Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1182/22.6YLPRT.L1.S2
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO DE LIMA GONÇALVES
Descritores: ARRENDAMENTO URBANO
PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO
OPOSIÇÃO
CAUÇÃO
FALTA DE PAGAMENTO
RENDA
ARRENDATÁRIO
INCONSTITUCIONALIDADE
DIREITO DE DEFESA
ACESSO AO DIREITO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO
NOTIFICAÇÃO PARA PAGAMENTO DE MULTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA, REPRISTINANDO-SE A DECISÃO PROFERIDA PELO TRIBUNAL DE 1ª INSTÂNCIA
Sumário :
I – Não são inconstitucionais as normas constantes do artigo 15.º-F do NRAU.

II – A imposição à Requerida da prestação de caução para lhe ser admitida a oposição ao procedimento especial de despejo fundado na falta de pagamento de rendas, não lhe coarta o seu direito de defesa previsto no artigo 20.º da CRP.

Decisão Texto Integral:

Acórdão

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. AA requereu o presente procedimento especial de despejo, contra CPFS – Companhia Portuguesa de Formação e Serviços, Lda. peticionando:

Em face de tudo quanto foi exposto, a reqda. deve às heranças representadas pelo reqte., o montante global de €75.000,00 (setenta e cinco mil euros), referentes às rendas vencidas e não pagas, relativas ao período compreendido entre os meses de fevereiro de 2011 a julho de 2022, acrescido de juros de mora calculados à taxa legal de 4%.

Além dos respetivos juros de mora, ao referido montante acrescem ainda as rendas que se vencerem no período compreendido entre a resolução do contrato de arrendamento e a efetiva desocupação da fração arrendada devoluta de pessoas e bens.

O Requerente invoca seguinte:

1. O reqte. exerce as funções de cabeça de casal da herança aberta por morte do seu Pai, o Senhor BB e da herança da sua Mãe, a Senhora D. CC, titulares da fração autónoma designada pela letra "B", a qual corresponde ao rés-do-chão direito do prédio urbano constituído no regime da propriedade horizontal sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...96 da freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º 636 da freguesia de ... (cfr. caderneta predial urbana que se junta como doc. 1 e aqui se dá por integralmente reproduzida).

2. Em 17 de janeiro de 2011, a Senhora D. CC, à data cabeça de casal da herança aberta por óbito do seu marido, o Senhor BB, celebrou com a reqda., esta última na qualidade de Arrendatária, um contrato de arrendamento para fins habitacionais que tinha por objeto a fração autónoma identificada em 1. antecedente (cfr. cópia do contrato de arrendamento que se junta como doc. 2 e aqui se dá por integralmente reproduzido).

3. Em virtude da celebração do referido contrato de arrendamento, a referida fração autónoma foi dada de arrendamento à reqda..

4. Pela execução do referido contrato de arrendamento, a reqda. tinha a obrigação de pagar a título de renda anual, o montante total de €7.200,00 (sete mil e duzentos euros).

5. Ficou convencionado que a renda anual seria paga pela reqda. em duodécimos mensais de €600,00 (seiscentos euros), os quais se venciam no primeiro dia do mês anterior àquele a que diziam respeito (cfr. cláusula terceira do contrato junto como doc. 2).

6. Desde o início da execução do contrato e até à presente data, a reqda. nunca efetuou, contrariamente ao que estava obrigada, qualquer pagamento a título de renda.

7. Em .../09/2021 morreu a Senhora D. CC.

8. Em virtude da morte da Senhora D. CC, o ora reqte. assumiu as funções de cabeça de casal da herança aberta por morte do seu Pai, o Senhor BB e da herança da sua Mãe, a Senhora D. CC, estando deste modo representada a totalidade da propriedade da fração (cfr. certidão da escritura de habilitação de herdeiros outorgada em 10/11/2021 que se junta como doc. 3 e aqui se dá por integralmente reproduzida).

9. Ao assumir as funções de cabeça de casal, o reqte. constatou que as rendas devidas pela execução do referido contrato de arrendamento nunca haviam sido pagas, tendo por essa razão notificado a reqda. do incumprimento da sua obrigação de pagamento da referida renda.

10. A notificação foi efetuada através de contacto pessoal de Agente de Execução, ao abrigo do disposto na al. b) do n.º 7 do art. 9.º do NRAU.

11. Através do referido contacto pessoal efetuado pelo Agente de Execução, o reqte. comunicou, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 1083º do Código Civil, que a consequência pelo não pagamento das rendas vencidas e não pagas era a resolução do contrato de arrendamento, informando no entanto a reqda. que tinha a possibilidade de se opor à resolução do contrato, mediante o pagamento das referidas rendas acrescidas da correspondente indemnização no montante de 20% do total das rendas em atraso (cfr. originais da Notificação Pessoal que se junta como doc. 4 e aqui se dá por integralmente reproduzida).

12. O certo é que, terminado o prazo legal concedido para o efeito, a reqda. não efetuou qualquer pagamento permanecendo em dívida a totalidade dos montantes referentes às rendas vencidas e não pagas, pelo que o contrato de arrendamento se encontra validamente resolvido nos termos da Lei.

