Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
168/23.8T8ALM.L1-2
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: MAIOR ACOMPANHADO
PROVA PERICIAL
FORÇA PROBATÓRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. Nos termos do disposto no artigo 900.º, n.º 1, do CPC, a data a partir da qual as medidas de acompanhamento de maior, decretadas no respetivo processo, se tornaram convenientes é fixada «quando possível»; não sendo possível, não se fixa.
II. Os efeitos em relação a terceiros sempre decorrerão de outras normas, nomeadamente das constantes dos artigos 154.º e 1920.º-C do CC, este último ex vi do artigo 902.º, n.º 2, do CPC.
III. Antes do Código Civil de 1967, o artigo 578.º do CPC-1961, na sua versão original, estabelecia que a força probatória dos exames e das vistorias era apreciada livremente, devendo o julgador fundamentar, porém, a sua conclusão sempre que se afastasse do parecer dos peritos.
IV. Com a entrada em vigor do CC de 1967, o DL 47690, de 11 de maio de 1967, introduziu no CPC as alterações necessárias a adequá-lo ao CC, desaparecendo do código de processo o expresso dever de fundamentar o afastamento da perícia, passando o CPC a repetir que a perícia – primeira ou segunda – é livremente apreciada pelo tribunal (artigo 591.º do CPC-1961, agora artigo 489.º do CPC-2013).
V. O significado da apreciação livre das provas é o que resulta dos n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º do CPC, pelo que, apesar de ter desaparecido do CPC, em sede de prova pericial, o dever de o juiz fundamentar a decisão quando ela se afasta de parecer pericial, esse dever de fundamentação sempre existe por força do disposto no n.º 4 do artigo 607.º do CPC.
VI. O facto de a perícia ter por objeto questões que requerem conhecimentos especiais que o juiz não domina e de ser realizada por especialistas que detêm esses conhecimentos leva a que dificilmente o juiz se afaste das conclusões do perito e das respostas por ele dadas às questões que lhe foram colocadas; verifica-se, em geral, uma especial força prática do juízo científico, sendo a livre apreciação quanto a circunstâncias a ele alheias, como seja a coerência e consistência do texto do relatório pericial, e os factos que o perito pressupôs no seu trabalho, como assentes à partida, e para os quais não são necessários os seus especiais conhecimentos.
VII. No caso sub judice justifica-se o afastamento de uma das conclusões do relatório pericial que não se alicerça no exame feito pelo perito à examinada, mas apenas numa interpretação errada de um relatório de psicólogo que afirma o contrário do que o perito concluiu.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os abaixo assinados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
«A» e «B», respetivamente, requerida (ou beneficiária) e enteada da requerida, na presente ação especial de acompanhamento de maior que à primeira é movida por «C», seu sobrinho, notificadas da sentença proferida em 12/12/2023, que, entre o mais, nomeou acompanhante da requerida o requerente, e com essa sentença não se conformando, interpuseram, separadamente, o presente recurso.
A ação foi intentada pelo sobrinho da requerida, alegando, em síntese, que esta está internada no Centro de Apoio Integrado a Idosos de …, desde …2022, sofrendo de Alzheimer, depressão, problemas graves da função mental, e Parkinson; não tem noção do espaço físico onde se encontra, não reconhecendo sequer quem a visita, nomeadamente o ora requerente; está totalmente dependente de terceiros para as atividades básicas de vida diária, nomeadamente para se alimentar, tratar da sua higiene e tomar a medicação; está totalmente incapaz para a toma de decisões em assuntos próprios, nomeadamente patrimoniais.
Pede que seja decretado o acompanhamento da requerida pelo requerente e definidas as seguintes medidas de acompanhamento:
a) Representação geral, nos termos do artigo 145.º n.º 2 b) e n.º 4 do Código Civil;
b) Administração total dos bens do requerido, moveis, imóveis e contas bancárias, nos termos do artigo 145.º n.º 2 c) e n.º 4 do Código Civil.
Requereu, ainda, que fosse suprida a autorização da requerida para se sujeitar ao acompanhamento, e que fosse dispensado o Conselho de Família, nos termos do artigo 145.º n.º 4 do Código Civil.
Nomeou como testemunhas «D», «E» e «F».
Houve contestação do Ministério Público.
Foi dispensada a autorização da requerida para a propositura da ação.
Por requerimento de 19/04/2023, a beneficiária constituiu mandatário por procuração datada de 12/04/2023.
Em 16/05/2023, a beneficiária veio aos autos requerer que seja autorizada a presença da enteada «B» na diligência de audição da beneficiária; seja pedido à médica assistente dos utentes do Centro de Apoio Integrado a Idosos de …, a Sr.ª Dr.ª «G», relatório sobre as condições de mobilidade e o estado de saúde da ora requerente; seja a ora requerente sujeita a exame pericial a efetuar pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses nos termos e para os efeitos com que idêntico requerimento foi feito pelo M. D. Procurador da República no processo n.º …/23.1T8ALM, cuja certidão consta nestes autos; sejam ouvidas as testemunhas arroladas naquele processo; e, seja autorizada a prestação de declarações por parte de «B» a par das declarações de parte requeridas por «C».
Efetivamente, «B» tinha, no decurso do ano 2022, diligenciado junto do Ministério Público para propositura de ação de acompanhamento de maior da ora requerida.
Tal ação veio a ser efetivamente intentada pelo Ministério Público e, 01/03/2023, deu origem ao processo …/23.1T8ALM, no qual, por despacho de 31/03/2023, a petição foi indeferida por verificada a litispendência reportada aos presentes autos que tinham dado entrada cerca de dois meses antes, em 09/01/2023.
As testemunhas arroladas naquele processo foram: «C» (que é o requerente nos presentes autos), «H» (subscritora de um atestado médico de 18/01/2022, junto como doc. 5 com a petição do mesmo processo, e de um relatório médico de 25/01/2023, junto como doc. 7 com a petição do mesmo processo) e «I».
