Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5765/03.5TVLSB-A.L2.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: AÇÃO EXECUTIVA
EMBARGOS DE EXECUTADO
AUTORIDADE DE CASO JULGADO
COMPENSAÇÃO
Data do Acordão: 04/30/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO.
Sumário :
I- O efeito positivo da “autoridade de caso julgado” privilegia o sentido de uma primeira decisão judicial transitada em face de decisões sobre objectos processuais conexos (prejudiciais ou em concurso) entre si; nas decisões sobre o mérito da causa o efeito positivo é material, configurando-se processualmente como uma excepção peremptória impeditiva, subsumível no conceito previsto no art. 576º, 3, beneficiando do regime do art. 579º, do CPC (efeito vinculativo à não repetição e à não contradição da decisão anterior em processo subsequente com diverso objecto: art. 580º, 2, CPC).

II- É aceite que o efeito positivo desse caso julgado material abrange a decisão judicial anteriormente proferida e transitada, assim como os pressupostos que a antecedem e motivam, de forma que a impositividade vinculada se alargue ao silogismo considerado no conjunto dos fundamentos com a própria decisão que é o resultado da mobilização de tais fundamentos; ainda por aplicação do art. 621º, 1.ª parte («nos precisos limites e termos em que julga»), do CPC se chega ao conceito de antecedente lógico indispensável à parte dispositiva da decisão.

III- A verificação desse conjunto silogístico tem que ser cuidadosa, sob pena de darmos como decidido e vinculativo algo que transcende essa conexão objectiva entre pressuposto e objecto da decisão (nomeadamente quando pretendemos autonomizar factos da decisão de que são pressuposto). Teremos até que acertar essa extensão aos fundamentos e pressupostos com laivos de excepcionalidade, em particular no que concerne aos fundamentos de facto (admitindo-se mesmo a exclusão da decisão de facto da prejudicialidade que o caso julgado mobiliza, sendo constitutiva apenas de caso julgado formal).

IV- Não pode ser considerado caso julgado material com efeito positivo sobre a oposição à execução baseada em compensação de créditos a decisão tomada em incidente de liquidação sem que o respectivo fundamento esteja baseado numa decisão de facto que afirme a percentagem e a base de cálculo do direito de crédito dado à execução. Ou seja, se procuramos uma conexão entre o objecto decidido (admissibilidade da liquidação) e respectivos fundamentos (decisão transitada) e o objecto da oposição, não está coberto pela autoridade de caso julgado, com efeito positivo e intraprocessual, a fixação de percentagens do contracrédito em razão da participação de cada uma das partes em conflito nas quantias recebidas directamente pelo exequente, nem sequer a base de cálculo dessa percentagem (quantias facturadas vs. quantias recebidas; quantias ilíquidas vs. quantias líquidas deduzidas das despesas e custos).

V- Sendo a decisão constitutiva de “caso julgado” referente à admissibilidade de um incidente no processo, deve aproveitar-se a regra (com excepções legais: por ex.: o art. 732º, 5, do CPC) de as decisões sobre os incidentes (que apenas lidam com uma questão com relevância em dada acção) assumirem apenas valor de caso julgado formal, sendo insusceptível de fazer caso julgado “material” e desencadear qualquer efeito positivo de vinculação subsequente.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 5765/03.5TVLSB-A.L2.S1


Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, ... Secção


Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO


1. Em oposição referida à acção executiva para pagamento de quantia certa intentada por AA (€ 252.583,14, acrescidos de juros de mora), veio a Executada «Barrocas, Alves Pereira, Sarmento, Rocha & Associados» (depois e agora: «Barrocas Sarmento Neves, Sociedade de Advogados, R.L.» e «Barrocas & Associados – Sociedade de Advogados, R.L.») deduzir oposição por Embargos de Executado (em 29/9/2003), pugnando pela suspensão e extinção da execução, por inexistência da obrigação exequenda, e condenação do Exequente em litigância de má fé; subsidiariamente, pediu a extinção do crédito exequendo por compensação com créditos de que a Embargante era titular em face do Embargado, com a subsequente extinção da execução. Foi dada como título executivo uma acta da assembleia geral da Executada.


2. O Exequente e Embargado apresentou Contestação, batendo-se pela improcedência “logo no despacho saneador”; sustentou a certeza, liquidez e exigibilidade da dívida, assim como a inadmissibilidade da pretendida compensação.


3. Foi deduzido incidente de liquidação pela Executada e Embargante para apuramento do seu alegado contra-crédito pelo montante não inferior, no seu conjunto, de € 300.000 (29/3/2004, a fls. 148 e ss dos autos), ao que se opôs o Embargado, sustentando a falta de fundamento legal do requerido e excepcionando com a preterição de tribunal arbitral necessário.


Foi proferido despacho de indeferimento do incidente, por inadmissibilidade em sede de Embargos de Executado (20/5/2004; fls. 246).


A Embargante interpôs recurso, admitido como de agravo com subida diferida (fls. 282 e 315).


4. A Embargante deduziu articulado superveniente, relativo à matéria da compensação, admitido por despacho e ordenado aditamento da matéria de facto assente (alínea Q, correspondente ao facto provado 16.), a fls. 1860 e verso.


A Embargante interpôs recurso, admitido como de agravo com subida diferida (fls. 1868).


5. Proferido despacho saneador e realizada audiência de discussão e julgamento em várias sessões, foi proferida sentença na ... Vara Cível de ... (18/12/2009), que, incidindo sobre as questões de saber (i) “se a obrigação existe e é certa, líquida e exigível”, e (ii) “se a embargante é titular de créditos sobre o embargado que possa embargar”, julgou totalmente improcedentes os Embargos de Executado, determinando-se o prosseguimento da acção executiva contra a Embargante, e declarando não verificada a litigância de má fé de ambas as partes.


6. Inconformada, a Embargante interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que conduziu a ser proferido acórdão (24/2/2011), no qual:


(i) quanto ao primeiro agravo, foi julgado procedente quanto à admissibilidade do incidente de liquidação em embargos de executado;


(ii) quanto ao segundo agravo, foi julgado não admitir o recurso;


(iii) quanto ao mérito do decidido na sentença de 18/12/2009, foi julgada procedente a apelação por não verificação da excepção peremptória invocada como causa de exclusão da pretendida compensação e, em face de ter sido concedido provimento ao agravo interposto do despacho de indeferimento da liquidação do crédito da Embargante, com a necessidade da liquidação do crédito compensante e ilíquido, anulando-se todo o processado desde o referido despacho, ordenando-se a sua substituição por outro despacho que desse seguimento ao incidente.


Interposto recurso de revista para o STJ pelo Exequente-Embargado, e após aclaração, na parte em que se julgou o recurso de apelação no que toca à admissão da compensação deduzida pela Embargante, visando a sua substituição por outro que indeferisse tal compensação e que reconhecesse a inutilidade da liquidação de tal compensação, foi proferida Decisão Sumária e depois proferido Acórdão (11/2/2014), com julgamento de extinção da instância por impossibilidade de conhecimento do respectivo objecto.


7. Devolvidos os autos, foi realizada audiência preliminar, na qual foi proferido (a) despacho de indeferimento do requerimento de extinção do incidente de liquidação por inutilidade superveniente da lide – “o incidente deve prosseguir, nos termos determinados pelo Tribunal da Relação” –, (b) despacho de indeferimento das excepções de inadmissibilidade da liquidação e de preterição de tribunal arbitral necessário, ordenando-se o processeguimento do incidente, e (c) despacho de admissão liminar de articulado superveniente pela Embargante e notificação da parte contrária para se pronunciar em contraditório (com aditamento ulterior de factos “assentes” e da “base instrutória”).


8. Proferido novo despacho saneador e realizada nova audiência de discussão e julgamento, o Juiz ... do Juízo de Execução de ... proferiu sentença (17/6/2022), em que se julgaram procedentes os embargos de executado, extinguindo-se a execução, e não verificada a litigância de má fé, quer por parte da Embargante, quer por parte do Embargado.


9. Revelando inconformismo, o Exequente e Embargado interpôs recurso de apelação para o TRL, que conduziu a ser proferido acórdão (23/3/2023), no qual, em sede de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, se alterou o facto provado 51., e, quanto ao mérito do decidido sobre a extinção do crédito exequendo por via da compensação, julgou-se parcialmente procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, substituída pela seguinte:


“a) Declara-se que o crédito da embargante sobre o embargado ascende a € 190.793,53 (cento e noventa mil setecentos e noventa e três euros e cinquenta e três cêntimos);


b) Tal crédito extingue-se por compensação com a quantia exequenda, prosseguindo a execução para pagamento da quantia de capital de €61.744,61 (sessenta e um mil setecentos e quarenta e quatro euros e sessenta e um cêntimos).”


10. Foi interposto recurso de revista para o STJ pela Embargante, que, visando a revogação do acórdão recorrido e a declaração de que o contra-crédito da Embargante excede o valor da obrigação exequenda, extinguindo-se a execução, finalizou com as seguintes Conclusões:


1. O acórdão recorrido é nulo, por ser uma decisão-surpresa, incorrendo em excesso de pronúncia;


2. Com efeito, um dos fundamentos do acórdão é o incluído no sumário do acórdão, elaborado pelo M. Juiz Relator, com o seguinte teor:


O direito à justiça e o direito à realização da justiça num prazo razoável não são nem podem ser algo de meramente programático, devendo ter consequências normativas, impondo, que o tribunal decida as questões que lhe foram colocadas de forma definitiva, não sendo de remeter tais questões para procedimentos posteriores.


A ordem jurídica contém várias normas que apelam à prevalência da decisão de mérito sobre a decisão de forma, bem como à atualidade das decisões. Numa ação executiva instaurada 20 anos, em que a petição de embargos foi apresentada em 29.09.2003, o direito à justiça e à realização da justiça num prazo razoável, bem como os princípios da prevalência da decisão de mérito sobre a decisão de forma e da atualidade das decisões judiciais, impõem que o tribunal, dispondo de todos os elementos para tal, decida de forma definitiva o mérito da causa, considerando todos os aspetos relevantes de forma a esgotar o litígio.


3. Nenhum dos preceitos legais invocados pelo acórdão a respeito desta questão é mencionado na sentença do Tribunal de Comarca nem nas alegações da apelação do Embargado;


4. Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões da alegação, em nenhum passo da sua alegação, para fundamentar a sua impugnação da sentença recorrida e a procedência da apelação, o Apelante invocou:


- A duração prolongada da pendência da ação;


- A prevalência da decisão de mérito sobre a decisão de forma;


- A atualidade das decisões judiciais;


- O direito à realização da justiça num prazo razoável;


- Os arts. 9/1 e 566/2 do CC;


- Os arts. 611/1, 6/2 e 278/3 do CPC.


5. Ouseja, oEmbargadonãosustentouquea sua apelaçãodeveria proceder com base nestes fundamentos de direito.


6. Acresce que a sentença proferida pelos Juízos de Execução de ... em nenhum passo da sua fundamentação refere:


- A duração prolongada da pendência da ação;


- A prevalência da decisão de mérito sobre a decisão de forma;


- A atualidade das decisões judiciais;


- O direito à realização da justiça num prazo razoável;


- Os arts. 9/1 e 566/2 do CC;


- Os arts. 611/1, 6/2 e 278/3 do CPC.