13. Até à presente data, a reqda. não efetuou qualquer pagamento, não tendo estabelecido qualquer contacto no qual manifestasse a sua intenção de o fazer.

14. Com efeito, o pedido de pagamento de rendas, encargos e despesas efetuado no âmbito do presente Procedimento Especial de Despejo, é admissível, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 15º do NRAU, uma vez que o montante das rendas em dívida foi comunicado à arrendatária, conforme se demonstrou (cfr. doc. 4).

2. Notificada, a Requerida veio deduzir oposição, juntando com esse articulado o comprovativo do pagamento da taxa de justiça respetiva.

3. Com data de 12/09/2022, foi proferido o seguinte despacho:

“Ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 6.º do Código de Processo Civil, convido a Requerida a, no prazo de 5 dias, juntar aos autos documento comprovativo de que efectuou o pagamento da caução prevista no n.º 3 do artigo 15.º-F da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, no prazo previsto na lei, sob pena de se ter por não deduzida a oposição”.

4. Em 18/09/2022, a Requerida/Ré apresentou requerimento com o seguinte teor, acompanhado do comprovativo do depósito da quantia alegada:

“CPFS – COMPANHIA PORTUGUESA DE FORMAÇÃO E SERVIÇOS, LDA., Requerida no processo acima identificado, notificada do Despacho deste Tribunal de 13.09.2022 com referência citius ...93, vem requerer a junção aos autos do comprovativo de pagamento de caução, no valor de € 3.600,00 (três mil e seiscentos euros)”.

5. Com data de 22/09/2022, foi proferido o despacho com o seguinte teor dispositivo:

“Termos em que, não tendo a requerida feito o depósito da caução no prazo legal para a apresentação da oposição, nos termos do disposto no artigo 15.º - F, n.º 4, da Lei 31/2012 de 14/08, tem-se a oposição por não deduzida”.

6. Inconformada com esta decisão, a Requerida/Ré interpôs recurso de apelação.

7. O Tribunal da Relação de Lisboa veio a “revogar o despacho recorrido, devendo considerar-se tempestivamente prestadas quer a caução prevista no n.º3 do art. 15.º - F citado do NRAU quer, em consequência, a oposição deduzida pela ora recorrente ao procedimento especial de despejo”. (cf. decisão singular e Acórdão em conferência).

8. Inconformado, o Requerente/Autor veio interpor recurso de revista.

9. O STJ proferiu Acórdão, sendo o dispositivo do seguinte teor:

“Posto o que precede, acorda-se em:

- conceder a revista, e, consequentemente, em revogar o Acórdão recorrido;

- ordenar a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para conhecer das questões suscitadas pela Requerida no seu recurso de apelação”.

10. Tendo os autos baixado, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu acórdão, sendo o dispositivo do seguinte teor:

“Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em, na procedência da apelação, revogar a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra, no sentido de conceder ao requerido o prazo de 10 dias para que proceda ao pagamento da multa de 5 UC’s, de forma a obviar à cominação prevista no nº 4 do art. 15º-F do NRAU”.

11. Inconformado, o Requerente/Autor veio interpor recurso de revista, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

A) O recte. deu entrada de um Requerimento de Despejo, nos termos e para os efeitos do artigo 15.º da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, no dia 11/07/2022;

B) A reqda. veio apresentar a sua oposição, nos termos do n.º 1 do art. 15.º-F da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, no dia 31/08/2022, ou seja, no último dia do prazo;

C) Aquando da apresentação da oposição ao despejo, a reqda. é obrigada a proceder ao pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas, nos termos do n.º 3 do art. 15.º-F do NRAU;

D) O pagamento da caução apenas foi efetuado no dia 14/09/2022, isto é, mais de duas semanas após a apresentação da oposição;

E) Ora, nos termos do n.º 4 do art. 15.º-F do NRAU, não se mostrando paga a taxa de justiça ou a caução aquando da apresentação da oposição, tem-se a oposição por não deduzida;

F) Por outra palavras, deve a reqda. efetuar o pagamento da caução juntamente com a apresentação da oposição, e nunca em momento posterior;

G) A caução constitui um verdadeiro requisito de admissibilidade da oposição, uma vez que na falta do seu pagamento, tem-se a oposição por não deduzida, como comina o n.º 4 do art. 15.º-F do NRAU;

H) A norma presente no n.º 4 do art. 15.º-F do NRAU tem, assim, efeito cominatório pleno, devendo o pagamento da caução ser realizado juntamente com a apresentação da oposição, não havendo qualquer outra oportunidade para a sua prestação;

I) A consequência da não constituição da caução é, nos termos do disposto no n.º 4 (atual n.º 6) do artigo 15.º - F do NRAU, que a oposição se tenha por não deduzida, prosseguindo imediatamente o processo nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 15-EA do NRAU;

J) O regime da ação especial de despejo é claro e o não pagamento da caução não dá lugar à aplicação do disposto no artigo 570.º do CPC, pelo que o Tribunal a quo nunca poderia recorrer à aplicação da referida norma;

L) Não é aceitável que tendo em conta a letra da Lei, se queira aplicar extensiva e abusivamente o disposto no artigo 570.º do Código Processo Civil, contrariando lei expressa e decisões jurisprudenciais em sentido diverso;

