Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
12617/20.2T8LSB.L1-2
Relator: INÊS MOURA
Descritores: JUROS DE MORA
OBRIGAÇÃO ACESSÓRIA
SONEGAÇÃO DE BENS
CERTIFICADOS DE AFORRO
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
RESPONSABILIDADE POR FACTO ILÍCITO
DÍVIDA
HERANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Para se determinar a partir de quando são devidos os juros de mora, importa ter presente qual o facto gerador da obrigação de indemnizar, obrigação que conforme o princípio geral do art.º 562.º do C.Civil, tem como objetivo a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, visando a reparação dos prejuízos sofridos pelo credor.
2. Sendo o evento constitutivo da obrigação de indemnizar a sonegação de certificados de aforro que integravam a herança da falecida, nos termos previstos no art.º 2096.º do C.Civil, estamos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual pela prática de um facto ilícito, pelo que há mora desde o resgate ilícito dos certificados que a herdeira fez seus, nos termos previstos no art.º 805.º n.º 2 al. b) do C.Civil, independentemente de interpelação do devedor.
3. Tendo falecido a autora do ilícito, a dívida principal ou obrigação de restituição dos certificados de aforro sonegados da herança ou do seu valor, bem como a obrigação acessória relativa aos juros de mora, corresponde a uma dívida da responsabilidade da herança daquela, nos termos previstos nos art.º 2068.º do C.Civil.
4. Tendo a primitiva R. sido demandada enquanto única herdeira da autora do ilícito e o R. habilitado como único herdeiro daquela, a sua responsabilidade perante os AA. está limitada às forças da herança da autora do ilícito, como expressamente prevê o art.º 2071.º do C.Civil, pelo que constituindo o crédito dos AA. uma dívida da herança desta, nos termos previstos no art.º 2097.º do C.Civil, estão obrigados a satisfazê-la nos mesmos termos que a primitiva obrigada a quem sucedem, ainda que a sua responsabilidade seja circunscrita aos bens da sua herança.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
Vêm AM, JM, CM, TF e JM, intentar a presente ação com a forma de processo comum contra MO, pedindo a condenação da Ré:
a) a reconhecer que os certificados de aforro melhor identificados na conta aforro nº … integram o acervo hereditário da herança de MO.
b) à restituição à herança do montante de €138.895,02 acrescida de juros moratórios à taxa de 4% ano sobre aquela quantia apurada deste a data do óbito em 13-08-2017, até efetivo e integral pagamento e, enquanto Cabeça de Casal proceder à relacionação dos certificados aforro existentes á data do óbito da MG à AT, para respetiva liquidação do imposto de selo devido.
c) seja proferida a declaração da sonegação de bens da herança de MG por ocultação dolosa dos certificados de aforro em conluio com a irmã MB e o AR respetivo representante, que mantiveram essa ocultação, com as devidas consequências legais;
d) seja declarada a perda a favor dos AA. e da herança da MG do direito ao respetivo quinhão da MO relativamente ao montante apurado de € 138.895,02.
e) Seja declarada a perda a favor dos AA. e da herança da MG do direito ao respetivo quinhão da MB relativamente ao montante apurado de €138.895,02 e da qual por força do testamento outorgado em 2018, a M. Ângela veio a ser a universal herdeira.