7. Pretendendo a Relação fundamentar a sua decisão nos termos referidos, deveria, em observância do disposto no art. 3º, n.º 3, do CPC, ter convidado as partes a, querendo, pronunciarem-se sobre essas questões previamente à prolação da decisão;


8. Não o tendo feito, ocorre uma nulidade da sentença, por conhecimento pela Relação de questões de que não podia conhecer, em virtude de a Embargante não ter tido a possibilidade de sobre elas se pronunciar previamente à prolação do acórdão recorrido;


9. Assim, nos teremos conjugados do disposto nos arts. 3º, n.º 3, 716º, 668º, n.º 1, d) e 660, n.º 2, do CPC na versão do DL n.º 303/2007, de 24/08, a que correspondem os arts. 3º, n.º 3,666, n.º 1, 615, n.º 1, d), e 608º, n.º 2, do CPC novo, o acórdão recorrido é nulo;


10. O acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia;


11. A sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, que julgou procedentes os embargos, fundou-se, parcialmente, na seguinte questão: em 11/03/2003, as partes celebraram um acordo de princípio, mas esse acordo frustrou-se, não tendo existido um acordo final e vinculativo, e o Embargado argumenta e opõe-se aos embargos como se esse acordo de princípio tivesse continuado em vigor;


12. Sucede que o acórdão recorrido julgou a apelação como se o acordo de princípio tivesse produzido efeitos como acordo final, consumado e vinculativo, ignorando, em todas as suas dimensões, a circunstância de esse acordo de princípio se ter frustrado e de não ter existido um acordo final e vinculativo;


13. A frustração do acordo de princípio e a inexistência dum acordo final e vinculativo é uma questão essencial da defesa da Embargante: foi suscitada na defesa da Embargante logo na petição inicial dos embargos e foi conhecida, analisada e julgada na sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância;


14. Assim, nos termos conjugados do disposto nos arts. 3º, n.º 3, 716º, 668º, n.º 1, d) e 660, n.º 2, do CPC na versão do DL n.º 303/2007, de 24/08, a que correspondem os arts. 3º, n.º 3, 666, n.º 1, 615, n.º 1, d), e 608º, n.º 2, do CPC novo, o acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia;


15. O entendimento do acórdão recorrido de que o acórdão da Relação de 24/02/2011 formou caso julgado de que o contracrédito da Embargante, que esta invoca para compensar o crédito exequendo, corresponde a 65% das quantias líquidas recebidas pelo Embargado diretamente de clientes da Embargante, por serviços prestados desde 11.03.2003 a 31.12.2003, incorre em múltiplos erros de direito;


16. A fundamentação do acórdão recorrido é, resumidamente, a seguinte:


- Tal como diz o Prof. Lebre de Freitas, o caso julgado forma-se sobre a decisão, mas estende-se à decisão de todas as questões que constituam pressuposto ou antecedente lógico necessário da decisão;


- A questão do crédito da Embargante sobre o Embargado ficou resolvida por via do reconhecimento de que era devida à sociedade (Embargante) a mencionada percentagem de 65%, o que foi aceite pela Embargante, nomeadamente por via da posição que assumiu nestes autos;


- Deste modo, temos de concluir que a existência de um crédito da Embargante sobre o Embargado correspondente a 65% das quantias por este recebidas de clientes, por serviços prestados entre 11.03.2003 e 31.12.2003, constitui um pressuposto ou antecedente lógico necessário do acórdão da Relação de 24/02/2011.


17. Em primeiro lugar: a concepção do caso julgado que o acórdão recorrido atribui ao Prof. Lebre de Freitas, e que afirma adotar para julgar o caso sub judice, é, na realidade, qualificada pelo Prof. Lebre de Freitas nos seguintes termos: “É hoje recorrente, em muitos acórdãos do STJ, esta afirmação: “A autoridade do caso julgado pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade, pressupondo porém a decisão de determinada questão que não pode voltar a ser discutida”. Debalde se procurará na jurisprudência do supremo critério que permita determinar quando nos encontramos perante uma questão que não pode voltar a ser discutida. Na ausência desse critério, necessário para um mínimo de rigor científico, a referida corrente maioritária vai destruindo a teoria do caso julgado, reduzindo o conceito de identidade a uma caricatura simplista que leva a cobrir com o manto da autoridade casos nítidos de exceção e, sob esse manto indefinido, alargando cada vez mais a abrangência da figura do caso julgado, com vagas consideraçõessobreoprestígiodos tribunais eorespeitopelassuasdecisões.Como um polvo simultaneamente tudo querendo abraçar e lançando uma tinta negra que não deixa ver contornos.”


18. Em segundo lugar: nunca a Embargante reconheceu que o seu crédito sobre o Embargado correspondente a 65% das quantias por este recebidas de clientes, por serviços prestados entre 11.03.2003 e 31.12.2003;


19. Esta posição do acórdão assenta no facto provado 16, que tem o seguinte teor: “O exequente/embargado reconhece o direito da executada/embargante a 65% das quantias líquidas recebidas pelo exequente/embargado diretamente de clientes seus, por serviços prestados desde 11.03.2003 a 31.12.2002”;


20. Ora, se está provadoqueo Embargado reconheceque essa éa suadívida, nenhuma regra ou princípio impõe à credora, a Embargante, que esse seja o seu crédito;


21. Nem da semântica, nem da lógica, nem da lei decorre que, se o Embargado reconhece ser essa a sua dívida, a Embargante reconhece ser esse o seu crédito;


22. Essa confissão parcial do Embargado nunca foi aceite pela Embargante, a qual, em todas as posições que tomou nestes autos, nunca admitiu qualquer redução ou dedução ao crédito que invocou – nem que se trate de 65% seja do que for, nem que relevem apenas as “quantias líquidas”.


23. A respeito desta questão, o acórdão da Relação de 24/02/2011, decidindo o agravo da Embargante, diz o seguinte:


- Fls. 19, 7º parágrafo: “Consignando-se esse facto que é o reconhecimento pelo Embargado da existência do crédito da Executada/Embargante, correspondente a 65% das quantias líquidas (…)” (ênfase do acórdão).


- Fls. 19, último parágrafo: “Na verdade o facto levado ao elenco dos “Factos Assentes” é o reconhecimento


pelo Embargado do crédito da Executada/Embargante correspondente a 65% das quantias líquidas recebidas por aquele, directamente, de clientes” (ênfase do acórdão).


24. Nadecisãodoagravoda Embarganteem que esta impugnavaa inclusãodessefacto (ora, o facto 16) na matéria assente, o M. Desembargador Relator do acórdão de 24/02/2011 quis salientar que o facto 16 se trata dum mero facto e dum mero reconhecimento do Embargado, sublinhando estes precisos termos, não sendo legítimo concluir que o reconhecimento pelo Embargado significa ou implica igual reconhecimento por parte da Embargante;


25. Só que o acórdão recorrido ignora estas passagens do acórdão de 24/02/2011, assertivas e conclusivas, para defender que, segundo este último, a Embargante aceitou e reconheceu que esse era o seu crédito sobre o Embargado, o que não tem qualquer tipo de fundamento, nem semântico, nem lógico, nem jurídico;


26. Não é dito no acórdão de 2011 que a Embargante aceitou ou reconheceu que o seu crédito corresponde a 65% das quantias líquidas recebidas pelo Embargado de clientes da Embargante;


27. O que neste acórdão se diz é que o Embargado reconheceu que a sua dívida corresponde a 65% das quantias líquidas recebidas de clientes da Embargante, e essa é a única conclusão que pode ser extraída do facto 16, sendo certo que é verdadeiro e objetivo que o Embargado reconheceu que a sua dívida corresponde a 65% das quantias líquidas recebidas de clientes da Embargante;


28. Em terceiro lugar: o acórdão recorrido afirma que é pressuposto ou antecedente lógico necessário do acórdão de 24/02/2011 que o crédito da Embargante correspondente a 65% das quantias líquidas recebidas pelo Embargado, diretamente, de clientes da Embargante, pelas seguintes razões: “O pressuposto fundamental da decisão anteriormente proferida pela Relação foi a existência de um crédito da embargante sobre o embargado correspondente a 65% das quantias por este recebidas de clientes, por serviços prestados entre 11.03.2003 e 31.12.2003. Se não existisse tal crédito, obviamente que não fariam sentido, nem a decisão que julgou procedente a apelação nem a subsequente decisão que anulou o processado para os termos subsequentes do incidente de liquidação. E o crédito que importa para o caso não é o crédito em abstrato, ou seja, não se trata de considerar a mera circunstância da existência de um crédito da embargante sobre o embargado. Oqueimporta é o crédito em concreto, definido pela concreta relação jurídica de onde emerge tal crédito, seja ele líquido ou ilíquido. Foi sobre esse concreto crédito que se julgou improcedente a exceção perentória que havia sido considerada procedente na anterior sentença”;


29. Ora, não é correto que seja pressuposto ou antecedente lógico necessário do acórdão de 24/02/2001 que o crédito da Embargante correspondente a 65% das quantias líquidas recebidas pelo Embargado, diretamente, de clientes da Embargante;


30. Na realidade, o acórdão de 24/02/2011 da Relação:


- Julgou procedente a apelação da Embargante e revogou a decisão das Varas Cíveis, por não se verificar a exceção de direito material à compensação;


- Julgou procedente o agravo da Embargante e revogou a decisão que não admitiu o incidente de liquidação, por considerar que em embargos de executado é possível deduzir o incidente de liquidação.


31. Nenhuma destas decisões do acórdão de 24/02/2001 tem como pressuposto ou antecedente lógico necessário que o crédito da Embargante corresponde a 65% das quantias líquidas recebidas pelo Embargado, diretamente, de clientes da Embargante;


32. O mais que pode afirmar é que, na decisão de 24/02/2011, a Relação pressupôs que a Embargante tivesse um crédito sobre o Embargado; mas qualquer que fosse o crédito da Embargante, 100%, 65%, ou 10%, sobre quantias líquidas ou ilíquidas, a decisão da Relação seria rigorosamente a mesma – que não procedia a exceção material à compensação, pelo que esta podia operar, e que em embargos de executado pode ser deduzido o incidente de liquidação;


33. O que demonstra que não foi pressuposto ou antecedente lógico necessário do acórdão de 24/02/2011 que o crédito da Embargante corresponde a 65% das quantias líquidas recebidas pelo Embargado, diretamente, de clientes da Embargante.


34. Para esta decisão de que não se verifica a exceção de direito material à compensação, e para a decisão de que, em embargos de executado, é admissível deduzir um incidente de liquidação, a concreta natureza do crédito da Embargante foi absolutamente indiferente;


35. Assim, mesmo que se perfilhe o entendimentodeque o caso julgadoseforma sobre os pressupostos ou antecedentes lógicos necessários da decisão, não existe como defender que o acórdão da Relação de 24/02/2011 formou caso julgado de que o crédito da Embargante corresponde a 65% das quantias líquidas recebidas pelo Embargado, diretamente, de clientes da Embargante;


36. Em quarto lugar: segundo o acórdão recorrido, o caso julgado contra a Embargante formou-se por uma decisão da Relação que:


- Julgou integralmente procedente a apelação da Embargante e revogou a decisão das Varas Cíveis, por não se verificar a exceção de direito material oposta pelo Embargado à compensação invocada pela Embargante;


-Julgouintegralmenteprocedenteoagravoda Embarganteerevogoua decisão que não admitiu o incidente de liquidação, por considerar que em embargos de executado é possível deduzir o incidente de liquidação.