Na sequência do requerimento de 16/05/2023, foi ordenada a realização e realizado exame pericial, pelo INML, cujo relatório foi juntos aos autos em 24/07/2023.
Ulteriormente, em 15/11/2023, foram ouvidos a requerida, o requerente e a enteada da requerida, «B».
Em 12/12/2023 foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«a) Decretar o acompanhamento de maior de «A», viúva, portadora do Cartão de Cidadão nº …W5 emitido pela República Portuguesa e válido até …, NIF …12, internada no Centro de apoio Integrado a Idosos de …, sito na Rua …, Almada.
b) Aplicar em benefício da acompanhada a medida de acompanhamento de representação geral e administração total de bens, com inibição do direito de celebrar negócios da vida corrente e do exercício de direitos pessoais, como sendo o direito de testar.
c) Fixar a data a partir da qual se verificou a necessidade do acompanhamento em 29/08/2019.
d) Nomear como Acompanhante da beneficiária o seu sobrinho «C», residente na Rua …, Vale de Milhaços, a quem são conferidos poderes gerais de representação da mesma e a quem caberá: i) administrar o património da beneficiária, com obrigação de prestação de contas; ii) proporcionar o apoio e supervisão necessários ao governo da vida pessoal da beneficiária; iii) providenciar relativamente a todas as questões que se prendam com a saúde da beneficiária. iv) promover e permitir o contacto pessoal da beneficiária «A» com a sua enteada «B».
e) Determinar que a medida de acompanhamento em vigor será revista com a periodicidade de 5 (cinco) em 5 (cinco) anos;
f) Não designar, por ora, o conselho de família.»
A requerida não se conformou e recorreu, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«1. O instituto de maior acompanhado, que veio substituir os institutos de inabilitação e interdição veio afirmar a prevalência dos interesses e do bem-estar da pessoa acompanhada e o respeito pelos seus desejos e sentimentos sobre os meros aspectos de manutenção e salvaguarda do seu património.
2. Como tal, ao averiguar-se da idoneidade da pessoa a designar como acompanhante de quem de tal necessite, hão-de ter-se em conta os interesses e preocupações manifestados relativamente à pessoa e ao património do acompanhado.
3. Nos presentes autos resulta patente da prova gravada que ao sobrinho da aqui recorrente, «C», interessa sobretudo a vertente patrimonial que o acompanhamento implica, com nítida relegação do aspecto pessoal no que a afectos e bem estar respeita.
4. O que não é de estranhar dado que só após o início de 2022 é que o referido sobrinho entrou na vida da aqui recorrente. Antes disso, tia e sobrinho mantinham um relacionamento ocasional praticamente só aquando dos aniversários que ambos celebravam.
5. Pelo contrário, a enteada da ora recorrente, «B», viveu com ela como se filha fosse desde os 18 anos e durante 11 anos e 5 meses - até que se casou - e continuou a manter convívio assíduo com ela até que foi internada no Lar onde actualmente se encontra, após o falecimento do marido da recorrente e pai da «B», em princípios de 2022.
6. Os laços afectivos que ao longo de cerca de trinta anos se estabeleceram entre enteada e madrasta justificam que o acompanhamento seja deferido à «B», que sempre cuidou da ora recorrente em termos de saúde e gestão de bens, e se revela a pessoa que melhor é capaz de salvaguardar os seus desejos e sentimentos.
7. Não pondo em causa a necessidade actual de acompanhamento da ora recorrente - que, aliás, tomou a iniciativa de o requerer à Procuradoria do Juízo Local Cível de Almada, onde chegou a tramitar sobre o processo n.º …/23.1T8ALM, Juiz 2 - a fixação da medida de acompanhamento de representação geral e administração total de bens a partir de 29/08/2019 não faz qualquer sentido face à prova existente nos autos, nomeadamente os relatórios da médica especialista em neurologia, Dr.ª «H», segundo os quais em 29/08/2018 as alterações de funções cognitivas da aqui recorrente, de predomínio mnésico, não tinham na altura repercussão nas suas actividades instrumentais da vida diária, pelo que não preenchiam critério de síndrome demencial, e em 18/01/2022 a ora recorrente possuía capacidade cognitiva para a gestão da sua pessoa e bens.
8. A conclusão do perito do INML, que examinou a ora recorrente em 11/07/2023, de que existiria evidência de demência secundária a doença de Parkinson em 29/08/2019 está em contradição com as conclusões expressas pela médica especialista em neurologia que a tem examinado ao longo dos últimos anos.
9. Impunha-se, por isso, o esclarecimento de tal contradição através das diligências que a M. Juiz do tribunal a quo entendesse promover, nomeadamente colhendo declarações de ambos e, eventualmente, de outras pessoas que convivem diariamente com a aqui recorrente (directora do Lar onde está internada, médica do Lar que a acompanha, por exemplo).
10. Ao não ouvir as testemunhas apresentadas pelas partes, a M. Juiz do tribunal a quo violou o disposto no art.º 897.º/1 CPC.
11. Tal omissão compromete irremediavelmente a justeza e equidade da decisão.
12. Devem, salvo melhor entendimento, baixar os autos à primeira instância para que aí se resolva a contradição entre os entendimentos do perito do INML e a médica especialista em neurologia que há vários anos assiste a ora recorrente no que à fixação da data da incapacidade diz respeito.
13. Mostrando os autos, como se entende que mostram nomeadamente através das declarações gravadas e a consideração da interacção pessoal com a aqui recorrente ao longo dos anos, que a pessoa mais idónea para a acompanhar é a sua enteada, deve esta ser desde já designada para o efeito, revogando-se a designação constante da sentença de que se recorre.»