M) A Lei é clara e perentória, pelo que, não sendo o pagamento da caução realizado juntamente com a apresentação da oposição, deve a mesma ser tida como não apresentada nos termos do n.º 4 (atual n.º 6) do art. 15.º-F do NRAU, não havendo outra oportunidade para a realização deste pagamento, nem havendo margem para admissão da oposição;

N) Conforme resulta das muitas decisões proferidas pelos Tribunais Superiores, inclusivamente pelo Supremo Tribunal de Justiça, em caso de falta de pagamento da caução juntamente com a apresentação da oposição, a oposição tem-se por não deduzida;

O) O Supremo Tribunal de Justiça vai mais longe tendo já decidido que “Enferma de nulidade a decisão que conhece dos fundamentos da oposição deduzida pela arrendatária, sem atender à falta do pagamento da taxa de justiça e do pagamento da caução aludidos no nº 3 do artigo 15º-F do NRAU, podendo a parte a quem aproveita a eventual “desconsideração” da oposição deduzida, nos termos do art. 15º-F, nº 4 do NRAU, pugnar, em sede de recurso, por tal “desconsideração”.”

O) A recente alteração legislativa do NRAU promovida pela Lei n.º 56/2023, de 06/10, não introduziu qualquer alteração à redação da disposição constante do n.º 4 do artigo 15.º F, tendo a referida norma passado a constar do número 6 devido à introdução de duas novas disposições, contudo nenhuma delas prevê a aplicação do artigo 570.º do Código de Processo Civil;

P) Considerar inconstitucional a aplicação direta da cominação prevista no número 4 (agora n.º 6) do artigo 15.º-F do NRAU seria violar Lei expressa e obrigaria a rever um conjunto de outras normas que implicam a caducidade de direitos em caso de incumprimento de regras e pressupostos processuais;

Q) Não restam quaisquer dúvidas que em caso de falta de pagamento da taxa de justiça ou da caução juntamente com a oposição, a oposição tem-se por não deduzida.

R) Decidir em sentido contrário à decisão do Tribunal da 1.ª instância é ilegal e inconstitucional, pelo que tal decisão deve ser mantida seguindo a ação os seus tramites com vista à rápida desocupação do locado.

E conclui: “deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o acórdão recorrido, substituindo-se por outro que declare não deduzida a oposição apresentada pela reqda. por não se mostrar paga a caução prevista no número 5 (antigo n.º 3) do artigo 15.º-F do NRAU, e que ordene o prosseguimento da ação especial de despejo com vista à rápida desocupação e restituição do locado.”

12. A Requerida/Ré contra-alegou, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

A. Em primeiro lugar, esclareça-se que segundo o artigo 20.º, n.º 4 da CRP, as partes de um processo judicial têm direito a um processo equitativo, tendo já vindo o Tribunal Constitucional (entre outros, veja-se Ac. n.º 29/2020 do TC, relator Juiz Conselheiro Pedro Machete) dizer que uma das dimensões do direito a um processo equitativo é o direito ao contraditório das partes, o que implica que as partes têm o direito a apresentar a sua defesa, expondo as suas razões de facto e de direito sobre os contornos do processo, assim como a oferecer prova e a analisar as provas oferecidas pela parte contrária.

Dito isto,

B. Embora não se discuta a admissibilidade, em termos constitucionais, da imposição de ónus processuais às partes, é certo que tais ónus processuais (e os seus efeitos preclusivos) devem respeitar os princípios fundamentais constantes da Constituição12, entre outros, o princípio da proporcionalidade, assim como o direito ao contraditório (resultante do direito a um processo equitativo – art. 20.º da CRP, como se viu), direito de acesso aos tribunais e o direito a uma tutela jurisdicional efetiva.

C. Neste âmbito, a jurisprudência constitucional (cfr. Acórdão do TC n.º 462/2016, disponível em www.tribunalconstitucional.pt) tem definido três vetores essenciais, para densificar o juízo de proporcionalidade a ter em conta quando esteja em questão a imposição de ónus processuais às partes.

D. São eles: 1) a justificação da exigência processual em causa; 2) a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado; 3) a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento dos ónus (cfr. neste sentido, os Acórdãos n.ºs 197/07, 277/07 e 332/07, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

E. Ora, se já oferece dúvidas que o ónus previsto no artigo 15.º-F, n.º 4 (atual n.º 5) do NRAU pode ser considerado conforme ao 2) vetor essencial acima identificado, é por demais evidente que o ónus previsto no artigo 15.º-F, n.º 4 do NRAU, tal como foi interpretado pelo tribunal a quo, é manifestamente excessivo em face das consequências do seu incumprimento, violando, deste modo, o 3) vetor essencial acima identificado.

Vejamos em pormenor as consequências do incumprimento do ónus previsto no artigo 15.º-F, n.º 4 (atual n.º 5) do NRAU,

F. No âmbito do procedimento especial de despejo, caso o requerido não pague, no momento da apresentação da oposição a caução devida, então, segundo o estabelecido no artigo 15.º-F, n.º 4 (atual n.º 5) do NRAU, a oposição tinha-se por não apresentada, o que, por sua vez, implicava a automática formação de um título executivo contra o requerido, não tendo, realce-se, o requerido a oportunidade de apresentar oposição à execução (art. 15.º-J, n.º 6 do NRAU) no processo de execução que viesse a ser propostos com base em tal título executivo.