37. Como esse acórdão deu inteira razão à Embargante, foi-lhe inteiramente favorável, e assim, nos termos do disposto no art. 680.º do CPC velho, e do art. 631º, n.º 1, do CPC vigente, a Embargante não tinha legitimidade para recorrer para o STJ do acórdão de 24/02/2011;


38. Ora, os presentes embargos admitem recurso até ao STJ;


39. Por conseguinte, essa decisão não pode formar caso julgado contra a Embargante;


40. Ao decidir que o acórdão de 24/02/11 faz caso julgado material contra a Embargante no que respeita ao seu crédito, o acórdão recorrido está a negar-lhe a possibilidade de submeter essa questão de direito ao julgamento do STJ;


41. Segundo o acórdão recorrido, formou-se caso julgado contra a Embargante por decisões daRelaçãoqueforamintegralmentefavoráveis àEmbargante, edas quais, por essa razão, a Embargante não tinha legitimidade para recorrer para o STJ – quando os presentes embargos de executado admitem recurso até ao STJ.


42. O acórdão recorrido não tem em conta que o caso julgado não opera quando não respeite as garantias das partes, nomeadamente as garantias de recurso até ao STJ, ou ofenda os princípios gerais do processo, nomeadamente o contraditório;


43. A lei de processo garantia, e garante à Embargante, recurso até ao STJ nestes embargos; assim, é totalmente insustentável que se tenha formado caso julgado material contra a Embargante por via duma decisão que lhe foi inteiramente favorável e da qual esta não podia recorrer para o STJ, por não ter legitimidade para recorrer de decisões que lhe foram inteiramente favoráveis.


44. Não podendo a Embargante esgotar os recursos que lhe são garantidos pela lei de processo, dado não ter tido legitimidade para recorrer para o STJ do acórdão da Relação de 24/02/2011 em virtude de este lhe ser inteiramente favorável, esse acórdão não pode formar caso julgado material contra a Embargante relativamente a qualquer questão de direito;


45. Não se tendo formado caso julgado material sobre o crédito da Embargante, o acórdão recorrido viola o disposto nos arts. 497º, n.º 1, 498º e 673º do CPC velho, na versão aplicável a estes autos;


46. Entende o Tribunal a quo que, conjugadamente: da duração prolongada da pendência da ação; da prevalência da decisão de mérito sobre a decisão de forma; da atualidade das decisões judiciais; do direito à realização da justiça num prazo razoável; dos arts. 9/1 e 566/2 do CC; dos arts. 611/1, 6/2 e 278/3 do CPC, resulta que os Tribunais têm poderes para determinar o valor dos lucros dum sócio (no caso, os lucros do Embargado referentes ao exercício de 2003 da Embargante), sem aprovação de contas em assembleia geral de sócios, sem aprovação do resultado pelos sócios e sem deliberação sobre o valor a distribuir a um sócio;


47. O acórdão recorrido entende que a correção das contas da Embargante referentes a 2003, incorporando, nomeadamente, o que o Embargado faturou a clientes da Embargante, e as despesas atendíveis em que este tiver incorrido, não deve passar pela aprovação dessas correções às contas de 2003 em assembleia geral de sócios da Embargante – e pelos competentes procedimentos judiciais, se existirem divergências entre as partes a respeito dessas contas;


48. Entende o acórdão recorrido que a aprovação de contas em assembleia geral de sócios, a aprovação do resultado e a deliberação do valor a distribuir a um sócio são “questões de forma”, que devem ceder perante as citadas normas e princípios;


49. Decorrendo da lei que as contas das sociedades, e o destino a dar ao resultado do exercício, seja positivo, seja negativo, são aprovados em assembleia geral de sócios, o acórdão recorrido entende que isso não deve acontecer; dispensa essas deliberações, por se tratarem, no seu entendimento, de uma questão de forma, arvorando-se o Tribunal a quo no poder de decidir em substituição da deliberação dos sócios;


50. Impõe-se repor a dignidade jurídico-constitucional das regras que o acórdão recorrido remove; como disse o STJ no acórdão de 02.12.2003 (LOPES PINTO), proc. n.º 03A3709: “porque a sociedade tem vontade e interesse próprios [é] a ela que compete deliberar sobre a sua vida (societária)”;


51. Dispõem os arts. 61º, n.º 1, e 62º, n.º 1, da Constituição (Iniciativa privada, cooperativaeautogestionária):A iniciativa económica privada exerce-selivremente nos quadros definidos pela Constituição e pela lei e tendo em conta o interesse geral; (Direito de propriedade privada): 1. A todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.


52. O art. 24.º do DL n.º 513-Q/79 (o Regime Jurídico das Sociedades de Advogados, entretanto revogado, mas aplicável ao presente litígio) dispõe que as contas da sociedadedeadvogados sãoapresentadas anualmente, com referência a anos civis, e os resultados líquidos são atribuídos aos sócios de harmonia com o estabelecido no pacto social.


53. Ao dizer e decidir que a aprovação anual de contas duma sociedade (no caso, de advogados), a determinação do resultado do exercício e a deliberação sobre a distribuição desse resultado entre os sócios são questões de forma, podendo ser preteridas mediante a assunção pelos tribunais do poder de substituírem aos sócios nessas deliberações, a decisão recorrida viola frontalmente os preceitos legais invocados e põe em causa pilares essenciais da organização económica do Estado Português;


54. A reformulação, pelo acórdão recorrido, das contas da Embargante referentes a 2003, sem deliberação os sócios da Embargante, afeta vários outros advogados que eram em 2003, mas já não são hoje, sócios da Embargante.


55. Ao decidir que valor adicional tem o Embargado a receber de lucros da Embargante relativamente a 2003, o acórdão recorrido afeta a situação jurídica de terceiros que já não têm nem podem ter qualquer intervenção nos presentes embargos, mesmo que indireta, enquanto sócios da Embargante, que já não o são, o que é, obviamente, um resultado inaceitável;


56. O acordo de princípio de 11/03/2003, ao abrigo do qual o Embargado faturou e recebeu diretamente dos clientes da Embargante de que era gestor as quantias correspondentes aos serviços prestados por si e pela sua equipa de advogados, não produz quaisquer efeitos;


57. Esse acordo de princípio frustrou-se, não tendo existido um acordo final e vinculativo, pelo que o Embargado tem a entregar à Embargante todos os valores de créditos da Embargante que cobrou, sem direito a fazer qualquer dedução, de qualquer tipo, pois agiu em violação do disposto no art. 25.º do DL n.º 513-Q/79, de 26 de dezembro, que aprovou o regime jurídico das sociedades de advogados, vigente à data dos factos, o qual estabelecia que as remunerações de qualquer natureza cobradas como contraprestação da atividade profissional dos sócios constituem receitas da sociedade de advogados;


58. Subsidiariamente: o acordo de princípio de 11/03/2003, a que se refere o facto provado 27, não prevalece sobre o DL n.º 513-Q/79, que dispõe que as contas da sociedadedeadvogados sãoapresentadas anualmente, com referência a anos civis, e os resultados líquidos são atribuídos aos sócios de harmonia com o estabelecido nopacto social, nem transforma estas quantias em receitas próprias do embargado.


59. Aliás, o próprio Embargado reconhece a necessidade de proceder a um acerto de contas (cfr. os pontos 8, 16 e 41 da fundamentação de facto), o que apenas se justifica por se tratar de uma receita da sociedade Embargante; doutro modo, o Embargado nada teria a acertar com a Embargada, podendo fazer suas as quantias que recebeu dos clientes desta;


60. Não resulta do regime jurídico das sociedades de advogados aprovado pelo citado DL n.º 513-Q/79, nem do regime das sociedades civis (ou comerciais) o direito de qualquer sócio a reter receitas na proporção correspondente à sua participação social, nem de impor unilateralmente à sociedade o reembolso de despesas, pelo que não há fundamento para a posição do Embargado no seu articulado de 26/05/2017, e para o acórdão recorrido que lhe dá razão, no sentido de que este tem direito a reter 35% das quantias líquidas por si recebidas, correspondente à sua participação nos lucros da sociedade;


61. O art. 24.º do DL n.º 513-Q/79 dispõe que as contas da sociedade de advogados são apresentadas anualmente, com referência a anos civis, e os resultados líquidos são atribuídos aos sócios de harmonia com o estabelecido no pacto social, o que priva a defesa do Embargado e a decisão recorrida de qualquer arrimo;


62. As despesas atendíveis do Embargado podem e devem ser consideradas para o apuramento do resultado líquido a distribuir pela Embargante, mas no âmbito da aprovação das contas do exercício do ano de 2003, em que o Embargado ainda era sócio, tendo este direito à distribuição dos lucros que se apurarem, nos termos dos estatutos da Embargante dessa época, pelo que o acórdão recorrido erra ao entender que pode o Embargado deduzir despesas ao crédito da Embargante sobre si;


63. Os rendimentos e despesas atendíveis do Embargado deveriam ter sido considerados, e só podem ser considerados, nas contas da Embargante relativas a 2003, porque os honorários foram faturados aos clientes da Embargante e as despesas atendíveis foram incorridas nesse período;


64. Assim o impõe o princípio da especialização dos exercícios, consagrado no Código do IRC, maxime no seu art. 18º, n.º 1, na versão aplicável aos factos.


65. Não existe qualquer fundamento para que seja imputado ao crédito que a Embargante pretende compensar o valor dos impostos sobre o rendimento pago pelo Embargado (cfr. o ponto 54 da fundamentação de facto), pois a relação deste com a administração fiscal é uma relação pessoal, que é diretamente influenciada pelas próprias condições pessoais do Embargado, nomeadamente os rendimentos que globalmente auferiu, a composição do agregado familiar e as deduções que apresentou, condições essas que são alheias à Embargante e aos outros sócios desta;


66. O pagamento de impostos que tenha existido para o Embargado, por força da inclusão na sua declaração de IRS dos rendimentos agora em discussão, deve ser corrigido no âmbito da relação fiscal, não podendo onerar-se a Embargada com o pagamento de impostos de um sócio.


