Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7843/23.5T8SNT.L1-1
Relator: FÁTIMA REIS SILVA
Descritores: PLANO DE INSOLVÊNCIA
DIREITO DE VOTO
CREDITOS TRIBUTÁRIOS
PRINCÍPIO DA INDISPONIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1–A regra do art. 212º nº2, al. a) do CIRE, onde se prevê que, em matéria de aprovação de plano de insolvência não conferem direitos de voto «Os créditos que não sejam modificados pela parte dispositiva do plano» é aplicável em processo especial para a obtenção de acordo de pagamento.

2–Para se saber se um crédito foi modificado pela parte dispositiva do plano, analisam-se as diferenças entre as condições deste e as que preexistiam ao acordo, ou seja, delineando quanto deviam e como deviam pagar os devedores antes da aprovação deste plano e depois.

3–Quando as modificações não se analisam em verdadeiras alterações e correspondem apenas a pequenas variações que, mantendo, no essencial, o mesmo crédito e as respetivas condições, o que apenas no concreto e em relação a cada crédito é possível concluir, apenas cumprem uma função de ultrapassagem da limitação de voto, pelo que se considera que o crédito não confere direito de voto.

4–As taxas de portagens, respetivos juros, custas e encargos adicionais são créditos tributários, dado que representam taxas pela utilização de um bem público, sendo que o facto de a respetiva exploração estar concessionada não altera essa natureza.

5–A possibilidade de pagamento de um crédito tributário em prestações é uma modificação substancial desse crédito, a única possível, atenta a natureza indisponível destes créditos que não permitem qualquer tipo de perdão.

6–Uma moratória de um mês, num empréstimo celebrado por mais de 30 anos e que prosseguirá nas mesmas condições até ao final desse exato prazo, e a capitalização de algumas centenas de euros, são exatamente o tipo de alterações que não apresentam qualquer relevo nem contratual nem creditício para o devedor comparando a situação antes e depois do acordo – este crédito não sofre qualquer alteração relevante na parte dispositiva do plano, não conferindo, pois, direito de voto ao credor seu titular.

7–Concluindo-se que determinado credor ou credores não têm direito de voto, tais créditos não entram no cômputo dos créditos com direito de voto sobre o qual se calculam o quórum e as maiorias necessárias.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas da secção de comércio do Tribunal da Relação de Lisboa


1.Relatório

PME intentou o presente processo especial para acordo de pagamento.

Foi nomeado Administrador Judicial Provisório e efetuadas as publicações previstas no nº5 do art. 222º-C do CIRE.

Foram reclamados créditos, nos termos do nº2 do art. 222º-D do CIRE, vindo o Administrador Judicial Provisório a apresentar lista provisória de credores, a qual não sofreu impugnação.

Foi prorrogado o prazo de negociações.

Foi apresentada proposta de acordo de pagamento pelo devedor.

ABG veio pedir a não homologação do plano, alegando violação do princípio da igualdade por tratamento muito mais favorável de um credor financeiro e ainda que, para os efeitos previsto no art. 216º nº1, al. a) do CIRE, a sua situação é mais favorável na ausência de qualquer plano, dado que o produto da venda do imóvel hipotecado, situado num concelho valorizado, será suficiente para satisfazer a garantia e ainda restará para pagar aos credores comuns, enquanto que com o plano apenas receberão 70%.

O Condomínio do prédio sito na Rua XX, veio pedir a não homologação do Plano, invocando violação do princípio da igualdade, alegando que beneficia o crédito, cujo valor se desconhece, de uma entidade bancária em detrimento dos demais credores, nomeadamente o credor condomínio, ao qual não esclareceu como procederá ao pagamento das prestações entretanto vencidas e das vincendas, não sabendo sobre que crédito se prevê o pagamento de 70%. Declara votar contra e invoca o disposto no art. 216º nº1, al.a) do CIRE, sem invocar qualquer facto além da referida violação do princípio da igualdade.

O devedor respondeu ao pedido de não homologação apresentado por ABG, defendendo a inexistência de violação do princípio da igualdade e alegando ter como património apenas o bem imóvel hipotecado ao credor Banco A, pelo que numa situação de insolvência e com a venda do imóvel, apenas este credor Banco A receberia valores pela venda do imóvel, e caso existisse algum valor sobrante, sempre seria rateado pelo credor privilegiado Fazenda Nacional, pelo que os credores comuns nada receberiam em cenário de insolvência, sendo o presente plano mais favorável.

O Sr. Administrador Judicial Provisório juntou aos autos o resultado da votação do plano, nos termos da qual o acordo de pagamento foi aprovado com os votos favoráveis de 88,92% dos votos emitidos, tendo votado credores representando 98,85% do total dos créditos relacionados com direito a voto, correspondendo todos a créditos não subordinados, nos termos da al. a) do nº3 do art. 222º-F do CIRE.

Em 18/02/2022 foi proferida a seguinte decisão:
“Em suma, não se considera aprovado o plano especial para acordo de pagamentos apresentado, inviabilizando-se necessariamente a respetiva homologação, nos termos do disposto nos arts. 212º, n.º2, al. a) e art. 222º-F, n.º3, do CIRE.
Custas pelo requerente.
Valor da ação: € 30.000,00 (art. 301º, do CIRE).
Registe, notifique e publicite - art.ºs. 222.º-F, n.º 8, 37.º e 38.º, do CIRE.”

