alternativa, proceder à entrega das mesmas nessa fração autónoma “BC”, devendo o Réu, nessa hipótese, comunicar-lhes uma hora para o efeito, sob pena de acionarem os devidos meios legais.
KK) O Réu apresentou uma nova resposta, a 17 de fevereiro de 2022, pela qual reiterou o conteúdo das cartas datadas de 14 de setembro de 2021 e 1 de outubro de 2021.
LL) No dia 28 de fevereiro de 2022, o Réu não restituiu o imóvel aos Autores.
MM) Os Autores comunicaram, novamente, ao Réu a caducidade do contrato de arrendamento relativo ao imóvel, por extinção de usufruto por falecimento da senhoria usufrutuária, D., com efeitos a partir do dia 31 de maio de 2022.
NN) Anexando, ainda, a cópia do assento de óbito de D., senhoria usufrutuária, e a comunicação remetida para o Réu, datada de 16 de agosto de 2021.
OO) Deste modo, os Autores informaram o Réu que a entrega do imóvel seria precedida de vistoria pelos comproprietários ou seus representantes, pelas 10h00m do dia 31 de maio de 2022.
PP) Requerendo, ainda, que a entrega do imóvel objeto do contrato, livre de pessoas e bens, até às 10h00m do dia 31 de maio de 2022, sob pena de os comproprietários instaurarem ação judicial de despejo.
QQ) No dia 02 de maio de 2022, o Réu respondeu à última missiva enviada pelos Autores, reiterando o conteúdo das missivas de 14 de setembro de 2021, 01 de outubro de 2021 e 17 de fevereiro de 2022 e reafirmando o seguinte: “completamente a possibilidade de não desocupar o locado, uma vez que se encontra consagrado no regime a proteção de pessoas idosas que sejam arrendatárias e que residam no mesmo local há mais de 15 anos”.
RR) Até ao dia 31 de maio de 2022, o imóvel não foi entregue pelo Réu aos Autores.
SS) Desde a data do óbito de D., a 14 de julho de 2021, o Réu arrendatário encontra-se no locado, apesar da oposição dos proprietários, Autores.
TT) Não obstante, durante este período, os Autores têm recebido as rendas.
UU) Os Autores têm conhecimento de que o Réu sempre residiu com o seu pai na fração referenciada em D).
VV) Após a morte de E., as rendas foram pagas pelo Réu.
WW) Após a morte de E., as cartas enviadas referentes à atualização da renda foram endereçadas ao Réu.
XX) O Réu nasceu a 29 de março de 1953.

Da caducidade do contrato de arrendamento

Na fundamentação de direito da sentença recorrida teceram-se as seguintes considerações (inserimos as notas de rodapé entre parenteses retos; sublinhado nosso):
«a) Natureza jurídica do acordo celebrado entre as partes
Da factualidade dada como assente, resulta claro que está em causa nos presentes autos um contrato de arrendamento urbano para fins habitacionais, cuja regulamentação jurídica radica nos artigos 1022.º, 1023.º e 1064.º do Código Civil.
Trata-se de um contrato sinalagmático, porquanto implica para as partes obrigações recíprocas e correlativas entre si, designadamente para o locador as obrigações constantes do artigo 1031.º do Código Civil e, para o locatário as constantes no artigo 1038.º, onde se insere a restituição do locado findo o contrato (alínea i)).
Ora, estando assente que as partes, ou antecessores de cada qual (D. na qualidade de antecedente proprietária / senhoria e E., na qualidade de antecedente arrendatário), acordaram, por escrito, em 08 de Janeiro de 1973, em ceder o gozo e a fruição da fracção autónoma, concretamente para habitação, mais bem descrita em D), com referência ao prédio mais bem descrito em A), mediante o pagamento de uma contraprestação mensal, dúvidas não restam de que tal acordo consubstancia um contrato de arrendamento urbano, o qual para fins habitacionais.
b) Existência da obrigação do réu, respectiva falta de cumprimento e consequências
Aqui chegados, invocam os autores ter o sobredito contrato cessado por caducidade em razão do óbito de D. (como sobredito, proprietária / senhoria à data da celebração do contrato de arrendamento, todavia usufrutuária / senhoria desde 20 de Novembro de 1997, data da doação do prédio referenciado em A) aos autores com reserva de usufruto), com consequente consolidação da propriedade plena dos próprios, almejando a restituição do arrendado livre de pessoas e bens.