67. A Embargante e os seus sócios são inteiramente alheios à relação entre o Embargado e o fisco, tal como o Embargado é inteiramente alheio à relação pessoal dos outros sócios da Embargante com o fisco;


68. Também não pode o Embargado opor aos demais sócios da Embargante tais impostos, pois para além de não serem partes nestes autos, o apuramento de IRS a pagarporcada sócio dependede vários fatores pessoais atinentes à categorização dos rendimentos profissionais, à faturação e a que título ela é feita, à situação pessoal, matrimonial, descendentes ou ascendentes a cargo, aos escalões de imposto em que o sujeito passivo se insere e a outros fatores;


69. Se a Embargante tivesse de reembolsar o Embargado dos impostos que este pagou ao fisco, seria impossível à Embargante registar esses impostos nas suas contas como um encargo próprio;


70. Nem a Embargante, nem qualquer outra sociedade, pode declarar ao fisco, como encargo a deduzir ao apuramento para efeitos de resultado do exercício, o valor que tenha pagado a um dos seus sócios por conta dos impostos que o fisco exigiu a este, pelo que, também por esta razão, não faz qualquer sentido que a Embargante tenha de reembolsar o Embargado dos impostos que este pagou, ou que o valor desses impostos seja deduzido ao crédito da Embargante sobre o Embargado;


71. Mais uma vez, os restantes sócios da Embargante ficariam onerados em favor do Embargado – este recuperava os impostos que pagou, os restantes sócios tinham de suportar imposto sobre o rendimento sobre esse valor, porque, é claro, o reembolso por uma sociedade a um dos seus sócios dos impostos que este pagou ao fisco não é um encargo fiscalmente dedutível.


72. Esta pretensão do Embargado, além de não ter qualquer suporte no acordo de princípio entre as partes, é absolutamente criativa e totalmente desprovida de fundamento razoável;


73. Acresce que não pode o Embargado legitimamente opor à Embargante e deduzir à compensação legitimamente exercida por esta, tais pretensos créditos por impostos por ele pagos, quando essa tributação na sua esfera pessoal se deveu a uma atuação do Embargado não permitida e não conforme a lei, feita à revelia destes e da Embargante e contrária às normas legais reguladoras da Embargante – pois o acordo de princípio de 11/03/2003 frustrou-se e não existiu qualquer acordo final e vinculativo que viesse legitimar essa atuação do Embargado.


74. Como tal, e para além de todas as outras razões, um pretenso crédito por impostos pagos pelo Embargado, nascido de uma atuação sem fundamento e em violação da lei, não pode, naturalmente, ser reconhecido como oponível e dedutível contra o crédito legal e legitimamente devido à Embargante e por ela compensado com a obrigação exequenda.


75. O anteriormente exposto, ou seja, que o crédito da Embargante é no valor recebido pelo Embargado de clientes da Embargante, sem qualquer dedução, seja a título de “35% de lucros”, de despesas ou de reembolso de impostos, é já por si suficiente para superar o valor da obrigação exequenda, e consequentemente determinar a procedência integral destes embargos e a extinção da execução; prevenindo a hipótese de, por qualquer questão, a decisão das questões anteriores não produzir esse resultado, a Embargante sustenta que o seu crédito não deve ser calculado sobre o valor recebido pelo Embargado, mas sim pela importância que este faturou aos clientes da Embargante;


76. Para a determinação do crédito exequendo, de lucros do Embargado sobre a Embargante, foi tomado em conta, nos termos da lei fiscal, o valor faturado pela Embargante aos seus clientes, e não o valor efetivamente cobrado e pago à Embargante pelos seus clientes;


77. Ou seja: no resultado contabilístico do exercício de 2001 apurado pela assembleia- geral da Embargante realizada no dia 16.12.2002 está incluída, como proveito da sociedade, a quantia de € 1.391.351,00, que ainda não tinha sido recebida e não estava disponível e que estava apenas parcialmente provisionada pela verba de € 34.129,58, considerada nos custos e no resultado líquido apurado.


78. Com efeito, nos termos do art. 18º, n.º 1, do Código do IRC, na versão aplicável aos autos, os proveitos e os custos, assim como as outras componentes positivas ou negativas do lucro tributável, são imputáveis ao exercício a que digam respeito, de acordo com o princípio da especialização dos exercícios;


79. Os proveitos e os custos são incluídos como tal quando obtidos ou incorridos, independentemente do seu recebimento ou pagamento pelo sujeito passivo do imposto, devendo ser incluídos nas demonstrações financeiras dos exercícios a que respeitam;


80. Assim, o crédito exequendo, correspondenteao direitoa lucros doEmbargadosobre a Embargante relativos ao exercício de 2001, beneficiou do facto de a Embargante ter registado nas suas contas desse exercício a quantia de €1.391.351,00 “que ainda não tinha sido recebida e não estava disponível e que estava parcialmente provisionada pela verba de 34.129,58, considerada nos custos e no resultado líquido apurado”, como se provou;


81. Passemos agora para o contra-crédito da Embargante sobre o Embargado emergente dos valores que este faturou e cobrou a clientes da Embargante: o acórdão recorrido considera que apenas releva paras o crédito da Embargante o valor cobrado pelo Embargado e por este recebido dos clientes da Embargante – não o valor por este faturado.


82. Assim, no apuramento do crédito de lucros do Embargado sobre a Embargante que a presente execução visa cobrar efetivamente, não contou o que a Embargante cobrou e recebeu dos seus clientes – contou o que a Embargante faturou, mesmo que, no apuramento do resultado, tenha havido um valor de € 1.391.351,00 que foi faturado mas não foi cobrado (e sobre o qual se formou uma reserva de apenas €34.129,58); ao invés,


83. No apuramento do contra-crédito da Embargante sobre o Embargado, o acórdão recorrido não considera o que este faturou aos clientes da Embargante – só considera o que deles recebeu.


84. Nos termos do art. 334º do CC, a posição do Embargado de que para o apuramento do contra-crédito da Embargante só conta o que cobrou aos clientes da Embargante, não aquilo que lhes faturou, constitui abuso de direito.


85. Por outro lado, o acórdão recorrido não considera que está em causa um crédito da Embargante sobre o Embargado, e não o contrário – como se os valores fossem pertença do Embargado e fosse normal e regular serem faturados pelo Embargado na sua esfera jurídica individual e pessoal;


86.Como tal, é à luz da esfera jurídica da Embargante e das leis que se lhe aplicam que esse crédito sobre o Embargado deve ser apurado, considerado e tratado (e não do Embargado).


87. Sendo um crédito da titularidade da Embargante, a reconstituição da situação correta, devida e conforme à lei aplicável à Embargante, impõe logicamente que se considerem todos os valores faturados pelo Embargado a clientes da Embargante (mesmo que não cobrados) e não apenas os valores efetivamente cobrados pelo Embargado.


88. Por conseguinte, o acórdão recorrido viola as disposições legais citadas e ainda o disposto no art. 334º do CC.


89. Se esta questão, em razão do julgamento da revista, se vier a tornar relevante, deve considerar-se, nos termos legais e fiscais aplicáveis, que o contra-crédito da Embargante sobre o Embargado se computa nos valores faturados pelo Embargado a clientes da Embargante, e não nos valores cobrados, ou seja: € 365.796,48 + 84.560,00 + 26.439,79 = €476.796,27.





O Recorrido apresentou contra-alegações, sustentando a improcedência das nulidades e das demais questões fundadoras da revista, visando a improcedência e a prossecução da execução para pagamento do saldo sobrante a favor do Embargado de € 61.744,61, acrescido dos respectivos juros de mora.


11. Foi proferido, em conferência, acórdão pelo TRL, que julgou improcedentes as nulidades arguidas pela Recorrente e admitiu o recurso.


12. Subidos os autos, foi proferida Decisão Sumária e Liminar, nos termos do previsto pelos arts. 652º, 1, c), e 656º, ex vi art. 679º, do CPC.


12.1. Nela, quanto à admissibilidade e objecto da revista, foi decidido:


“A configuração da revista obedece ao regime do CPC de 2013, em aplicação do referido no art. 6º, 1 («O disposto no Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei, aplica-se, com as necessárias adaptações, a todas as execuções pendentes à data da sua entrada em vigor.»), e sem prejuízo do art. 7º, 1, da Lei 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou esse mesmo código.


Para a tramitação específica da oposição mediante embargos, vigora a versão do CPC à data da sua instauração, de acordo com o art. 6º, 4, dessa mesma Lei 41/2013.


Não se verifica dupla conformidade entre as decisões das instâncias, razão pela qual não se justifica saber qual o regime aplicável que pudesse obstar à revista.


Estão verificados os requisitos gerais de admissibilidade do recurso (art. 629º, 1, do CPC).”


12.2. Foram delimitadas as seguintes questões recursivas:

i. nulidades imputadas ao acórdão recorrido;

ii. prevalência da autoridade de caso julgado determinada pelo Ac. do TRLisboa de 24/2/2011;

iii. extinção do crédito do Exequente por compensação e apuramento do crédito exequendo.


12.3. Foi decidido julgar parcialmente procedente a revista, nos seguintes termos:

i. indeferir as nulidades arguidas, seja por “excesso de pronúncia” (por via de alegada decisão-surpresa e violação do contraditório), seja por “omissão de pronúncia” (art. 615º, 1, d), CPC) – Conclusões 1. a 9 e 10. a 14.;

ii. improceder a alegada ofensa de “autoridade de caso julgado” – Conclusões 15. a 45.;

iii. julgar prejudicada a apreciação da questão da extinção do crédito do Exequente por compensação e apuramento do crédito exequendo, ordenando-se a devolução dos autos à Relação para, nos termos dos arts. 682º, 3, e 683º, 1, do CPC, se possível pelos mesmos Senhores Juízes Desembargadores que intervieram no julgamento da apelação anterior, ser levada a cabo a ampliação da matéria de facto, nos termos ordenados, em ordem a constituir base suficiente para se proferir a decisão de direito, e ser proferida nova decisão sobre a matéria de facto e julgada novamente a causa, em conformidade e de acordo com o direito aplicável.


13. Inconformado, o Recorrido e Embargado veio deduzir Reclamação para a Conferência, restringindo a sua impugnação ao segmento da reapreciação da autoridade de caso julgado, tal como vertido nas Conclusões 15. a 45. da revista.


A Recorrente e Embargante apresentou Resposta, pugnando no segmento impugnado pela confirmação integral da Decisão Sumária reclamada.





Colhidos os vistos nos termos legais, cumpre apreciar e decidir.