Sustentam para o efeito que os AA, conjuntamente com outros, são herdeiros de MG, tal como a Ré. Alegam que MG à data da sua morte era titular de certificados de aforro no valor de €138.895,02. A R. foi nomeada cabeça-de-casal na herança aberta por óbito de MG e apresentou relação de bens, porém, deliberada e intencionalmente com o propósito de prejudicar os restantes herdeiros, omitiu a existência de certificados de aforro. Mais referem que depois da R. e a sua irmã MB passarem em 2013 a residir na Casa de Repouso …, AR foi ganhando progressivamente a confiança das irmãs e a movimentar as suas contas bancárias, tendo os AA descoberto que em 07/11/2017 foi feito um resgate ilícito pela irmã MB de todos os certificados de aforro da pré-falecida irmã MG, omitindo ao IGCP a morte desta. MB conluiada com a R. e orientada por AR apossou-se da totalidade do montante titulado pelos certificados, poucos dias antes da escritura de habilitação de herdeiros de MG. A conta da MB para a qual foi transferido o valor do resgate era movimentada por AR, que terá ajudado e levado ao resgate e ocultação dos certificados de aforro. Os herdeiros legais de MG seriam também os únicos e universais herdeiros de MB não fora a outorga inesperada, em 2018, do 2º testamento desta, através do qual instituiu como herdeira somente a sua irmã germana MO e o amigo AR, na hipótese de MO não sobreviver à testadora, correndo termos ação judicial de impugnação deste testamento. Por força deste testamento o montante resultante da liquidação dos certificados de aforro veio a integrar a esfera patrimonial da R. MO. Até ao presente os AA. desconhecem o destino de €138.895,02 obtido pelo resgate dos certificados de aforro. Concluem que por parte da R. e da falecida MB, de acordo com AR, ocorreu sonegação de bens da herança de MG, como previsto no art.º 2096.º do C.Civil, pelo que deve ocorrer a perda em benefício dos co-herdeiros, do direito que o sonegador teria aos bens que dolosamente ocultou.
Teve lugar a citação da R., tendo no decurso do prazo de contestação, os AA. dado conta do falecimento daquela, na sequência do que deduziram do incidente de habilitação de herdeiros.
Por sentença de 02/03/2021, foi habilitado AR na qualidade de herdeiro da primitiva R., para contra ele prosseguirem os ulteriores termos da ação.
O R. habilitado AR veio apresentar contestação, concluindo pela improcedência da ação no que respeita à imputação feita pelos AA. de que a MO e ele próprio participaram e colaboraram com a MB na alegada sonegação dos certificados de aforro ao acervo hereditário; e, a comprovar-se a sonegação dos certificados de aforro ao acervo hereditário por parte da MB, deve ser declarada a perda do seu respetivo quinhão a favor dos restantes co-herdeiros.
Alega, em síntese, que desconhecia a existência da conta aforro e pelo que conhece de MO só por desconhecimento é que esta não relacionou os certificados de aforro. Acrescenta que ficou responsável pelas irmãs MB e MO após a morte de MG, perdurando o seu relacionamento com elas há mais de 25 anos, acompanhando-as mais intensamente a partir de 2013. Depois de concluído o processo de partilha da herança da MG, as duas irmãs pediram-lhe ajuda para formalizarem dois testamentos recíprocos mantendo o R. como último herdeiro. Reitera que não sabia nem se apercebeu que MB tivesse canalizado para a conta desta o dinheiro correspondente aos certificados de aforro e a MO nunca lhe falou sobre a sua existência.
Os AA pronunciaram-se sobre os documentos juntos pelo R.
Após ter sido determinada e prestada informação pelo IGCP, foi realizada tentativa de conciliação que se frustrou.
Foi dispensada a audiência prévia e proferido despacho saneador que definiu o objeto do litígio e procedeu à enunciação dos temas da prova.
Procedeu-se a julgamento, com observância do legal formalismo.
Foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e decidiu: que os certificados de aforro em questão integram o acervo hereditário de MG; decretou a sonegação pela herdeira MB dos referidos certificados de aforro na quantia global resultante do seu resgate de €139.348,01, e consequentemente, determinou a perda em benefício de todos os restantes co-herdeiros do direito desta àqueles bens; mais condenou o R. na qualidade de único e universal herdeiro da primitiva R. que por sua vez era única e universal herdeira de MB, a restituir de imediato à herança de MG a referida quantia acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data do resgate, absolvendo o R. habilitado do demais peticionado.
