Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
400/19.2T8CSC.L2.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AGUIAR PEREIRA
Descritores: OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS
DIREITO A ALIMENTOS
EX-CÔNJUGE
AÇÃO CÍVEL
PROPOSITURA DA AÇÃO
RETROATIVIDADE
PRINCÍPIO DA ATUALIDADE
DECISÃO FINAL
INTERPRETAÇÃO DA LEI
INTERPRETAÇÃO LITERAL
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. A obrigação de prestação de alimentos, cujos requisitos sejam reconhecidos na respectiva ação, abrange os alimentos vencidos desde a proposição da acção.

2. Não cabe nem na letra nem do pensamento do legislador ao estabelecer na primeira parte do artigo 2006.º do Código Civil o princípio da retroactividade da obrigação de alimentos à data da proposição da acção, uma interpretação correctiva que, modificando a definição do momento a partir do qual são devidos alimentos, protele o início da obrigação de alimentos para a data da decisão final.

Decisão Texto Integral:

EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


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I - RELATÓRIO

Parte I – Introdução

1) AA demandou BB, seu ex-cônjuge, em ação de alimentos definitivos, pedindo a sua condenação a pagar-lhe a título de pensão de alimentos a quantia mensal de € 600,00 (seiscentos euros), atualizável anualmente de acordo com o índice de preços do consumidor publicados pelo Instituto Nacional de Estatística.

Alegou, em síntese, que as condições de habitabilidade da residência do seu agregado familiar da autora composto por ela, sua mãe e dois filhos são manifestamente insuficientes para a manutenção de um nível de vida pautado pela dignidade e reserva individual, e que a requerente não tem qualquer possibilidade, face aos rendimentos que aufere, de tomar de arrendamento uma casa, pois o valor mínimo mensal de uma renda na zona da sua residência é variável entre € 500,00 (quinhentos euros) e € 650,00 (seiscentos e cinquenta euros), pretendendo a requerente arrendar um andar na localidade em que reside, para o que não dispõe de rendimentos suficientes.

2) O réu contestou o pedido formulado pela requerente impugnando, no essencial, os factos alegados.

3) Teve lugar a audiência final, vindo a ser oportunamente proferida sentença que julgou a acção totalmente procedente e condenou o réu a pagar à autora a quantia peticionada a título de pensão de alimentos.

4) Tendo o réu interposto recurso de apelação o Tribunal da Relação de Lisboa viria a julgar o recurso parcialmente procedente fixando a pensão de alimentos a cargo do réu no valor mensal de € 500,00 (quinhentos euros) e decidindo que a mesma apenas era devida desde a data da prolação do acórdão, ora recorrido.


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Parte II – A Revista

5) A autora AA, não se conformando com o teor do acórdão recorrido dele interpôs recurso de revista circunscrito ao segmento decisório relativo ao momento a partir do qual é devida a pensão de alimentos fixada.

São do seguinte teor as conclusões da alegação da revista:

“a) Vem o presente recurso interposto do douta Acórdão proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa (Apelação), que julgou parcialmente procedente a apelação e, em consequência, fixou a pensão de alimentos em quinhentos euros mensais, sendo a mesma devida apenas desde a prolação desse acórdão.

b) A irresignação da ora recorrente advém de estar em frontal discordância com a fundamentação e consequente decisão que determinou que a pensão de alimentos fixada é devida apenas desde a prolação do Acórdão.

c) Consta e bem na fundamentação do douto Acórdão sub Júdice:

“No artigo 2006º do Código Civil, o legislador estabeleceu a regra de que não é legítimo exigir os alimentos para o passado, sendo aqui o passado o período anterior à proposição da ação. Com esta solução de atribuição de eficácia retroativa da decisão que fixa alimentos, quis-se consagrar uma opção legislativa no sentido mais favorável à tutela do credor de alimentos (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.6.2021, Graça Trigo, 1601/13)”.