II) FACTUALIDADE


Foram consolidados nas instâncias os seguintes factos provados:


1) O exequente/embargado é sócio da executada/embargante Barrocas Alves e Pereira, Sarmento e Associados, sendo titular de uma parte social de 35% de capital e de 35% de indústria (al. A) dos Factos Assentes);


2) Em reunião de Dezembro de 2002 da assembleia geral da executada/embargante, foi deliberado o que consta do documento de fls. 13 a 26 da execução que se dá por reproduzido, de onde consta: «foi deliberado por unanimidade, aprovar o resultado líquido do exercício relativo ao ano de dois mil e um, no valor de um milhão, cento e noventa e cinco mil e oitenta e oito euros e oitenta e três cêntimos, tendo sido ainda deliberado, por unanimidade, distribui-lo aos sócios da seguinte forma: (…) Dr. AA – trezentos e noventa e um mil novecentos e oitenta e três euros e catorze cêntimos» (al. B));


3) Até à data a executada pagou ao exequente a quantia de € 139.445,00 (al. C));


4) Na Embargante, está instituída a regra de cada cliente ter um gestor, que é em regra o Advogado a que se deveu a circunstância de esse cliente ter contratado os serviços da Embargante (al. D));


5) Definido aquele acordo de princípio, o Embargado iniciou de imediato a sua execução, e assim, ele próprio, o seu filho e a advogada que integrava a sua equipa, a Dra. BB, deixaram de usar o sistema informático da Embargante para registo dos serviços que prestavam aos clientes e de usar os serviços administrativos do escritório da Embargante para faturação e cobrança dos serviços prestados aos clientes de sua gestão (al. E));


6) O Embargado começou de imediato a apresentar aos clientes de que era gestor os pedidos de honorários e de adiantamentos por conta de honorários, e a depositar em contas bancárias não tituladas pela Embargante os pagamentos efetuados por esses clientes (al. F));


7) Depois de frustrado o referido acordo de princípio que legitimou, inicialmente, esse procedimento, ou seja, verificado que o entendimento inicial não se concretizou em acordo final e vinculativo, o Embargado não deu qualquer conhecimento à Embargante dos valores que faturou e recebeu dos seus clientes, não prestou quaisquer contas desses atos à Embargante e aos restantes sócios desta e continua até à presente data a proceder da mesma forma (al. G));


8) Em carta que dirigiu aos outros sócios da Embargante, o Embargado declarou o seguinte: «Não tenho qualquer intenção de "fazer minhas" aquelas contas. Estou a proceder à contabilização e receção separada das mesmas, a título de adiantamento de lucros, que serão oportunamente integradas nas contas gerais da Sociedade.» (al. H));


9) Em Junho de 2003, o Embargado moveu uma ação arbitral contra o sócio da Embargante Dr. CC, formulando nomeadamente os seguintes pedidos:


a) Que o Tribunal Arbitral declare que estão em vigor os acordos parassociais celebrados oportunamente, preparatórios da fusão por incorporação da anterior sociedade de advogados do Embargado na Embargante;


b) Que o Tribunal condene o Dr. CC a reconhecer o Embargado como administrador da sociedade B..;


c) Que o Tribunal condene o mesmo Dr. CC, em termos de resultados, a fazer com que ao Embargado e ao seu filho sejam entregues mensalmente quantias por conta de resultados nos mesmos moldes que aos restantes sócios da Embargante;


d) Que o Tribunal condene o Dr. CC a votar e a fazer votar favoravelmente a proposta de transmissão de parte da sua quota de indústria na Embargante a favor do seu filho (al. I));


10) O Embargado continua sem prestar contas à Embargante dos valores de produção da Embargante anterior a 11 de Março de 2003, e da produção faturada pelo Embargado, pelo seu filho e pela outra Advogada que com ele abandonou o escritório da Embargante posterior a essa data (al. J));


11) Desde fins de Julho de 2003, o Embargado não mais se encontra a consagrar a sua atividade profissional à Embargante (al. L));


12) O Embargado encontra-se presentemente a exercer a sua atividade profissional num escritório próprio instalado na ..., em ..., um edifício em que a Embargante não tem o seu escritório ou qualquer instalação (al. M));


13) Esse escritório foi instalado pelo Embargado conjuntamente com outros Advogados que não mantêm qualquer ligação com a Embargante, antes são seus concorrentes (al. N));


14) Desde então, essa secretária desloca-se frequentemente ao escritório da Embargante apenas para recolher a correspondência dirigida ao Embargado e aos advogados que o acompanharam, e transporta-a para o outro referido escritório (al. O));


15) Desde final de Julho do corrente ano, o Embargado só esporadicamente é visto no escritório da Embargante, estando a exercer a sua atividade no escritório referido no n.º 12 (al. P));


16) O exequente/embargado reconhece o direito da executada/embargante a 65% das quantias líquidas recebidas pelo exequente/embargado diretamente de clientes seus, por serviços prestados desde 11.03.2003 a 31.12.2002 (al. Q));


17) No dia 16.12.2002, reuniu-se a assembleia geral da executada para aprovação das contas relativas ao exercício de 2001 e deliberação sobre a afetação dos resultados (resp. ao n.º 1 da BI);


18) Só após a aprovação das contas relativas ao exercício de 2001 e o apuramento da matéria coletável do exercício de 2001 os sócios poderiam apresentar as suas declarações de IRS relativas ao ano fiscal de 2001 (resp. ao n.º 3 da BI);


19) Os sócios beneficiariam do regime excecional de regularização das obrigações fiscais estabelecido pelo DL n.º 248-A/2002, de 14 de Novembro, se apresentassem as respetivas declarações do IRS até ao dia 31.12.2002 (resp. ao n.º 4 da BI);


20) Perquirindo a contabilidade da sociedade Executada, à data de 31 de Dezembro de 2001, ou seja, no termo do exercício, verifica-se que a conta de clientes se cifrava em 1.391.351,00 euros (resp. ao n.º 7 da BI);


21) No resultado contabilístico apurado pela referida assembleia-geral da executada realizada no dia 16.12.2002 está incluída, como proveito da sociedade, a quantia de € 1.391.351,00, que ainda não tinha sido recebida e não estava disponível e que estava parcialmente provisionada pela verba de € 34.129,58, considerada nos custos e no resultado líquido apurado (resp. ao n.º 8 da BI);


22) Na sequência de um litígio que opôs o Embargado, de um lado, e todos os demais sócios da Embargante com exceção do filho do Embargado, do outro, as partes, com a mediação do Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados, acordaram verbalmente, em Março de 2003, a exoneração do Embargado de sócio e administrador da Embargante, contra o pagamento de uma quantia em dinheiro (resp. ao n.º 13 da BI);


23) Os restantes sócios da Embargante haviam colocado como condição de partida para qualquer negociação que o filho do Embargado abandonasse a sociedade Embargante simultaneamente com o Embargado (resp. ao n.º 14 da BI);


24) O Embargado havia dito que tal não constituía problema por ter em seu poder uma carta do seu filho em que este declarava exonerar-se de sócio da Embargante (resp. ao n.º 15 da BI);


25) Na hora da redação final do acordo, o Embargado afirmou que, afinal, não tinha a carta de exoneração do filho (resp. ao n.º 16 da BI);


26) Este episódio implicou o malogro dos acordos de princípio a que as partes haviam chegado (resp. ao n.º 17 da BI);


27) Um dos aspetos do acordo de princípio alcançado pelas partes era que, a partir de 11 de Março de 2003, o Embargado passaria a cobrar diretamente aos clientes da Embargante de que era gestor os serviços que lhe fossem ou tivessem sido prestados (resp. ao n.º 18 da BI);


28) As partes acordaram que alguns dos efeitos desse acordo de princípio produzir-se-iam de imediato, ainda que a sua formalização tivesse de ser efetuada em data posterior (resp. ao n.º 19 da BI);


29) No mês de Setembro de 2003, a advogada BB, a única advogada da Embargante, conjuntamente com o filho do Embargado, que o acompanharam na saída do escritório, esvaziou totalmente o gabinete que ocupava e abandonou o escritório da Embargante, passando a exercer a sua atividade nesse outro escritório (resp. ao n.º 21 da BI);


30) Em 29 de Agosto de 2003, a secretária que apoiava o Embargado comunicou à Embargante que considerava findo, no dia 30 de Setembro de 2003, o contrato de trabalho que mantinha com a Embargante e em Setembro de 2003 passou a trabalhar no escritório do embargado (resp. ao n.º 23 da BI);


31) Todo o arquivo do Embargado e dos advogados que com ele saíram foi retirado do escritório da Embargante e transportado para o referido escritório (resp. ao n.º 24 da BI);


32) Entre 15 de Fevereiro de 2000 e 11 de Março de 2003, a Embargante faturou aos seus clientes, por conta do trabalho do Embargado, a quantia de 363.537,67 euros, o que significa que, mensalmente, a Embargante faturou a clientes, por conta do trabalho do Embargado, em média, a quantia de 9.825,34 euros (resp. ao n.º 25 da BI);


33) O facto de um dos dois Advogados cujo nome constitui a denominação comum da Embargante, que é uma das maiores sociedades de advogados portuguesas, integrada por mais de quatro dezenas de Advogados e Advogados estagiários, estar a promover um projeto profissional com concorrentes da Embargante, em conjunto com outros Advogados, enquanto mantém a qualidade de sócio da Embargante, foi objecto de divulgação pública (resp. ao n.º 26 da BI);


34) A deliberação referida no n.º 2 teve como fim o que consta da ata: aprovação de resultados e distribuição do mesmo pelos sócios (resp. ao n.º 31 da BI);


35) Em 11 de Março de 2003, foi acordado, nas instalações da Ordem dos Advogados e na presença e com o patrocínio do Sr. Bastonário, que o exequente deixaria a sociedade executada (resp. ao n.º 34 da BI);


36) Que tal se processaria consensualmente, mediante o pagamento pela embargante de certa quantia, caso de o filho do exequente Dr. DD também saísse da sociedade (resp. ao n.º 35 da BI);


37) Ou que o exequente se exonerava da mesma sociedade, nos termos normais previstos na lei da sociedade de advogados (resp. ao n.º 36 da BI);


38) O Dr. DD não quis sair da sociedade embargante com o exequente (resp. ao n.º 37 da BI);


39) Pelo que o exequente notificou já a embargante da sua exoneração, que será eficaz em 31 de Dezembro de 2003 (resp. ao n.º 38 da BI);


40) Entretanto, o exequente foi transferindo a sua atividade para o seu novo escritório, onde está já a exercer a advocacia, com o conhecimento e o consentimento do Sr. Bastonário (resp. ao n.º 39 da BI);


41) O Embargado comunicou à embargante a intenção de efetuar um acerto de contas entre aquilo que recebeu e o que é devido à embargante (resp. ao n.º 40 da BI);


42) Tal como acordado na presença do Sr. Bastonário, o exequente está a exercer a advocacia, por conta própria, num novo escritório, na ..., e está a proceder à mudança dos seus pertences (resp. ao n.º 41 da BI);


43) No acordo, em 11 de Março, foi entendido consensualmente que o exequente deveria procurar desde logo instalar-se num outro escritório, para evitar o mais possível o contacto pessoal com alguns dos sócios da embargante, com que tem muito más relações pessoais (resp. ao n.º 43 da BI).


(Do incidente de liquidação)


44) A partir de 11 de março de 2003 o exequente passou a cobrar diretamente a clientes da executada os serviços prestados a esses clientes por si e pela sua equipa de advogados (alínea A] dos Factos Assentes do incidente).


45) O exequente recebeu quantias diretamente de clientes da executada de que era gestor, relativamente aos serviços prestados até 31 de dezembro de 2003, por si próprio e pelos Advogados que formavam a sua equipa – Dr. DD, Dra. BB e Dr. EE (alínea B]).


46) No circunstancialismo mencionado em 45), o exequente recebeu quantias do conjunto de sociedades que integram o grupo N...... ....... (N.....) – (al. C]).


47) Os valores mencionados em 45), no seu conjunto, são de montante não inferior a € 300.000,00 (al. D]).


48) No circunstancialismo mencionado em 45), o Exequente faturou, até 1 de Janeiro de 2004, por serviços prestados até 31 de Dezembro de 2003, a quantia de € 365.796,48 de honorários e € 9.614,85 de despesas, dos quais recebeu, até 1 de Janeiro de 2004, € 276.564,79 (al. E]).


