Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2638/21.3T8PNF.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO ROSÁRIO GONÇALVES
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
PRESUNÇÃO JUDICIAL
PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 04/30/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

I- Como regra geral, está vedado ao Supremo, oficiosamente ou a requerimento das partes, modificar a decisão da matéria de facto.


II- Porém, a lei exceciona os casos em que haja ofensa de lei expressa que exija certa espécie de prova ou que fixe a força de determinado meio de prova, encontrando-nos perante erros de direito que incumbe ao Supremo conhecer.


III- As presunções judiciais inserem-se no contexto do apuramento da matéria de facto, e daí que os factos tidos por demonstrados à luz delas não podem, em sede de recurso de revista, ser objeto de escrutínio por parte do STJ, exceto se houver violação de norma legal impositiva em matéria de meios de prova, ou se padecerem de ilogicidade ou partirem de factos não provados.

Decisão Texto Integral: ~

Processo nº. 2638/21.3T8PNF.P1.S1


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


1-Relatório:


O autor, AA intentou ação de processo comum contra os réus, BB, FSM – Indústria de Confeções, S.A. e I..., Lda., peticionando a condenação solidária do réu BB e da ré FSM – Indústria de Confeções, S.A., a pagarem-lhe a quantia de € 99.770,00, acrescidos de juros à taxa de 4% até integral pagamento e a condenação solidária de todos os réus no pagamento ao autor do montante de € 224.459,00, acrescido de juros moratórios à taxa de 4% até integral pagamento.


Alegou, em síntese, que em meados de 2001, acordou com o réu BB vender e este aceitou comprar, para a ré FSM – Indústria de Confeções, S.A, o prédio misto, rústico e urbano, denominado ..., pelo preço de 105.000.000$00, correspondente a € 523.737,00, tendo o réu informado o autor que teria que recorrer a uma operação financeira para pagar o preço.


O réu sinalizou o negócio com 5.000 contos (€ 24.939,00) e, passado algum tempo, comunicou que a operação financeira passava pela venda do imóvel ao Banco Alves Ribeiro, sendo o diferencial entre essa venda e o preço acordado pago pela ré FSM. Nessa altura, o réu BB reforçou o sinal em mais cinco mil contos (€24.939,00).


O autor, a solicitação do réu BB, declarou vender ao Banco Alves Ribeiro, por escritura de 03-08-2001, o referido prédio pelo valor convencionado entre o banco e o réu BB, de 30.000,00 (€149.640,00).


No mesmo ato, o Banco Alves Ribeiro, por contrato autónomo, destinou o prédio a locação financeira imobiliária à Ré FSM, tendo o autor recebido do banco o valor declarado na escritura de 30.000 contos (€149.640,00)e ficado acordado que o preço restante de € 324.219,00, correspondente ao diferencial entre o valor já recebido do réu BB e do banco – no total de 40.000 contos (€ 199.518,00) – e o valor real da venda, de € 523.737,00, deveria ser pago pela Ré FSM após ter sido creditado na sua conta o valor da locação financeira, que o banco lhe concedera pelo contrato de locação do imóvel.


No dia 03/10/2001, o autor e o réu BB acordaram em reunir na sede social da sociedade V...... (outra empresa detida pelo réu BB) para ser pago o valor restante de € 324.219,00 (65.000 contos). Nessa reunião, o réu BB informou o autor que o amigo comum destes, CC, havia endossado umas letras de câmbio à empresa V......, com aceite de um terceiro, que foram descontadas no banco e entregue o dinheiro à V......, mas que não foram pagas pelo aceitante, sendo debitadas na conta da empresa, situação que era necessário regularizar. Não estando a V...... em condições de pagar as letras, o réu pediu ao autor para utilizar parte do dinheiro que lhe devia para pagar as tais letras de câmbio e que mais tarde procederia ao pagamento.


O diretor financeiro da ré “FSM”, que assegurava o controlo financeiro da V......, definiu que o valor das letras, juros e demais despesas, era de cerca de € 99.760,00 (20.000 contos), tendo sido esse o valor não pago ao autor.


Nesse ato, o réu BB ordenou ao gerente da ré I..., Lda., seu filho, que emitisse o cheque da conta da ré “I..., Lda.”, no valor de € 224.459,00 (45.000 contos), com a data de 03-10-2001, que ele próprio assinou.


O autor concordou e aguardou que o réu BB lhe dissesse quando deveria depositar o cheque, o que o autor acabou por não fazer a pedido expresso do réu, tendo sido acordado entre o autor e o réu (que respondia pelas outras rés), que o pagamento do valor do cheque de € 324.218,63 (65.000 contos), acrescido de juros, seria efetuado quando se procedesse à venda das frações do prédio de ....


A ré I..., Lda., antes de 2016 ou 2017, vendeu todas as frações do prédio, e não pagou o valor do cheque por si sacado sobre a Caixa Geral de Depósitos, no montante de € 224.459,00, nem o réu pagou o valor das letras de € 99.760,00.


Citados, os réus contestaram:


O réu BB, impugnando parcialmente os factos alegados na petição inicial, e alegando, em síntese, que em 14 de abril de 2000 o autor e o réu celebraram por escritura pública contrato promessa pelo qual o autor prometeu vender ao réu, que prometeu comprar, o prédio descrito na petição inicial, pelo preço de 110.000.000$00, tendo – como confessado na escritura – o autor recebido do réu, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de 35.000.000$00, da qual o autor deu quitação.


Mais invocou que o autor tinha recebido já a quantia de 45.000.000$00 a título de sinal e princípio de pagamento, faltando pagar do preço convencionado, 60.000.000$00.