d) No entanto, ao contrário do disposto na Lei e na mencionada Jurisprudência, o douto Acórdão extenua-se em considerações de facto algo dispensáveis, resolvendo-a em curtas linhas, concluindo mal e subvertendo a própria génese das prestações alimentícias. No artigo 2006º do Código Civil, o legislador estabeleceu a regra de que é legítimo exigir os alimentos desde a proposição da ação, sendo que esta solução de atribuição de eficácia retroativa da decisão que fixa alimentos, quis consagrar uma opção legislativa no sentido mais favorável à tutela do credor de alimentos.

e) Ora, a presente acção de alimentos definitivos foi intentada no dia 11 de março de 2019.

f) Já decorreram quase cinco anos desde a propositura da acção em resultado da morosidade processual e das inúmeras intervenções do réu, resultando no protelar da realização da justiça.

g) As intervenções processuais tidas por parte do réu tiveram como resultado a dilação na realização da justiça, na medida em que o pedido formulado pela autora foi julgado procedente.

h) A solução adotada no douto Acórdão sub judice subverte a opção legislativa do sentido mais favorável à tutela do credor de alimentos, dado que decidindo como decidiu, beneficia o devedor dos alimentos na medida em que premeia as acções dilatórias com vista a retardação da realização da justiça.

i) A título meramente exemplificativo, entre tantos outros, veja-se o decidido e sumariado no douto Acórdão de 05-03-2020 do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, com o processo n.º 840/14.3T8FNC-C.L1-2 e que se passa a transcrever:

“Os alimentos fixados por decisão judicial são devidos a partir da data da propositura da ação, e não do trânsito em julgado da decisão (data em que é exigível o pagamento dos alimentos).”.

j) A Jurisprudência e a doutrina são unanimes quanto ao momento em que são devidos os alimentos fixados por decisão judicial, sendo esse momento aquele que resulta da interpretação literal do disposto no artigo 2006º do Código Civil.

k) O douto Acórdão faz uma interpretação extensiva do preceituado artigo, a qual não encontra correspondência na Jurisprudência, bem como na doutrina maioritária.

l) Desta forma, existe uma manifesta violação da Lei substantiva, na medida em que existe um erro de interpretação no sentido do disposto no artigo 2006º do Código Civil.

m) Verifica-se que fundamentação constante do douto Acórdão é claramente insuficiente para que se conclua que a pensão de alimentos fixada é devida apenas desde sua a prolação.

n) A decisão recorrida consubstancia uma solução que viola os preceitos legais e os princípios jurídicos aplicáveis, afigurando-se como injusta e não rigorosa.

o) Pelo que o douto Acórdão recorrido, violou o disposto no artigo 2006º do Código Civil. “

6) O requerido apresentou articulado de resposta defendendo que o acórdão recorrido não violou o disposto no artigo 2006.º do Código Civil pelo que o recurso interposto deve ser julgado improcedente, negando-se a revista.

O requerido interpôs também recurso subordinado o qual não foi admitido em razão da dupla conformidade decisória quanto ao segmento da decisão impugnado.


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7) Colhidos que foram os vistos dos Juízes Conselheiros adjuntos importa apreciar e decidir, sendo que a única questão sobre a qual deve ser emitida pronúncia nesta sede é a da alegada violação do disposto no artigo 2006.º do Código Civil pelo acórdão recorrido.

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II - FUNDAMENTAÇÃO

Parte I – Os Factos

Os factos considerados provados pelas instâncias são os seguintes:

“1. AA e BB contraíram casamento católico, em 16 de maio de 1998, sem convenção antenupcial, na freguesia de ..., concelho de ..., tendo nessa data a primeira 32 anos e o segundo 42;

2. Deste casamento nasceram: CC, em ... de janeiro de 2000 e DD, em ...de setembro de 2003;

3. As responsabilidades parentais relativamente aos filhos da Autora e Réu foram reguladas nos autos que sob o nº 2500/17.4..., que correram termos pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo de Família e Menores de ... – Juiz..., por sentença que homologou o acordo alcançado entre as partes, proferida 17.11.2017, transitada em julgado, nos seguintes termos:

“1- As responsabilidades parentais referentes às questões de particular importância na vida dos menores serão partilhadas por ambos os pais.