G. Repisa-se este ponto por se considerar fundamental: a desproporcionalidade da preclusão do ónus estabelecido no artigo 15.º-F, n.º 4 (atual n.º 5) do NRAU resulta do facto de o requerido, por não ter pago no momento devido a caução -sem que tenha sido convidado a suprir tal falha – não só vê a sua oposição a ser considerada como não apresentada, como vê formado contra si um título executivo ao qual não poderá sequer apresentar oposição à execução.

H. É manifesta a desproporcionalidade de tal preclusão, caso não seja dado ao requerido, por força do artigo 570.º do CPC, a oportunidade de vir corrigir tal irregularidade, o que implica, assim, a sua inconstitucionalidade.

Aliás,

I. Um dos exemplos que o Mm.º Juiz Conselheiro Lopes do Rego refere quanto a esta matéria é o de que a preclusão dos ónus de natureza estritamente processual – como é o caso agora em questão – poderá revelar-se totalmente desproporcional, e, em consequência, inconstitucional, é a situação em que a preclusão tenha um carácter definitivo, sem qualquer possibilidade de ulterior suprimento.

J. Assim, não existem quaisquer dúvidas de que a preclusão de tal ónus processual é manifestamente desproporcional, caso não seja dada a hipótese ao requerido de vir a corrigir tal irregularidade, nos termos do artigo 570.º do CPC, violando, assim, o direito ao contraditório que é decorrência do princípio ao processo equitativo, direito este previsto no art. 20.º, n.º 4 da CRP.

K. Note-se que a desproporcionalidade (e, assim, a inconstitucionalidade) advém do facto de o requerido, por não pagar no momento da apresentação da sua oposição a caução devida, e sem ter hipótese de vir suprir tal falha (mediante, aliás, o pagamento de uma multa), ficar arredado de apresentar a sua defesa (com as consequências que isso acarreta): existe uma manifesta restrição desproporcional no direito do requerido ao contraditório (art.º 20, n.º 4 da CRP).

L. Em consequência, devia o tribunal a quo ter formulado um convite à Recorrente, nos termos do artigo 570.º do CPC, para que esta pudesse pagar a caução devida e a multa pelo atraso.

M. Pelo acima exposto, o convite ao aperfeiçoamento, nos termos do artigo 570.º, do CPC, é uma exigência constitucional, dado que se se interpretar o artigo 15.º-F, n.º 4 (atual n.º 5) do NRAU, tal como interpretou o tribunal de 1.ª instância, no sentido de que se o requerido, num processo especial de despejo, não proceder ao pagamento da caução, aquando da apresentação da sua oposição, tal peça processual dever considerar-se, imediatamente, como não apresentada, sem antes se conceder ao requerido as opções previstas no artigo 570.º do Código de Processo Civil, então estamos perante uma norma inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, dada a restrição desproporcional do direito ao contraditório do requerido, direito este que é uma decorrência do direito a um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4 da Constituição).

Prosseguindo

N. Ao contrário do alegado pelo Recorrente, a circunstância de um diploma normativo ser objeto de alteração legislativa não implica que todas as normas que não foram alteradas com essa alteração legislativa passem a ser não inconstitucionais.

O. Pelo que não se pode retirar nenhuma consequência – tal como pretende o Recorrente - do facto da Lei Mais Habitação ter alterado o regime do despejo, mas não ter alterado o artigo 15.º-F, n.º 4 (atual n.º 5) do NRAU, nomeadamente a sua admissibilidade constitucional.

Continuando,

P. A comparação feita pelo Recorrente entre o processo de despejo e a ação de preferência, no sentido de que caso se viesse a ser declarado inconstitucional o disposto no artigo 15.º-F, n.º 4 (atual n.º 5) do NRAU ter-se-ia, igualmente de declarar inconstitucional o disposto no artigo 1410.º, n.º 1 do CC, dada a similitude de soluções aí adotadas, não pode ser aceite por três ordens de razão.

Q. Em primeiro lugar, o Recorrente ignora que no artigo 15.º-F, n.º 4 (atual n.º 5) do NRAU está em causa um prazo processual, daí que se possa aplicar ao mesmo o disposto no artigo 570.º do CPC, ao invés, o prazo constante no artigo 1410.º, n.º 1 do CC é um prazo substantivo, sendo que esta diferença justifica a diferença de tratamentos entre estas duas situações.

R. Em segundo lugar, o pagamento do preço, previsto no artigo 1410.º, n.º 1 do CC, é pressuposto substantivo do direito de preferência do preferente (cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11.01.2011, processo n.º 1204/07.0TVPRT.P1.S1),

S. Já a situação do requerido, no âmbito do processo de despejo, é completamente diferente, pois não se está perante um direito do requerido que pode vir a extinguir-se, mas si perante um ónus processual.

T. Esta diferença material entre as posições jurídicas em questão implica, necessariamente, o tratamento diferenciado entre as mesmas.