A enteada da requerida também não se conformou e recorreu, com as seguintes conclusões:
«1. Nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 631º do NCPC, a Recorrente, não obstante não ser parte na presente causa, é directa e efectivamente prejudicada pela decisão;
2. A douta sentença recorrida fixou a data a partir da qual se verificou a necessidade do acompanhamento em 29/08/2019, apenas pela análise do relatório elaborado pelo perito médico do Instituto Nacional de Medicina Legal (INML), efectuado a 22/07/2023, estando igualmente a fixar, naquela data, a incapacidade da Requerida em tudo o que tenha dito ou diga respeito à manifestação da sua vontade;
3. A Requerida necessita de acompanhamento, em virtude de algum agravamento do seu estado de saúde, também associado à sua idade, mas não se pode considerar certo que o seu quadro clínico já a impedisse (ou mesmo, actualmente, já a impeça) de, conscientemente, manifestar a sua vontade;
4. Determinando que a Requerida, a partir de 29/08/2019, não estava em condições de manifestar a sua vontade, está a colocar em causa a validade de todas as decisões que a mesma tenha tomado e a validade de todos os actos por si praticados desde então, como o testamento realizado a 13 de Janeiro de «J», actualmente falecido, marido da Requerida e pai da ora Recorrente;
5. Sendo esse acto (testamento) considerado inválido por nele constar o consentimento dado pela Requerida, coloca-se em causa um dado adquirido pela Recorrente e sua irmã, «K», inviabilizando, por força dessa decisão, o seu direito, o que constitui um prejuízo efectivo e directo para a Recorrente e para a sua irmã, pelo que estão verificados os requisitos para se considerar que a Recorrente tem legitimidade para interpor o presente recurso por ser uma pessoa que, directa e efectivamente é prejudicada pela decisão proferida, conforme o disposto no art.º 631º, n.º 2 do Código de Processo Civil;
6. A Recorrente tomou conhecimento da douta sentença no dia 27 de Dezembro de 2023, data em que apresentou requerimento para a emissão de certidão judicial com o teor da mesma, tendo sido disponibilizado, na data indicada, o acesso aos autos e, consequentemente, à citada sentença, pelo que dispõe do prazo de 15 dias, a contar da data em que tomou conhecimento da douta sentença proferida, nos termos dos n.ºs 1 e 4 do art.º 638º do NCPC;
7. Como referido, foi fixado o dia 29/08/2019 como a data a partir da qual se verificou a necessidade do acompanhamento, com base no relatório pericial emitido pelo Instituto Nacional de Medicina Legal (INML) a 22/07/2023;
8. Acontece que esse relatório é contraditório quando comparado a outros relatórios junto aos autos, nomeadamente o relatório da avaliação neuropsicológica de 29/08/2019 e os relatórios emitidos pela médica neurologista a 18/01/2022 e a 25/01/2023;
9. Mais, a referida avaliação neuropsicológica de 29/08/2019 concluiu que os resultados obtidos são sugestivos de alteração de funções cognitivas de predomínio mnésico, mas sem repercussão nas actividades instrumentais de vida diária, não preenchendo, por isso, critério de síndrome demencial;
10. Não há, assim, dúvidas de que, àquela data, a Requerida não padecia de qualquer quadro clínico demencial que a incapacitasse de compreender o sentido e alcance dos actos por si praticados, leitura que igualmente se retira do relatório de 18/01/2022, que especifica que a Requerida tem um quadro parkinsónico com compromisso ligeiro da memória e executivo e que possui capacidade cognitiva para a gestão da sua pessoa e bens, assim como o relatório de 25/01/2023 que indica que a Requerida, seguida desde Maio de 2018, desenvolveu quadro demencial a partir de 2022;
11. O relatório do INML não relevou a conclusão da avaliação neuropsicológica na parte em que refere que os resultados obtidos revelam que, relativamente à Requerida, nessa data, não estava preenchido o critério de síndrome demencial, o que seria de extrema importância por ser demonstrativo de que, naquela data (29/08/2019), a Doença de Parkinson não tinha qualquer efeito na vida e funcionalidade da Requerida, pois, à data, exercia, de modo pleno, pessoal e consciente, os seus direitos e cumpria os seus deveres no âmbito da sua capacidade jurídica e relativamente aos seus interesses pessoais;
12. O citado relatório pericial conclui que a Requerida apresenta o diagnóstico de demência secundária a doença de Parkinson e que, por força dessa afecção, não tem a mínima noção da posse ou do património e que essa afecção já existia em 29/08/2019, data em que foi realizada a já indicada avaliação neuropsicológia;
13. As conclusões dessa avaliação e desse relatório pericial contrariam-se, pois, com aquela foi possível concluir que os resultados obtidos não se reflectem nas actividades instrumentais de vida diária da Requerida, pelo que não está preenchido o critério de síndrome demencial, enquanto o relatório pericial entendeu não dar nenhuma relevância a esta conclusão, concluindo do modo como concluiu;
14. O relatório pericial não ponderou factos determinantes para a boa decisão no que concerne à fixação da data do início da incapacidade da Requerida, não teve critério nem rigor que se impõe na sua elaboração;
15. Não existe documentação clínica que demonstre que, já em Agosto de 2019, a Requerida não tinha noção alguma de posse ou de património e que estivesse já dependente de terceiros para a maioria das actividades básicas e instrumentais da sua vida diária, pois, entre Agosto de 2019 e até 2022, a Requerida encontrava-se capaz de dirigir a sua pessoa, administrar os seus bens e celebrar actos jurídicos em geral;
16. Tais factos retiram-se da própria avaliação neuropsicológica e dos relatórios juntos aos autos datados de 18/01/2022 e de 25/01/2023 e poderiam igualmente ser comprovados mediante o depoimento das testemunhas arroladas e outras que o Tribunal a quo pudesse considerar convenientes ouvir, como as pessoas mais próximas da Requerida e que com ela sempre conviveram, a sua médica neurologista, tudo no âmbito dos seus poderes instrutórios (art.º 897º do NCPC), caso se tivesse procedido à sua inquirição;
17. A doença de Parkinson é uma doença lentamente progressiva e degenerativa, caracterizada por uma dificuldade em iniciar o movimento, lentificação na execução do mesmo e outros sinais como instabilidade postural, tremor de repouso ou rigidez e as alterações cognitivas que acompanham essa doença são ao nível da atenção, do funcionamento executivo e da memória;