É com esta sentença que o habilitado R. AR não se conforma e dela vem interpor recurso, pedindo a sua alteração no sentido de ser absolvido do pedido de condenação no pagamento de juros moratórios à taxa de 4% ano sobre o valor dos certificados de aforro apresentando para o efeito as seguintes conclusões, que se reproduzem:
1 – À data da sua morte, MG era titular da conta aforro nº …, num total de €138.895,02;
2 – Esse facto era do conhecimento de sua irmã germana, MB;
3 – Em 07/11/2017, MB, utilizando a sua qualidade de movimentadora dos certificados de aforro procedeu ao resgate de todos os certificados de aforro da pré falecida irmã MG, a essa data no valor de €139.348,01, omitindo intencionalmente ao IGCP a morte desta e transferiu o montante resultante do resgate para a conta PT50 … da sua titularidade;
4 – Não ficou provado que a conta aforro nº … fosse do conhecimento de MO e recorrente aquando da morte de MG e respectiva partilha de bens;
5 - Não ficou provado que a omissão da morte de MG aquando do resgate tivesse sido feita em conluio com MO e sob orientação do recorrente e muito menos se apurou que este convenceu MO e MB ao resgate e depósito noutra conta do valor titulado pelos certificados de aforro;
6 - O retardamento da entrega do valor dos certificados de aforro à herança não é da responsabilidade do recorrente, uma vez que essa violação não lhe pode ser imputável, por ter sido devida a culpa exclusiva de terceiro, ou seja, da falecida, MB.
7 - Dispõe o nº 1 do artigo 805.º do Código Civil, que o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir, sendo certo que a obrigação do recorrente não advém de facto ilícito por si praticado.
8 - O recorrente foi judicialmente interpelado para cumprir com a notificação da douta sentença, em 19/10/2023, motivo pelo qual deverá ser a partir dessa mesma data que deverá começar a correr o prazo para a contabilização dos juros de mora.
Os AA. vieram responder ao recurso pugnando pela sua improcedência e manutenção da sentença proferida.
II. Questões a decidir
É apenas uma a questão a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo Recorrente nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do CPC- salvo questões de conhecimento oficioso- art.º 608.º n.º 2 in fine:
- do momento a partir do qual se vencem os juros de mora.
III. Fundamentos de Facto
Não tendo sido impugnada a decisão da matéria de facto e não havendo qualquer alteração a introduzir à mesma, remete-se para a decisão do tribunal de 1ª instância, nos termos do disposto no art.º 663.º n.º 6 do CPC, que se reproduz:
1. Os 1º e 2ª Autores são irmãos uterinos e os restantes sobrinhos da primitiva Ré MO e de outras duas irmãs e tias, a MG, falecida a 13/08/2017, no estado civil de solteira, sem descendentes nem ascendentes vivos, e a MB, falecida em 10/01/2020, no estado civil de viúva e sem filhos (arts. 1º e 2º da p.i.).
2. À data da sua morte MG era titular da conta aforro nº …, concretamente de 23.800 unidades de CAF série B no valor de €117.985,82 e de 20.000 unidades de CAF série C no valor de €20.909,20, num total de €138.895,02, o que era do conhecimento de MB (arts. 6º e 20º da p.i – resposta explicativa).
3. Em 03/11/2017 foi aberta na CGD a conta bancária com o IBAN PT50 …, da titularidade de MB (art. 27º da p.i. – resposta explicativa).
4. Em 07/11/2017 MB, utilizando a sua qualidade de movimentadora dos certificados de aforro, procedeu ao resgate de todos os certificados de aforro da pré falecida irmã MG, omitindo intencionalmente ao IGCP a morte da referida MG, e transferiu o montante resultante do resgate de €139.348,01, para a conta PT50 … da sua titularidade, com intenção de se apropriar de tal montante e o subtrair à partilha (arts. 24º, 27º, e 28º em parte da p.i).
5. A habilitação de herdeiros de MG foi outorgada a 16-11-2017, conforme em certidão à p.i. como doc. 1 e cujo teor se dá por reproduzido, aí constando como herdeiros desta os seus irmãos germanos: MO, MB; os sobrinhos, filhos de irmão germano NO pré-falecido em 01-04-2013: IB, SO, LO, PS, e os irmãos uterinos: JM, contribuinte nº …, AM, MD; e os sobrinhos, filhos do pré falecido irmão uterino JM: TM, JM, e CM (art. 3º e 26º da p.i.).