U. Por fim, o Recorrente não explica, e muito menos fundamenta, porque é que a equiparação entre o artigo 1410.º, n.º 1 do CC e o artigo 15.º - F, n.º 4 (atual n.º 5) do NRAU desvirtua o entendimento de que é uma exigência constitucional a formulação de convite, ao abrigo do artigo 570.º, para os casos do artigo 15.º-F, n.º 4 do NRAU.

V. A mera alusão à (suposta) similitude dos regimes agora em análise não desvirtua o entendimento de que é uma exigência constitucional a formulação de convite, ao abrigo do artigo 570.º do CPC, nos casos resultantes do artigo 15.º-F, n.º 4 (atual n.º 5) do NRAU.

E conclui: “deve o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, objeto do presente recurso, ser confirmado e, em consequência, deve ser revogada a decisão do tribunal de 1.ª instância de ordenar o desentranhamento da oposição apresentada”.

13. Suscitada a não admissibilidade do recurso, e tendo as partes pronunciado sobre essa questão, a resolução da admissibilidade do recurso foi remetida para o presente Acórdão.

14. Cumpre apreciar e decidir.

II. Delimitação do objeto do recurso

Como é jurisprudência sedimentada, e em conformidade com o disposto nos artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente, pelo que, dentro dos preditos parâmetros, da leitura das conclusões recursórias formuladas pelo A./ ora Recorrente decorre que o objeto do presente recurso está circunscrito às seguintes questões:

- a aplicação do artigo 570.º do Código de Processo Civil;

- inconstitucionalidade.

Como questão prévia a admissibilidade do recurso.

III. Fundamentação

1. Factos relevantes:

1.1. O Requerente interpôs o presente procedimento especial de despejo junto do BNA.

1.2. A Requerida, notificada, veio deduzir oposição, juntando 5 documentos e o comprovativo do pagamento da taxa de justiça

1.3. O Tribunal de 1.ª instância proferiu o seguinte despacho: “Ao abrigo do disposto no n.º1 do artigo 6.º do Código de Processo Civil, convido a Requerida a, no prazo de 5 dias, juntar aos autos documento comprovativo de que efectuou o pagamento da caução prevista no n.º3 do artigo 15.º - F da Lei n.º6/2006, de 27 de Fevereiro, no prazo previsto na lei, sob pena de se ter por não deduzida a oposição.”

1.4. A Requerida juntou documento comprovativo do depósito da caução em 14/09/2022.

1.5. O tribunal de 1.ª instância proferiu, de seguida, o seguinte despacho:

“Nos termos do disposto no artigo 15.º-F, n.º 3, da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, “com a oposição, deve o requerido proceder à junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e, nos casos previstos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 1083º do Código Civil, ao pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas, salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça”. Acrescenta o n.º 4 que, não se mostrando paga a taxa ou a caução, a oposição tem-se por não deduzida.

No caso em apreço, estando em causa a resolução por falta de pagamento de rendas e não tendo a requerida comprovado, com a apresentação da oposição, ter efectuado o pagamento da caução, foi convidada a juntar “documento comprovativo de que efectuou o pagamento da caução prevista no n.º 3 do artigo 15.º-F da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, no prazo previsto na lei, sob pena de se ter por não deduzida a oposição”.

Ora, como resulta do documento junto, a requerida não comprova ter efectuado o pagamento da caução devida no prazo previsto na lei para a apresentação da oposição, tendo antes junto documento que demonstra que efectuou o pagamento de uma caução apenas na sequência do despacho proferido, quando é certo que a parte não foi convidada a depositar a caução no prazo de 5 dias, mas antes a comprovar, no mencionado prazo, que havia dado cumprimento ao disposto no normativo citado, condição legal para o recebimento da oposição.

Com efeito, seguindo este tribunal o entendimento vertido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Dezembro de 2018 (processo n.º 1394/16.1YLPRT.L1.S1., in www.dgsi.pt) – na falta de junção do documento comprovativo do pagamento da caução deve “o juiz, em conformidade com o estabelecido no art. 6º, nº 1 do CPC, convidar o inquilino a proceder à respetiva junção” -, o tribunal não concedeu à requerida um novo prazo para pagar a caução, mas antes para comprovar o pagamento já efectuado no prazo para a apresentação da oposição, pelo que o pagamento da caução, entretanto efectuado, não tendo sido realizado no prazo para a apresentação da oposição, não evita a consequência prevista na lei, ou seja, que se desconsidere a oposição deduzida. Na verdade, careceria de sentido que fosse permitido à requerida beneficiar de um novo prazo para o pagamento da caução (diferentemente do que se considera quanto à comprovação do pagamento efectuado), quando se vem entendendo que, também quanto à taxa de justiça, no procedimento especial em apreço, não é aplicável o disposto no artigo 570.º do Código de Processo Civil, precisamente por se tratar de um procedimento especial em que se visa uma especial celeridade no andamento do processo (neste sentido, v.g. Acórdão do Tribuna da Relação de Coimbra de 12 de Setembro de 2017, proc. n.º 686/16.4T8CBR.C1, base de dados citada). Por outro lado, não é pelo facto da defesa apresentada pela requerida, em sede de oposição, pôr em causa o direito do requerente às rendas que a isenta da dispensa do pagamento da caução mencionada, pois que, como ensina Rui Pinto (“Manual da Execução e Despejo, pág. 1187, citado no primeiro dos arestos referidos) “Esta prestação da caução (…) garante a posição do senhorio. Procedimentalmente, exprime-se como uma condição de admissibilidade da oposição”.