49) Além dos valores referidos na alínea anterior, e no mesmo circunstancialismo referido em 45), o Exequente faturou mais € 84.560,00, tendo recebido, até hoje, para além do montante de € 276.564,79 mencionado na alínea anterior, o valor de € 75.908,00 (por faturas emitidas em 2004) e € 26.439,79 (por faturas emitidas em 2003) – (al. F]).


50) Entre 11/3/2003 e 31/12/2003, o Exequente adiantou despesas, em nome de seus clientes, que ascenderam ao montante de € 9.614,85 (Ponto 1 da base instrutória do incidente de liquidação).


51) O Exequente incorreu em despesas no montante de € 11.806,00 com o pagamento de salários das trabalhadoras dependentes FF e GG, cuja contribuição foi indispensável para a prestação dos serviços em causa”. (Ponto 3 da base instrutória do incidente de liquidação) – Facto modificado pela Relação.


52) O Exequente pagou € 23.610,00 de remuneração a trabalhadores independentes, nomeadamente advogados, sem os quais não poderia ter prestado os serviços acima referidos (Ponto 4 da base instrutória do incidente de liquidação).


53) No âmbito do processo de avaliação da quota perante a comissão arbitral nomeada pela Ordem dos Advogados, o Exequente apresentou o requerimento copiado a fls. 1832 a 1840, que se reproduz, com data de entrada em 27/09/2004, o qual refere ser cópia integral de exposição-requerimento apresentado em 20 de julho de 2004 (Ponto 5 da base instrutória do incidente de liquidação).


54) O Embargado suportou impostos, em sede de I.R.S., sobre os rendimentos resultantes da prestação dos serviços em causa nos presentes autos, no valor de € 35.442,14 de impostos retidos na fonte, a que acrescem € 26.639,74 de impostos liquidados por conta desses rendimentos de 2003 (Ponto 6 da base instrutória do incidente de liquidação).


III) APRECIAÇÃO DA RECLAMAÇÃO E FUNDAMENTOS


1. Objecto da Reclamação


Ao objecto da reclamação para a conferência, em face da decisão singular ou sumária liminar do Relator, deve aplicar-se a mesma regra de delimitação do conhecimento prevista no art. 635º, 2 a 4, do CPC, assim como a determinação de “caso julgado” para a parte não reclamada por força do n.º 5 do mesmo art. 635º, mesmo estando perante um caso de impugnação horizontal.


Vista a Reclamação deduzida, logo, apenas cabe aqui conhecer e reapreciar em colectivo a decisão tomada sobre a “autoridade de caso julgado”, que foi aplicada pelo tribunal recorrido para fundamentar a decisão objecto da revista. Tal significa que em conferência não se pode agora conhecer e reapreciar os segmentos da Decisão Sumária que ficaram excluídos da Reclamação, tendo transitado em julgado. Sem prejuízo de se fazer recair o acórdão sobre a matéria que se considerou prejudicada pela decisão tomada nesse segmento do objecto recursivo.


2. Autoridade de caso julgado


2.1. A Recorrente invoca na presente revista que a interpretação e aplicação das regras do “caso julgado” pelo tribunal recorrido foram erradas, tendo em conta que não se formou com o Ac. do TRLisboa de 24/2/2011 qualquer autoridade de caso julgado sobre a medida do crédito do Exequente sobre a Executada e Embargante.


Em rigor, estamos perante a sindicação de uma excepção peremptória relativa à “autoridade de caso julgado”, considerada procedente pelo acórdão recorrido, com a subsequente aplicação no apuramento do crédito exequendo em sede de oposição por embargos.


Assim sendo, a impugnação sai do âmbito da “ofensa de caso julgado” prevista no art. 629º, 1, a), do CPC; a decisão recorrida afirma a existência da excepção e assume os efeitos da “autoridade de caso julgado” emergente desse acórdão; a decisão recorrida julga que a sentença de 1.ª instância contraria o que havia sido antes decidido pela Relação, ao considerar que o crédito da Executada e Embargante é de 100% em vez de 65% e que não assiste ao Exequente e Embargado o direito de reter 35% das quantias em causa. Não está em causa a violação de caso julgado pelo acórdão recorrido, mas antes a prevalência de outra decisão já transitada em julgado; esta situação é, pois sindicável, de acordo com as previsões de revista normal do art. 671º, 1, do CPC («conheça do mérito da causa»)1.


2.2. Impõe o art. 628º do CPC que «[a] decisão transitou em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação».


A imutabilidade da decisão por tal força de caso julgado (consolidada depois da insusceptibilidade de impugnação recursiva ou revisão processual) tem como consequência a estabilidade da decisão: “uma continuidade na emissão dos respetivos efeitos jurídicos”, vinculando o tribunal e as partes, dentro do processo (art. 620º CPC) ou fora dele, em face de outros tribunais (art. 619º CPC). Por outro lado, a decisão transitada passa a dispor de «força obrigatória dentro do processo» (art. 620.º, 1, sem prejuízo dos despachos do artigo 630.º salvaguardados no n.º 2) – caso julgado formal – e dentro e fora dele, quando se julge o mérito ou fundo da causa – caso julgado material (art. 619º, 1, CPC).2


A força obrigatória do caso julgado traduz-se em efeito negativo e efeito positivo.


O primeiro reflecte-se na proibição de nova decisão sobre a mesma pretensão ou questão naquele objecto processual (excepção dilatória de caso julgado: arts. 577º, i), 2.ª parte, 580º, 581.º).


O segundo (a que corresponde latamente o efeito de “autoridade de caso julgado”) privilegia a prevalência do sentido exposto na primeira decisão em face de decisões sobre objectos processuais conexos (prejudiciais ou em concurso) entre si. Nas decisões que têm por objecto a relação processual o efeito positivo é estritamente processual; nas decisões sobre o mérito da causa o efeito positivo é material, configurando-se se processualmente como uma excepção peremptória impeditiva, subsumível no conceito previsto no art. 576º, 3, do CPC3, beneficiando do regime do art. 579º do CPC.


Na verdade, a figura do caso julgado impede que uma decisão posterior por qualquer tribunal (incluindo necessariamente aquele que a proferiu) contrarie uma decisão já transitada em julgado, quando exista sobreposição do objecto decisório e as duas decisões apreciem o mesmo problema essencial, mesmo quando algum dos três requisitos do art. 581º do CPC não seja integralmente coincidente ou não se verifiquem em cumulação (como se tem maioritariamente entendido). Aqui, a autoridade de caso julgado, enquanto efeito e incidência do caso julgado material, visa garantir a vinculação dos órgãos jurisdicionais e o acatamento pelos particulares de uma decisão judicial transitada, na circunstância de se verificar diversidade entre objectos processuais e funcionar o objecto processual anterior como condição prejudicial dependente para a apreciação do objecto processual posterior (efeito vinculativo à não repetição e à não contradição da decisão anterior em processo subsequente com diverso objecto: art. 580º, 2, CPC).


Por outro lado, postula ainda esta perspectiva – como agora se enfatiza – o efeito positivo (e normativo) do caso julgado: a decisão revestida de autoridade, associada à sua imposição externa, é, em função da “consumpção prejudicial” ou de “concurso material” entre os objectos processuais, um pressuposto ou uma premissa da causa subsequente, de tal forma que é um antecedente na apreciação da nova causa no sentido da prevalência do sentido decisório da primeira decisão, conduzindo, por isso, à inadmissibilidade da acção subsequente, actuando na sindicação da decisão de mérito da causa (respeitando, em particular, à causa de pedir ou a uma excepção peremptória).4


Assim, esta autoridade contende, em rigor, com a produção de efeitos resultantes de um caso julgado anterior, que se espoletam em nome da segurança e certeza jurídicas e se actuam através da preclusão de novas acções entre os mesmos sujeitos, sempre que o pedido seja o mesmo em ambas e estejam numa relação de concurso de causas de pedir, faltando em consequência ao autor vencedor interesse processual para posteriormente intentar nova acção por outro fundamento: a tal se opõe a autoridade de caso julgado, decorrente da vinculação positiva externa ao caso julgado assente no artigo 619.º, em sede de objectos em relação de prejudicialidade5.


Para tal resultado, é insuperável, como condição subjectiva da sua força vinculativa, no confronto dos processos conexos ou do mesmo processo, que as decisões abranjam as mesmas pessoas, sob o ponto de vista da qualidade física e intervenção processual, assim como aquelas que sejam os mesmos sujeitos do ponto de vista da sua qualidade jurídica (art. 581º, 2, CPC: identidade dos sujeitos abrangidos)6.


Refira-se que, visando a identidade subjectiva a que se aludiu – que provém além do mais do exigido para a “excepção de caso julgado”, sem prejuízo de essa vinculação abranger algumas categorias de sujeitos terceiros na vertente de “autoridade de caso julgado” para situações previstas legalmente –, devemos ser muito claros nos sujeitos que devem ser contemplados: “estão abrangidos pelos efeitos do caso julgado não somente os concretos titulares do direito ou bem litigioso que eram partes na causa à data do trânsito em julgado da sentença (…), como, ainda, os seus transmissários ou sucessores posteriores ao trânsito em julgado”7.


“Em suma: o efeito positivo interno do caso julgado vincula as partes da relação jurídica e não os sujeitos do processo. A contrario, o caso julgado não se estende a terceiros, ou seja, a todos aqueles que não sejam os mesmos que os destinatários sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica. É a clássica regra de que o caso julgado não deve aproveitar nem prejudicar terceiros, como enunciava o brocardo nec res inter alios judicata aliis prodesse aut nocere sole.8


Mesmo assim, não se afasta o reconhecimento de situações circunscritas de eficácia reflexa ou de extensão a terceiros do caso julgado formado, nomeadamente em face de terceiros “juridicamente indiferentes” – a quem a decisão não causa nenhum prejuízo jurídico, uma vez que não interfere com a existência ou a validade dos seus direitos – e de terceiros que se arrogam ou se querem prevalecer da titularidade de uma relação ou da existência de uma posição jurídica compatível com a reconhecida no decisão transitada em julgado9, relativamente aos quais não prevalecem as exigências da vigência do princípio do dispositivo e do princípio do contraditório/direito de defesa.


2.3. O caso julgado abrange a parte decisória do despacho, sentença ou acórdão, ou seja, “a conclusão extraída dos seus fundamentos” (arts. 607º, 3, 663º, 2, CPC), de tal forma que incide sobre “a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”10.


É na verdade aceite, nomeadamente pelo STJ, que o efeito positivo desse caso julgado material abrange a decisão judicial anteriormente proferida e transitada, assim como os pressupostos que a antecedem e motivam, de forma que a impositividade vinculada se alargue ao silogismo considerado no conjunto dos fundamentos com a própria decisão que é o resultado da mobilização de tais fundamentos – ainda por aplicação do art. 621º, 1.ª parte («nos precisos limites e termos em que julga»), do CPC se chega ao conceito de antecedente lógico indispensável à parte dispositiva da decisão (“O título jurídico de onde emanam efeitos para a esfera do destinatário da decisão é, assim, a parte dispositiva nos termos dos fundamentos.11).