6. Em 24 de Janeiro de 2018, MB passou uma procuração a favor de AR, conferindo-lhe diversos poderes, entre outros, para “Depositar e levantar capitais em bancos, instituições bancárias e outros estabelecimentos de crédito ou companhias de seguro, nomeadamente e no que à Caixa Geral de Depósitos respeita, às contas bancárias com os números …, assinando recibos e cheques; abrir, movimentar a débito e a crédito ou encerrar a contas bancárias de que a mandante seja ou venha a ser titular (…)”, conforme procuração junta com o req. dos AA de 04/07/2023, e que se dá por reproduzida (art. 27º in fine da p.i. – resposta explicativa).
7. A três irmãs, MG, MB e MO, eram muito amigas e em encontros familiares ocorridos em datas não concretamente apuradas falavam entre elas e com outros familiares sobre o facto de possuírem certificados de aforro (art. 29º da p.i. em parte).
8. Em contexto e por razões não concretamente apuradas, AR foi ganhando, progressivamente, a confiança das duas irmãs MB e MO, e ficou responsável pelo internamento destas na Casa de Repouso … desde Abril de 2018 (arts. 13º e 15º da p.i).
9. Pelo menos a partir de 2018, AR passou a efetuar o pagamento das despesas das irmãs MO e da MB e para tanto movimentado as suas contas (art. 15º da p.i).
10. Os herdeiros de MG seriam os mesmos herdeiros da falecida irmã MB, não fosse o 2º testamento por esta outorgado a 23-10-2018, junto em certidão à p.i. como doc. nº 3, cujo teor se dá por reproduzido (art. 3º da p.i).
11. Na sequência da habilitação de herdeiros de MG, a primitiva Ré MO foi nomeada cabeça de casal e nessa qualidade participou o óbito à AT apresentando a relação de bens, pelo que foi gerada a respetiva liquidação do imposto sucessório, e nesta relação de bens não fez referência à existência dos certificados de aforro, tendo a liquidação de imposto de selo tido por base de incidência a matéria coletável de €224.653,25 (art. 7º da p.i).
12. Essa matéria coletável de €224.653,25 foi obtida declarando o valor patrimonial de €30.960,00 da verba nº1 da relação de bens constituída pelo imóvel que era a habitação da falecida e por 3 depósitos bancários na CGD em montantes de €101.772,15, €59.103,29 e €11.942,80 (art. 8º da p.i).
13. Em 04/07/2018, foi realizada a partilha extra judicial entre todos os herdeiros da falecida MG, nas próprias instalações da Caixa Geral de Depósitos da Av. … – Lisboa, dos valores que foram declarados pela então cabeça de casal MO, a saber: saldo da conta nº …, no montante de €101.791,31, saldo da conta nº … no montante de €11.942,80, e saldo da conta nº …, no montante de €60.573,94, no total de €174.308,05 (art. 10º da p.i).
14. Nesta data de 04-07-2018, a Cabeça de Casal MO e a MB não compareceram pessoalmente, tendo a quota parte correspondente ao quinhão da MB sido transferida para a conta da titularidade de MO (art. 57º da p.i).
15. Quer a cabeça de casal quer a herdeira MB foram representadas pelo Dr. JS, o mesmo causídico que foi testemunha com o AR na escritura de habilitação de herdeiros da MG outorgada em 2017, tendo este assinado o documento que no local foi manuscrito com indicação dos IBAN’s das conta bancárias dos herdeiros para onde deveriam ser transferidas as verbas que lhes vieram a caber, constando nesse documento as assinaturas dos herdeiros ou dos seus procuradores (art. 59º da p.i.).
16. Ficou ali a constar que o IBAN indicado para transferência dos montantes que vieram a caber à MB e à MO, foi o mesmo, a conta titulada pela Ré MO, com o nº PT50 … (art. 60º da p.i. em parte).
17. Em visita posterior, ainda nesse dia, à Casa de Repouso …, levada a cabo por alguns dos AA, MO afirmou desconhecer a ida à agência da CGD em 04-07-2018, bem como os montantes recebidos, e a MB mostrou-se alheada e sem comunicar (art. 61º da p.i. em parte).