Termos em que, não tendo a requerida feito o depósito da caução no prazo legal para a apresentação da oposição, nos termos do disposto no artigo 15.º - F, n.º 4, da Lei 31/2012 de 14/08, tem-se a oposição por não deduzida.


***


Oportunamente, comunique ao Balcão Nacional do Arrendamento”.

2. Questão Prévia da Admissibilidade do recurso

Foi suscitada a questão da inadmissibilidade do recurso do último acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

O Recorrente pugna pela admissibilidade do recurso, invocando os fundamentos constantes do Acórdão do STJ, de 6 de dezembro de 2018 (Processo n.º1394/16.1YLPRT.L1.S1).

Por sua vez, a Recorrida conclui pela inadmissibilidade do recurso.

Prescreve o n.º1 do artigo 671.º do Código de Processo Civil que cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.

Neste momento, e confrontado com os argumentos constante do Acórdão do STJ citado, concluímos pela admissibilidade do recurso.

Como aí se refere: “Assente … ser o pagamento da taxa de justiça bem como o pagamento da caução a que alude o n.º3 do art. 15.º - F, do NRAU, condições necessárias da admissibilidade da oposição ao procedimento especial de despejo, nos termos do disposto no n.º4 do citado art. 15.º - F, temos por certo revestirem os mesmos a natureza de pressupostos processuais, cuja falta impede o juiz de conhecer do mérito da oposição.

Significa isto que, no procedimento especial de despejo, a averiguação da admissibilidade da oposição deduzida pelo arrendatário é necessariamente prévia ao conhecimento da sua fundamentação e não pode ser dispensada pelo tribunal.

Dito de outro modo, o tribunal está impedido de proferir uma decisão sobre os fundamentos da oposição ao despejo se e enquanto, na análise da sua admissibilidade, não se concluir pela existência daqueles pressupostos processuais.

Nenhuma decisão de mérito deve ser proferida sem a análise da sua verificação.

Sendo assim e porque, no caso em apreço, o Tribunal de 1.ª instância conheceu dos fundamentos da oposição deduzida pela arrendatária, sem que se mostrasse efetuado o pagamento da taxa de justiça e da caução devidas, importa, então, indagar quais as consequências que advêm para aquela decisão da falta de verificação destes pressupostos processuais.

E a este respeito diremos, na esteira dos ensinamentos de Miguel Teixeira de Sousa, não podemos deixar de considerar que a decisão proferida sobre tal oposição sem atender à falta dos referidos pressupostos é afetada «por um valor de nulidade», sendo «atingida por um valor de impugnabilidade (normalmente através de um recurso ordinário».

Quer isto dizer que a parte à qual aproveita a eventual “desconsideração” da oposição deduzida, nos termos do art. 15.º - F, n.º4 do NRAU, pode, em sede de recurso, pugnar por tal “desconsideração”.

Por outro lado, devemos considerar que se enquadra naquela disposição legal qualquer questão que esteja relacionada com a resolução material do litígio, isto é, quando a análise do pressuposto e do mérito exige um tratamento conjunto, como é o caso presente.

Deste modo, sendo o recurso de revista admissível, admite-se o mesmo.

3. A aplicação do artigo 570.º do Código de Processo Civil. Inconstitucionalidade

Como se referiu no Acórdão anterior, transitado em julgado, o Requerente requereu o presente procedimento especial de despejo, contra a Requerida CPFS – Companhia Portuguesa de Formação e Serviços, Lda., invocando que esta não procedeu ao pagamento de rendas, fundamentando a sua pretensão no n.º5 do artigo 15.º do NRAU.

A Requerida, notificada, veio deduzir oposição, não juntando, no momento da dedução da oposição, documento comprovativo da prestação de caução.

Atenta a oposição da Requerida o BNA remeteu os autos ao Tribunal de 1.ª instância competente.

O Juiz do Tribunal de 1.ª instância, após ter ordenada a notificação para que a Requerida juntasse documento comprovativo de que tinha prestado a caução e como o depósito havia sido feito depois da dedução da oposição, considerou como não deduzida a oposição e determinou que se comunicasse ao Balcão Nacional do Arrendamento.

Notificada dessa decisão, a Requerida interpôs recurso de apelação, pretendendo que a decisão fosse revogada, invocando como fundamento que o disposto no artigo 570.º do Código de Processo Civil impõe o convite ao aperfeiçoamento e que a falta do referido convite viola o disposto no n.º4 do artigo 20.º da CRP.