Analisemos a pretensão dos autores em face da factualidade assente, percorrendo as vicissitudes do arrendamento em apreço.
Desde logo, está assente que o contrato de arrendamento foi celebrado entre D. e E. em 08 de Janeiro de 1973, nas respectivas qualidades de proprietária – senhoria e arrendatário.
Mais assente se pode dar, pois assim o aceitaram os autores (D., já como usufrutuária – senhoria, mercê da doação com reserva de usufruto de 20 de Novembro de 1997), que, por óbito de E., ocorrido em 14 de Fevereiro de 1999, foi transmitido ao réu, seu filho, o respectivo direito ao arrendamento, nos termos da lei em vigor à data do óbito. Tal o foi na medida em que o réu residia no arrendado com o pai desde a data da celebração do contrato de arrendamento.
Por seu turno, em 14 de Julho de 2021, faleceu a senhoria – usufrutuária D..
Nessa sequência, os autores comunicaram tal óbito ao réu, invocando perante este a caducidade do contrato, consequência da extinção do direito de usufruto (da falecida D.) e consolidação da propriedade plena (dos autores). Por conseguinte, advogaram a restituição da fracção autónoma. Tal posição manifestaram os autores perante o réu inúmeras e sucessivas vezes, sendo que sempre mereceu oposição do último.
A discordância do réu radica essencialmente no seguinte arrazoado: foi-lhe transmitido o direito ao arrendamento por morte do pai; reside no arrendado desde 1978; tem mais de 65 anos.
Subsumindo.
No que concerne à questão do usufruto, importa colacionar o artigo 1476.º, n.º 1, al. a), do Código Civil, segundo o qual: “O usufruto extingue-se: a) Por morte do usufrutuário, ou chegado o termo do prazo por que o direito foi conferido, quando não seja vitalício (...)”
Mais estipula o artigo 1056.º, do Código Civil: “Se, não obstante a caducidade do arrendamento, o locatário se mantiver no gozo da coisa pelo lapso de um ano, sem oposição do locador, o contrato considera-se igualmente renovado nas condições do artigo 1054.º” [1 Glosando sobre o artigo, NETO, Abílio, Código Civil Anotado, 20.ª Edição Actualizada, Abril 2018, Lisboa: Ediforum, pp. 1001 a 1002].
Não é controvertida a transmissão do direito de arrendamento de E. para o réu, por óbito do primeiro. Os autores aceitam-no. Donde, à data do óbito da senhoria – usufrutuária, o réu assumia a posição de arrendatário.
Noutro prisma e sem prejuízo, tal circunstância não contende com a extinção do direito de usufruto fundada no óbito da usufrutuária. Destarte, caducou o contrato de arrendamento, considerando que, à data do seu óbito, D. assumia-se na relação de arrendamento, perante o réu, como senhoria – usufrutuária e já não, conforme primitivamente, senhoria – proprietária. Disto tinha o réu conhecimento e aceitava-o, e mesmo que assim não fosse.
Ou seja, o cerne da questão é a qualidade de D. e não tanto, como sobejamente discute o réu, a sua. Sendo dispensável a consideração da idade do réu ou o tempo que residiu no locado, visto que para os autores é pacífica a qualidade de arrendatário do réu. Tais argumentos terão relevado por ocasião da transmissão do arrendamento por morte do primitivo arrendatário (seu pai) para o réu. Porém, não relevam no momento em debate (morte da senhoria – usufrutuária).