Inconformado apelou PME, pedindo a revogação da decisão e a sua substituição por outra que supra as nulidades invocadas, declarando homologado o acordo de pagamentos e formulando as seguintes conclusões:
1-Decorreram as negociações com os credores, e o Devedor em 20-09-2023, apresentou nos autos Acordo de Pagamentos que foi submetido à votação dos credores.
2-Por requerimento remetido aos autos em 10-10-2023, o Administrador Judicial Provisório remeteu aos autos o resultado da votação e concluiu que o Plano se encontrava aprovado.
3-Votaram favoravelmente o Plano apresentado, os credores Autoridade Tributária e Aduaneira, Banco B, Banco A e IPL que representam 79,91% da totalidade dos créditos reconhecidos.
4-Tanto o credor Banco A, bem como o credor Autoridade Tributária, viram os seus créditos modificados pela parte dispositiva do plano, e como tal teria de ser-lhes concedido direito de voto.
5-Também no que diz respeito aos créditos da Autoridade Tributária, não foi violado qualquer direito de igualdade, já que o tratamento diverso ficou a tratar-se de categorias e espécies de crédito diversos, sendo certo que apesar de o crédito da AT ser comum, sempre se dirá, que as condições de pagamento à AT, sempre serão diferenciados, atentos os privilégios creditórios que beneficiam.
6-Sendo certo também, que os créditos da Autoridade Tributária, sendo créditos fiscais, nunca poderão assemelhar-se ou serem tratados da mesma forma que os créditos bancários ou de fornecedores.
7-Sendo certo também, que os créditos da Autoridade Tributária, sendo créditos fiscais, nunca poderão assemelhar-se ou serem tratados da mesma forma que os créditos bancários ou de fornecedores (1) .
8-O acordo apresentado trata de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual. O princípio da igualdade dos credores supõe, assim, uma comparação de situações, realizadas a partir de determinado ponto de vista. É, justamente, a perspectiva pela qual se fundamenta essa desigualdade e, consequentemente, se justifica o tratamento desigual não arbitrário do presente plano.
9-Outra razão objectiva, razoável, susceptível de justificar a diferença de tratamento, é, a fonte dos diversos créditos ou a finalidade visada com a contracção de um e de outros. Pois é razoável tratar de forma diferente o crédito contraído para aquisição de habitação e o crédito assumido para aquisição de bens de consumo, ou ainda os créditos comuns de entidades bancárias e outros fornecedores, e os créditos, ainda que comuns da Autoridade Tributária.
10-Resulta claramente do Acordo de Pagamentos apresentado, que é contratualizado um prazo único para o reembolso do valor em divida, e reclamado nos auto, para 252 prestações, diverso do anteriormente contratado.
11-Além do englobamento da totalidade da divida e da alteração do nº de prestações, é possível aferir da existência de uma carência de juros e capital de 1 mês, bem como a capitalização dos juros vencidos.
12-O Acordo de pagamentos agora proposto, apenas mantém a taxa de juros aplicada e as garantias, sendo que no restante contratado, existiram alterações, pelo os créditos do Banco A foram alterados na parte dispositiva do Plano, razão pela qual o seu voto teria de ser considerado.
13-Pelo que dúvidas não existem que o Acordo de Pagamentos se encontra devidamente aprovado, sendo que não existe fundamento legal para que não seja considerado o voto dos Credores Banco A e Autoridade Tributária.
14-Acontece que no caso concreto os créditos quer do Banco A quer da Autoridade Tributária, sofreram alterações na parte dispositiva do Acordo de Pagamentos apresentado.
15-Face ao exposto, não poderiam tais votos ser desconsiderados.
16-Mas mais, não existe qualquer fundamento legal ou factual, para a não homologação do Acordo, já que foi na íntegra cumprido o direito de igualdade quanto aos credores, sendo certo também que não existiu qualquer violação não negligenciável das normas procedimentais.
17-E os votos dos credores Banco A e AT, sempre teriam de ser considerados.
18-Pelo que a sentença proferida pelo Tribunal a quo, viola claramente o previsto nos artigos 222º F e 212º do CIRE.”

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido por despacho de 30/11/2023 (ref.ª 147842666).

Foram colhidos os vistos.

Cumpre apreciar.
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2. Objeto do recurso

Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art. 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.

Consideradas as conclusões acima transcritas são as seguintes as questões a decidir:
- se o plano se encontra aprovado, o que passa pela análise de se os créditos dos credores Banco A e Autoridade Tributária e Aduaneira conferem direito de voto.
*

Consigna-se que, pese embora no termo das suas alegações de recurso o devedor peça o suprimento das nulidades invocadas ao longo destas, seja na motivação, seja nas conclusões, não foi invocada qualquer nulidade da sentença ou outra, pelo que o respetivo conhecimento não integra o objeto deste recurso.
*

3. Fundamentos de facto

Com relevância para a decisão do recurso mostram-se assentes os factos constantes do relatório e ainda os seguintes, fixados na sentença recorrida e resultantes dos termos dos autos:
1.O devedor indicou como único património da sua titularidade a fração “ZZ”, correspondente a um lugar de estacionamento automóvel, sita em …, descrita na CRP de … sob o n.º xxx (facto fixado na sentença recorrida);
2.Em 17.01.2023 foi registada a aquisição, por doação feita pelo devedor e outra a favor de MME, da fração autónoma designada pela letra “BB”, correspondente ao 3º andar esquerdo com arrecadação no 11º andar, do prédio sito em … e descrito na 2ª CRP de … sob o n.º xxx (facto fixado na sentença recorrida);
3.–Sobre a fração “BB” acima referida havia sido constituída hipoteca voluntária pelo devedor e outrem a favor do então denominado “Banco C” (atualmente “Banco A”), em 26.06.2009 para garantia de empréstimo (facto fixado na sentença recorrida).

4–A lista definitiva de créditos ficou composta pela seguinte forma:
- ABG – € 12.293,02 - crédito comum (fiança a favor de ABA);
- Autoridade Tributária e Aduaneira – € 8.523,95 – crédito comum (taxas de portagens, juros, custas coimas e outros encargos);
- Banco C – € 2.697,89 - crédito comum (crédito pessoal e descoberto em DO);
- Banco B – € 13.948,07 – crédito comum (crédito ao consumo, descoberto em DO e cartões de crédito);
- Banco A – € 117.431,81 – crédito garantido (mútuos com hipoteca);
- Caixa D – € 500,07, sendo destes € 3,08 sob condição – crédito comum (descoberto em DO);
- CGP – € 2.000,00 – crédito comum (empréstimo pessoal);
- Condomínio Prédio sito R. XX – € 3.629,87– crédito comum (condomínio);
- IPL – € 13.596,09 – crédito comum (cartão de crédito e despesas de contencioso).