18. Com data de 11 de Junho de 2018 e reconhecimento de assinatura ocorrido em 18/06/2018, MB passou uma procuração a favor de AR, conferindo-lhe diversos poderes, entre outros, para “Depositar e levantar capitais em bancos, instituições bancárias e outros estabelecimentos de crédito, nomeadamente todas as operações bancárias relacionadas com a conta do Banco CTT no que respeita à conta bancária da mandante com o nº …, assinando recibos e cheques; abrir, movimentar a débito e a crédito ou encerrar a contas bancárias de que a mandante seja ou venha a ser titular (…)”, conforme procuração junta com o req. dos AA de 04/07/2023, e que se dá por reproduzida (facto instrumental resultante da discussão da causa).
19. Em 23/10/2018 no Cartório Notarial de CS – Notária – sito na Av. …, em Lisboa, por testamento outorgado por MB, junto à p.i. como doc. nº 3, MO foi instituída herdeira de todos os bens de que viesse a ter livre disposição à data da sua morte, bem como, na hipótese da MO não sobreviver à testadora, o amigo das mesmas AR, e consta declarado pela MB que era o seu primeiro testamento (arts. 35º e 38º da p.i.).
20. As testemunhas que figuram no testamento de MB não são conhecidas pelos AA (art. 37º, parte final, da p.i.)
21. MB tinha anteriormente outorgado outro testamento, o que fez a 24-07-1990, conforme certidão junta à p.i. doc. nº 4 (arts. 4º e 38º da p.i).
22. MB esteve internada por várias vezes antes da outorga do 2º testamento, e na data do testamento deslocava-se em cadeira de rodas (art. 46º da p.i).
23. Em datas não concretamente apuradas situadas no final de 2017 e no ano de 2018, em visitas ao lar efectuadas pela Autora CM e pela Autora TF, e também pelo Autor JM, MB mostrava-se sem fala e alheada (arts. 48º e 49º da p.i).
24. Corre termos no Tribunal de Lisboa Oeste, sob o nº …/…, acção judicial visando a anulação do 2º testamento de MB (art. 40º da p.i.).
25. Também no mesmo dia 23/10/2018 e no mesmo cartório, MO outorgou testamento através do qual instituiu MB herdeira de todos os bens de que viesse a ter livre disposição à data da sua morte, bem como, na hipótese da MB não sobreviver à testadora, AR, testamento este junto em certidão à contestação como doc. 4 (arts. 36º da p.i. e 128º da contestação).
26. A Ré MO e o Réu habilitado AR não explicaram aos AA porque não eram os herdeiros da MB, e não os informaram da existência do testamento e dos certificados de aforro, nem do resgate (art. 39º da p.i).
27. Em 26/10/2018 teve também lugar no Cartório Notarial IB, em Oeiras, a escritura de partilha por óbito da MG que teve por objeto apenas o apartamento que constituiu o bem imóvel sito na no … andar frente da Av. …, lote …, Buraca, Amadora (art. 11º da p.i).
28. Aquando da escritura de partilha por óbito da MG, ocorrida a 26-10-2018, a então Cabeça de Casal MO e a MB não comparecerem pessoalmente, tendo sido representadas por advogado com poderes para o ato (arts. 47º e 62º da p.i.).
IV. Razões de Direito
- do momento a partir do qual se vencem os juros de mora
O Recorrente não questiona a sentença proferida na parte em que aí se conclui pela sonegação, por parte da MB, dos certificados de aforro que integravam a herança da MG, nem tão pouco questiona que a primitiva R. MO, na qualidade de sucessora daquela estava obrigada a restituir tais bens à sua herança, apenas defendendo que enquanto devedor  só incorre em mora e na consequente obrigação de pagamento dos juros respetivos a partir da notificação da sentença, por só ai ter sido notificado para cumprir.
O tribunal a quo decidiu que são devidos juros de mora desde a data da apropriação dos certificados de aforro, com o limite das forças do recebido pela primitiva R. como única e universal herdeira da MB, salientando que o Recorrente não está a ser demandado a título pessoal, mas apenas enquanto herdeiro universal da primitiva R., que por sua vez foi demandada enquanto herdeira universal da MB.
No presente recurso está apenas em causa a obrigação de pagamento de juros de mora à taxa legal de 4% sobre o valor dos certificados de aforro sonegados e a determinação do momento a partir do qual são devidos.