Inversamente, é a qualidade da senhoria (usufrutuária e não proprietária no momento do seu decesso), mormente a sua extinção e, evidentemente, a não intenção por partes dos autores em renová-lo, que origina a caducidade do contrato de arrendamento com sua não renovação, em conformidade com a tese dos autores [2 Vejam-se:
- o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, prolatado em 04/02/2020, no processo n.º 18090/18.8T8LSB.L1-7, disponível em www.dgsi.pt: “I. O usufruto caduca por óbito do usufrutuário; o contrato de arrendamento que tenha sido celebrado pelo usufrutuário caduca quando cesse o direito ou findem os poderes legais de administração com base nos quais o contrato foi celebrado; consequentemente, o contrato de arrendamento em que era senhorio o usufrutuário caduca com o óbito deste. II. A norma que estabelece que, não obstante a caducidade do arrendamento, se o locatário se mantiver no gozo da coisa pelo lapso de um ano, sem oposição do locador, o contrato considera-se renovado apenas se aplica quando permanecem idênticas as pessoas do senhorio e do arrendatário, o que não sucede quando o senhorio era usufrutuário e faleceu.”
- a contrario sensu atenda a oposição dos autores e o não envio de comunicação por parte do réu, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, prolatado em 03/05/2012, no processo n.º 340/1998.E1.S1.L1.S1: “ I - Aos arrendamentos celebrados antes da entrada em vigor do RAU, aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15-10, não são aplicáveis as normas do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27-02, por não funcionar, quanto a eles, a previsão do art.º 26.º, n.º 1 da Lei n.º 6/2006, de 27-02. II - A morte do usufrutuário extingue o usufruto, fazendo reverter para o proprietário de raiz a plenitude da propriedade. III - Do teor do art.º 1051.º, n.º 1, al. c), do CC, não resulta que a morte do arrendatário faça caducar, automática e necessariamente, o contrato de arrendamento, o que só sucede se o direito ou os poderes legais de administração, com base nos quais este contrato foi celebrado, cessarem com tal morte. IV - Ocorrendo, nos termos do preceito legal referido em II, a caducidade do contrato de arrendamento, e verificando-se os pressupostos a que alude o art.º 94.º do RAU, nasce para o arrendatário o direito a um novo arrendamento, direito este que deve ser exercido nos 30 dias subsequentes à caducidade, mediante declaração escrita enviada ao senhorio.”]. Que merece acolhimento, adianta-se.
Destarte, o contrato de arrendamento caducou em face da extinção do direito de usufruto de D. causada pelo respectivo óbito. E inexiste novo arrendamento por oposição dos autores.
A cessação do contrato acarreta o inerente dever de restituir o arrendado.
Nada do que se vem de dizer é prejudicado pelas circunstâncias de o réu permanecer a habitar o arrendado, pagar as rendas e os autores estas receberem. Tão-pouco por a correspondência atinente ao pagamento de rendas ser endereçada pelos autores ao réu. É cristalina a oposição dos autores quanto à permanência do réu no arrendado, compulsada a factualidade provada. E sempre é devida compensação pelo uso do imóvel [3 Atente-se, neste particular, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, prolatado em 17/05/2022, no processo n.º 974/21.8T8PFR.P1, disponível em www.dgsi.pt: “I. O usufruto caduca por óbito do usufrutuário; o contrato de arrendamento que tenha sido celebrado pelo usufrutuário caduca quando cesse o direito ou findem os poderes legais de administração com base nos quais o contrato foi celebrado; consequentemente, o contrato de arrendamento em que era senhorio o usufrutuário caduca com o óbito deste. II. A norma que estabelece que, não obstante a caducidade do arrendamento, se o locatário se mantiver no gozo da coisa pelo lapso de um ano, sem oposição do locador, o contrato considera-se renovado apenas se aplica quando permanecem idênticas as pessoas do senhorio e do arrendatário, o que não sucede quando o senhorio era usufrutuário e faleceu.”]. Não se olvidando, neste conspecto, que, em parte do tempo, os autores agiram junto do réu somente na qualidade de procuradores da senhoria – usufrutuária.
Há, assim, lugar à declaração da cessação do contrato de arrendamento, por caducidade, com consequente condenação do réu à restituição do arrendado livre de pessoas e bens. Ponderando a idade do réu, tal restituição deverá ocorrer no prazo de 60 (sessenta) dias a partir da data do trânsito em julgado da presente decisão.