5–Apresentado acordo de pagamento e submetido a votação, o plano foi votado nos seguintes termos:
- ABG – contra;
- Autoridade Tributária e Aduaneira – a favor;
- Banco C – contra;
- Banco B – a favor;
- Banco A – a favor;
- Caixa D – contra;
- Condomínio Prédio sito R. XX – contra;
- IPL – a favor.

6–O acordo de pagamento apresenta o seguinte teor:

“CREDORES GARANTIDOS:
Relativamente ao Credor Banco A propõem-se as seguintes alterações contratuais:
- Pagamento de 100% do valor reclamado, em 252 prestações, mensais, iguais e sucessivas (a atualizar para que corresponda a um período equivalente ao que se encontra por cumprir nas condições inicialmente contratadas);
- Capitalização dos juros vencidos até à data de homologação do plano;
- Carência de juros e capital pelo período de 1 mês, a contar da data de homologação do plano;
- Manutenção integral das condições contratadas para efeitos de cômputo de juros, o que integra, em concreto, a manutenção da taxa de spread contratualizada, bem como da Euribor;
- Manutenção das demais condições contratualizadas;
- Manutenção de todas as garantias prestadas nos exatos termos contratados e atualmente em vigor.

CREDORES PRIVILEGIADOS:
- Autoridade Tributária e Aduaneira (divida reconhecida - Valor de 8.523,95€)
Pagamento em regime prestacional, nos termos do artigo 196.° do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), ou seja:
a)-As prestações são mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira até ao final do mês seguinte ao términus do prazo previsto no n° 5 do artigo 222°-D do CIRE;
b)-o pagamento até 36 prestações, mensais, iguais e sucessivas, nos termos do art° 196° do CPPT, (pagamentos nunca inferiores a 1 UC)
c)-Pagamento dos juros vencidos e vincendos à taxa legalmente fixada para os juros de mora aplicáveis às dividas do Estado.
d)-Manutenção das garantias existentes, nos termos do n° 13 do artigo 199° do CPPT.
e)-As acções executivas que se encontram pendentes para cobrança de dividas à Autoridade Tributária, não são extintas e mantêm-se suspensas após aprovação e homologação do Plano até integral cumprimento do plano de pagamentos.

RESTANTES CREDORES COMUNS:
Relativamente aos restantes Credores Comuns, propõe-se o pagamento da quantia total reclamada e reconhecida, que se liquidarão em prestações mensais, iguais e sucessivas, a saber:
- Pagamento de 70% do Capital reclamado;
- Perdão de 30% do Capital reclamado;
- Perdão dos juros vencidos;
- Perdão de Juros Vincendos;
- Pagamento de 70% do Capital reclamado e juros vincendos em 120 meses, em amortizações mensais, vencendo-se a primeira prestação no mês seguinte após transito em julgado da sentença de homologação do Acordo de Pagamentos;

Credores Comuns
Capital reclamado
Juros em dívida
Total Proposto pagar
Valor mensal a pagar 120 meses
ABG
11 781,73 €
511,29 €
8 247,21 €
68,73 €
Banco C
2 422,23 €
275,66 €
1 695,56 €
14,13 €
Banco B
12 739,62 €
1 208,45 €
8 917,73 €
74,31 €
Caixa D
496,54 €
3,53 €
347,58 €
2,90 €
CGP
2 000,00 €
0,00 €
1 400,00 €
11,67 €
Com. Prédio Rua XX
3 629,87 €
0,00 €
2 540,91 €
21,17 €
IPL
13 596,09 €
0,00 €
9 517,26 €
79,31 €
Total
46 666,08 €
1 998,93 €
32 666,26 €
272,22 €

Todo o Plano fica subordinado à cláusula "salvo regresso de melhor fortuna".
O presente Plano não afecta o disposto no artigo 217 n. 4 CIRE, pelo que, não determina qualquer alteração na existência, no montante dos direitos dos credores da Devedora contra co-devedores ou terceiros garantes.
E derrogado o disposto no artigo 218 n. 1 alínea a) CIRE, relativamente ao prazo de 15 dias, passando o mesmo para 60 dias.
Todos os pagamentos serão feitos mediante transferência bancária para IBAN/referencias de pagamento a indicar por cada um dos credores, servindo como recibo de quitação o comprovativo da transferência bancária/ pagamento.
A aprovação e homologação do presente Acordo de Pagamentos, extingue todas as acções executivas que corram contra o devedor, nos termos do n°l do artigo 222°-E do CIRE.”
*

4.–Fundamentos do recurso

O processo especial para acordo de pagamento (PEAP) é um dos processos especialíssimos previstos no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), introduzido pelo Decreto-Lei n.º 79/2017 de 30 de junho.
Este diploma, concretizando o denominado Programa Capitalizar (2) que elegia como uma das medidas “Reservar o recurso ao PER a pessoas coletivas” (3), criou um novo regime pré-insolvencial para devedores em cuja titularidade não se encontre uma empresa, declarando no seu preâmbulo “Apostou-se na credibilização do processo especial de revitalização (PER) enquanto instrumento de recuperação, reforçou-se a transparência e a credibilização do regime e desenhou-se um PER dirigido às empresas, sem abandonar o formato para as pessoas singulares não titulares de empresa ou comerciantes.”
Ao tempo a jurisprudência divergia sobre a possibilidade de o PER poder ser usado por pessoas singulares, vindo claramente a pender para a respetiva inadmissibilidade, como resulta da jurisprudência do STJ nesta matéria, que decidiu, de forma uniforme, no sentido de inaplicabilidade às pessoas singulares, não comerciantes, não empresários, do processo especial de revitalização (4).
O Decreto-Lei n.º 79/2017 “criou” o novo PEAP por decalque do antigo PER (5) aplicando algumas medidas do PER tal como ficou desenhado em 2017 (no essencial a suspensão dos prazos de prescrição e caducidade oponíveis pelo devedor, a proibição de suspensão de prestação de serviços públicos essenciais, o efeito parcialmente suspensivo da sentença do recurso de não homologação e o regime de encerramento e de cessação de funções do administrador judicial provisório), e diferenciando-o pelos respetivos sujeitos – pessoas jurídicas e singulares não titulares de empresas e por uma particularidade relativa aos devedores singulares, em caso de não aprovação, com a obrigatoriedade de concessão de oportunidade para apresentação tempestiva de plano de pagamentos ou requerimento de exoneração do passivo restante.