2- Fixam a residência dos menores CC e DD, em casa da mãe.

3-Os filhos estarão com o pai sempre que este quiser e puder e mediante acordo prévio com a mãe e os filhos.

4- O progenitor suportará na íntegra, todas as despesas escolares, de transportes, de saúde, vestuário e calçado de ambos os filhos.

5- A título de pensão de alimentos devida aos menores, o progenitor suportará a quantia de € 400 mensais (€200 para cada filho), quantia que transferirá/depositará até dia 8 de cada mês para a conta que a progenitora indicará aos autos em cinco dias.

6- Quando cada um dos filhos atingir a maioridade, mantém-se a obrigação alimentar do pai constante das alíneas anteriores, desde que estes se mantenham a estudar e com o limite máximo de 25 anos de idade”

4. A Autora instaurou contra o Réu ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge com o nº 254/18.6..., que correu os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo de Família e Menores de ... – Juiz ..., com fundamento na separação de facto do casal há mais de um ano e falta de vontade da Autora em manter o vínculo matrimonial ou estabelecer a vida em comum com o Réu, tendo sido decretado o divórcio entre ambos por Sentença de 27 de Junho de 2018, transitada em 18 de Setembro de 2018, tendo sido dado como provado, entre o mais que “No dia 21 de janeiro de 2017 a Autora manifestou pretender separar-se do Réu(...) desde 23.01 2017, que nem o Réu frequentou mais a casa da sogra onde residia e reside a Autora, nem esta (Autora) se deslocou mais à casa de Lisboa, onde reside o Réu(...) Desde o referido dia 23, Autora e Réu não mais viveram em comunhão de leito , mesa e habitação”;

5) Na constância do matrimónio, o casal vivia, durante a semana, em casa da Mãe da Autora, onde a mesma Autora presentemente reside, e, ao fim de semana, na morada do Réu, na R. ..., o que sucedia pelo menos desde o nascimento do filho em 2003;

6) Ambos os filhos da Autora e Réu residem com esta, conforme acordo devidamente regulado judicialmente referido em 3) em casa da mãe da Autora, sem prejuízo de conviverem com o pai nos moldes apurados em 11.7) “infra”;

7) A Autora e os dois filhos pernoitavam no mesmo quarto, sem qualquer privacidade, até fins do ano de 2018 e estando, atualmente, a Requerente a pernoitar no hall de entrada do andar.

8) E isto porque o andar onde habitam tem somente uma assolhada que se destina ao quarto da mãe da Autora, uma outra assolhada que se destina ao compartimento onde tomam as suas refeições e por fim a assolhada que serve de quarto aos dois filhos.

9) A requerente quer arrendar uma casa na zona onde atualmente reside, sendo que as rendas ascendem ao valor mínimo mensal de € 500 a € 650,00

10) A Autora:

10.1) À data da propositura da presente ação a Autora exercia funções nas G..., Lda., na Rua ..., sede da sociedade, com a categoria de sócia gerente, auferindo a remuneração mensal líquida de €516,20, sendo de junho a agosto de 2019 de €534,00 líquidos mensais;

10.2) A entidade patronal de que a Requerente é uma das sócias gerentes estava a passar por grandes dificuldades económicas;

10.3) O capital social da Sociedade G..., Lda. é de €5400,00, sendo a Autora titular de uma quota no valor de €1575,00;

10.4) A sociedade G..., Lda., cessou a sua atividade em data não concretamente apurada mas sempre anterior a 18.09.2020;

10.5) Na sequência da cessação da atividade da empresa da qual era sócia-gerente, a Autora está a receber o “subsídio por cessação da atividade profissional no valor diário de 14,525333 concedido por um período de 780 dias, com início em 08.11.2019;

10.6 O estabelecimento onde a Autora exercia a sua atividade (sede da sociedade identificada em 10.1) “supra”, que abrange 4 prédios e 12 frações, tem registado por Ap 9 de 28.10.1985 uma hipoteca voluntária pelo valor de 40.000.000$00 e montante máximo assegurado de 68.000.000$00 escudos a favor da Caixa Económica ... a título de garantia de empréstimo, com juro anual de 20%, agravado em 2% em caso de mora, sendo sujeito passivo N...SARL.