Autor e réu vieram a acordar que o contrato de compra e venda fosse celebrado com a ré FSM, como compradora, que financiaria essa aquisição através do contrato de locação financeira imobiliária celebrado com o Banco Alves Ribeiro, o qual veio a ser celebrado, tendo o réu entregue nessa data ao autor a quantia de 9.000.000$00, já estando nessa data liquidado o valor remanescente de 21.000.000$00, através das letras referidas na petição inicial.


O remanescente de 1.000.000$00 havia sido pago no âmbito de serviços que o autor foi prestando quer ao réu, quer às empresas nas quais este tinha participação.


A ré FSM, impugnando parcialmente os factos alegados na petição inicial, alegou que nenhum negócio relativo ao imóvel celebrou com o autor, nada lhe devendo.


A ré I..., Lda., impugnando parcialmente os factos alegados na petição inicial alegou que nenhum negócio relativo ao imóvel celebrou com o autor. Mais alegou que o cheque de € 224.459,00 (45.000 contos), foi por si entregue como caução/garantia da aquisição pela ré I..., Lda. do terreno em que essa ré estava a construir um edifício, sito na ..., pelo que, tendo sido concretizada essa aquisição e pago o preço, esgotou-se a sua finalidade.


Prosseguiram os autos a sua normal tramitação, vindo a ser proferida sentença, a julgar a ação totalmente improcedente, absolvendo todos os réus dos pedidos deduzidos pelo autor.


Inconformado apelou o autor AA.


Os réus responderam às alegações.


No Tribunal da Relação do Porto foi proferido acórdão, com o seguinte teor na sua parte decisória:


«Pelo exposto, na parcial procedência da apelação, acorda-se em alterar a decisão proferida pelo tribunal a quo:


a) condenando o réu BB a pagar ao autor AA a quantia de € 149.640,00 (cento e quarenta e nove mil, seiscentos e quarenta cêntimos).


b) no mais se mantendo a decisão apelada.


Custas, no recurso e na ação, a cargo do autor e do réu BB, na proporção do decaimento, nos termos do artigo 527.º Cód. Proc. Civil».


Inconformado interpôs o réu, BB, recurso de revista, concluindo as suas alegações:


1. Vem o presente recurso interposto do Acórdão recorrido, na parte em que indeferiu o requerimento de rejeição do recurso, determinou a eliminação do ponto 10. dos factos provados da sentença de 1ª instância e julgou parcialmente procedente a Apelação, diga-se antes de tudo, assim se circunscrevendo o seu âmbito.


2. Quanto à requerida rejeição do recurso de Apelação, o que a Relação fez, foi, em primeiro lugar, dizer que, já que a impugnação da matéria de facto integra erros de direito, então, com apelo a doutrina exposta para o recurso de revista – que, ali, por isso, não tem qualquer aplicação – estamos em face do art. 639º, que não do art. 640º do CPC.


3. Mas não tem razão, pois tanto foi impugnada a decisão sobre a matéria de facto que a Relação, nos termos do art. 662º, nº 1, do CPC, alterou a decisão da matéria de facto, nos termos pretendidos pelo Apelante, quanto a um dos pontos desta que entende ter sido efectiva e adequadamente posto em causa por esse.


4. Não pode, pois, dizer-se que aqui não tem aplicação o ónus estabelecido no art. 640º do CPC.


5. E o que a Relação fez, depois, foi suprir as deficiências das conclusões com apelo ao texto das alegações.


6. Mas fê-lo contra legem.


7. Nos termos do art. 635º, e, designadamente, nº 4, do CPC, são as conclusões da alegação que delimitam o objecto do recurso.


8. Nos termos do art. 640º, nº 1, al. a), do CPC, “quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição (…) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados”.


9. No caso, o recurso tem exclusivamente por objecto a impugnação da decisão da matéria de facto, tanto que a pp. 12 e 13, diz o Apelante: “Sem a prova desses factos, a decisão de improcedência total da ação deixa de ter apoio factual e o pedido procede até ao montante de €174.579,264 (35.000 contos), pelo que a Relação deve revogar a sentença recorrida e substituí-la por outra que julgue procedente o pedido de condenação do BB em € 174.579,00 e improcedente os restantes pedidos”.


10. No caso, das conclusões da Apelação não consta a especificação dos concretos pontos de facto cuja decisão se pretende impugnar.


11. Pelo que o recurso de Apelação não podia deixar de ser rejeitado.


12. O que, agora, na procedência do presente recurso de Revista, e com a consequente revogação do Acórdão recorrido, não pode deixar de ser determinado.


13. Tendo esse Acórdão violado o disposto nos arts. 635º, nº 4, 640º, nº 1, al. a) do CPC.


14. A Relação determinou a eliminação do ponto 10. dos factos provados da sentença de 1ª Instância, com base em ter considerado que tal facto foi dado como provado com base em presunção judicial, quando, no caso, era inadmissível este meio de prova.


15. Para tanto, sustentou que, nos termos do art. 351º do CC, as presunções judiciais só são admitidas nos casos em que é admitida a prova testemunhal e que, por aplicação dos arts. 392º a 394º e 395º do CC não era, no caso, admissível a prova testemunhal.


16. Isto é uma questão de direito que cabe na competência do STJ, nos termos do art. 674º do CPC.


17. Ou, no limite, é tal questão subsumível ao nº 3 dessa disposição.


18. Como, no caso, o é indubitávelmente, pois, como abaixo se verá, violou o Acórdão recorrido uma disposição expressa da lei que fixa a força de determinado meio de prova, no caso, o art. 358º, nº 2, do CC, e a confissão judicial escrita, em documento autêntico, feita à parte contrária ou a quem a represente.


19. Não merece dúvida que, se o Supremo pode censurar a utilização de presunções judiciais pela Relação – como é jurisprudência absolutamente unânime – também pode, naturalmente, censurar a eliminação de um facto pela Relação com base em ter a 1ª instância utilizado presunção judicial em situação não admissível.