Tal tem a vantagem, para o intérprete-aplicador, de ter já presentes e, em muitos casos discutidos e trabalhados, os aspetos essenciais deste novo regime.

Não podemos, porém, deixar de ter em conta as diversidades de um e de outro procedimentos: nomeadamente, no PER visa-se a recuperação dos devedores, empresas, no PEAP visa-se a aprovação de um plano de pagamentos. As pessoas naturais, por definição, não se recuperam, logram ou não pagar os seus créditos, sendo este um procedimento hibrido para obter o acordo (e negociar) com os seus credores o pagamento dos seus créditos.
A questão a recurso é a sindicância da decisão proferida pelo tribunal recorrido de não considerar aprovado o plano.

Estabelecem os nºs 3 a 5 do art. 222º-F do CIRE:
«3 Sem prejuízo de o juiz poder computar no cálculo das maiorias os créditos que tenham sido impugnados se entender que há probabilidade séria de estes serem reconhecidos, considera-se aprovado o acordo de pagamento que:
a)- Sendo votado por credores cujos créditos representem, pelo menos, um terço do total dos créditos relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os n.os 3 e 4 do artigo 222.º-D, não se considerando as abstenções, recolha cumulativamente:
i)- O voto favorável de mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos;
ii)- O voto favorável de mais de 50 /prct. dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados relacionados com direito de voto contidos na lista de créditos a que se referem os n.os 3 e 4 do artigo 222.º-D; ou
b)- Recolha cumulativamente, não se considerando as abstenções:
i)- O voto favorável de credores cujos créditos representem mais de 50 /prct. da totalidade dos créditos relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os n.os 3 e 4 do artigo 222.º-D;
ii)- O voto favorável de mais de 50 /prct. dos votos emitidos correspondentes a créditos não subordinados relacionados com direito de voto contidos na lista de créditos a que se referem os n.os 3 e 4 do artigo 222.º-D.
4 A votação efetua-se por escrito, aplicando-se-lhe o disposto no artigo 211.º com as necessárias adaptações e sendo os votos remetidos ao administrador judicial provisório, que os abre em conjunto com o devedor e elabora um documento com o resultado da votação, que remete de imediato ao tribunal.
5 O juiz decide se deve homologar o acordo de pagamento ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à receção da documentação mencionada nos números anteriores, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º»

Uma das regras apontadas como aplicável é a regra do art. 212º nº2, al. a) do CIRE, onde se prevê que, em matéria de aprovação de plano de insolvência não conferem direitos de voto «Os créditos que não sejam modificados pela parte dispositiva do plano».

A jurisprudência tem sido unânime no sentido da aplicação desta regra ao PEAP, tal como essencialmente já o era em relação ao PER, e em essência, com os mesmos argumentos: o facto de o art. 212º não constar da enumeração expressa do nº5, não o exclui, dada a remissão genérica para as normas do Título IX (6) e a menção expressa aos créditos “com direito de voto”, sendo as razões de ser da aplicabilidade válidas – pretende-se evitar que o plano seja imposto aos credores afetados por aqueles que o não são. Neste sentido entre muitos outros, os Acs. STJ de 09/03/2021 (Henrique Araújo – 760/19), TRP de 08/02/2022 (João Ramos Lopes – 1448/21), de 13/01/2022 (Ana Vieira – 1810/21.0T8OAZ.P1) e também de 13/01/2022 (Paulo Duarte Teixeira – 1810/22.0T8AVR.P1), 15/12/2021 (Eugénia Cunha – 1081/21), de 25/01/2021 (Fernanda Almeida – 1027/20), de 03/12/2020 (Freitas Vieira – 2708/20), TRL de 11/10/2018 (Maria de Deus Correia – 4231/17) e de 07/06/2018 (Pedro Martins – 3187/17), TRC de 18/05/2020 e de 19/12/2018 (Barateiro Martins – procs. nºs 760/19 e 100/18), de 22/01/2019 (Arlindo Oliveira – 968/18), TRG de 17/03/2022 (José Alberto Moreira Dias – 3549/21), de 24/05/2018 (Alexandra Rolim Mendes – 5900/17), TRE de 12/07/2018 (Vítor Sequinho – 2936/17), de 07/06/2018 (Francisco Xavier – 1022/17) e de 24/05/2018 (Tomé de Carvalho - 2664/17).

Situando-se a norma em causa na fase da determinação da aprovação do plano, apesar da diferente natureza dos procedimentos pré-insolvenciais (PER e PEAP) face ao plano aprovado em processo formal de insolvência e das diferentes consequências no caso de não aprovação, não existe verdadeira diversidade substancial na situação de aprovação em todos os casos: afasta-se a insolvência iminente, a situação económica difícil ou a situação de insolvência atual através de um plano de recuperação ou de um plano de pagamento. Assim sendo, a ratio legis vale tanto num caso como noutros, sendo esta a de apenas conceder a possibilidade de se pronunciar sobre o futuro do devedor ao credor que comprometeu nesse futuro algum esforço economicamente mensurável, através da modificação do seu crédito, o que permite também uma contribuição para a descoberta de critérios objetivos para avaliar uma modificação do crédito relevante: a que tenha consequências económicas para o credor. (7)

Carvalho Fernandes e João Labareda, em anotação ao art. 212º, ponderando a regra do nº1 do art. 91º do CIRE (8) respondiam à questão de qual o sentido da norma nos seguintes termos: “o sentido do texto só pode ser o de haver como afectados apenas os créditos que se proponha venham a ser considerados em termos distintos daqueles que revestiam à data da declaração de insolvência, seja pelo montante, condições de pagamento, garantias ou outros aspectos.”