10.7) A aquisição do estabelecimento referido em 10.1, em comum e sem determinação de parte ou direito, foi registada pela Ap. 16 de 19.06.2002, tendo por causa dissolução da comunhão conjugal e sucessão por morte, tendo como sujeitos ativos: a Mãe da Autora, EE, da irmã da Autora FF, da própria Autora, e sujeito passivo o pai da Autora GG; (certidão permanente de fls. 97 e verso e assentos de nascimento dos filhos das partes com a identificação do avô materno);

10.8) Obteve, pelo menos, os seguintes rendimentos declarados como relevantes para efeitos fiscais:

a) Em 2018: o valor anual bruto de €6.960, 00; e € 4042,71 e €5566,37 a título de pensão de alimentos para os filhos pagos pelo progenitor, sendo o rendimento coletável antes dos impostos 4.318,57 e o imposto apurado de 626,16, totalmente deduzido, nada havendo a pagar ou reembolsar; Declarou como alienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis , relativo à fração AJ art. 16, freguesia com o código 141604 o valor de €129,10, adquirida em 1999 pelo mesmo valor, correspondente à quota parte de 16,67%;

b) Em 2019: O valor anual bruto de €4800,00 e €4065,15 e 3724,37 de pensão de alimentos dos filhos pagos pelo progenitor, sendo apurado o valor líquido antes dos impostos de 696, 00, totalmente deduzido, nada havendo a pagar ou a reembolsar (fls. 105 verso a 107 verso e liquidação de fls. 108);

c) em 2020: apenas as pensões de alimentos dos filhos €4070,31 e 4056,05 (cf. fls. 108 verso a 110- em conformidade com os valores declarados pelo Réu como pagamento para pensão de alimentos;

10.9) Tem despesas com:

- alimentação, gás, água, eletricidade, internet e telefone, telemóvel, calçado e vestuário, cabeleireiro, despesas médicas, produtos de higiene, que ascendem a uma média mensal de pelo menos €380,00 mensais, com a especificação que se tratam de despesas suportadas pela própria para além das despesas referentes aos filhos e que são suportadas pela pensão de alimentos paga pelo progenitor.

10.10) Face aos rendimentos da requerente esta não tem possibilidades de tomar de arrendamento uma casa;

11) Quanto ao réu:

11.1: Vive sozinho;

11.2: Não necessita de pagar uma renda para nela residir;

11.3: Encontrando-se tal imóvel integralmente pago e registado a seu favor;

11.4: É reformado, auferindo uma pensão mensal de reforma paga pelo Centro Nacional de Pensões pelo menos desde 2016 no valor bruto anual de €58.525 (cf. fls. 63,verso), sendo no que no ano de 2019 ascendia ao valor bruto de 4.257,24, paga 14 vezes ao ano;

11.5 Obteve, pelo menos, os seguintes rendimentos declarados como relevantes para efeitos fiscais:

a) Em 2018: o valor anual bruto de €59.601,36,00 deduzido do valor de imposto retido na fonte de 20.258,00; tendo declarado os valores pagos a título de pensões de alimentos aos filhos “supra” apurados em al a) de 10.8), sendo apurado o rendimento coletável, antes dos impostos, de €55.036,06, tendo assim a receber de reembolso de IRS €3.492,55;

b) Em 2019: o valor anual bruto de €59.140,00 deduzido do valor de imposto retido na fonte de 24.766,23; tendo declarado os valores pagos a título de pensões de alimentos aos filhos “supra” referidos em al. b) 10.8), sendo apurado o rendimento coletável, antes dos impostos, de €55.497,36, a receber de reembolso de IRS €3.434,99;

c) em 2020: o valor anual bruto de €59.140,00 deduzido do valor de imposto retido na fonte de 20.134,00;, apresentando como pensões de alimentos os valores referidos em al. c) de 10.8) “supra;