18. Conjugando essas características com o quadro clínico da Requerida no período entre 29/08/2019 e, pelo menos, até 08/11/2022, não se está perante um quadro demencial, o que leva a concluir que não tem qualquer fundamento a conclusão do relatório pericial em arbitrar em Agosto de 2019 a data de início da afecção da Requerida, com a consequência de ser considerada incapaz e com a agravante de poderem ser anulados os actos por si praticados, pois, de acordo com os relatórios médicos junto aos autos, entre Agosto de 2019 e, pelo menos, Novembro de 2022, a Requerida estava perfeitamente capaz de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos e cumprir os seus deveres;
19. Em 2022, a Requerida possuía capacidade cognitiva para a gestão da sua pessoa e bens e só terá desenvolvido quadro demencial a partir de 2022, quadro demencial que não teve logo como consequência, como se está a pretender, a total incapacidade da Requerida em expressar a sua vontade e em gerir a sua pessoa e bens, como não tem actualmente, estando ainda capaz de expressar a sua vontade;
20. A demência implica uma diminuição lenta e progressiva da função cognitiva e comportamental, sendo que os sintomas são ligeiros no início, piorando geralmente ao longo de vários anos, o que significa que não ocorre repentinamente de um momento para o outro;
21. O relatório pericial de 22/07/2023 peca por falta de rigor e de critério na sua análise por não ter dado relevo a todos os relatórios que foram realizados e não especificar a metodologia utilizada para a realização do mesmo, requisito essencial para a estrutura de um relatório pericial, onde deve constar as técnicas e ferramentas utilizadas durante o processo de avaliação;
22. Como exemplo, tem-se a conclusão de que a Requerida é incapaz de expressar a sua vontade, não sendo indicada qualquer evidência sobre a metodologia adoptada para demonstrar como se chegou a essa conclusão;
23. A Requerida, apesar da patologia diagnosticada, continua a ter a sua vontade, expressa inequivocamente em diversos momentos da sua vida, a saber o que quer e não quer, algo que facilmente se poderia comprovar através das testemunhas arroladas e outras como as pessoas que lhe são mais próximas e que com ela sempre conviveram, a médica neurologista e o pessoal técnico do Lar onde se encontra a residir e que a acompanham todos os dias desde Março de 2022, o que não foi feito;
24. Salvo o devido respeito, também a douta sentença, ao fixar a data a partir da qual se verificou a necessidade do acompanhamento em 29/08/2019, apoiada pelo relatório pericial de 22/07/2023, peca por defeito, fundamentando-se unicamente na apreciação indevida da matéria de facto constante dos autos;
25. No processo em causa, onde o que prevalece é garantir o imperioso interesse da pessoa maior, deveriam ter sido considerados, na apreciação da prova, os restantes relatórios realizados na pessoa da Requerida, sendo feita uma análise crítica e comparativa entre todos os relatórios, pois estes, em determinados pontos, essenciais, estão em desconformidade com as conclusões do relatório pericial, particularmente quanto à data em que se evidencia que a Requerida padece da afecção de demência secundária a doença de Parkinson, o que leva a uma decisão não conforme com a matéria de facto constante dos autos;
26. Para a boa decisão da causa no que respeita à determinação da data a partir da qual se verificou a necessidade do acompanhamento e, consequentemente, data do início da incapacidade da Requerida, seria imprescindível apurar a verdade e proceder à realização de outras diligências, no âmbito dos poderes instrutórios que são conferidos ao Tribunal a quo pelo art.º 897º do NCPC, que, a terem sido realizadas, permitiriam enquadrar, de forma mais correcta e rigorosa, a situação, permitindo avaliar de forma fundada e evidenciar todas as circunstâncias de facto que poderão relevar no âmbito do momento a partir do qual se poderia considerar como adequado para se decretar a necessidade de acompanhamento;
27. Entende-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 29/10/2020 (Proc. n.º 1243/19.9T8FAF.G1) que “De acordo com os preceitos que lhe são aplicáveis, pode o tribunal investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes, só sendo admitidas as provas que o juiz considere necessárias (artigo 986.º do CPC), de forma a adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna, sem sujeição a critérios de legalidade estrita (artigo 987.º do CPC), devendo procurar antes, pela via do bom senso, a solução mais adequada a cada caso. E bem se compreende que assim seja, atentos os interesses subjacentes ao processo em causa, cabendo ao juiz a função de gerir o modo como deve ser satisfeito o interesse fundamental que é tutelado pelo direito.”;
28. O Tribunal a quo não realizou nem determinou quaisquer diligências probatórias suplementares tendentes ao apuramento das aludidas circunstâncias, pelo que o processo de convicção, com o devido respeito, afigura-se ilógico e irracional, violando as regras da experiência comum na apreciação da prova;
29. Perante o referido, existe fundamento para alterar a decisão proferida pelo Tribunal recorrido sobre a matéria de facto no que concerne à data decretada para necessidade das medidas de acompanhamento, por não se concordar com a argumentação expedida, a qual não está em consonância com os meios probatórios produzidos nem apoiada em outros meios de prova que seria de maior relevância para tal determinação e apuramento da verdade;
30. Pelo que, nesta medida, deverá ser anulada a decisão recorrida, em conformidade com o disposto no citado art.º 662º do NCPC, de forma a permitir a ampliação da matéria de facto relevante para a decisão da causa.
Mais, pese embora outro entendimento, considera-se que a decisão sob censura violou o n.º 1 do art.º 897º do NCPC.»
O recorrido opôs-se à admissão de ambos os recursos e respondeu-lhes também, pronunciando-se pela confirmação da sentença recorrida.
O Ministério Público também apresentou contra-alegações, pronunciando-se pela confirmação da sentença.
Os recursos foram bem admitidos em 1.ª instância.
Colhidos os vistos, nada obsta ao conhecimento do mérito.
Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões, que correspondem, respetivamente, ao recurso da requerida e ao recurso da sua enteada «B»:
a) Deve ser nomeada acompanhante da requerida a sua enteada «B» e não o requerente «C»?
b) Não há fundamento de facto para fixar a data a partir da qual se verificou a necessidade do acompanhamento em 29/08/2019?
II. Fundamentação de facto
A 1.ª instância considerou na sua decisão os seguintes factos:
1) «A» nasceu no dia …1939.
2) O requerente é sobrinho da requerida, conforme certidão de nascimento.
3) A requerida encontra-se internada no Centro de Apoio Integrado a Idosos de …, sito na Rua …, Almada, desde 14 de março de 2022.
4) Quando a requerida deu entrada no Centro de Apoio Integrado a Idosos referido em 3) tinha, como problemas de saúde já diagnosticados, entre outros, Alzheimer, Depressão, problemas graves da função mental, e Parkinson.
5) A requerida apresenta perturbação de memória recente e compromisso de funções executivas e irreversível para a tomada de decisões de forma consciente sendo incapaz de gerir a sua pessoa e bens
6) A requerida denota incapacidade em se orientar espácio-temporalmente e em reconhecer certas pessoas.
7) A requerida não tem a noção do espaço físico onde se encontra.
8) A requerida encontra-se totalmente dependente de terceiros para as atividades básicas de vida diária, nomeadamente para se alimentar, tratar da sua higiene e tomar a medicação.
9) A requerida está totalmente incapaz para a toma de decisões em assuntos próprios, nomeadamente patrimoniais.
10) A requerida não tem capacidade para ser autónoma nem para tomar decisões sobre ela própria e sobre como gerir a sua vida.
11) O quadro clínico apresentado pela requerida continua a evoluir negativamente.
12) A requerida tem dificuldades de locomoção.
13) A requerida não reconhece algumas pessoas e outras confunde-as.
14) Do relatório da perícia médico-legal em psiquiatria, datado de 23/07/2023, constante dos autos, referente à beneficiária, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, resulta o seguinte:
“(…)
IV. Exame direto
À observação, a Beneficiária consegue indicar o seu nome completo.
Não consegue indicar a idade. Capaz de indicar a sua data de nascimento.
Incapaz de reconhecer o sobrinho.
Refere viver em Santiago do Cacém, o que não é verdade.
Ao exame do estado mental:
Consciente, vigil. Colaborante.
Lentificada.
Facies hipomimico.
Contacto néscio.
Discurso de cariz confabulatório.
Desorientada no tempo e no espaço e alopsiquicamente.
Capaz de nomear 3 em 3 objectos
Capaz de repetir uma em duas frases.
Incapaz de efectuar subtracções complexas.
Capaz de captar atenção, mas não de a manter. Consegue ler um texto com dificuladade, mas incapaz de entender o seu signiificado.
Capaz de assinar.
Incapaz da mínima abstracção. Conhece algumas notas, mas não moedas. Não tem noção do seu valor patrimonial quer em pequenos montantes quer em grandes montantes.
Consegue realizar trocos muito simples.
Sem qualquer noção real da proporção ou valor, ou do sentido de posse ou propriedade.
Em entrevista sistémica ao sobrinho, apura-se o seguinte:
- A examinanda alimenta-se sozinha.
- Encontra-se dependente de terceiros para todas as restantes actividades básicas e instrumentais de vida diária.
- Orienta-se no espaço do lar onde reside.
- Desorienta-se fora de casa.
- Utiliza fralda - cueca por incontinência de esfincteres.
V. Discussão, Conclusões e Parecer Psiquiátrico Forense
1. A examinanda apresenta patologia que interfere no exercício, pleno, pessoal e consciente, dos seus direitos e no cumprimento dos seus deveres.
2. A examinanda apresenta uma afecção grave e não acidental.
3. A examinanda apresenta o diagnóstico de Demência secundária a Doença de Parkinson, a que corresponde o código 6D85.0 da International Classification of Diseases, 11th revision.
4. Por força dessa afecção, não apresenta a mínima noção da posse ou do património, sendo dependente de terceiros para a maioria das actividades básicas e todas as actividade instrumentais da vida diária.
5. Existe evidência de que a Beneficiária padeceria dessa afecção em 29-08-2019, pelo que se arbitra em Agosto de 2019 a data de inicio da afecção.
6. É incapaz de expressar a sua vontade.
7. É totalmente incapaz de reger a sua pessoa e de reger os seus bens.
8. A afecção incapacita-a, igualmente, de ter discernimento em relação ao seu estado de saúde, quer física quer mental.
9. Apresenta indicação para manter seguimento em consulta de Neurologia bem como manter integração em Estabelecimento Residencial para Idosos. Assim:
10. A examinanda apresenta os condicionalismos clínicos para que seja aplicado o estatuto de maior acompanhado, na maior abrangência possível.
11. Do ponto de vista médico-legal, a reapreciação do seu estado poderá ser realizada no prazo máximo legalmente previsto (ou seja, cinco anos).”
III. Apreciação do mérito do recurso
1. Do recurso da requerida – pessoa que deve ser nomeada sua acompanhante
O regime do maior acompanhado e o processo conducente a que uma pessoa beneficie do respetivo estatuto foram uma criação da Lei 49/2018, de 14 de agosto, que, do mesmo passo, eliminou da ordem jurídica os institutos da interdição e da inabilitação, antes previstos nas mesmas normas.
As alterações incidiram sobretudo nos artigos 138.º a 156.º do Código Civil e 891.º a 904.º do Código Civil, mas alcançaram também inúmeras outras normas dos mesmos códigos e, ainda, do Código do Registo Civil, do Código de Processo Penal, do Código das Sociedades Comerciais, do Código Comercial, do Regime de Proteção das Uniões de Facto, da Lei de Saúde Mental, do Regulamento das Custas Processuais, do Regime Legal de Concessão e Emissão de Passaportes, da Lei de Investigação Clínica, do Regime Jurídico dos Jogos e Apostas Online, da Lei do Jogo, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, entre outros diplomas. Todas as referências legais a incapacidades por interdição ou por inabilitação, que não tenham sido expressamente alteradas pela Lei 49/2018, passaram a ser tidas como remissões para o regime do maior acompanhado, com as necessárias adaptações (artigo 23.º da Lei 49/2018).