A jurisprudência cedo identificou como não modificados, para este efeito, créditos que sofriam pequenas alterações como forma de tornear a regra e assim defraudar a lei (9).Trata-se, com clareza, estritamente de evitar fraude à lei, sendo a regra a supra enunciada: têm direito a voto todos os créditos alterados pela parte dispositiva do plano.

Nas palavras do já citado Ac. STJ de 09/03/2021: “Saber se existe, ou não, modificação do crédito, depende das circunstâncias concretas de cada caso, admitindo-se que a simples intocabilidade do capital não é suficiente para concluir pela não modificação do crédito.

Haverá, em nosso entender, modificação do crédito, quando se estabeleçam alterações substanciais à morfologia do crédito, de modo a que a relação jurídico-creditícia fique algo distante das condições inicialmente contratualizadas, seja através da estipulação de expressivas moratórias ou de planos prestacionais prolongados no tempo, seja através da abolição ou abrupta redução da taxa de juros, seja através da eliminação ou atenuação das garantias.

Não serão, por conseguinte, pequenas alterações à forma como há-de fazer-se o pagamento do crédito que poderão significar modificação deste, pois doutra forma, como se avisa no acórdão recorrido, estar-se-ia a contornar a lei contrariando a finalidade a que foi dirigida.”

A jurisprudência tem identificado esta questão como integrando violação procedimental não negligenciável, atribuindo ao conjunto de normas que fixam quóruns constitutivos e deliberativos indispensáveis para que uma deliberação se considere aprovada, incluindo as regras relativas à votação e à definição de direitos de voto, o caráter de ‘normas procedimentais cuja violação não será negligenciável’(10) (11).

No caso foi determinado que dois dos créditos não conferiam direito de voto por não terem sido modificados pela parte dispositiva do plano.

A decisão recorrida foi fundamentada desta forma: “Ora, perante o cenário acima descrito não é admissível contabilizar para efeitos de cálculo da maioria necessária para aprovação dos votos emitidos pelo Banco A e pela ATA, pura e simplesmente porque o plano prevê a manutenção integral das condições já existentes quanto a esses credores.
Por outras palavras, estes credores não têm como não aprovar o plano porque o mesmo em nada belisca o conteúdo e a forma de satisfação dos seus direitos de crédito.
Assim sendo, deve aplicar-se analogicamente o disposto no art. 212º, n.º2, al. a), do CIRE e desconsiderar para efeitos do cálculo da maioria necessária à aprovação os votos favoráveis emitidos pelo “Banco A” e pela ATA.”

O recorrente argumenta, em relação a este ponto:
- quanto ao credor Banco A, resulta claramente do Acordo de Pagamentos apresentado, que é contratualizado um prazo único para o reembolso do valor em divida, e reclamado nos auto, para 252 prestações, diverso do anteriormente contratado.
- além do englobamento da totalidade da divida e da alteração do nº de prestações, é possível aferir da existência de uma carência de juros e capital de 1 mês, bem como a capitalização dos juros vencidos.
- o acordo de pagamentos, apenas mantém a taxa de juros aplicada e as garantias, sendo que no restante contratado, existiram alterações, pelo os créditos do Banco A foram alterados na parte dispositiva do Plano, razão pela qual o seu voto teria de ser considerado.

Apreciando:

Diferentemente do que considerou o tribunal a quo, é bastante claro que ambos os créditos aqui considerados foram alterados pela parte dispositiva do plano. A questão a analisar é de se essas modificações se analisam em verdadeiras alterações ou se se tratam apenas de pequenas variações que, mantendo, no essencial, o mesmo crédito e as respetivas condições, apenas cumprem uma função de ultrapassagem desta limitação.

No tocante ao crédito da Autoridade Tributária e Aduaneira, um crédito comum de € 8.523,95, relativo a taxas de portagens, juros, custas coimas e outros encargos, passou a ser pago em regime prestacional, nos termos do artigo 196.° do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), ou seja, em prestações mensais, iguais e sucessivas, vencendo-se a primeira até ao final do mês seguinte ao términus do prazo previsto no n° 5 do artigo 222°-D do CIRE (prazo de negociações), em até 36 prestações, mensais, iguais e sucessivas, nunca inferiores a 1 UC, sendo pagos os juros vencidos e vincendos à taxa legalmente fixada para os juros de mora aplicáveis às dividas do Estado, mantendo-se as garantias existentes, nos termos do n° 13 do artigo 199° do CPPT e não se extinguindo as ações executivas, se pendentes, mantendo-se suspensas após aprovação e homologação do Plano até integral cumprimento.

O princípio da indisponibilidade dos créditos tributários não só concretiza a necessidade “de dotar o Estado de receitas suficientes para fazer face às necessidades coletivas, mas também com a proteção dos interesses e direitos constitucionalmente consagrados dos cidadãos através da preservação do dever geral de contribuir, o que se procura quer pelo facto de a derrogação deste princípio apenas ser possível verificada que seja a igualdade tributária, ou seja, em casos legalmente previstos para todos os que se encontrem numa determinada situação, quer porque, ao reafirmar a indisponibilidade do crédito tributário, se visa dar um bom exemplo aos contribuintes, que não se depararão com situações de perdão injustificado de créditos, motivado por interesses que são totalmente alheios à justiça fiscal, sentindo assim desigualdade, injustiça e descrença no sistema.”(12).

O princípio, refletido em várias disposições, significa que, no âmbito da relação tributária, “só o legislador pode definir as situações em que tal tratamento aparentemente “desigual”, refletido na concessão de perdões e/ou moratórias dos seus créditos, se pode verificar, só ele está habilitado para fixar as condições em que deva acontecer a modificação e/ ou extinção da obrigação fiscal.” (13).