O art.º 804.º do C.Civil vem estabelecer os princípios gerais sobre a mora do devedor, nos seguintes termos:
“1. A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor.
2. O devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido.”
Por seu turno o art.º 805.º do C.Civil rege sobre o momento da constituição em mora, dispondo:
“1. O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.
2. Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação:
a) Se a obrigação tiver prazo certo;
b) Se a obrigação provier de facto ilícito;
c) Se o próprio devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido.
3 - Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número.”.
Nas obrigações pecuniárias a indemnização devida corresponde aos juros de mora, a contar do dia da constituição em mora, sendo estes os juros legais, a menos que seja devido um juro mais elevado ou as partes tenham estipulado um juro diferente, de acordo com o estabelecido no art.º 806.º n.º 1 e 2 do C.Civil, prevendo ainda o n.º 3 deste artigo que, quando se trate de responsabilidade civil ou pelo risco, o credor pode ainda exigir uma indemnização suplementar, quando prove que o seu dano resultante da mora é superior aos juros devidos nos termos do número anterior.
Para se apurar o momento a partir do qual são devidos os juros de mora importa ter presente, em primeiro lugar, qual é o facto gerador da obrigação de indemnizar, sendo que esta obrigação visa a reparação dos prejuízos sofridos pelo credor e, conforme o princípio geral do art.º 562.º do C.Civil, tem como objetivo a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
A regra prevista no n.º 1 do art.º 805.º do C.Civil de que o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido interpelado para cumprir, comporta as exceções previstas no n.º 2. Desde logo, e tendo em conta o caso que nos interessa avaliar, importa considerar a exceção da al. b) deste n.º 2, de acordo com a qual há mora, independentemente de interpelação, se a obrigação provier de facto ilícito, ainda que tenham de ressalvar-se os casos em que o crédito é ilíquido, conforme estabelece o n.º 3 do art.º 805.º do C.Civil, o que não se afigura de interesse desenvolver por ser situação em que não se integra a questão que nos ocupa.
Diz-nos F. Correia das Neves, in Manual dos Juros, pág. 307: “O n.º 2, al. b), do citado art. 805, ao determinar que há mora independentemente de interpelação, se a obrigação provier de facto ilícito (como acontece se ela tiver prazo certo: a) do mesmo número) deixa inculcar que a mora existe desde a prática do facto ilícito.
Também neste sentido se pronunciam Maria da Graça Trigo e Mariana Nunes Martins, em anotação ao art.º 805.º do Civil, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das obrigações em geral, pág.1128 - 1129, da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa: “A determinação do momento da constituição em mora reveste-se de capital importância dado que é a partir desse episódio constitutivo que se desencadeiam as consequências associadas à mora do devedor, tratando-se de um problema cuja resolução depende da natureza da prestação debitória no respeitante ao tempo do seu vencimento. Nesta sede, importa proceder a uma distinção fundamental entre, por um lado, o grupo de situações em que a constituição em mora não opera per si, estando dependente da iniciativa do credor (mora ex persona), e, por outro lado, aquele grupo de situações em que a mora debitoris surge independentemente dessa iniciativa (mora ex re).” A respeito da al. b) do n.º 2 deste art.º 805 diz-se a pág. 1130: “Um segundo complexo de situações a que o n.º 2 se refere reconduz-se às obrigações que encontram a sua fonte na responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito (fur sempre in mora). Nestes casos, a mora constitui-se a partir da prática do ato ilícito, donde se infere a contemporaneidade do tempo de vencimento da obrigação com o respetivo facto constitutivo.
Na situação dos autos, o evento gerador da obrigação de indemnizar corresponde à sonegação dos certificados de aforro que integravam a herança da falecida MG, pela MB, nos termos previstos no art.º 2096.º do C.Civil, o que situa a responsabilidade civil desta no âmbito da responsabilidade extracontratual pela prática de um facto ilícito, pelo que os juros de mora vencem-se a partir da ocorrência daquele facto constitutivo da obrigação, de acordo com o art.º 805.º n.º 2 al. b) do C. Civil, independentemente de interpelação.