Termos em que procedem os pedidos.»
O Apelante discorda deste entendimento, defendendo, em síntese, que o contrato de arrendamento não caducou pela morte da senhoria usufrutuária, em consequência da extinção do usufruto.
Os Apelados consideram que se verificou a caducidade do contrato em apreço.
Apreciando.
Não se discute a qualificação jurídica do aludido contrato de arrendamento para fim habitacional, nem a transmissão do direito ao arrendamento (para o Réu) por morte do primitivo arrendatário (antes da morte da usufrutuária), afirmando-se na sentença recorrida que, por óbito de E., ocorrido em 14 de fevereiro de 1999, foi transmitido ao Réu, seu filho, o respetivo direito ao arrendamento, nos termos da lei em vigor à data do óbito, na medida em que o Réu residia no arrendado com o pai desde a data da celebração do contrato de arrendamento. Assumimos que o Tribunal a quo, terá considerado aplicável o art.º 85.º, al. b), do Regime do Arrendamento Urbano (RAU) aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15-10, e a jurisprudência do Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 410/97, publicado no Diário da República n.º 155/1997, Série I-A de 08-07-1997, que decidiu “declarar inconstitucional, com força obrigatória geral, por violação do disposto na alínea h) do n.º 1 do artigo 168.º da CR, a norma do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 278/93, de 10 de Agosto, na parte em que elimina o n.º 3 do artigo 89.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro”; lembramos que o art.º 89.º do RAU dispunha, no que ora importa, sobre a comunicação (por escrito) ao senhorio, pelo transmissário não renunciante, da morte do primitivo arrendatário, e que o seu n.º 3 estabelecia que “A inobservância do disposto nos números anteriores não prejudica a transmissão do contrato mas obriga o transmissário faltoso a indemnizar por todos os danos derivados da omissão”.
Portanto, está fora de questão considerar que o contrato de arrendamento para habitação celebrado em 08-01-1973 caducou por morte do arrendatário, pai do Réu, tendo este exercido o direito a novo arrendamento, estando afirmado, sem margem para dúvida, que o contrato de arrendamento (celebrado a 08-01-1973) se manteve em vigor, tendo o Réu ficado na posição de arrendatário.
O que se discute apenas é se o contrato de arrendamento caducou em face da extinção do direito de usufruto (de que era titular D.) causada pelo respetivo óbito, ocorrido em 14-07-2021, já na vigência do NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27-02 (sendo o NRAU aplicável ao contrato, nos termos dos artigos 27.º e 28.º da Lei n.º 6/2006).
O Tribunal recorrido considerou que se verificou a caducidade desse contrato de arrendamento, o que fundamentou com referência ao disposto:
- no art.º 1476.º, n.º 1, al. a), do CC, nos termos do qual o usufruto se extingue, além do mais, por morte do usufrutuário;
- no art.º 1056.º do CC, aparentemente (face aos acórdãos da Relação de Lisboa e do Porto citados) para concluir não ser aplicável ao caso (isto é, não ter sido “renovado” o contrato);
- e ainda ao art.º 1051.º, n.º 1, al. c), do CC, ante uma menção feita no relatório à jurisprudência citada.
Pese embora no relatório e no dispositivo da sentença seja feita referência ao art.º 1051.º, al. a), e ao art.º 1143.º, 1.ª parte, ambos do CC, parece-nos claro que essa menção se deveu a lapso, até porque estes preceitos são manifestamente inaplicáveis ao caso. Efetivamente, o art.º 1143.º do CC dispõe sobre a forma do contrato de mútuo, e a alínea a) do art.º 1051.º do CC prevê que o contrato de locação caduca “Findo o prazo estipulado ou estabelecido por lei” (norma cuja interpretação tem suscitado alguma controvérsia - a este respeito, exemplificativamente, veja-se, Pinto Furtado, no seu “Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano”, 2022, 4.ª edição, Almedina, págs. 182-183 -, mas que, obviamente, não vem ao caso).