O Tribunal da Relação de Lisboa, não se debruçando sobre estes fundamentos invocada pela Apelante, veio, contudo, a revogar a decisão da 1.ª instância, por entender que a Requerida tinha prestado a caução em tempo, dado que “o pagamento da caução devida pela dedução de oposição ao procedimento especial de despejo pode ser efectuado após a notificação da secretaria para a realização desse pagamento, acompanhado de guia e documento único de cobrança” e que, no caso presente, a secretaria não notificou para efetuar esse pagamento e não remeteu a guia e documento único de cobrança.

Nesse mesmo Acórdão foi decidido:

- conceder a revista, e, consequentemente, em revogar o Acórdão recorrido;

- ordenar a baixa dos autos ao Tribunal da Relação para conhecer das questões suscitadas pela Requerida no seu recurso de apelação.

Baixado os autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, foi proferido acórdão no qual se considerou que “… será de concluir que associar ao incumprimento do ónus de depósito de caução a consequência imediata e irreversível de consideração da oposição como não deduzida, mostra-se manifestamente desproporcional, por acarretar o resultado de impossibilitar a parte incumpridora de fazer valer a sua posição no litígio, em termos determinantes para o desfecho ou resolução definitiva dos direitos ou interesses controvertidos.

Consistiria essa imediatez e automaticidade numa restrição inconstitucionalmente intolerável do direito de contraditório, não se assegurando o tratamento equitativo das partes, nem a efetividade da tutela jurisdicional.

Desse modo, será de recorrer à figura da interpretação conforme à Constituição e, adequando o regime legal à configuração do direito de contraditório, de forma a assegurar o tratamento equitativo das partes e a efetividade da tutela jurisdicional, facultar ao requerido, no caso do incumprimento do dever expresso no art. 15º-F, nº3 do NRAU, no que concerne ao depósito da caução aí prevista, a possibilidade de sanar essa falta, mediante realização ulterior desse mesmo depósito, acrescido de multa, nos termos previstos no art. 570º do Código de Processo Civil.”.

Daí concluiu pela procedência do recurso de apelação interposto pela Requerida.

Vejamos.

Como consta do Acórdão deste Tribunal atrás referido:

Prescreve o artigo 15.º - F do NRAU (aprovado pela Lei n.º6/2006, de 27 de fevereiro) que:

1. O requerido pode opor-se à pretensão no prazo de 15 dias a contar da sua notificação.

2. A oposição não carece de forma articulada, devendo ser apresentada no BNA apenas por via eletrónica, com menção da existência do mandato e do domicílio profissional do mandatário, sob pena de pagamento imediato de uma multa no valor de 2 unidades de conta processuais.

3. Com a oposição, deve o requerido proceder à junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e, nos casos previstos nos n.ºs3 e 4 do artigo 1083.º do Código Civil, ao pagamento de uma caução no valor das rendas, encargos ou despesas em atraso, até ao valor máximo correspondente a seis rendas, salvo nos casos de apoio judiciário, em que está isento, nos termos a definir por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça.

4. Não se mostrando paga a taxa ou a caução previstas no número anterior, a oposição tem-se por não deduzida.

5. A oposição tem-se igualmente por não deduzida quando o requerido não efetue o pagamento da taxa devida no prazo de cinco dias a contar da data da notificação da decisão definitiva de indeferimento do pedido de apoio judiciário, na modalidade de dispensa ou de pagamento faseado da taxa e dos demais encargos com o processo.

Assim, resulta desta disposição legal que o requerido pode opor-se no prazo de 15 dias (n.º1) e que, com a oposição deve juntar documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e do pagamento de uma caução (n.º3), sendo que não se mostrando paga a taxa de justiça ou a caução, a oposição tem-se por não deduzida (n.º4).

No caso presente, a Requerida veio opor-se no prazo de 15 dias, tendo juntado somente o documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça.

Perante essa não demonstração do pagamento da caução, o Juiz de 1.ª instância determinou a notificação da Requerida para juntar documento comprovativo do pagamento da caução “no prazo previsto na lei”, isto é, no prazo da dedução da oposição.

Em face desta ordenada notificação, a Requerida veio juntar documento comprovativo do pagamento da caução, já no prazo concedido para juntar o documento, portanto depois do prazo para deduzir a oposição.

O Juiz de 1.ª instância, perante o facto de pagamento da caução ter ocorrido depois do prazo para deduzir oposição, considerou, e bem, que a oposição se tinha por não deduzida e ordenou que se comunicasse ao Balcão Nacional do Arrendamento.

Irresignada, a Requerida interpôs recurso de apelação, não colocando em crise este raciocínio do Juiz do Tribunal de 1.ª instância, mas pretendendo que a decisão fosse revogada, pois deveria ser convidada a proceder ao pagamento da caução por ser aplicável o disposto no artigo 570.º do Código de Processo Civil e que o não ser convidada violava o disposto no n.º4 do artigo 20.º da CRP.”

Como se sabe, o artigo 570.º do Código de Processo Civil admite, em determinadas circunstâncias, a prática de determinados atos, mediante o pagamento de uma multa.

Nos termos do n.º2 do artigo 18.º da CRP, a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

Por sua vez, prescreve o n.º1 do artigo 20.º da CRP que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.