O CIRE, porém, em matéria de recuperação, seja na aprovação de planos de insolvência, seja nos processos especiais, de revitalização e de obtenção de acordo de pagamento, não previu qualquer exclusão ou tratamento diferenciado dos créditos públicos. Na verdade, o Estado não foi excecionado da afetação pelas medidas propostas, nem na versão inicial, nem em 2012 (14), quando foi introduzido o Processo Especial de Revitalização (15)

O que gerou a questão do tratamento dos créditos tributários objeto de plano prevendo medidas que alterassem ou condicionassem os créditos tributários para além dos limites previstos na lei tributária, afetando o princípio da indisponibilidade, na inevitável tensão entre a recuperação de empresas e a igualdade dos credores, à luz do CIRE e a proteção da natureza pública e indisponível do crédito tributário.

A entrada em vigor do CIRE foi considerada pela jurisprudência e por alguma doutrina como lei especial, que derrogava a lei geral (no caso a LGT), devendo os credores públicos ser tratados como quaisquer outros credores (16).
O legislador aprovou, na Lei do Orçamento para 2011 (lei nº 55-A/2010 de 31 de dezembro (17) o aditamento ao art. 30º da Lei Geral Tributária (doravante LGT) de um nº3 (sublinhado nosso),
«1 Integram a relação jurídica tributária:
a)- O crédito e a dívida tributários;
b)- O direito a prestações acessórias de qualquer natureza e o correspondente dever ou sujeição;
c)- O direito à dedução, reembolso ou restituição do imposto;
d)- O direito a juros compensatórios;
e)- O direito a juros indemnizatórios.
2 O crédito tributário é indisponível, só podendo fixar-se condições para a sua redução ou extinção com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária.
3 O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial

Assim, o legislador deixou clara a sua intenção de pôr fim ao entendimento que vinha prevalecendo com a previsão do art. 125º da mesma Lei nº 55-A/2010, onde, sob a epígrafe Disposições transitórias no âmbito da LGT, consignou: «O disposto no n.º 3 do Artigo 30.º da LGT é aplicável, designadamente aos processos de insolvência que se encontrem pendentes e ainda não tenham sido objecto de homologação, sem prejuízo da prevalência dos privilégios creditórios dos trabalhadores previstos no Código do Trabalho sobre quaisquer outros créditos.»

A regra veio, assim, de forma explícita, estender aos processos previstos na lei de insolvência o princípio da indisponibilidade do crédito tributário, passando a ser decidido que os créditos tributários não podiam ser reduzidos, ou extintos contra a vontade do Estado e em violação das normas tributárias.

Assim sendo, e se estivermos ante um crédito tributário, vale em pleno o princípio da indisponibilidade, o que significa que as alterações ao crédito operadas por acordo previsto no CIRE, incluindo o plano de insolvência, o plano de recuperação em PER e o plano de pagamentos em PEAP, têm que cumprir o previsto na lei tributária, independentemente da respetiva natureza (garantida, privilegiada, comum ou subordinada).

O que significa que esta alteração prevista no plano ao crédito da Autoridade Tributária e Aduaneira, caso se trate de um crédito tributário – que era imediatamente exigível, logo que vencido, o que, claramente, tratando-se de taxas de portagens e sendo já exigidos juros, custas e coimas, já tinha ocorrido – é uma alteração relevante, aliás a única legalmente possível, efetuada de acordo com o disposto nos arts. 196º e ss. do CPPT.

Nesse ponto, não abordado pela decisão recorrida, é jurisprudência pacífica, incluindo a nível constitucional, que as taxas de portagens, respetivos juros, custas e encargos adicionais são créditos tributários, dado que representam taxas pela utilização de um bem público, sendo que o facto de a respetiva exploração estar concessionada não altera essa natureza (18).

Em relação a parte não determinada do crédito, a respeitante a coimas, é discutível se o crédito, nessa exata medida, tem natureza tributária (19) o que acaba por não relevar no caso concreto em que o crédito foi unitariamente tratado, seja pelo devedor, seja pela Autoridade Tributária, seja pelo tribunal.

As modificações relevantes são as modificações operadas nos créditos sobre os devedores comparando a situação antes e depois do acordo (20).

Não se podendo eleger o momento da declaração da insolvência como critério temporal para a comparação – porque inexiste, quer em PER, quer em PEAP, um momento processualmente equivalente à declaração de insolvência – a aplicação do preceito exige este esforço interpretativo: para saber se um crédito sofreu uma alteração nos termos do plano, analisam-se as diferenças entre as condições deste e as preexistentes ao acordo.

No caso estamos ante créditos tributários (não contratuais), pelo que a comparação a fazer é de quanto devia e como devia pagar o devedor antes da aprovação deste plano e depois. E a resposta já a achámos: a alteração introduzida era a única (e estrita) possível sem violação de regras imperativas e não qualquer alteração cosmética para disfarçar uma completa não alteração substantiva, quanto ao crédito e respetivas condições de pagamento e exigibilidade.

Assim, quanto ao crédito da Autoridade Tributária, não pode manter-se este fundamento da decisão recorrida, dispondo o crédito em causa de direito de voto.

Passando à análise do crédito do credor bancário Banco A:
Banco A reclamou € 117.431,81, com base em dois contratos de mútuo, transmitidos pelo Banco D, contratos esses celebrados em 25/06/2009, um pelo prazo de 420 meses e o outro pelo prazo de 426 meses, sendo em ambos a primeira prestação devida em 30/07/2009, vencendo juros trimestrais, a taxa indexada à Euribor a 3 meses, acrescida de uma margem de 1,100% à data da celebração do contrato, a uma taxa nominal anual de 1,632% e a uma taxa anual efetiva de 3,675% e sobretaxa de 3% em caso de mora, ambos garantidos por hipoteca sobre a fração autónoma “BB", correspondente ao 3.° andar esquerdo, com arrecadação no décimo primeiro andar, do prédio urbano sito na …, descrito na Segunda Conservatória do Registo predial de …, sob o n.° xxx, da freguesia de …, afeto ao regime de propriedade horizontal, e inscrito na respetiva matriz sob o artigo n.° xxx, tendo reclamado em relação a um dos empréstimos € 59.804,02 a título de capital e € 143,08 a título de juros remuneratórios e, em relação a outro dos empréstimos € 57.338,77 a título de capital e € 145,94 a título de juros remuneratórios.