Tem razão o Recorrente quando refere que não se apurou outra culpa que não a da MB, ao resgatar ilicitamente os certificados de aforro da irmã, não se tendo apurado que, quer a herdeira daquela aqui primitiva R., quer o Recorrente o soubessem. Esquece-se, no entanto, que nem ele, nem tão pouco a primitiva R. estão aqui a ser demandados em nome próprio, mas apenas enquanto sucessores daquela autora do ilícito.
Tendo incorrido a MB na prática de facto ilícito, a sua principal dívida ou obrigação reconhecida na sentença, de restituir os certificados de aforro que sonegou da herança da MG, bem como a obrigação acessória relativa aos juros de mora, corresponde a uma dívida da responsabilidade da sua herança, nos termos previstos no art.º 2068.º do C.Civil.
A primitiva R. foi chamada à ação enquanto única herdeira daquela, sendo naturalmente a sua responsabilidade perante os AA. limitada às forças da herança que recebeu, como expressamente prevê o art.º 2071.º do C.Civil, acontecendo exatamente o mesmo com o Recorrente enquanto único herdeiro da primitiva R. e com a mesma limitação.
Acontece que isto mesmo foi salvaguardado pela sentença proferida, onde se refere expressamente: “Donde, a primitiva Ré, em representação e na qualidade de sucessora de MB (dado o testamento feito a seu favor por MB), deveria restituir tal valor à herança, perdendo MB, em benefício dos co-herdeiros, o direito que lhe cabia nos bens sonegados, ou seja, o direito que lhe caberia na partilha do montante de €139.348,01. Sobre a referida quantia devem acrescer juros de mora à taxa legal aplicável a juros civis, não desde a data do falecimento, mas sim, desde a data da apropriação, portanto, desde a data do resgaste e transferência do valor para uma conta pessoal, 07/11/2017, pois é neste acto que reside a actuação ilícita de MB. Consequentemente, cabe ao actual sucessor de MO, nessa qualidade e até às forças do recebido por MO como única e universal herdeira de MB, restituir à herança de MG o valor de €139.348,01, acrescido de juros desde o resgate, para partilha pelos demais herdeiros de MG, com exclusão de MB ou de quem a represente. Com efeito, importa ter em conta que AR não se encontra a ser demandado a título pessoal, mas apenas enquanto herdeiro universal da primitiva Ré MO, que por sua vez foi demandada a título pessoal e enquanto herdeira universal de MB.”
Tanto o R. habilitado, como a primitiva R. não estão a ser demandados em nome próprio como responsáveis primeiros pela prática do ilícito, mas apenas enquanto sucessores e únicos herdeiros, respetivamente da primitiva R. e da autora do ilícito, pelo que constituindo o crédito dos AA. uma dívida da herança desta, nos termos previstos no art.º 2097.º do C.Civil, estão obrigados a satisfazê-la nos mesmos termos que a primitiva obrigada a quem sucedem, ainda que a sua responsabilidade seja circunscrita aos bens da sua herança.     
Em face do que fica exposto, resta concluir que a obrigação venceu-se na data da prática do ilícito, de acordo com a previsão do art.º 805.º n.º 2 al. b) do C.Civil, pelo que é a partir dessa data que são devidos os juros de mora, não havendo necessidade de qualquer interpelação para a constituição em mora, contrariamente ao que defende o Recorrente.
Sem necessidade de mais considerações, confirma-se a sentença que considerou serem devidos, para além do capital sonegado, os juros de mora à taxa legal de 4% desde a data do resgate dos certificados de aforro, condenando o Recorrente, na qualidade de único e universal herdeiro da primitiva R., por seu turno única a universal herdeira da MB a restituir à herança da MG a quantia de € 139.348,01 acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data do resgate dos certificados de aforro.

V. Decisão:
Em face do exposto, julga-se improcedente o presente recurso interposto pelo R., confirmando-se a sentença proferida.
Custas pelo Recorrente por ter ficado vencido – art.º 527.º n.º 1 e 2 do CPC.
Notifique.
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Lisboa, 18 de abril de 2024
Inês Moura
Paulo Fernandes da Silva
Pedro Martins