20. Pois, ao fazê-lo, violou as disposições legais por si invocadas, designadamente, os arts. 351º, 394º e 395º do CC.


21. E apurar se as violou ou não é questão de direito e, logo, matéria da competência do STJ.


22. Dizia o Apelante, agora Recorrido, no texto das suas alegações da Apelação – no que veio a ser secundado pela Relação – que o ponto 10. da decisão da matéria de facto em que se diz que “o Autor, no ato da celebração desta escritura pública de compra e venda, já tinha recebido a totalidade do preço acordado com o 1º Réu a que se alude no ponto 3.” não pode considerar-se provado.


23. E não poderia porque tal facto teria resultado provado pela confissão escrita feita à parte contrária ínsita no documento autêntico que constitui a escritura de 3/8/2001, junta à p. i. como doc. nº 5, e, bem assim, por presunção judicial.


24. Em primeiro lugar, alega, por a escritura não ter sido celebrada com a parte contrária, nem com o seu representante, entendido este de forma lata, pelo que, conclui, a confissão do mesmo constante não tem força probatória plena.


25. Em segundo lugar, alega, porque a confissão sempre se restringiria ao recebimento do preço aí declarado de 30.000.000$00, nunca daí se podendo extrapolar para o recebimento do preço real de 105.000.000$00.


26. E, em terceiro lugar, alega, porque, nos termos dos arts. 351º, 394º, nº 1, e 395º do CC, não podem provar-se por presunção judicial factos extintivos da obrigação, como o pagamento.


27. Não tinha, porém, razão o Apelante, agora Recorrido, e, por consequência, não a tem agora a Relação, em nenhum desses três argumentos.


28. Quanto ao primeiro, porque, de acordo com os pontos 6. e 7. do elenco factual da sentença recorrida, a escritura foi celebrada, por acordo entre A. e R. BB, com o Banco Alves Ribeiro, para que este, em simultâneo, desse de locação financeira o imóvel adquirido à R. FSM, sociedade administrada pelo R. BB. Como deu.


29. O que se confirma, aliás, da escritura pública de compra e venda e do doc. junto pelo Banco Alves Ribeiro, em 29/4/2022, a pedido do A..


30. Pelo que, nesse contexto, no sentido lato defendido pelo Apelante, agora


Recorrido, nas suas alegações da Apelação, e não posto em causa pela Relação, o Banco Alves Ribeiro é “pessoa” que actua “no interesse da parte contrária no âmbito do conflito de interesses a que se reporta o facto confessado ou que, pela sua proximidade dela, deva ser reputada como normal transmissário da declaração confessória.”


31. Logo, por aplicação da doutrina do próprio Ilustre Mandatário do Recorrido, nas suas alegações da Apelação, o Banco Alves Ribeiro representou o R. BB, aqui Recorrente, na escritura de compra e venda.


32. Pelo que a confissão ínsita na escritura de que foi recebido o preço na sua íntegra, tem força probatória plena, nos termos do art. 358º, nº 2, do CC.


33. Quanto ao segundo argumento aduzido pelo Apelante, agora Recorrido, nas suas alegações da Apelação, porque, quando se declara numa escritura pública que se recebeu integralmente o preço, quer-se dizer isso mesmo, que se recebeu integralmente o preço.


34. Seja esse preço, na realidade, coincidente ou não com o valor que a esse título se declarou na escritura.


35. E, quanto ao terceiro argumento, porque, como é jurisprudência e doutrina absolutamente assentes, a limitação probatória do art. 394º - ou do art. 395º – cede perante princípio de prova, designadamente documental.


36. Ora, isso vale também para a situação contrária, isto é: quando a confissão não tenha força probatória plena por não ter sido feita à parte contrária, essa confissão exarada em documento autêntico, sempre valerá como princípio de prova que legitima o recurso a presunções judiciais para demonstrar a sua veracidade.


37. É que não poderá nunca legitimamente duvidar-se de que a declaração constante de uma escritura pública – mesmo que se entendesse celebrada com terceiro – de que foi recebido integralmente o preço de determinado imóvel constitui um princípio de prova documental de que esse preço efectivamente se recebeu, ainda que o preço declarado não coincida com o preço real.


38. Pelo que, ao contrário do defendido pelo Apelante, agora, Recorrido, nas suas alegações da Apelação, e no que foi secundado no Acórdão recorrido, sempre seria, no caso, legalmente, admissível o recurso à prova testemunhal, e, logo, também, à prova por presunção judicial.


39. Não fique por dizer, aliás, que o então Apelante – e agora a Relação, ao dar-lhe razão - acaba por se envolver numa petição de princípio.


40. É que, se o R. BB não é parte na escritura, então é terceiro.


41. E, nos expressos e inequívocos termos do art. 394º - ou 395º - “a limitação probatória aí estabelecida não vale para terceiros.”


42. Na verdade, o aqui Recorrente ou é considerado como representado pelo Banco Alves Ribeiro, na escritura de compra e venda e, então, vale a confissão enquanto tal, ou, no mínimo dos mínimos, como princípio de prova, ou é terceiro, e, então, não são aqui aplicáveis as limitações probatórias dos arts. 351º, 394º e 395º do CC.


43. Pelo que sempre seria aqui admissível a prova testemunhal ou por presunção judicial.


44. Por tudo o que muito bem andou a Senhora Juíza de 1ª Instância em considerar provado o que considerou sob o ponto 10. do elenco factual constante da sentença recorrida.