Ficou proposto no plano, para pagamento deste crédito o pagamento de 100%, em 252 prestações, mensais, iguais e sucessivas (a atualizar para que corresponda a um período equivalente ao que se encontra por cumprir nas condições inicialmente contratadas), capitalização dos juros vencidos até à data de homologação do plano; carência de juros e capital pelo período de 1 mês, a contar da data de homologação do plano e, no mais manutenção integral das condições contratadas para efeitos de cômputo de juros, o que integra, em concreto, a manutenção da taxa de spread contratualizada, bem como da Euribor, das demais condições contratualizadas e de todas as garantias prestadas nos exatos termos contratados e atualmente em vigor.

O primeiro argumento do recorrente, de que foi contratualizado um prazo diverso, agora de 252 prestações, roça as raias da litigância de má-fé, dado que o próprio plano, na mesma cláusula prevê a atualização do número de prestações “para que corresponda a um período equivalente ao que se encontra por cumprir nas condições inicialmente contratadas”.

Não há rigorosamente qualquer alteração quanto ao prazo do empréstimo.

Expressamente não se altera nenhuma das condições inicialmente acordadas, taxas de juro e garantias.

As únicas diferenças são a capitalização dos juros vencidos até à data da homologação, ou seja, os reclamados como vencidos (cerca de 290 euros) e os demais vencidos até à data da homologação, ou seja, os vencidos no período de negociações; e um mês de carência, subsequente à homologação, como apontado pelo recorrente.

Uma moratória de um mês, num empréstimo celebrado por mais de 30 anos e que prosseguirá nas mesmas condições até ao final desse exato prazo, e a capitalização de algumas centenas de euros, são exatamente o tipo de alterações que não apresentam qualquer relevo nem contratual nem creditício para o devedor comparando a situação antes e depois do acordo. Devia e continuou a dever o mesmo, pelo mesmo prazo, nas mesmas condições e com as mesmas garantias. Ou seja, e recuperando o critério auxiliar acima enunciado, o nível de comprometimento deste credor com o reequilíbrio financeiro do devedor é inexpressivo.

Assim, e quanto a este crédito, é de confirmar o juízo do tribunal recorrido, dado que não sofre qualquer alteração relevante na parte dispositiva do plano, não conferindo, pois direito de voto ao credor seu titular.

No passo seguinte a decisão recorrida claramente lavrou em erro de cálculo que pode e deve ser corrigido por este tribunal.

Depois de considerar que dois dos créditos relacionados não conferiam direito de voto, o tribunal recorrido calculou um terço do total dos créditos reclamados, incluindo os créditos que tinha acabado de determinar não terem direito de voto, e concluiu que o plano, sem aqueles dois credores, não tinha sido votado por um terço dos créditos relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos definitiva, não se considerando as abstenções.

Como é evidente, concluindo-se que determinado credor ou credores não têm direito de voto, tais créditos não entram no cômputo dos créditos com direito de voto sobre o qual se calculam o quórum e as maiorias necessárias.

O terço do total dos créditos relacionados com direito de voto, contidos na lista de créditos a que se referem os n.os 3 e 4 do artigo 222.º-D previsto no nº3, al. a) do art. 222º-F, todos do CIRE deve, assim, ser calculado diminuindo à totalidade dos créditos relacionados definitivamente, de € 174.620,77, os créditos que se concluiu não terem direito de voto, no caso € 117.431,81.

De frisar a irrelevância da contagem dos créditos subordinados, inexistentes no caso concreto.
Assim:
- total dos créditos com direito de voto: € 57. 188,96;
- 1/3 do total dos créditos com direito a voto: € 19.062,98;
- exerceram o voto credores com direito de voto representando € 55.188,96, ou seja, muito mais de 1/3 dos credores com direito de voto.

Termos assim que passar ao cálculo das maiorias necessárias para determinar se este plano foi aprovado ou rejeitado pelos credores, nos termos das subalíneas i) e ii) da alínea a) do nº3 do art. 222º-F e i) e ii) da al. b) do mesmo preceito.

Para aprovação do plano nos termos da al. a) do nº3 do art. 222º-F o plano teria que ter sido aprovado por dois terços dos votos emitidos (com direito de voto), sem contar as abstenções, ou seja, mais de € 36.792,64 (€ 55.188,96/3*2).

Uma vez que os votos a favor somaram créditos no valor total de € 36.068,11, o plano não foi aprovado nos termos deste preceito.

Para aprovação do plano nos termos da al. b) do mesmo preceito o plano teria que ter sido aprovado por mais de 50% dos créditos relacionados com direito de voto, sem contar as abstenções, ou seja, no caso, mais de € 27.594,48 (€ 55.188,96/2).

Uma vez que os votos a favor somaram créditos no valor total de € 36.068,11, o plano foi aprovado nos termos deste preceito.

Concluímos assim, diferentemente da decisão recorrida, que o plano de acordo de pagamentos apresentado pelo devedor foi aprovado, nos termos da al. b) do nº3 do art. 222º-F do CIRE, devendo a decisão recorrida ser revogada.
*

Nos termos do artigo 665º nº2, do CPC, a Relação deve proferir decisão relativamente a questões não decididas pelo tribunal recorrido, nomeadamente, por prejudicadas pela solução dada na primeira instância. Apenas em caso de os autos não conterem todos os elementos necessários deverá remeter os autos à primeira instância sem essa decisão «substitutiva».

No caso presente, não foram apreciados os requisitos de homologação do plano, nem os de conhecimento oficioso nem os arguidos por credores em requerimentos de não homologação apresentados por o tribunal ter considerado que o plano não se encontrava aprovado.

Revogado o despacho recorrido, e declarando-se o plano aprovado, há que aferir se o regime do nº2 do art. 665º é aplicável, devendo esta Relação conhecer da questão da homologação do plano.

Consideramos que a resposta só pode ser negativa, embora se tenha ponderado a hipótese inversa (21).