A alteração da nomenclatura foi acompanhada de profunda alteração nos regimes de que podem beneficiar as pessoas que, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, estão impossibilitadas de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres (artigo 138.º do CC).
O processo de acompanhamento de maior tem carácter urgente, aplicando-se-lhe, com as necessárias adaptações, o disposto nos processos de jurisdição voluntária no que respeita aos poderes do juiz, ao critério de julgamento e à alteração das decisões com fundamento em circunstâncias supervenientes (n.º 1 do artigo 891.º do CPC).
Findos os articulados, o juiz analisa os elementos juntos pelas partes, pronuncia-se sobre a prova por elas requerida e ordena as diligências que considere convenientes, podendo, designadamente, nomear um ou vários peritos (artigo 897.º, n.º 1, do CPC).
Uma diligência é sempre imprescindível: a audição direta do beneficiário. Assim o determina, quer o n.º 2 do artigo 897.º do CPC, que o n.º 1 do artigo 139.º do CC.
O acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença; e não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam (artigo 140.º do CC).
No atual regime, o acompanhante é escolhido pelo acompanhado ou pelo seu representante legal, e só na falta de escolha, o acompanhamento é deferido, no respetivo processo, à pessoa cuja designação melhor salvaguarde o interesse imperioso do beneficiário (artigo 143.º do CC). Por outro lado, a medida de acompanhamento limita-se ao necessário e o seu conteúdo é casuístico: o que for pedido, se deferido, podendo o tribunal completar com algum ou alguns dos regimes indicados nas alíneas a) a d) do n.º 2 do artigo 145.º do CC e/ou com «intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas» (alínea e)).
Posto este enquadramento, vejamos o recurso da beneficiária, que assenta em dois aspetos:
i. Narrativa de um conjunto de factos tendentes a concluir que a escolha do acompanhante devia ter recaído sobre a sua enteada «B» e não sobre o seu sobrinho, o requerente «C»;
ii. Alegada omissão de produção de prova requerida.
No que respeita ao primeiro, alega a beneficiária, nas suas alegações, que:
- ao sobrinho da aqui recorrente, «C», interessa sobretudo a vertente patrimonial que o acompanhamento implica, com nítida relegação do aspeto pessoal no que a afetos e bem estar respeita;
- só após o início de 2022 é que o referido sobrinho entrou na vida da aqui recorrente. Antes disso, tia e sobrinho mantinham um relacionamento ocasional praticamente só aquando dos aniversários que ambos celebravam;
- a enteada da ora recorrente, «B», viveu com ela como se filha fosse desde os 18 anos e durante 11 anos e 5 meses - até que se casou - e continuou a manter convívio assíduo com ela até que foi internada no Lar onde atualmente se encontra, após o falecimento do marido da recorrente e pai da «B», em princípios de 2022;
- ao longo de cerca de trinta anos estabeleceram-se entre enteada e madrasta laços afetivos;
- a enteada sempre cuidou da ora recorrente em termos de saúde e gestão de bens.
Para que estes factos pudessem ser considerados deviam ter sido oportunamente alegados pela beneficiária, e não o foram. Mesmo que o tivessem sido, para que fossem considerados em sede de recurso, teria de ter sido impugnada a decisão da matéria de facto e não o foi.
Lembramos que, para que a matéria de facto possa ser alterada em sede de recurso, o recorrente tem de impugnar a decisão sobre a matéria de facto, observando as regras contidas no artigo 640.º do CPC, ou seja, especificando: os pontos da matéria de facto de que discorda; os meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida; e a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. A recorrente não o fez, desde logo porque, não tendo oportunamente alegado tais factos, não pôde no recurso dizer que eles não foram contemplados na decisão devendo ter sido por força dos elementos probatórios x ou y.
No que concerne à omissão de produção de prova requerida, a beneficiária (que por requerimento de 19/04/2023 tinha constituído mandatário por procuração datada de 12/04/2023), em 16/05/2023, veio aos autos requerer que fosse autorizada a presença da enteada «B» na diligência de audição da beneficiária; fosse pedido à médica assistente dos utentes do Centro de Apoio Integrado a Idosos de …, a Sr.ª Dr.ª «G», relatório sobre as suas condições de mobilidade e estado de saúde; fosse sujeita a exame pericial a efectuar pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses; fossem ouvidas as testemunhas arroladas no processo n.º …/23.1T8ALM; e, ainda, que fossem tomadas declarações a «B».
Como acima referido no relatório, «B» tinha, no decurso do ano 2022, diligenciado junto do Ministério Público para propositura de ação de acompanhamento de maior da ora requerida. Tal ação veio a ser efetivamente intentada pelo Ministério Público e, 01/03/2023, deu origem ao processo …/23.1T8ALM, no qual, por despacho de 31/03/2023, a petição foi indeferida por verificada a litispendência reportada aos presentes autos. As testemunhas arroladas naquele processo foram: «C» (que é o requerente nos presentes autos), «H» (subscritora de um atestado médico de 18/01/2022, junto como doc. 5 com a petição do mesmo processo, e de um relatório médico de 25/01/2023, junto como doc. 7 com a petição do mesmo processo) e «I».
Na sequência do requerimento de 16/05/2023, foi ordenada a realização e realizado exame pericial, pelo INML, cujo relatório foi juntos aos autos em 24/07/2023.
Ulteriormente, em 15/11/2023, foram ouvidos a requerida, o requerente e a enteada da requerida, «B».