45. Mas também bem andou quanto à motivação que a respeito desse facto exarou: O estar-se em face de uma declaração confessória ínsita em documento autêntico, pelo que tem força probatória plena, mas não deixando de dizer – não fossem surgir dúvidas como as que surgiram ao então Apelante, agora Recorrido, e à Relação a quo – que, pelas regras da experiência comum, nunca um advogado com muitos anos de experiência como o Recorrido declararia numa escritura pública estar inteiramente pago do preço de um imóvel que vendeu, sem que o estivesse efectivamente, fosse esse preço ou não coincidente com o ali declarado, sobretudo estando em dívida, na sua tese, ainda, 65.000 contos, e sem que se tenha sequer munido de um qualquer documento que o acautelasse.


46. O que, quanto à segunda parte do que se escreveu no parágrafo anterior, significa retirar de um facto conhecido – a declaração na escritura – um facto desconhecido – o de que essa declaração envolve a parte do preço aí não declarada.


47. O que é, realmente, presunção judicial, nos termos do art. 349º do CC, mas, por tudo o que acima se disse e, designadamente, por ter na sua base um princípio de prova documental – a declaração na escritura - sempre seria aqui legalmente admissível.


48. Acrescenta a sentença de 1ª instância como argumento que o cheque que o Recorrido afirma ter recebido para garantia do pagamento do preço em dívida – estranhamente no montante de 45.000 contos, enquanto a dívida, na sua tese, seria de 65.000 contos – o não poderia ter sido por, de acordo com o agora Recorrido, ter sido entregue totalmente preenchido e ter a data de 3/10/2001, enquanto que a escritura tem a data de 3/8/2001.


49. No que tem toda a razão a Senhora Juíza de 1ª Instância, cfr. decorre dos factos constantes do elenco dos factos provados sob os nºs 12 e 13, do cheque cuja cópia foi junta com a p. i., como doc. nº 6 e cujo original foi exibido em audiência de julgamento de 14/10/2022, e, ainda, da escritura pública de compra e venda.


50. E acrescentando a Senhora Juíza de 1ª Instância, também, que não é nada normal que o Recorrido, se tivesse algum crédito subsistente, tivesse esperado 20 anos sobre a sua génese e 3 anos sobre o término das relações profissionais entre as partes, para o reclamar judicialmente.


51. Como, com toda a evidência, não é.


52. O que tudo reforça a justeza da presunção judicial de que, por mera cautela, se lançou mão.


53. Pelo que tem toda a razão a Senhora Juíza de 1ª Instância, e, ao contrário, não a tem o Tribunal da Relação do Porto.


54. Pelo que, sendo de manter integralmente o teor do ponto 10. do elenco factual da sentença de 1ª Instância, não há senão que concluir pela total improcedência da acção.


55. De onde, mesmo que se entendesse não ser de rejeitar o recurso – e, fatalmente, é – sempre se teria que conceder provimento ao presente recurso, revogando o Acórdão recorrido e repristinando a sentença recorrida.


56. Tendo o Acórdão recorrido violado o disposto nos arts. 351º, 358º, nº 2, 394º e 395º do CC, mas, também, o disposto no art. 662º, nº 1, do CPC.


Por seu turno, contra-alegou o autor, AA:


1. O ónus do recorrente de especificar na alegação da apelação os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados (art. 640-1-a CPC) circunscreve-se à decisão de facto tomada por apreciação da prova sujeita à livre consideração do julgador, não jogando quando a alteração da decisão de facto é consequência lógica da decisão duma questão de direito.


2. Nos casos em que existe esse ónus não tem de ser observado nas conclusões, que só têm de conter a indicação sintética dos fundamentos de alteração da decisão, nem a letra do art. 640-1, nem a sua razão de ser, origem histórica ou comparação sistemática com as normas dos direitos dos recursos que estatuem cominação, permitindo interpretá-lo no sentido de tal indicação dever ser feita nas conclusões da alegação; bastando que o seja no corpo da alegação.


3. De qualquer modo, os factos concretos cuja prova o alegante pôs em causa estão enunciados na conclusão da alegação, designadamente nos seus nºs 1 e 2, só não constando aí a explícita referência ao número que tais factos têm na relação dos factos provados.


4. Improcede, pois, a exceção de rejeição da apelação, como bem decidiu o Tribunal da Relação.


5. Ao excluir a admissibilidade legal da presunção judicial usada na 1ª instância, a Relação julgou também que do facto de ter sido celebrada, com o conteúdo dela constante, a escritura entre o autor e o Banco Alves Ribeiro não era extrapolável o recebimento de quantia distinta ou para além dos 30.000 contos acordados como preço, excluindo assim, não só a admissibilidade da presunção, mas também a própria ilação tirada pela 1ª instância.


6. Esta decisão, sendo de facto, é insustentável de recurso de revista, pelo que o presente recurso é, nessa parte, inadmissível.


7. A declaração de quitação da dívida do preço da compra e venda, feita pelo recorrido perante notário em escritura em que o recorrente não teve intervenção, teve como destinatário o Banco Alves Ribeiro, o qual, atuando no seu exclusivo interesse como comprador, pelo preço real nela declarado, não pode ser considerado representante do recorrente, para o efeito do art. 358-2 CC, enquanto normal transmissário a este de tal declaração, constituindo, no âmbito da confissão de recebimento desse preço, a parte contrária a que se refere o art. 352 CC no âmbito do conflito de interesses a que se reporta o facto confessado.


8. Se assim não fosse e o Banco pudesse ser tido como normal transmissário da declaração confessória aos interessados indiretos no ato (a sociedade FSM e, só em segundo grau, o recorrente), a confissão estaria limitada ao montante do preço de 30.000 contos que ao Banco cabia pagar como comprador, não abarcando o seu conteúdo outro montante para além deste, designadamente a totalidade do preço acordado entre o recorrente e o recorrido, só respeitante à relação jurídica (distinta) entre estes estabelecida pelo contrato-promessa.