Sem prejuízo, temos que ser cuidadosos na verificação desse conjunto silogístico, sob pena de darmos como decidido e vinculativo algo que transcende essa conexão objectiva entre pressuposto e objecto da decisão (nomeadamente quando pretendemos autonomizar factos da decisão de que são pressuposto). Teremos até que acertar essa extensão aos fundamentos e pressupostos com laivos de excepcionalidade, em particular no que concerne aos fundamentos de facto (admitindo-se mesmo a exclusão da decisão de facto da prejudicialidade que o caso julgado mobiliza, sendo constitutiva apenas de caso julgado formal)12.


Pois bem.


2.4. Nas decisões judiciais que motivam esta revista, as instâncias decidiram sobre o mérito da extinção da obrigação exequenda por força da excepção peremptória de compensação – única questão julgada, depois da sentença de 18/12/2009 e do acórdão da Relação de 24/2/2011.


O objecto de tal compensação foi restringido pela decisão de 1.ª instância: “o crédito pelas quantias cobradas diretamente pelo exequente aos clientes da sociedade de que era gestor, pelos serviços prestados, desde 11/03/2003 até 31/03/2003”.


Nesta instância, foi decidido:


- a compensação é fundamento para oposição à execução, atento o art. 25º do DL 513-Q/79, de 26 de Dezembro (regime jurídico das sociedades de advogados, vigente à data dos factos);


- não se encontra fundamento para reconhecer o direito do Exequente a uma percentagem das quantias líquidas recebidas pelo Exequente por serviços prestados a clientes da Executada, em função da sua participação no capital e indústria da sociedade Executada, assim como para imputação de despesas (35%; 65% das quantias líquidas para a Executada);


- a executada dispõe de um crédito sobre o Exequente, correspondente ao valor recebido por este de clientes da primeira desde 11/3/2003 até 31/12/2003, que perfaz € 378.912,58, atentos os arts. 6º, 1, 24º e 25º do DL 513-Q/79;


- este crédito é superior à quantia exequenda, o que conduz à extinção da execução.


Chegada a apelação para decisão à Relação, esta, confrontada com as alegações do Exequente e Embargado sobre a violação de caso julgado, considerou que o reconhecimento do direito de crédito da Executada e Embargante, correspondente a 65% das quantias de clientes efectivamente recebidas pelo Exequente e Embargado, deduzidas de despesas, remunerações e custos fiscais, estava coberto pelo caso julgado do acórdão da Relação de 24/2/2011, uma vez que se tratava de “pressuposto fundamental” e “antecedente lógico necessário” da decisão proferida, seja quanto à admissibilidade da liquidação, seja quanto à procedência da apelação (em face da excepção peremptória invocada contra a compensação), sendo esta procedência a determinar o incidente da liquidação para que a compensação operasse enquanto causa extintiva da execução.


Em síntese:


“Se não existisse tal crédito, obviamente que não fariam sentido, nem a decisão que julgou procedente a apelação nem a subsequente decisão que anulou o processado para os termos subsequentes do incidente de liquidação. E o crédito que importa para o caso não é o crédito em abstrato, ou seja, não se trata de considerar a mera circunstância da existência de um crédito da embargante sobre o embargado. O que importa é o crédito em concreto, definido pela concreta relação jurídica de onde emerge tal crédito, seja ele líquido ou ilíquido. Foi sobre esse concreto crédito que se julgou improcedente a exceção perentória que havia sido considerada procedente na anterior sentença.


(…)


Deste modo, temos de concluir que a existência de um crédito da embargante sobre o embargado correspondente a 65% das quantias por este recebidas de clientes, por serviços prestados entre 11.03.2003 e 31.12.2003, constitui um pressuposto ou antecedente lógico necessário da decisão proferida pela Relação e que determina o conteúdo das decisões posteriores relativamente às quais esse crédito seja uma questão prejudicial.


A decisão recorrida, ao considerar que não assiste ao embargado o direito de reter 35% das quantias em causa, determinando que tem de devolver a totalidade das quantias recebidas, está na realidade a contrariar o que havia anteriormente sido decidido pela Relação. Está efetivamente a considerar que o crédito da embargante é de 100% e não de 65%.


A definição em concreto do crédito compensante constituiu um antecedente lógico e necessário da decisão de mérito da Relação. Como tal, esse crédito, nos termos em que foi aí definido, está abrangido pela força de caso julgado material na vertente de autoridade do caso julgado, determinando o conteúdo de decisões posteriores relativamente às quais tal crédito seja uma questão prejudicial. É o caso da decisão recorrida, pelo que nessa parte o recurso procede. E, conforme resulta da decisão da Relação, o crédito a considerar corresponde a 65% das quantias líquidas efetivamente recebidas, pois foi esse o contorno do negócio jurídico acordado entre as partes que foi considerado assente e que resultou das posições processuais assumidas pelas partes no processo (…)”.


Em causa, portanto, o caso julgado dentro do processo para outros objectos processuais teria que vincular o objecto processual referido à aferição da compensação e da sua relevância quantitativa em face do crédito exequendo (logo, efeito positivo e não excepção negativa de caso julgado, uma vez que se invoca a decisão sobre os factos em outro incidente deduzido no processo, sendo este de carácter prejudicial).


Ora.


2.5. A decisão constitutiva do referido “caso julgado” foi tomada no acórdão da Relação de 24/2/2011 e refere-se ao segmento decisório do “agravo” que incidiu sobre o despacho de indeferimento do incidente de liquidação proferido em 20/5/2004 (cfr. supra, ponto 3. do Relatório).


Pronunciou-se favoravelmente à admissibilidade do incidente de liquidação enxertado no apenso de oposição mediante “embargos de executado” (págs. 15 e ss, a fls. 2119 e ss dos autos), tal como reflectiu no dispositivo;


assim motivando (sublinhado nosso):


“O deduzido pela Embargante reportou-se ao contra-crédito sobre o Embargado, por aquela arrogado em sede de compensação, e por relativo aos valores que aquele último facturou e cobrou aos clientes da Embargante.


Resultando da matéria de facto assente, sem impugnação nesse particular, ser devido à Embargante, pelo Embargado, 65% das quantias líquidas recebidas por este directamente de clientes seus, por serviços prestados desde 11.03.2003 a 31.12.2003.


A circunstância de não ser líquido tal contra-crédito não é, por si, impeditiva da operatividade da compensação, cfr. art. 874º, n.º 3, do Código Civil.” (sublinhado nosso);


“Ora, sendo admissível a liquidação do montante compensado, em execução de sentença, com eventual oposição do executado (…) e assim sendo passível de discussão nessa sede de oposição a temática de tal liquidação, não vemos como negar a possibilidade de o executado/embargado[,] pretendendo compensar o crédito exequendo (…)[,] deduzir incidente de liquidação do seu contra-crédito. E sob pena de, na prática, se obstar à admissibilidiade da dedução de embargos com fundamento em compensação. Obrigando o embargante a pagar agora … e ir depois, numa outra acção declarativa, fazer valer o seu direito.”;


“(…) nada sendo admitido pelo Embargado, que assim também não informou o montante desses arrogados créditos da Embargante, não restava a esta, após a contestação daquele, outro caminho que não fosse o da dedução de incidente de liquidação, nos termos do art. 378º do Código de Processo Civil.”


Foi nesta decisão – decorrente do “agravo” admitido – que se recorreu ao facto provado 16. da materialidade assente:


“O exequente/embargado reconhece o direito da executada/embargante a 65% das quantias líquidas recebidas pelo exequente/embargado directamente de clientes seus, por serviços prestados desde 11.03.2003 a 31.12.2003 (al. Q)).


Este facto revela e assenta apenas e só num “reconhecimento” do direito imputado ao Exequente e Embargado – o que é, sublinhado, a propósito do outro “agravo” conhecido e apreciado, pelo próprio acórdão da Relação de 2011, a respectivas pág. 19 e fls. 2123 (“Consignando-se esse facto que é o reconhecimento pelo Embargado da existência do crédito da Executada/embargante, correspondente a 65% das quantias líquidas recebidas pelo Exequente/embargado (…).”).


Na verdade, este facto não dá como assente que o direito de crédito na esfera da Exequente e Embargada – a sociedade de advogados – consiste numa percentagem de 65% das quantias líquidas recebidas pelo exequente, não tomando posição factual sobre tal percentagem e sobre tal base de cálculo da percentagem – antes traduzindo o reconhecimento desse facto – ou factos, em rigor – na perpectiva do Exequente e Embargado, sem que se vislumbre qualquer admissão ou confissão desse teor por parte da Executada e Embargante (sociedade de advogados), ou sequer lógica suficiente para retirar qualquer presunção desse facto e deduzir-se que a Executada e Embargante é titular de um crédito equivalente a 65% das quantias líquidas recebidas de clientes sobre o Exequente e Embargado.


Logo, não se pode concluir que o fundamento da decisão sobre o incidente esteja baseado numa decisão de facto que afirme tal percentagem e base de cálculo13.


Se assim é, tal alegado fundamento não pode de todo condicionar a apreciação feita na decisão posterior, por último respeitante ao acórdão recorrido, que reaprecia a anterior sentença de 1.º grau.


Mais.


É manifesto revelar-se na decisão transitada de 2011 – sobre o agravo do despacho de indeferimento da liquidação; e só esta decisão está directamente em causa – que a admissão incidental da liquidação é instrumental para concretizar a compensação como fundamento da oposição à execução; por isso, apenas se pode ver como pressuposto da decisão final a existência de um contracrédito da titularidade da Executada sobre o Exequente, a definir, a fim de se acertar e liquidar o crédito exequendo, relativo aos “valores que aquele último facturou e cobrou aos clientes da Embargante” (como se enquadrou ab initio nesse acórdão de 2011).


Ou seja, se procuramos uma conexão entre o objecto decidido (admissibilidade da liquidação) e respectivos fundamentos (decisão transitada) e o objecto desta oposição, não está coberto pela autoridade de caso julgado, com efeito positivo e intraprocessual, a fixação de percentagens do contracrédito em razão da participação de cada uma das partes em conflito nas quantias recebidas directamente pelo exequente, nem sequer a base de cálculo dessa percentagem (quantias facturadas vs. quantias recebidas; quantias ilíquidas vs. quantias líquidas deduzidas das despesas e custos).


Por fim.


Cremos ainda que, sendo a decisão constitutiva de “caso julgado” referente à admissibilidade de um incidente no processo, deve aproveitar-se a regra (com excepções legais: por ex., o art. 732º, 5, do CPC) de as decisões sobre os incidentes (pois “apenas lidam com uma questão com relevância em dada ação”) assumirem apenas valor de caso julgado formal, sendo insusceptível de fazer caso julgado “material” e desencadear qualquer efeito positivo de vinculação subsequente14.


Assim ainda mais será – acrescente-se agora – quando estamos perante um incidente “não autónomo”, como é o incidente de liquidação, que faz caso julgado nos limites do que declara e integra a decisão final do pedido a que respeita, sendo consumida pela decisão principal15.


Logo, julgamos ser de proceder as Conclusões 15. a 45. da revista da Recorrente, com as legais consequências, indeferindo a presente Reclamação, agora proferindo acórdão, tal como suscitado pelo art. 652º, 3, do CPC.


