Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:0944/23.1BESNT
Data do Acordão:04/18/2024
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
ADMISSIBILIDADE DE FIRMAS E DENOMINAÇÕES
Sumário:A providência cautelar de suspensão de decisão do Instituto dos Registos e do Notariado, na qual se formula o pedido de suspensão daquela decisão e, consequentemente, de suspensão do cancelamento da denominação da Requerente, retirando a menção de “Firma Cancelada” da respectiva certidão da Requerente até decisão final nos autos principais, integra-se no âmbito do disposto no art. 111º, nº 1, al. m) da LOSJ, cabendo aos Tribunais Judiciais a competência para o seu conhecimento.
Nº Convencional:JSTA000P32150
Nº do Documento:SAC202404180944
Recorrente:FEDERAÇÃO PORTUGUESA DE KITESPORTS – FPKITE
Recorrido 1:INSTITUTO DOS REGISTOS E DO NOTARIADO - IP (E OUTROS)
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório
Federação Portuguesa de Kitesports – FPKITE intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo da Propriedade Intelectual, providência cautelar de suspensão de decisão contra o Instituto dos Registos e do Notariado (IRN, IP) e Federação Portuguesa de Vela - UPD, formulando o pedido de suspensão da decisão do Requerido e, consequentemente, de suspensão do cancelamento da denominação da Requerente, retirando a menção de “Firma Cancelada” da respectiva certidão da Requerente até decisão final nos autos principais [o processo nº 83/23.5YHLSB que corre termos no referido Juízo da Propriedade Intelectual de Lisboa – Juiz 1, no qual impugna o despacho do IRN, IP que determinou a perda do uso da denominação “Federação Portuguesa de Kitesports – FPKITE”].

Em 13.07.2023, o Juízo da Propriedade Intelectual proferiu decisão a julgar o Tribunal incompetente em razão da matéria para conhecer da providência cautelar requerida, absolvendo os Requeridos da instância.
A Requerente pediu a remessa dos presentes autos ao TAF, o que foi deferido.
No Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, por sentença de 23.10.2023, o Tribunal também se declarou incompetente em razão da matéria.
Suscitada oficiosamente a resolução do conflito negativo de jurisdição no TAF de Sintra, por despacho de 28.11.2023, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 11º da Lei nº 91/2019.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da atribuição da competência aos tribunais da jurisdição comum – Tribunal da Propriedade Intelectual.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Tribunal da Propriedade Intelectual e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra.
Entendeu o Juízo da Propriedade Intelectual que o acto praticado pelo IRN, IP, de cancelamento do registo da firma, não se integra na previsão do disposto no art. 111º, nº 1, alínea m) da LOSJ, o qual apenas é competente para apreciar sobre a admissibilidade de firmas e denominações no âmbito do regime jurídico do Registo Nacional de Pessoas Colectivas (RNPC).
Entendeu aquele Tribunal que o acto que se pretende suspender é um acto administrativo, pelo que a sua suspensão de eficácia terá de ser apreciada ao abrigo dos arts. 1º, nº 1 e 4º, nº 1 [alínea a)] do ETAF, 112º, nº 2, al. d) e 120º, nº 1, ambos do CPTA.