9. Com efeito, a designação válida de terceiro (perante o contrato-promessa) como comprador, no âmbito duma relação estabelecida entre o promitente vendedor e um banco que, por pessoa diferente, adquire a coisa prometida para a ceder em locação financeira (aliás, a uma sociedade que não se confunde com o promitente comprador), implica tão-só o dever do promitente vendedor de a transmitir ao banco, por contrato liberatório, sem acrescentar a transmissão do complexo de direito e deveres decorrentes do contrato primitivo, nomeadamente o de pagamento do preço real nele acordado, que permanece na esfera jurídica do promitente vendedor.


10. A declaração de quitação dada circunscreve, pois, os seus efeitos, ao preço da aquisição da coisa pelo terceiro.


11. Acresce que a declaração confessória deve ser inequívoca (art. 357-1 CC), pelo que, a dúvida existente quanto ao objeto da declaração do recorrido na escritura de 3.8.21, essa exigência seria suficiente para que, a nível interpretativo, não fosse possível ir além do preço da locação financeira.


12. Diferente é o caso, como bem julgou a Relação, em que nessa escritura de compra e venda é declarado um preço inferior ao do contrato-promessa, a mais das vezes por simulação, tudo se passando no interior da mesma relação jurídica de transmissão por compra e venda (ao comprador ou a terceiro que este designe e assuma a sua obrigação de pagar o preço acordado).


13. Também como meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador (art. 361 CC) o alcance da confissão está limitado pelo seu objeto, não podendo contribuir para a prova de objeto diferente ou mais amplo, pelo que tão-pouco como meio de prova livre a declaração feita na escritura de 3.8.01 pode valer.


14. Em face das normas de direito probatório material dos arts. 351 e 395 do CC e como bem julgou a Relação, estava vedado à 1ª instância o uso de presunções judiciais para prova de factos, invocados pelas partes, constitutivos do cumprimento da relação obrigacional.


15. Entendendo a doutrina e a jurisprudência que essas normas não impedem o recurso à prova testemunhal e por presunção judicial quando haja um princípio de prova escrita do facto probando, não se pode considerar no caso que a declaração de quitação feita pelo recorrido na escritura de 3.8.01, pela qual, por acordo entre as partes, vendeu ao banco o prédio prometido vender à recorrente, constitui princípio de prova por escrito do pagamento integral do preço – diverso e superior – acordado no contrato entre recorrente e recorrido: como princípio de prova entende-se um resultado insuficiente para a prova do facto probando, o que pressupõe que o meio probatório sobre este incide.


16. Por todas estas razões, está excluído o uso da confissão de recebimento de determinado preço para a prova, ainda que complementada com outros meios, de uma quantia superior, devida como preço por via de uma relação jurídica diversa que com a primeira só parcialmente coincida: a parte em que os dois preços coincidem está sempre limitada pelo objeto da declaração feita.


17. Excluída a utilização da declaração de quitação constante da escritura de 3.8.01 como elemento probatório, os factos complementarmente invocados pelo recorrente, em conformidade com o entendimento da 1ª instância (tempo decorrido, experiência do recorrido), não teriam qualquer possibilidade de, sem ofensa do art. 349 CC; constituírem base da presunção do pagamento integral do preço acordado entre as partes, mesmo que não existisse o obstáculo dos arts. 351 e 395 do CC.


18. O recurso improcede, pois, devendo ser mantida a decisão recorrida.


Foram colhidos os vistos.


2- Cumpre apreciar e decidir:


O recurso de revista interposto, cumprindo os pressupostos gerais de recorribilidade do art. 629º do CPC. e não se verificando dupla conforme, o mesmo será admissível, nos termos constantes do art. 671º. do CPC.


As conclusões do recurso delimitam o seu objeto, nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil.


As questões a dirimir consistem em aquilatar:


- Sobre o indeferimento do requerimento de rejeição do recurso, quanto à matéria de facto pela Relação.


- Sobre a eliminação do ponto 10 dos factos provados com base em presunção judicial, inadmissível no caso.


A matéria de facto delineada nas instâncias foi a seguinte:


1 - Em 14 de Abril de 2000, o Autor e o 1º Réu celebraram, por escritura pública exarada a fls. 12 do Livro 4 B, do Cartório Notarial de Paredes, contrato promessa, pelo qual o Autor prometeu vender ao Réu, que prometeu comprar, pelo preço de 110.000.000$00, o prédio urbano composto por casa de rés do chão e andar destinado a fábrica, com a área coberta de 1.260 m2 e logradouro junto com a área de 8.630 m2, situado no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº 250 e inscrito na matriz predial sob o artigo 673, tendo atribuído eficácia real à promessa.


2 - O Autor recebeu do Réu, a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de 35.000.000$00 (€ 174.579,00), da qual o mesmo Autor deu plena e integral quitação.


3 - Na fase de concretização do negócio, o preço foi ajustado para a quantia de €523.737,00.


4 - O 1º Réu sinalizou o negócio com mais 5.000 contos, hoje €24.939,00.


5 - Tendo o 1º Réu reforçado o sinal em mais cinco mil contos - €24.939,00.


6 - Chegada a data para se celebrar o contrato definitivo de compra e venda, o Autor e o 1º Réu acordaram em que este fosse celebrado, na qualidade de compradora pela 2ª Ré FSM, a qual financiaria essa aquisição por recurso a financiamento bancário, via contrato de locação financeira imobiliária.


7 - O que tudo foi concretizado pela escritura pública de 3/8/2001, junta como doc. nº 5 com a pi., que aqui se dá por integralmente por reproduzida, na qual o Autor declara vender pelo preço de 30.000.000$00 (€149.640,00), que declara ter recebido, ao Banco Alves Ribeiro, S.A. que declara comprar, o prédio identificado no ponto 1.