Sendo certo que o art.º 1476.º, n.º 1, al. a), do CC prevê a extinção do usufruto por morte do usufrutuário, parece-nos que o Tribunal a quo pretendeu acolher as razões de direito invocadas na Petição Inicial, considerando ser aplicável o art.º 1443.º, 1.ª parte, do CC, nos termos do qual o usufruto não pode exceder a vida do usufrutuário, e, no que ora importa, o art.º 1051.º, al. c), do CC, em que se prevê que o contrato de locação caduca “Quando cesse o direito ou findem os poderes legais de administração com base nos quais o contrato foi celebrado”.
Impõe-se, pois, atentar neste último preceito legal, interpretando-o de modo a concluir se é ou não aplicável ao caso dos autos. Estabelece tal normativo que o contrato de locação caduca em dois casos distintos: (i) quando cesse o direito com base no qual o locador celebrou o contrato e (ii) quando findem os seus poderes legais de administração. A este propósito, veja-se a explicação de Pires de Lima e Antunes, no “Código Civil Anotado”, Volume II, 3.ª edição, Coimbra Editora, pág. 413:
“A alínea c) prevê todos os casos de cessação do direito ou dos poderes legais de administração com base nos quais o contrato foi celebrado.
As leis anteriormente vigentes referiam especialmente certos casos. O Código de 1867 aludia, nos artigos 1601.º e 1602.º, aos administradores de bens dotais, aos usufrutuários, aos fiduciários, e aos arrendamentos de bens dos menores e interditos. A doutrina destes artigos passou, nos mesmos termos, para os artigos 9.º e 11.º do Decreto n.º 5411 e para os artigos 41.º e 42.º da Lei n.º 2030 (que resolveu expressamente algumas dúvidas suscitadas no domínio da legislação anterior). São estes os casos mais vulgares e todos eles ficaram abrangidos pelo preceito genérico da alínea c) deste artigo 1051.º. Assim, no fideicomisso, o direito do fiduciário, com base no qual foi celebrado o contrato, cessa pela sua morte. Não há transmissão dos bens do fiduciário para o fideicomissário, mas sim uma segunda transmissão do causante (testador ou doador) para este último (cfr. artigo 2286.º e respectiva anotação).
Também no caso de cessação do usufruto, caduca o arrendamento feito pelo usufrutuário, exceptuadas as hipóteses previstas no artigo 1052.º (Já o n.º 2 do art.º 41.º da Lei n.º 2030 afastava a resolução do contrato, quando o usufruto se extinguisse por renúncia do usufrutuário ou por confusão do usufruto com a propriedade). De notar, porém, que, no caso de o arrendatário ignorar que o locador era mero usufrutuário, aquele tem direito a uma indemnização pelos danos causados, nos termos do artigo 1032.º (considera-se o contrato não cumprido pelo locado), aplicável por força da alínea b) do n.º 1 do artigo 1034.º Cfr. Alberto dos Reis, Transmissão do arrendamento, na Rer. Leg. Jur., 80.º, págs. 19 e segs.”.
Também Pinto Furtado, no seu “Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano”, 2022, 4.ª edição, Almedina, págs. 184-185, ensina que: “A cessação do direito verifica-se em várias hipóteses que costumam citar-se: a do usufrutuário (art.1476); a do fiduciário (art.º 2290) ou a do sublocador, que dá em locação com base no direito de locatário que lhe advém de um precedente contrato locativo (art.º 1060). Assim, findo o usufruto por uma das causas constantes do referido art.º 1476, ou o fideicomisso (art.º 2290-2), ou deixando o sublocador de ser locatário, caduca a locação que algum deles deu ao locatário.
Por sua vez, a cessação dos poderes legais de administração reporta-se, por exemplo, aos pais relativamente aos bens dos filhos que estejam sob a sua administração (arts. 1878-1, 1889-1, al. m), e 1897), ao curador provisório do ausente, nomeado nos termos do art.º 89, ou o definitivo (art.º 99), ao curador especial de menores, em inventário (art.º 72-1 da Lei nº 23/2013, de 5 de março), ao tutor de menores (art.º 1921), ao administrador de bens de menor, instituído os termos do art.º 1922, ao cabeça de casal da herança (art.º 21-1 da Lei nº 23/2013, de 5 de março); ao administrador da insolvência (art.º 55 CIRE), ao agente de execução, relativamente aos bens penhorados (art.º 756-1 CPC), etc.