Das diligências requeridas pela beneficiária, não foi pedido relatório à médica assistente dos utentes do Centro de Apoio Integrado a Idosos de …, Dr.ª «G» e não foram ouvidas como testemunhas «H» e «I».
Terá o tribunal a quo entendido que o relatório da medida assistente nada traria de novo e relevante relativamente aos elementos clínicos constantes dos autos e ao exame pericial do INML; e que os depoimentos de «H» e «I» não seriam necessários (quanto ao primeiro estão nos autos atestado e relatório médico subscritos pela testemunha).
O tribunal a quo não tinha de ordenar todas as diligências pedidas pelas partes, podendo, ao abrigo de poder discricionário, fazer um juízo sobre a sua necessidade ou conveniência (v. artigo 897.º do CPC).
Acrescentamos, ainda, que, durante este processo, a beneficiária não fez escolha do acompanhante nem estava em condições mentais ou cognitivas de o fazer.
Porquanto exposto, improcede o recurso da beneficiária.
2. Do recurso da interveniente «B» – da data a partir da qual se verificou a necessidade do acompanhamento
O recurso da interveniente relaciona-se apenas com a data a partir da qual a beneficiária passou a necessitar de acompanhamento.
Na sentença foi fixada a data de 29/08/2019.
Invoca a recorrente que o quadro demencial da beneficiária não ocorreu antes de 2022, não havendo fundamento para a data fixada na sentença.
Apreciando:
Para fixar a data a partir da qual a beneficiária passou a necessitar de acompanhamento como sendo 29/08/2019, o tribunal a quo valeu-se apenas de uma frase constante do relatório da perícia realizada pelo INMLCF, inserida na parte «V. Discussão, Conclusões e Parecer Psiquiátrico Forense», e que é a seguinte:
«5. Existe evidência de que a Beneficiária padeceria dessa afecção em 29-08-2019, pelo que se arbitra em Agosto de 2019 a data de inicio da afecção
Esta frase, porém, consiste numa conclusão para a qual não se encontra fundamento:
i. não se alicerça no exame pericial, ou seja, na perceção ou apreciação de factos pelo perito, para os quais eram necessários os seus conhecimentos especiais – o perito apenas examinou a beneficiária em 2023; e
ii. não tem fundamento em nenhum outro elemento probatório que o perito tivesse analisado ou que exista nos autos.
A única referência existente nos autos à data de 29/08/2019 consta da seguinte passagem do mesmo relatório pericial, inserida na parte «III. Exame indirecto»:
«· Relatório de avaliação neuropsicológica - 29-08-2019 o Conclui por: “(…) ligeira alteração da iniciativa verbal, desenho do relógio, orientação temporal, moderada alteração da inciativa verbal oral semântica e do cálculo elementar escrito. Ligeira alteração da memória verbal episódica e moderada alteração da memória verbal associativa.(…) ”».
Sucede que:
- Em primeiro lugar, deste trecho não se pode extrapolar para a conclusão antes transcrita e que levou à fixação da data na sentença;
- Em segundo lugar, não existe nos autos qualquer Relatório de avaliação neuropsicológica ou outro, com data de 29-08-2019;
- Finalmente, mas ainda mais importante, o relatório do qual consta o trecho transcrito na parte III do relatório pericial diz exatamente que, na data em que foi realizado (29/08/2018), a beneficiária não evidenciava síndrome demencial, conforme claramente resulta do seu texto que se passa a transcrever na íntegra (encontra-se nas folhas 21 a 23 do pdf que constitui certidão da petição e documentos do processo …/23.1T8ALM, colocada nos presentes autos, via Citius, em 5/4/2023, relatório subscrito por «L», psicóloga):
«Conclusão: O exame neuropsicológico evidencia ligeira alteração da iniciativa verbal oral fonológica, desenho do relógio, orientação temporal, moderada alteração da iniciativa verbal oral semântica e do cálculo elementar escrito.
Relativamente às capacidades mnésicas verifica-se ligeira alteração da memória verbal episódica (com perda de informação após tempo de latência) e moderada alteração da memória verbal associativa (sem perda de informação e beneficiando com o reconhecimento).
Aplicou-se o GDS, obtendo-se um valor total de 2 sugestivo de ausência de sintomatologia depressiva. Não se verifica alteração das actividades de vida diária (DAD), nem alteração no inventário de comportamento frontal (ICF=1; escala de comportamento negativo =0; escala de comportamento de desinibição=1).

Estes resultados são sugestivos de alteração de funções cognitivas de predomínio mnésico, atualmente sem repercussão nas atividades instrumentais de vida diária, não preenchendo por isso critério de síndrome demencial.»
A latere, dir-se-á, ainda, que existe um outro relatório (mesma certidão Citius com p.i. e documentos, inserida em 05/04/2023, pp. 24 e 25), subscrito pela médica neurologista «H», que segue a beneficiária desde 2018, e que aponta no mesmo sentido de não haver demência em 2019, nem antes de 2022.
No caso dos autos apenas podemos afirmar que a beneficiária padecia de problemas graves da função mental na data do internamento, que ocorreu em 14/03/2022 (factos provados 3 e 4). Além disso, não há quaisquer elementos clínicos nos autos que referenciem a demência antes dessa data.
Vistos os factos, vejamos o enquadramento jurídico.
Nos termos do disposto no artigo 900.º, n.º 1, do CPC, a «data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes» é fixada «quando possível». Não sendo possível, não se fixa. Os efeitos em relação a terceiros sempre decorrerão de outras normas, nomeadamente das constantes dos artigos 154.º e 1920.º-C do CC, este último ex vi do artigo 902.º, n.º 2, do CPC.
No caso dos autos, não só não é possível fixá-la antes do internamento, como todos os elementos clínicos anteriores a essa data apontam no sentido de não haver quadro demencial ou outro que comprometa a cognição e a vontade consciente e esclarecida.