8 - No mesmo ato, o Banco Alves Ribeiro, por contrato autónomo, destinou o prédio a locação financeira imobiliária à 2ª Ré.


9 - O Autor recebeu do banco o valor declarado na escritura de 30.000 contos, ou seja, de €149.640,00.


10 - O Autor, no ato da celebração desta escritura pública de compra e venda, já tinha recebido a totalidade do preço acordado com o 1º Réu a que se alude no ponto 3 (facto eliminado pela Relação).


11 - Em data não concretamente apurada, ocorreu uma reunião, para fins não concretamente apurados, entre o Autor, o Réu BB, DD, administrador da terceira Ré “I..., Lda.”, filho do primeiro Réu, EE, diretor financeiro da Ré “FSM” e FF, amigo comum do Autor e do 1º Réu.


12 - O gerente da 3ª Ré “I..., Lda.” emitiu e entregou ao Autor um cheque da conta da 3ª Ré, no valor de €224.459,00 (45.000 contos), em data não concretamente apurada, sacado sobre a Caixa Geral de Depósitos, assinado por DD, filho do Réu BB e por GG, sócios da 3ª Ré, para fins não concretamente apurados, não tendo tal cheque sido apresentado pelo Autor a pagamento.


13 - Tal cheque ainda se encontra na posse do Autor, nunca tendo sido devolvido à 3ª Ré.


14 - A sociedade “V......” é uma outra empresa pertencente ao 1º Réu, com sede no lugar de ....


15 - Entre meados dos anos 90 e até 2018 o Autor foi advogado do 1º Réu e da 2ª Ré “FSM”, existindo entre todos uma relação de confiança.


Apreciemos de direito:


Insurge-se o recorrente relativamente ao acórdão da Relação, com base em dois argumentos, a saber: a não rejeição do recurso quanto à matéria de facto, por inaplicabilidade do disposto na al. a) do nº. 1 do art. 640º do CPC. e eliminação de um facto, com base em inadmissibilidade de presunção judicial.


Ora, nos termos do disposto no nº. 1 do art. 682º do CPC., aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico adequado.


E perante o seu nº. 2, a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no nº. 3 do artigo 674º.


Por seu turno, dispõe o nº. 3 do art. 674º do CPC., que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.


O art. 682º., como refere Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª. ed., pág. 503 e segs. «Assenta numa distinção fundamental entre questão de facto e questão de direito, fixando para o Supremo a regra segundo a qual a sua competência é circunscrita à aplicação do direito aos factos que as instâncias tiverem fixado. Consequentemente, como regra geral, está vedado ao Supremo, oficiosamente ou a requerimento das partes, modificar a decisão da matéria de facto».


Porém, a lei exceciona os casos em que haja ofensa de lei expressa que exija certa espécie de prova ou que fixe a força de determinado meio de prova, encontrando-nos perante erros de direito que incumbem ao Supremo conhecer.


As questões de facto estão reservadas às instâncias, cabendo a derradeira decisão à Relação, a quem estão conferidos os poderes específicos consagrados no art. 662.º, n.º 1 do CPC.


O Supremo Tribunal, embora não possa censurar o uso feito pela Relação dos poderes conferidos por aquele preceito, sempre poderá verificar se a Relação ao usar tais poderes, agiu ou não dentro dos limites conferidos pela lei para os exercer (cfr. Ac. do STJ. de 16-12-2020, in www.dgsi.pt).


No concernente às presunções judiciais, escreve Francisco Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, Almedina, 2015, Vol. II, pág. 524 «Ao Supremo apenas cabe ajuizar, por ser uma questão de direito, se as presunções judiciais/naturais extraídas pelas instâncias violam o disposto nos arts. 349º e 351º do CC, isto é, se foram tiradas de factos desconhecidos ou irrelevantes para firmar factos desconhecidos, se exigem um grau superior de segurança na prova, se conflituam com a factualidade material provada ou ainda, se contrariam um facto que tenha sido submetido a concreta discussão probatória e que o tribunal considerou não provado ou padecerem de manifesta ilogicidade.


Contudo, poderá sempre, o Supremo censurar a decisão da Relação no que respeita a conclusões ou ilações de factos, infrinja o limite, designadamente quando o uso de tais presunções houver conduzido à violação de normas legais, isto é, decidir se, no caso concreto, era ou não permitido o uso de tais presunções».


As presunções judiciais inserem-se no contexto do apuramento da matéria de facto, e daí que os factos tidos por demonstrados à luz delas não podem, em sede de recurso de revista, ser objeto de escrutínio por parte do STJ, exceto se houver violação de norma legal impositiva em matéria de meios de prova, ou se padecerem de ilogicidade ou partirem de factos não provados.


A posição da jurisprudência neste Supremo Tribunal de Justiça é esmagadora no sentido de entender que as presunções judiciais, constituindo matéria de facto, são insindicáveis pelo STJ., ou seja, o único controlo que esta instância pode fazer é conferir se o iter percorrido para retirar a presunção judicial respeitou as regras legais do procedimento probatório, não violando normas legais impositivas, a existência de factos-base, admissibilidade (art. 351.º do CC), inexistência de ilogicidade ou arbitrariedade manifesta, ou se partirem de factos não provados ou de factos instrumentais não explicitados (cfr. Acs. do STJ. de 28-4-2021, 9-03-2021, 1-4-2019, 14-5-2019 (Revista 1724/15.3T8VRL.G1.S1), 30-4-2019, 11-4-2019, 12-2-2019 (Revista 3627/15.2T8BRG.G1.S1), 22-3-2018, 19-1-2017, 11-2-2016 (Revista 505/12.OTBCHV.G1.S1), 15-1-2020 (Revista 1350/14.4TBBRR.L2.S1), 3-3-2020, 30-11-2023 (Revista 18588/16.2T8LSB.L1.S1), 22-4-2021, 19-10-2021, 13-4-2021, 15-9-2022 (Revista 3664/15.OT8LRA-C1.S1), 2-11-2023, 31-10-2023, 11-7-2023 (Revista 400/18.6T8PVZ.P1.S2), 4-7-2023, in http://www.dgsi.).