11.6). Tem os seguintes encargos :

a) Alimentação (mensal) 250 euros;

b) IMI: € 141,68 (anual);

c) seguro relativo à fração: €197,19 (anual);

d) eletricidade: € 63,05 mensal;

e) água: € 26,73 (mensal);

f) comunicações (MEO): € 84,08 (mensal);

g) combustível para o automóvel, regularmente utilizado pelo R. para transportar os Filhos, pelo menos no valor mensal de € 40,00;

h) o Réu tem ainda de ocorrer aos encargos com vestuário, calçado, medicamentos e outras despesas de saúde, refeições fora de casa e outros custos, com o valor mínimo anual de €1000,00;

11.7) Os filhos ficam semanalmente com o pai desde sábado após o almoço até domingo após o jantar e passam anualmente uma semana de férias com o pai, salvo em 2017 em que passaram duas;

11.8) Em casa do Pai, cada um dos Filhos dispõe de um quarto para seu uso exclusivo e essa casa, no que diz respeito ao Filho, fica mais próxima do estabelecimento de ensino que o mesmo frequenta, que é a Faculdade ..., no ....

11.9) O Pai (Réu) suporta integralmente todas as despesas escolares, de transportes, de saúde, vestuário e calçado de ambos os Filhos, tal como estipulado no acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais.

11.10) Contribui para as despesas com a alimentação dos filhos, entregando mensalmente a quantia de € 400,00 à Autora para esse fim e dá-lhes uma mesada para os seus gastos pessoais, no valor de € 60,00 para cada um deles.

12) Encontra-se junto aos autos extrato do Banco BPI de conta nº 0-2325565 , de 23.05.2017 em nome do requerido, que apresenta como ativos em depósitos à ordem o valor de €45.691,84 e em seguros de capitalização/P. Poupança o valor de €11.268,44;

13) Encontra-se junto aos autos extrato da conta referida no ponto anterior de 10/2017 que apresenta como ativos depósitos à ordem no valor €2.801,00- cf. extrato de fls. 22;

14) Encontra-se junto aos autos extrato da conta nº 0-2325565-000-001 do BPI da qual consta um a transferência de €27.773,07 para a conta de BB, no dia 29.09.


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Parte II – O Direito

1) A questão de direito colocada neste recurso de revista interposto pela autora versa exclusivamente sobre a determinação do momento a partir do qual são devidos os alimentos fixados no acórdão recorrido a favor da autora.

Estipulando a primeira parte do artigo 2006.º do Código Civil que “os alimentos são devidos desde a proposição da acção”, no acórdão recorrido decidiu-se que os alimentos fixados, no valor de € 500,00 (quinhentos euros) mensais, eram devidos somente a partir da data da prolação daquela decisão.

Defende a autora que tal decisão contraria a citada norma legal e o princípio nela acolhido de tutela dos credores de alimentos.

2) No acórdão recorrido a decisão, interpretando de forma assumidamente restritiva o artigo 2006.º do Código Civil, considerou que o momento a partir do qual eram devidos os alimentos à autora coincidia com o da prolação do acórdão, tendo a solução sido justificada, em síntese, pela forma seguinte:

Atendendo à característica essencial da actualidade da obrigação de prestação de alimentos, estes não são devidos para suprir necessidades ocorridas no passado;

A regra de que não é legítimo exigir a prestação de alimentos para o passado está estabelecida no artigo 2006.º do Código Civil o qual, numa opção legislativa de tutela do direito do credor de alimentos, identifica o “passado” como sendo o período anterior à proposição da acção.