O n.º 1 do artigo 899.º do CPC dispõe que, «Quando determinado pelo juiz, o perito ou os peritos elaboram um relatório que precise, sempre que possível, a afeção de que sofre o beneficiário, as suas consequências, a data provável do seu início e os meios de apoio e de tratamento aconselháveis». Enquadrada por esta norma, a frase que consta do relatório pericial («5. Existe evidência de que a Beneficiária padeceria dessa afecção em 29-08-2019, pelo que se arbitra em Agosto de 2019 a data de inicio da afecção») pode entender-se como uma resposta de perito.
As respostas dos peritos pressupõem-se baseadas na perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem (artigo 388.º do CC). Não foi o caso da frase em apreço, que não resultou da perceção pericial (exame à beneficiária realizado em 2023), mas da errada interpretação de um relatório de psicologia, realizado em 2018.
Mesmo às respostas dos peritos propriamente ditas não é reconhecida pela lei força especial. O artigo 389.º do CC é claro: «A força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal».
Antes do Código Civil de 1967, o artigo 578.º do CPC-1961, na sua versão original, estabelecia: «A força probatória dos exames e das vistorias é apreciada livremente, devendo o julgador fundamentar, porém, a sua conclusão sempre que se afaste do parecer dos peritos.»
Com a entrada em vigor do CC de 1967 – cujo artigo 389.º afirma, repete-se, que o resultado da perícia é livremente apreciado pelo juiz –, o DL 47690, de 11 de maio de 1967, introduziu no CPC as alterações necessárias a adequá-lo ao novo CC, desaparecendo do código de processo o especial dever de fundamentar o afastamento da perícia.
O CPC repete que a perícia – primeira ou segunda – é livremente apreciada pelo tribunal (artigo 489.º do CPC).
O significado da apreciação livre das provas é o que resulta dos n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º do CPC: o julgador aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (exceto quanto a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial), devendo, na fundamentação da sentença, declarar os factos que julga provados e os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.
Aqui chegados, devemos dizer que, apesar de ter desaparecido do CPC, em sede de prova pericial, o dever de o juiz fundamentar a decisão quando ela se afasta do parecer do(s) perito(s), esse dever de fundamentação sempre existe  por força do disposto no n.º 4 do artigo 607.º do CPC.
Em geral, podemos dizer que o facto de a perícia ter por objeto questões que requerem conhecimentos especiais que o juiz não domina e de ser realizada por especialistas que detêm esses conhecimentos leva a que dificilmente o juiz se afaste das conclusões do perito e das respostas por ele dadas às questões que lhe foram colocadas. Verifica-se, em geral, uma especial força prática do juízo científico, sendo a livre apreciação relativa a circunstâncias a ele alheias, como seja a coerência e consistência do texto do relatório pericial (clareza da exposição, ausência de contradições, identificação da metodologia e das técnicas utilizadas, justificação da bondade das mesmas), e os factos que o perito pressupôs no seu trabalho, como assentes à partida, e para os quais não são necessários os seus especiais conhecimentos.
Como já tivemos oportunidade de expor, a frase  escrita nas conclusões do relatório pericial, sob o n.º 5, e que conduziu à alínea c) do dispositivo da sentença, não se alicerçou em juízo científico decorrente da análise que o perito fez à beneficiária, mas numa interpretação errada que o perito fez de um relatório que afirma o contrário daquilo que o perito concluiu.
In casu, por tudo o exposto, a conclusão n.º 5  escrita no relatório pericial não tem alicerce seguro, não havendo nos autos qualquer elemento que permita fixar a demência ou a necessidade das medidas de acompanhamento antes da data do internamento.

IV. Decisão
Face ao exposto, os juízes desta Relação acordam em julgar improcedente a apelação da requerida e, por maioria, procedente a apelação da interveniente «B», substituindo o texto da alínea c) do dispositivo da sentença pelo seguinte:
c) Fixar a data a partir da qual se verificou a necessidade do acompanhamento em 14/03/2022.
Sem custas, considerando a isenção expressa no artigo 4.º, n.º 2, al. h) do Reg. das Custas Processuais (alínea que tem atualmente a redação introduzida pelo artigo 424.º da Lei 2/2020, de 31 de março).

Lisboa, 18/04/2024
Higina Castelo (relatora por vencimento)
Carlos Castelo Branco (adjunto)
Vaz Gomes (relator vencido, conforme declaração que se segue)
*
Voto de vencido.
Voto vencido no segmento do acórdão que, revogando a alínea c) da decisão recorrida da primeira instância, fixou “a data a partir da qual se verificou a necessidade do acompanhamento” em 14/03/2022.
Tal como entendi enquanto primitivo relator, as recorrentes- que não impugnam a decisão de facto da primeira instância nos termos da lei de processo-, ao suscitarem dúvidas sobre o teor do relatório pericial em fase recursória, pretendendo que o mesmo encerra contradições com o teor de outros relatórios médicos que o perito apreciou- contradições que o relatório pericial não espelha- não tendo reclamado do relatório pericial ou requerido segunda perícia, fazem-no extemporaneamente e da forma como vêm interpostos os recursos não é possível concluir que a decisão de facto sobre o mencionado ponto de facto sobre a data do início da afecção da examinada encerre qualquer deficiência obscuridade ou contradição a justificar o uso dos poderes anulatórios do art.º 662/2/c, como pretendido no recurso e que pelas razões expostas se não justifica. Consta da decisão de facto :  “ 4) Quando a requerida deu entrada no Centro de Apoio Integrado a Idosos referido em 3) tinha, como problemas de saúde já diagnosticados, entre outros, Alzheimer, Depressão, problemas graves da função mental, e Parkinson.” Ou seja, consta da matéria de facto dada como provada e em que se sustenta o acórdão maioritário que em 14/3/2022, quando a beneficiaria foi internada já a esta tinha sido diagnosticado o conjunto de doenças acima referido de modo que se percebe mal porque razão é que se fixa em 14/3/2022 a data do início da afecção. Por essa razão teria mantido a decisão recorrida na sua totalidade.

Lxa. d.s.
Juiz Desembargador Relator Vaz Gomes