Colocados estes parâmetros, vejamos a situação concreta.


Defende o recorrente que a Relação não devia ter admitido a impugnação da matéria de facto, pois, nos termos plasmados no nº. 1, al. a) do art. 640º do CPC., não consta das conclusões do recurso interposto, os concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados.


Ora, compulsado o acórdão da Relação, constatamos que ali foi apreciado em questão prévia, tal aspeto.


Com efeito, na parte que ora releva, entendeu a Relação que constava das motivações do recurso que o facto provado sob o nº. 10 da matéria de facto da sentença devia ser eliminado, por não ter sido confessado, nem poder ser deduzido pelo tribunal por presunção judicial, tendo a sentença recorrida violado o art. 351º do Código Civil.


Mais entendeu que as conclusões do recurso nos pontos 1. e 2. eram explícitas nesse sentido, razão pela qual, o que estava em causa era um erro de direito, tendo conhecido do mérito do recurso.


Ora, estando em apreço questões sobre matéria de direito incumbe dar cumprimento ao preceituado no nº. 2 do art. 639º do CPC., o que foi respeitado e, ainda, sem violação do art. 640º do mesmo diploma legal.


Assim sendo, não haveria lugar à rejeição do recurso, nenhuma censura merecendo, nesta parte, o acórdão recorrido.


Também não se conforma o recorrente com o acórdão proferido, quando procedeu à eliminação do ponto 10. dos factos provados, dado entender ter o mesmo assentado numa presunção judicial, não permitida.


Ora, as presunções judiciais não se reconduzem a um meio de prova próprio, consistindo, antes, em ilações que o julgador extrai a partir de factos conhecidos para dar como provados factos desconhecidos, nos termos definidos no art. 349.º do Código Civil.


Com efeito, as presunções judiciais inserem-se num contexto do apuramento da matéria de facto, de sorte que os factos tidos por demonstrados à luz delas não podem, em sede de recurso de revista, ser objeto de sindicância por parte do STJ e só assim não sucederá quando o Supremo censurar o uso que foi feito da prova por presunção, ou seja, quando as presunções extraídas violarem norma legal impositiva em matéria de meios de prova, ou se padecerem de ilogicidade ou arbitrariedade, ou se partirem de factos não provados ou de factos instrumentais não explicitados.


Na situação em apreço, entende o recorrente que a confissão ínsita na escritura de que foi recebido o preço tem força probatória plena, nos termos do art. 358º, nº. 2 do CC, que no caso seria admissível prova testemunhal ou por presunção judicial, tendo sido violado o disposto nos arts. 351º, 358º, nº.2, 394º e 395º do CC, mas também o art. 662º, nº. 1 do CPC.


Consta do acórdão recorrido, nomeadamente o seguinte:


«De acordo com as disposições legais reguladoras da interpretação da declaração negocial, aqui aplicáveis – arts. 236.º e 238.º do Cód. Civil –, da declaração do autor constante da escritura resulta que o facto aí confessado é apenas, e tão só, que foi recebido o preço de 30.000 contos pela compra e venda titulada pela escritura em causa (compra e venda efetuada pelo autor, na qualidade de procurador do titular inscrito no registo, ao Banco Alves Ribeiro, S.A.). Não se extrai da declaração mais que essa confissão, nomeadamente, confissão do autor quanto ao recebimento integral do preço de € 105.000 contos (correspondentes a € 523.737,00) acordado em negócio distinto do titulado pela escritura pública de compra e venda.


A declaração do autor constante da escritura é de que recebeu o preço de trinta mil contos pelo qual, através da referida escritura pública, foi vendido o imóvel ao Banco Alves Ribeiro, S.A. (e não ao réu). Daí não há como – atento o contexto e o texto da declaração (art. 238.º, n.º 1, do Cód. Civil), e de acordo com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse retirar da declaração aí prestada de que vende pelo preço de TRINTA MIL CONTOS que já recebeu (art. 236.º, n.º 1, do Cód. Civil) – extrapolar para a constituição, por essa mesma escritura, de qualquer princípio de prova escrito do pagamento por parte do réu BB de qualquer outro valor distinto ou para além do declarado recebimento do preço de 30 mil contos.


(…)


Ora, da leitura da motivação da decisão de facto da sentença recorrida resulta que, efetivamente, o tribunal a quo recorreu a presunções judiciais na formação da sua convicção quanto ao ponto 10 dos factos provados (O Autor, no ato da celebração desta escritura pública de compra e venda, já tinha recebido a totalidade do preço acordado com o 1º Réu a que se alude no ponto 3.). Como explicitado na motivação, o tribunal a quo parte do facto base, consistente no teor da escritura de venda do imóvel outorgada em 3 de agosto de 2001 para, com base nas regras de experiência (considerando não ser credível que o autor, advogado experiente, outorgasse a escritura em causa sem se precaver com prova documental quanto à parte do valor ainda em falta – face ao acordo celebrado com o réu –; não se mostrando credível a versão de que tal foi feito em virtude da entrega do cheque de 45 mil contos, pelos motivos explicandos, nem se mostrando razoável/credível que tivesse aguardado cerca de 20 anos para reclamar a parte do preço em falta), concluir pelo facto presumido, elencado no ponto 10 dos factos provados.


Nos termos do disposto no art. 351.º do Cód. Civil, “As presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal.”