Porém, as particularidades do caso concreto “impõem uma interpretação restritiva desta regra da retroatividade”, já que a obrigação alimentar fixada se destina a satisfazer a necessidade de arrendar um andar e desse modo suprir as deficientes condições habitacionais de que a autora tem usufruído, deixando de dormir num hall de entrada e os filhos que partilharem um quarto.

E, adianta-se, a “fixação retroativa da pensão de alimentos (…) não permitirá à Autora beneficiar, retroativamente, de um arrendamento desde 2019”, razão pela qual, no caso “a decisão só é suscetível de ter eficácia para futuro: o passado não renasce.”

3) Vejamos se é de acolher a interpretação do artigo 2006.º do Código Civil levada a cabo no acórdão recorrido.

O acórdão recorrido assenta numa interpretação correctiva da norma que estabelece o princípio da retroactividade do direito a alimentos à data da proposição da acção, invocando para tanto a sua finalidade específica e actualidade – a invocada necessidade que os alimentos se destinam a satisfazer não existiria na pendência da acção destinando-se a satisfazer compromissos a assumir com o arrendamento de um andar para habitação da autora e seu actual agregado familiar.

4) Sobre aos critérios de interpretação da lei, a que o julgador está sujeito na sua aplicação ao caso concreto, refere o artigo 9.º n.º 1 do Código Civil que “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo”, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, ”não podendo ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil).

5) A resposta à questão colocada na revista passa assim por saber em que medida é que o acentuado carácter substancial de actualidade da obrigação de alimentos – destinada, como se explica no acórdão recorrido, a satisfazer necessidades actuais, presentes e futuras do alimentando e já não as passadas – obriga a uma interpretação correctiva da norma de forma a que, acabando no caso presente por contrariar a própria letra da lei, exclua a obrigação de alimentos vencidos na pendência da acção em que se discute o direito a alimentos.

Tenha-se presente que as razões aduzidas no acórdão recorrido para excluir o direito a alimentos na pendência da acção tanto são aplicáveis no caso de os alimentos deverem ser prestados para garantir a habitação como para assegurar o sustento e o vestuário do alimentando.

6) A primeira nota resulta de uma constatação simples: As carências do alimentando a quem foi reconhecido o direito a alimentos – bem como os seus pressupostos legais – não nascem com o trânsito em julgado da decisão que, em primeira instância declarou a existência da obrigação alimentar ou, em sede de recurso, a reconheceu em definitivo.

O reconhecimento judicial do direito a alimentos com os fundamentos invocados na petição inicial implica a verificação da necessidade de alimentos de quem os virá a receber e da possibilidade de os prestar por parte do obrigado e a manutenção de tais pressupostos na pendência da acção, abrangendo a avaliação das circunstâncias de facto descritas como causa de pedir em todo o período temporal anterior à sentença.

7) Daí que, sendo a necessidade do alimentando e a possibilidade económica do obrigado a alimentos reconhecidas a final, a procedência do pedido tenha como consequência que a obrigação de alimentos englobe as “prestações” vencidas a partir do momento em que, por falta de acordo, o alimentando interpelou judicialmente o obrigado para cumprir a sua obrigação.

É isso mesmo que preceitua, expressis verbis, a primeira pate do artigo 2006.º do Código Civil.

8) A carência da autora ao nível da satisfação das condições habitacionais de que dispõe e que justificaram no acórdão recorrido o reconhecimento do direito a alimentos manteve-se desde a data da proposição da acção, sendo nessa medida perfeitamente actual, não parecendo curial “obrigar” a autora a assumir a despesa com o arrendamento de um andar antes de ver reconhecido o direito que invocou para impor ao obrigado a alimentos o facto por si assim criado.

Por outro lado, não existe qualquer norma que imponha ao alimentando o ónus de alegação e prova de que, com incidência específica no período de pendência da acção, realizou despesas, foi auxiliado por terceiros ou contraiu encargos que deverá suportar posteriormente, isto é, que se manteve na pendência da acção a situação de carência invocada na petição inicial.