O regime de substituição consagrado no art. 665º, oposto ao de mera cassação, implica que a Relação se situe, em substituição do tribunal recorrido, no âmbito da mesma decisão, o que sucede, por exemplo, quando se substitui ao tribunal de primeira instância na solução de uma questão que aquele não apreciou por outra prévia a tal ter obstado.

No caso vertente, não é essa a situação. O tribunal na decisão recorrida analisou apenas os requisitos de aprovação do acordo de pagamento e é no contexto dessa apreciação que a Relação se situa. É nesse contexto, portanto, que a substituição pode ocorrer: apreciação dos requisitos de prosseguimento ou de indeferimento.

É certo, que a consequência da revogação da decisão é a prolação de um despacho que analisa, aprecia e decide sobre diversas questões, nomeadamente se o plano de acordo de pagamento, agora aprovado, deve ser homologado.

Porém, esse despacho é inteiramente diverso deste que no recurso se aprecia, limitando-se a ser-lhe subsequente.

Em consequência, a decisão da Relação, no caso concreto, apenas pode ser de cassação (22).
*

As custas devem ser suportadas pelo recorrente, que do recurso tirou proveito, sem que haja parte vencida Neste sentido (23) sem prejuízo, porém, do benefício do apoio judiciário - arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil.
*

5.Decisão

Pelo exposto, acordam as juízas desta relação em julgar procedente a apelação, revogando a decisão recorrida, em consequência:
a)-Declaram aprovado o acordo de pagamento apresentado pelo devedor nos termos do disposto na al. b) do nº3 do art. 222º-F do CIRE;
b)-Determinam o prosseguimento dos autos com a prolação do despacho referido no nº5 do art. 222º-F do CIRE.
Custas pelo recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
Notifique.
*


Lisboa, 23 de abril de 2024


Fátima Reis Silva
Isabel Fonseca
Teresa de Sousa Henriques


(1)A conclusão repetida pelo recorrente.
(2)Aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 42/2016, de 14/07/2016, publicado no DR. n.º 158/2016, Série I de 2016-08-18.
(3)Medida 25 do eixo de reestruturação empresarial.
(4)Acs. STJ de 10/12/15 (relator Pinto de Almeida - 1430715), de 05/04/16 (relator José Rainho – 979/15), de 12/04/16 (relator Salreta Pereira – 531/15), de 21/06/16 (relatora Ana Paula Boularot – 3377/15) e de 27/10/16 (relator Fernandes do Vale – 381/16), todos disponíveis em www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem referência.
(5)Ver Catarina Serra em Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, pgs. 582 e 583.
(6)E não exatamente por analogia.
(7)A aqui Relatora já teve e expressou (em Processo Especial de Revitalização, Notas Práticas e Jurisprudência Recente, Porto Editora, 2014, pg. 60) posição diversa da ora exposta, assinalando-se e assumindo-se a alteração de posição.
(8)Onde se estabelece «1- A declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva.» levantando a interrogação de se teriam que considerar sempre modificados todos os créditos em relação aos quais se não previsse o pagamento total de imediato.
(9)Veja-se, como exemplo, o caso tratado no Ac. STJ de 09/03/2021, já citado, ou no Ac. TRP de 08/02/2022, também citado.
(10)Neste exato sentido Rosário Epifânio em Manual de Direito da Insolvência, 8ª edição, 2022, pg. 504, Ac. TRC de 01/04/2014 (Henrique Antunes – 3330/13), Ac. TRC de 18/05/2020 (Barateiro Martins – 760/19) e Ac. TRP de 08/02/2022 (João Ramos Lopes - 1448/21), todos disponíveis e www.dgsi.pt.
(11)O que releva nos casos em que seja interposto recurso da decisão homologatória de um plano que se considere ter sido aprovado (passo prévio) em violação destas regras ou de alguma delas.
(12)Sara Luís Dias em A afetação do crédito tributário no plano de recuperação da empresa insolvente, Revista de Direito da Insolvência, nº 0, Almedina, 2016, pg. 250.
(13)Idem, pg. 251.
(14)Os únicos créditos excecionados foram os previstos no nº2 do art. 196º do CIRE, ou seja, garantias reais e privilégios acessórios de créditos de determinadas entidades: Banco Central Europeu, bancos centrais dos Estados Membros e participantes em sistemas de pagamentos
(15)Neste exato sentido vide Sara Luís Dias em O Crédito Tributário no Processo de Insolvência e nos Processos Judiciais de Recuperação, Almedina, 2021, pg. 165, Catarina Serra em Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, pg. 442, nota 664 e Maria do Rosário Epifânio em Manual de Direito da Insolvência.
(16)Para uma descrição mais detalhada do percurso jurisprudencial e doutrinário ver Sara Luís Dias, em O Crédito Tributário no Processo de Insolvência…, pgs. 165 a 177.
(17)Mais precisamente no art. 123º.
(18)Neste sentido, entre outros, os Acs. do Tribunal Constitucional nº 640/95 de 15/11/95, TRC de 25/01/2021 (Maria João Areias – 243/20), STJ de 10/05/2021 (Pinto de Almeida – 243/20), TRP de 02/12/09 (Ana Paula Amorim – 425/18) e Acs. STA de 03/06/2020 (Paulo Antunes – 01092/19) e de 07/04/2022 (Nuno Bastos – 0655/17).
(19)Assim, todos os Acs. TRC, STJ e STA citados na nota anterior, divergindo o Ac. TRP, também ali citado, que reconheceu ao crédito por coimas também natureza tributária.
(20)Cfr. o acórdão de 09/09/2022, por nós relatado no proc. nº 21668/21.
(21)O que motivou o despacho da Relatora de 26/02/2024.
(22)Neste exato sentido, em caso diverso mas análogo (revogação de indeferimento liminar de pedido de exoneração do passivo restante e despacho subsequente de fixação das obrigações do período de cessão), ver Ac. TRL de 21/02/2013 (Ana de Azeredo Coelho - 542/10), disponível em www.dgsi.pt.
(23)Ac. TRL de 11/02/2021, Carlos Castelo Branco (1194/14), disponível em www.dgsi.pt.