Cessando estes poderes legais, caduca a locação que, durante o exercício das suas funções, tenham realizado, seja ela um aluguer ou um arrendamento urbano.
Note-se que se refere a cessação de poderes legais.
Com isso, pretendeu-se excluir os meros portadores de poderes convencionais.
A locação celebrada através de mandato não caduca com a cessação dos poderes do mandatário.
Também aqui, a verificação do disposto no art.º 1056, afastará a caducidade do arrendamento urbano.
Na doutrina e também na jurisprudência (como se pode ver até pela jurisprudência citada na sentença recorrida) é absolutamente pacífico que, em princípio (cf. exceções – art.º 1052.º do CC), com a morte do senhorio/usufrutuário e a respetiva cessação do usufruto [cf. art.º 1476.º, n.º 1, al. a), 1.ª parte, do CC], caduca o contrato de arrendamento que tenha sido feito ou celebrado por aquele, nessa qualidade. Apesar da clareza da letra da norma, também os elementos histórico, teleológico e sistemático a considerar na sua interpretação, o indicam. Veja-se, por exemplo, o art.º 1052.º, al. a), do CC, nos termos do qual o contrato de locação não caduca quando “for celebrado pelo usufrutuário e a propriedade se consolidar na sua mão”.
Portanto, se o usufrutuário deu de arrendamento um imóvel, o contrato caducará com a morte daquele, ante a cessação do usufruto, nos termos conjugados dos artigos 1476.º, n.º 1, al. a), 1.ª parte, e 1051.º, al. c), 1.ª parte, ambos do CC.
Obviamente, este último preceito não se aplica quando o contrato de arrendamento foi celebrado, como aconteceu no caso em apreço, pela proprietária do imóvel: o direito com base no qual esta outorgou o contrato de arrendamento não foi o direito de usufruto, mas sim o direito de propriedade, direito este que não se extinguiu, antes se transmitiu para os Autores - primeiro apenas a nua propriedade, passando depois, com a morte da usufrutuária, a propriedade plena, operando-se a consolidação da plena propriedade. Portanto, com a morte da usufrutuária e a extinção do usufruto daí decorrente, verificou-se a consolidação da propriedade plena, tornando-se os Autores, como comproprietários, senhorios do contrato de arrendamento em apreço, que se manteve em vigor (cf. art.º 1057.º do CC), não se tendo verificado a sua extinção, ope legis, por caducidade.
A interpretação que os Apelados defendem e foi propugnada na sentença recorrida não tem qualquer correspondência na letra da lei, nem nenhuma razão de ser. A circunstância de a senhoria ter passado a ser usufrutuária (tratando-se da mesma pessoa) não significa evidentemente que se possa considerar que o contrato foi celebrado por ela na qualidade de usufrutuária, que então não tinha (pois só passou a sê-lo a partir de 20-11-1997). Logo, o disposto no art.º 1051.º, al. c), do CC não é aplicável ao caso, inexistindo fundamento legal para julgar verificada a caducidade do contrato de arrendamento em apreço.
Assim, sem necessidade de mais considerações, impõe-se concluir pela improcedência (aliás, manifesta) da pretensão dos Autores, pelo que será concedido provimento ao recurso, com a revogação da sentença recorrida, que atendeu tal pretensão.

Vencidos os Autores-Apelados, são responsáveis pelo pagamento das custas processuais em ambas as instâncias (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).

***

III - DECISÃO

Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, que ora se substitui, julgando improcedente a ação e absolvendo o Réu dos pedidos.
Mais se decide condenar os Autores-Apelados no pagamento das custas da ação e do recurso.

D.N.

Lisboa, 18-04-2024
Laurinda Gemas
Vaz Gomes
Higina Castelo