9) Aliás, conforme vem referido no acórdão recorrido, de resto citando jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, o artigo 2006.º do Código Civil adoptou uma perspetiva de tutela do credor de alimentos ao estabelecer o princípio da retroactividade dos alimentos devidos à data da propositura da acção de alimentos e não ao momento em que venha a ser reconhecido o direito a alimentos ao respectivo beneficiário.

10) O princípio estabelecido no artigo 2006.º do Código Civil não comporta quaisquer excepções.

No artigo 2006.º do Código Civil – ou em qualquer outro preceito legal – o legislador não fez depender a aplicação do aludido princípio de retroactividade da obrigação alimentar à data da instauração da acção de alimentos, da prova pelos autores (credores de alimentos) da forma como conseguiram contornar as suas dificuldades económicas na pendência da acção nem das despesas efectivamente realizadas entre a formulação do pedido e a decisão final.

11) E bem se percebe a ausência desse ónus de alegação e prova se se atentar que na origem da obrigação de alimentos a prestar – também no caso da obrigação alimentar entre ex-cônjuges apesar das suas particularidades – está um relevante princípio de solidariedade social que se impõem no plano das relações jurídicas entre os credores de alimentos e os obrigados a alimentos.

12) De resto, sendo reconhecido que, pelo menos desde a data da instauração da acção, a credora de alimentos estava necessitada da prestação de alimentos, diferir o início da obrigação de prestação de alimentos a quem deles se encontra carenciado, para além de contrariar a letra e o pensamento do legislador, equivaleria, na prática, a fomentar condutas processuais dos responsáveis demandados tendentes a retardar a decisão final, contrariando a natural urgência inerente à prestação de alimentos.

13) Do que vem de ser dito se conclui que a interpretação do artigo 2006.º do Código Civil adoptada no acórdão recorrido, no sentido de que, não demonstrando a autora que realizou as despesas que a prestação se destinaria a suportar, não há fundamento legal para abranger na obrigação judicialmente reconhecida as prestações alimentícias vencidas desde a proposição da acção, não é de admitir face ao disposto no artigo 9.º do Código Civil.

Tal interpretação, ultrapassa a letra da lei, não contendo nela um mínimo de correspondência verbal e não tem em conta o pensamento legislativo que, que em todo o caso se presume correctamente formulado.

14) Em conclusão, não cabe nem na letra nem do pensamento do legislador ao estabelecer na primeira parte do artigo 2006.º do Código Civil o princípio da retroactividade da obrigação de alimentos à data da proposição da acção, uma interpretação correctiva que modificando a definição do momento a partir do qual são devidos alimentos, protele o início da obrigação de alimentos para a data da decisão final, mesmo no caso de não ser provada a realização das despesas que a prestação alimentícia se destinará a suportar.

15) Procede, em conformidade a revista interposta pela autora, sendo revogado o acórdão recorrido na parte em que determinou serem devidos alimentos à autora apenas a partir da data da sua prolação, uma vez que, tal como estipulado no artigo 2006.º do Código Civil os alimentos são devidos à autora desde a data da proposição da acção.

O réu, porque vencido suportará, de acordo com os critérios gerais em matéria de custas processuais estabelecidos no artigo 527.º do Código de Processo Civil as custas nesta fase de recurso.


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III - DECISÃO

Termos em que acordam em julgar procedente a revista interposta por AA e, em conformidade, em revogar, parcialmente, o acórdão recorrido no segmento que determinou que os alimentos a prestar no valor de € 500,00 (quinhentos euros) mensais eram devidos a partir da prolação da decisão, decidindo que os alimentos fixados são devidos à autora desde a data da proposição da acção.

Mantém-se o acórdão recorrido quanto a tudo o mais que nele foi decidido.

O réu recorrido BB, porque vencido, suportará as custas relativas ao recurso de revista.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 23 de abril de 2024

Manuel José Aguiar Pereira (Relator)

Jorge Manuel Arcanjo Rodrigues

Nelson Paulo Martins de Borges Carneiro