Como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros, “o legislador dispõe de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo, cabendo-lhe designadamente ponderar os diversos direitos e interesses constitucionalmente protegidos relevantes - incluindo o próprio interesse de ambas as partes (e não apenas do autor) – e, em conformidade«, disciplinar o âmbito do processo, a legitimidade, os prazos, os poderes de cognição do tribunal e o processo de execução. Não é, por isso, incompatível com a tutela constitucional do acesso à justiça a imposição de ónus processuais às partes.

Em qualquer caso, e antecipando considerações que não podem ser dissociadas da ideia de um processo equitativo, os regimes adjectivos devem revelar-se funcionalmente adequados aos fins do processo e conformar-se com o princípio da proporcionalidade, não estando, portanto, o legislador autorizado, nos termos dos artigos 13.º e 18.º , n.ºs 2 e 3, a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva.” (in Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, p.190, edição de 2005)

“Assim, quando se aprecia a proporcionalidade de uma restrição a um direito fundamental, avalia-se a relação entre o bem que se pretende proteger ou prosseguir com a restrição e o bem jusfundamentalmente protegido que resulta, em consequência, desvantajosamente afectado. Por sua vez, a observância ou a violação do princípio da proporcionalidade dependerão da verificação da medida em que essa relação é avaliada como sendo justa, adequada, razoável, proporcionada ou, noutra perspectiva, e dependendo da intensidade e sentido atribuídos ao controlo, da medida em que ela não é excessiva, desproporcionada, deszaroável” (Jorge Reis Novais, in Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, p.178).

Assim, a compressão do direito de defesa é consentida pela CRP (citado artigo 18.º, nº.2), desde que não resulte numa solução de indefesa ou de restrição profunda ao direito de defesa, como uma das vertentes do direito à tutela jurisdicional efetiva.

Importa verificar se o regime constante dos n.ºs 3 e 4 do artigo 15.º-F do NRAU é compatível com os princípios e normas constitucionais, de proporcionalidade e de proibição de indefesa, designadamente os artigos 17º, 18º e 20º da CRP.

O citado n.º4 do artigo 15º. – F do NRAU, exigindo a prestação de uma caução no valor das rendas em dívida, com o limite de seis meses, como condição da possibilidade de dedução de oposição ao procedimento especial de despejo fundado na falta de pagamento de rendas, impõe uma efetiva compressão do direito de defesa do inquilino, pois restringe-lhe o seu direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, que lhe são constitucionalmente consagrados no artigo 20.° da CRP, mas sem o seu direito de defesa seja coartado.

No caso, encontram-se em confronto dois direitos, sendo que contrapondo ao direito do inquilino se encontra o direito à propriedade privada (cf. artigos 61.º e 62.º da CRP), sendo que o legislador, perante o incumprimento da obrigação mais básica do inquilino de pagamento de rendas, e tendo em consideração que o exercício do direito de defesa possa constituir um expediente dilatório, retardando-se a entrega do locado e agravando-se a realização do direito do senhorio, com a demora na resolução do litígio – com a dedução de uma oposição àquela pretensão - possa redundar num agravamento irreversível e na eventual frustração do direito do senhorio, limita o direito do inquilino, impondo-lhe a prestação de uma caução (correspondente, no seu limite máximo, a seis rendas) para considerar que a sua oposição seja apreciada.

E apenas fica sujeito à prestação da caução o inquilino que tenha capacidade económica, encontrando-se protegidos os casos de não prestação de caução por dificuldade económica.

Isto é, a compressão do direito de defesa do inquilino apenas contempla a prestação de caução num determinado valor (limite máximo de seis meses de renda) e sempre que os inquilinos estejam em condições económicas de a poderem prestar.

Deste modo, a compressão do direito mostra-se adequada e proporcional, enquanto contraponto ao direito de propriedade do senhorio, pelos motivos atrás referidos, não constituindo aquela restrição uma limitação intolerável ao direito de defesa do inquilino.

Mesmo os montantes a caucionar não se revelam manifestamente excessivos e desproporcionados, não colocando em risco o acesso à justiça do inquilino; sendo que esses mesmos montantes servirão para pagamento das rendas em atraso (que são sempre devidas pelo inquilino e que este terá de proceder ao seu pagamento) se a oposição for improcedente ou, na procedência da oposição, serão restituídos ao inquilino.

Assim sendo, nos termos contidos pelo legislador, a prestação de caução não constitui um fator inibitório do exercício do direito de oposição.

As normas contidas no artigo 15.º - F do NRAU, atrás referidas, não impedem nem criam entraves relevantes, do exercício do direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais do inquilino, não se encontrando violados quaisquer normas constitucionais, nem justificando que se possibilite outro momento para a prestação da caução, mediante o pagamento de qualquer multa, não sendo, deste modo, aplicável ao caso presente, o disposto no artigo 570.º do Código de Processo Civil.

Deste modo, o recurso tem de proceder e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa revogado, repristinando-se a decisão do Tribunal de 1.ª instância.

IV. Decisão

Posto o que precede, acorda-se em conceder a revista, e, consequentemente, em revogar o Acórdão recorrido, repristinando-se a decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância.

Custas pela Recorrida.

Lisboa, 23 de abril de 2024

Pedro de Lima Gonçalves (Relator)

Jorge Leal

António Magalhães