Dispõe o art. 395.º do Cód. Civil, por seu turno, que as disposições dos arts. 392.º a 394.º do Cód Civil “são aplicáveis ao cumprimento, remissão, novação, compensação e, de um modo geral, aos contratos extintivos da relação obrigacional, mas não aos factos extintivos da obrigação, quando invocados por terceiro.”


Daqui decorre que «(…) quando as obrigações tenham por fonte um negócio jurídico reduzido a escrito, por imposição da lei ou por vontade das partes, não é admissível a prova por testemunhas e presunções de extinção das obrigações por cumprimento, remissão, novação, compensação, confusão, dação em cumprimento, dação pro solvendo e outros contratos extintivos da obrigação.


(…)


Os arts. 394.º, 395.º e 351.º do Cód. Civil consagram uma das exceções ao princípio da livre apreciação da prova consagrado na 1.ª parte do n.º 5 do art. 607.º do Cód. Proc. Civil, decorrendo da apreciação conjugada dessas disposições legais ser inadmissível a prova por testemunhas ou por presunção judicial “(…) quanto aos factos extintivos de uma relação obrigacional emergente de negócio jurídico formalizado em qualquer das espécies de documento mencionadas no nº 1 do artigo 394º. Por isso mesmo, se torna importante a quitação por escrito, nos termos estabelecidos no artigo 787º, nº 1, do CC.


Todavia, não obstante a restrição de prova estatuída nos citados artigos 394º e 395º, tem-se admitido a prova testemunhal em determinadas situações excepcionais, mormente quando exista um começo ou princípio de prova escrita, qualquer que ela seja, quando se demonstre ter sido moral e materialmente impossível a obtenção de uma prova escrita, ou quando tenha ocorrido perda não culposa do documento que continha a prova[3]. (…)» .


Ora, no caso sub judice, não existe qualquer começo ou princípio de prova escrita, proveniente do autor, que faça parecer verosímil algum outro pagamento distinto ou além dos valores referidos nos pontos 2, 4, 5 e 7 dos factos provados (como já explicitado, entendemos que a declaração de quitação constante da escritura pública de 3/8/2001 referida no ponto 7 não serve esse propósito).


Concluímos assim pela procedência do recurso nesta parte, por a decisão do tribunal a quo de considerar provado que “o autor, no ato da celebração desta escritura pública de compra e venda, já tinha recebido a totalidade do preço acordado com o 1º Réu a que se alude no ponto 3.”, assentar numa presunção judicial, o que a lei não permite.


Em consequência, atento o disposto no n.º 5 do art. 607.º do Cód. Proc. Civil, determina-se a eliminação do ponto 10 dos factos provados».


Ora, cingindo-se a competência do STJ à matéria de direito, apenas caberá verificar da correção do método discursivo de raciocínio e saber se os critérios de utilização das presunções judiciais se mostram respeitados, examinando a questão estritamente do ponto de vista da legalidade, ou seja, decidir se, no caso concreto, é ou não permitido o uso da presunção.


E o resultado desta prognose não pode deixar de concordar com o decidido pela Relação.


Face à competência alargada da Relação em sede da impugnação da decisão de facto (art. 662.º, n.º 1, do CPC), é lícito a esta instância, com base na prova constante dos autos, reequacionar a avaliação probatória feita pela 1.ª instância, nomeadamente no domínio das presunções judiciais, nos termos do n.º 4 do art. 607.º, aplicável por via do art. 663.º, n.º 2, ambos do CPC.


A escritura pública é um documento autêntico que só faz prova plena de que as declarações dos contratantes aconteceram, e não já de que o teor destas corresponde à verdade e as presunções judiciais – também designadas de materiais, de facto ou de experiência – não são, em bom rigor, genuínos meios de prova, mas antes meios lógicos ou mentais ou operações firmadas em regras de experiência ou operações de elaboração das provas alcançadas por outros meios, reconduzindo-se, assim, a simples provas de primeira aparência, baseadas em juízos de probabilidade.


Não cabe no âmbito do recurso de revista analisar a apreciação que as instâncias fizeram relativamente à prova sujeita ao princípio da livre apreciação, nem retirar presunções judiciais de factos provados, ou controlar presunções judiciais deduzidas da prova pelas instâncias, uma vez que ainda se situam no domínio dos factos (cfr. Ac. do STJ. de 26-2-2015, in, www.dgsi.pt.)


Embora as presunções judiciais se situem no domínio da matéria de facto, o STJ pode sindicar o seu uso, averiguando se elas ofendem qualquer norma legal, se padecem de alguma falta de lógica ou se contrariam os factos provados.


Perante o explanado, entendemos que nada impedia o Tribunal da Relação de conhecer da presunção, nem este Supremo constata a violação de qualquer norma legal no processo lógico seguido, nem a ocorrência de qualquer ilogicidade, nenhum reparo merecendo o acórdão recorrido, o qual se manterá.


Sumário:


- Como regra geral, está vedado ao Supremo, oficiosamente ou a requerimento das partes, modificar a decisão da matéria de facto.


- Porém, a lei exceciona os casos em que haja ofensa de lei expressa que exija certa espécie de prova ou que fixe a força de determinado meio de prova, encontrando-nos perante erros de direito que incumbe ao Supremo conhecer.


- As presunções judiciais inserem-se no contexto do apuramento da matéria de facto, e daí que os factos tidos por demonstrados à luz delas não podem, em sede de recurso de revista, ser objeto de escrutínio por parte do STJ, exceto se houver violação de norma legal impositiva em matéria de meios de prova, ou se padecerem de ilogicidade ou partirem de factos não provados.


3- Decisão:


Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente a revista, mantendo-se o acórdão recorrido.


Custas a cargo do recorrente.


Lisboa, 30-4-2024


Maria do Rosário Gonçalves (Relatora)


Luís Espírito santo


Ricardo Costa