3. Sobre a compensação a operar nos autos para liquidação do crédito invocado pela Embargante e Executada, a Recorrente começa por alegar a não existência de um acordo “final e vinculativo” entre as partes, em referência ao “acordo de princípio de 11/03/2003” – v. factos provados 4., 5., 6., 7., 8., 22., 25., 26., 27., 28., 35., 36., 37., 38. e 39. –, pelo que “o Embargado tem a entregar à Embargante todos os valores de créditos da Embargante que cobrou, sem direito a fazer qualquer dedução, de qualquer tipo, pois agiu em violação do disposto no art. 25.º do DL n.º 513-Q/79, de 26 de dezembro, que aprovou o regime jurídico das sociedades de advogados, vigente à data dos factos, o qual estabelecia que as remunerações de qualquer natureza cobradas como contraprestação da atividade profissional dos sócios constituem receitas da sociedade de advogados” (Conclusão 57.).


Porém, esta consequência para efeitos de compensação necessita de ser instruída previamente pela tomada de posição sobre uma eventual percentagem desse contracrédito a que a sociedade de advogados teria direito a reter, sendo o restante crédito do Exequente – tendo em conta justamente o facto provado 16. e o regime legal aplicável.


Tendo sido reconhecido pelo Embargado e Exequente a existência de uma percentagem, calculada sobre “quantias líquidas” e “recebidas”, o certo é que se verifica que a Embargante e aqui Recorrente não admite tal percentagem – no mesmo sentido e em apoio de não ter sido assim admitida pela sentença de 1.ª instância; não mostrou oposição ao facto provado 16. mas deste não consta o seu próprio reconhecimento.


Sendo certo – em adição – que, no que consta do facto provado 41., houve comunicação do Embargado à Embargante da “intenção de efetuar um acerto de contas entre aquilo que recebeu e o que é devido à embargante”, o que – em conjugação com os factos provados 6. a 8. – parece ter como subjacente a existência de uma repartição acordada pelas partes na origem das quantias recebidas.


E ainda é preciso ficar claro qual a base de cálculo de tal eventual percentagem ou de atribuição total das quantias recebidas pelo Exequente, que o acórdão recorrido assumiu serem as quantias “líquidas” e “recebidas” dos clientes – v. factos provados 48. a 54.


Ora.


Verifica-se que sobre essas questões – eventual percentagem de repartição e base de cálculo dessa percentagem –, a matéria de facto é insuficiente e incompleta e não se pode ater ao que ficou assente no facto provado 16. – o que não é de todo irrelevante para a decisão de direito e consequente resolução do litígio, uma vez que se discute uma extinção parcial ou total do crédito exequendo por via da compensação.


Surge como curial que a Relação amplie a decisão da matéria de facto, com expressa menção à medida da atribuição dessas quantias recebidas de clientes nesse arco temporal (ou falta dela), que se afigura relevante para alicerçar a aplicação do direito aplicável e já identificado (pela sentença de 1.ª instância) no regime jurídico das sociedades de advogados vigente à data, assim como as regras legais da compensação (arts. 847º e ss do CCiv.), uma vez preenchidos os pressupostos do art. 682º, 3, do CPC;


e, proferida nova decisão sobre a matéria de facto, com base suficiente para decisão de direito, julgue novamente a apelação, de acordo com o direito aplicável (art. 683º, 1, do CPC).


4. Neste contexto, a Decisão Sumária reclamada ordenou tal ampliação para cumprimento pela Relação, tendo em conta os factos articulados pelas partes e os que sejam do seu conhecimento oficioso (art. 5º, 2, do CPC), nomeadamente em função dos documentos disponíveis nos autos e a prova produzida em sede de audiência de julgamento, e, eventualmente, com recurso aos poderes-deveres atribuídos pelo art. 662º, 2, do CPC, o que agora igualmente se confirma.


Ficando igualmente confirmada a prejudicialidade da apreciação da questão da compensação, tal como vertida nas Conclusões 46. a 55., e o que, nas Conclusões 56. a 89., consta como argumentação subsidiária, uma vez que nova decisão será proferida pela Relação em sede de apelação (em aplicação do art. 608º, 2, 2.ª parte, do CPC).


5. Por último, invoca o Recorrido e aqui Reclamante que a Recorrente e Embargante incorre em abuso de direito por venire contra factum proprium, ao ignorar o caso julgado e ao não reconhecer um alegado acordo de repartição de 65%-35% para o apuramento do crédito da Exequente e Embargada.


Porém, não se vislumbra na tramitação processual qualquer conduta contraditória que agora mereça conduzir à exclusão por via processual do direito a recorrer de revista: (i) não só porque a autoridade de caso julgado foi alegada na apelação (da sentença de 17/6/2022) pelo Exequente e Embargado (cfr. conclusões L) a S)) e não foi de todo admitida pela Executada e Embargante sociedade, nos termos das respectivas contra-alegações dessa apelação (cfr. conclusões 9. a 21.) – o que se reitera nesta revista, em que é Recorrente; (ii) mas ainda porque o reconhecimento de tal repartição (e contracrédito discutido para efeitos de compensação) é imputado ao Exequente e Embargado (nos termos vistos e plasmados no aludido facto provado 16.).


IV) DECISÃO


Em conformidade, julga-se improcedente a Reclamação, confirmando-se a Decisão Sumária e a consequente devolução dos autos à Relação nos termos constantes do respectivo dispositivo.


Custas a cargo do Reclamante, que se fixa em taxa de justiça correspondente a 2 (duas) UCs.


STJ/Lisboa, 30/4/2024


Ricardo Costa (Relator)


Maria Olinda Garcia


Rosário Gonçalves


SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC)

________________________________________________

1. ABRANTES GERALDES, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, sub art. 629º, págs. 50-51.↩︎

2. V. por todos RUI PINTO, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Julgar, Novembro 2018, págs. 2 e ss.↩︎

3. Neste sentido, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “Preclusão e ‘contrário contraditório’ – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.10.2012”, CDP n.º 41, 2013, pág. 28, FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito processual civil, Volume II, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2019, págs. 719-720, JOSÉ LEBRE DE FREITAS, “Um polvo chamado autoridade de caso julgado”, ROA, 2019, pág. 701; na jurisprudência recente, v. o Ac. do STJ de 31/1/2024, processo n.º 721/17, Rel. RICARDO COSTA, in www.dgsi.pt.↩︎

4. V. fundamentalmente (que seguimos na terminologia dogmática) MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “O objecto da sentença e o caso julgado material (Estudo sobre a funcionalidade processual)”, BMJ n.º 325, 1983, págs. 159-160, 171 e ss, em esp. 171-172, 175, 178-179, ID., “Prejudicialidade e limites objectivos do caso julgado”, RDES, 1977, págs. 305-308, ID., “Preclusão e ‘contrário contraditório’…”, loc. cit., págs. 24-25, 28-29; LEBRE DE FREITAS, “Providência cautelar: desistência do pedido, repetição e caso julgado”, Estudos sobre direito civil e processo civil, Coimbra Editora, Coimbra, 2002, págs. 494-496, ID., “Um polvo…”, loc. cit., págs. 691-693, 700-702; RUI PINTO, “Exceção e autoridade de caso julgado…”, loc. cit., págs. 4-7, 17-19, 25 e ss (“efeito positivo externo”); FRANCISCO FERREIRA DE ALMEIDA, Direito processual civil, Volume II cit., págs. 719 e ss.↩︎

5. V. RUI PINTO, “Exceção e autoridade de caso julgado…”, loc. cit., págs. 40 e ss.↩︎

6. V., com jurisprudência relevante, RUI PINTO, “Exceção e autoridade de caso julgado…”, loc. cit., págs. 25 e ss (em conjugação com as págs. 20-21); LEBRE DE FREITAS, “Um polvo…”, loc. cit., pág. 700.↩︎

7. RUI PINTO, “Exceção e autoridade de caso julgado…”, loc. cit., págs. 10-12, 28-29.

Antes, MANUEL DE ANDRADE, Noções elementares de processo civil, com a colaboração de Antunes Varela, actualização de Herculano Esteves, Coimbra Editora, Coimbra, 1976, págs. 308-309, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “A eficácia da composição da acção”, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997, pág. 595.↩︎

8. Seguimos e transcrevemos RUI PINTO, “Exceção e autoridade de caso julgado…”, loc. cit., págs. 20-21 e nt. 30 – pág. 30.↩︎

9. MANUEL DE ANDRADE, Noções elementares… cit., pág. 311, ANTUNES VARELA/J. MIGUEL BEZERRA/SAMPAIO E NORA, Manual de processo civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, págs. 720-721, 724 e ss, em esp. 726-728; com adesão, na jurisprudência do STJ, o Ac. de 13/9/2018, processo n.º 687/17.5T8PNF.S1, Rel. ROSA TCHING, in www.dgsi.pt.↩︎

10. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “A eficácia da composição da acção”, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997, págs. 578-579.↩︎

11. RUI PINTO, “Exceção e autoridade de caso julgado…”, loc. cit., pág. 19 (quanto ao “efeito positivo interno” do caso julgado).↩︎

12. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “A eficácia da composição da acção”, loc. cit., pág. 580, ss, JOSÉ LEBRE DE FREITAS, “O polvo…”, loc. cit., págs. 703-704, 705-706.↩︎

13. Assim concluiu o acórdão recorrido:

“(…) a autoridade do caso julgado definiu o crédito da embargante como correspondendo a 65% das quantias líquidas efetivamente recebidas por este diretamente dos clientes, por serviços prestados desde 11.03.2003 a 31.12.2003. Daqui decorre a resolução de duas questões. A primeira era a de saber se as quantias a ter em causa para apurar os referidos 65% são as que foram faturadas pelo embargado ou aquelas que foram por ele efetivamente recebidas, estando assente que são estas últimas. E a segunda era a de saber se as despesas necessárias à formação do rendimento devem ou não ser deduzidas. Está também assente que se trata do rendimento líquido, ou seja, deduzido das despesas.

(…) A efetiva resolução de mérito do litígio só se alcança com a efetivação da compensação sobre a quantia líquida efetivamente recebida pelo embargado. A quantia faturada deixaria pendente a questão dos créditos não cobrados, ou seja, não resolveria definitivamente a questão. E não há qualquer abuso de direito por parte do embargado, desde logo porque a forma como o seu crédito foi definido é imputável à embargante. Por isso não pode esta impor que, por ter deliberado da forma como o fez (tendo em conta os valores faturados), o embargado esteja obrigado a assumir os créditos não cobrados. E, depois, porque não existe qualquer enriquecimento da sua parte. Haveria antes um empobrecimento injustificado caso se admitisse a compensação sobre valores não cobrados. E quanto à dedução das despesas, valem os mesmos argumentos.”↩︎

14. V. RUI PINTO, “Exceção e autoridade de caso julgado…”, loc. cit., págs. 44-45.↩︎

15. RUI PINTO, O recurso civil. Uma teoria geral. Noção, objeto, natureza, fundamento, pressupostos e sistema, AAFDL, Lisboa, 2017, pág. 110.↩︎