Por sua vez o TAF de Sintra considerou, nomeadamente, que o cancelamento do registo, acto administrativo consequente do despacho que determinou a perda do uso de denominação e como tal o pedido de suspensão de cancelamento do registo, integra-se no âmbito do disposto no art. 111º, nº 1, alínea m) da LOSJ, não podendo ser dissociado do acto que declarou a perda do direito do uso de denominação.
Referiu, nomeadamente, a sentença, que, “Da apreciação do teor deste normativo, resulta patente que esta norma tem carácter especial face à norma geral da alínea a) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.
Ora, o Tribunal da Propriedade Intelectual integra a jurisdição dos tribunais judiciais, nos termos conjugados da alínea a) do n.º 1 do artigo 29.º, do n.º 1 do artigo 33.º e da alínea a) do n.º 3 do artigo 83.º, todos da Lei da Organização do Sistema Judiciário.
Nestes termos, a apreciação e decisão da impugnação – ou, na terminologia do artigo 111.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário, do recurso – de decisões do Requerido Instituto dos Registos e Notariado, IP, respeitantes à admissibilidade de denominações compete, não à jurisdição administrativa, mas à jurisdição dos tribunais judiciais.
Com efeito, a mera circunstância de a decisão do Requerido ter sido fundada em Despacho do Secretário de Estado do Desporto, embora possa constituir fundamento da verificação de causa prejudicial, suscetível de justificar a suspensão da instância (cfr. artigo 272.º do CPC), não contende com as normas de competência aplicáveis, porquanto o concreto ato a impugnar é uma decisão respeitante à admissibilidade de uma denominação, proferida pelo Instituto de Registo e do Notariado, IP.
Sucede, também, que, nos termos …da alínea c) do n.º 1 do artigo 78.º do CPC, a competência para conhecer da Providência Cautelar se encontra atribuída ao Tribunal competente para a decisão da causa principal, isto é, no caso, o Tribunal da Propriedade Intelectual.
Deste modo, este Tribunal não se mostra competente para a decisão do presente processo cautelar, concluindo-se pela sua incompetência material absoluta.”
Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [artigos 211º, nº1, da CRP; 64º do CPC; e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [artigos 212º, nº3, da CRP, 1º, nº1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.º do ETAF com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o A. configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Ac. deste Tribunal de 1.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Na presente providência cautelar a Requerente veio peticionar a suspensão da decisão do IRN, IP, que procedeu ao cancelamento da denominação da Requerente, solicitando a retirada da menção de “Firma Cancelada” da respectiva certidão de registo, até decisão final dos autos principais - o processo nº 83/23.5YHLSB que corre termos no referido Juízo da Propriedade Intelectual de Lisboa – Juiz 1, no qual impugna o despacho do IRN, IP que determinou a perda do uso da denominação “Federação Portuguesa de Kitesports – FPKITE”.
Prevê o art. 111º, nº 1, alínea m) da LOSJ, o seguinte:
1- Compete ao tribunal da propriedade intelectual conhecer das questões relativas a: (…)
m) Recursos das decisões do Instituto dos Registos e do Notariado (IRN, I.P.) relativos à admissibilidade de firmas e denominações no âmbito do regime jurídico do Registo Nacional de Pessoas Coletivas;
Estabelece, por sua vez, o regime jurídico do RNPC (aprovado pelo DL nº 129/98, de 13/5, na sua actual redacção) no seu art. 60º, sob a epígrafe “Perda do direito ao uso de firmas e denominações por violação dos princípios da verdade e novidade”, que:
1 – O RNPC deve declarar a perda do direito ao uso de firmas ou denominações quando se verificar terem sido violados os princípios consagrados nos artigos 32.º e 33.º.
2 – Na sequência da declaração de perda do direito ao uso de firma ou denominação deve:
a) Realizar-se o respectivo acto de registo comercial, tratando-se de entidade a ele sujeita;
E o art. 63º do mesmo diploma, dispõe sobre a admissibilidade de recurso hierárquico e impugnação judicial, o seguinte:
1 – Podem ser impugnados mediante a interposição de recurso hierárquico para o presidente do IRN, I.P., ou mediante impugnação judicial para o tribunal do domicílio ou sede do recorrente: (…)
b) Os despachos que declarem a perda do direito ao uso da firma ou denominação ou que indefiram o respectivo pedido;
Ora, da conjugação destes preceitos [o art. 111º, nº 1, al. m) da LOSJ e os arts. 60º, e 63º, nº 1, alínea b) do DL nº 129/98], decorre que no caso em presença estamos perante matéria que respeita à admissibilidade de firmas e denominações, a qual inclui necessariamente as questões da sua inadmissibilidade, quer a priori, quer à posteriori, cabendo, portanto, na previsão do art. 111º, nº 1, al. m) da LOSJ (cfr. art. 9º do Código Civil).
Com efeito, verifica-se que a causa de pedir tanto da acção principal de impugnação, como da presente providência cautelar visa a apreciação da (in)admissibilidade do registo de uma denominação, a qual foi apreciada após o registo, atentos factos supervenientes conhecidos pelo IRN, IP, e que determinou o Despacho do Secretário de Estado do Desporto.
Na presente providência cautelar peticiona-se a suspensão da decisão do Requerido IRN, IP e, consequentemente, de suspensão do cancelamento da denominação da Requerente, retirando a menção de “Firma Cancelada” da respectiva certidão da Requerente até decisão final nos autos principais.
Ora, este cancelamento do registo, é um acto administrativo consequente do despacho que determinou a perda do uso de denominação e assim sendo, o pedido de suspensão desse cancelamento do registo, integra-se no âmbito do disposto no art. 111º, nº 1, al. m) da LOSJ, não podendo ser dissociado do acto que declarou a perda do direito ao uso da denominação, como bem refere a EMMP.
Aliás, conforme decorre da alínea c) do nº 1 do art. 78º do CPC, a competência para conhecer da providência cautelar encontra-se atribuída ao tribunal competente para conhecer da causa principal, ou seja, ao Tribunal da Propriedade Intelectual onde corre a acção de impugnação.
Não estamos, por isso, perante um litígio subsumível no art. 4º, nº 1, al. a) do ETAF, emergente de uma relação jurídica administrativa para cujo conhecimento é competente a jurisdição administrativa, visto que a norma geral de competência deste preceito comporta diversos desvios, operadas por normas de carácter especial face àquela, como é o caso da norma da citada al. m) do nº 1 do art. 111º da LOSJ.
Assim, e uma vez que o Tribunal da Propriedade Intelectual integra a jurisdição dos tribunais judiciais, nos termos dos arts. 33º, nº 1 e 83º, nº 3, alínea a) da LOSJ é a jurisdição comum a competente para conhecer da presente providência cautelar.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção cautelar o Tribunal da Propriedade Intelectual, Juízo da Propriedade Intelectual de Lisboa – Juiz 1.
Sem custas.

Lisboa, 18 de Abril de 2024. – Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Nuno António Gonçalves.