Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:01772/23.0BEBRG
Data do Acordão:04/18/2024
Tribunal:CONFLITOS
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
Sumário:Compete aos tribunais judiciais conhecer de uma acção visando efectivar responsabilidade civil, que no momento da sua propositura, face aos termos em que a Autora configurou na petição inicial a causa de pedir, o pedido e os Réus que demandou e sendo irrelevante para a fixação da competência a modificação do lado passivo por via da admissão da intervenção provocada de um Município, a relação controvertida é uma relação privada, e não uma relação jurídica administrativa ou litígio enquadrável no art. 4º, nº 1 do ETAF.
Nº Convencional:JSTA000P32151
Nº do Documento:SAC2024041801772
Recorrente:A..., SA
Recorrido 1:CÂMARA MUNICIPAL DE AMARES (E OUTROS)
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral:
Conflito nº: 1772/23.0BEBRG

Acordam no Tribunal dos Conflitos

1. Relatório

A..., SA intentou no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Cível de Amares, acção declarativa de condenação contra AA e BB, formulando os seguintes pedidos:
A) Condenar os Réus, solidariamente, no pagamento do valor das reparações a efectuar nas fracções da Autora para eliminação dos danos verificados face à infiltração advinda da fracção dos Réus que serve de tecto à fracção da Autora no valor de 21 449,56€ (vinte e um mil quatrocentos e quarenta e nove euros e cinquenta e seis cêntimos).
B) Condenar os Réus, solidariamente, no pagamento do valor de 1050,56€ (mil e cinquenta euros e cinquenta e seis cêntimos), que a Autora já despendeu para lavar as carpetes e na reparação/substituição dos motores dos estores elétricos.
C) A pagar os juros de mora vincendos desde a presente data, à taxa legal, sobre todas as quantias até efectivo e integral pagamento.”
Alega, em síntese, que é dona e legítima possuidora das fracções autónomas ... e ... do prédio constituído em propriedade horizontal, que identifica, e que os Réus são comproprietários da fracção ... do mesmo prédio.
Sustenta que no dia 03.08.2021, cerca das 17 horas, ocorreu o rebentamento de um tubo da canalização da máquina de lavar, que se encontrava na cozinha da fracção dos Réus, que resultou na ocorrência de uma inundação. Em consequência, a água caiu, continuadamente, através dos focos de luz para a fracção ... da Autora, acumulou-se no chão e infiltrou-se na fracção ... da mesma, originando diversos danos no interior das duas fracções, cuja responsabilidade é, na sua opinião, dos Réus.
Os Réus contestaram e solicitaram a intervenção principal provocada do Município de Amares e de B... – Companhia de Seguros, SA.
Por despacho proferido em 09.03.2023 foi admitida a intervenção principal provocada do Município de Amares, que apresentou contestação e requereu a intervenção provocada da seguradora B... – Companhia de Seguros, SA.
Por sentença proferida em 11.05.2023, o Juízo Local Cível de Amares do Tribunal Judicial da Comarca de Braga julgou procedente a excepção de incompetência absoluta do Tribunal, em razão da matéria, para apreciação do litígio e, em consequência, absolveu os Réus da instância.
Remetidos os autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (TAF de Braga), a pedido da Autora, foi aí proferido saneador-sentença em 06.11.2023 a julgar verificada a excepção de incompetência em razão da matéria.
Suscitada a resolução do conflito negativo de jurisdição, foram os autos remetidos a este Tribunal dos Conflitos.
Neste Tribunal dos Conflitos as partes foram notificadas para efeitos do disposto no nº 3 do art. 11º da Lei nº 91/2019.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da atribuição da competência aos tribunais da jurisdição comum.

2. Os Factos
Os factos relevantes para a decisão são os enunciados no Relatório.

3. O Direito
O presente Conflito Negativo de Jurisdição vem suscitado entre o Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Cível de Amares, e o Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga.
Entendeu o Juízo Local Cível de Amares “No caso em apreço, a autora reclama dos RR o pagamento de danos causados na sua habitação que podem ter na sua origem na gestão de uma conduta de água por parte do Município do Amares.
Ora, a este respeito o artigo 4º, nº 1, alíneas g) e h) do ETAF dispõe que compete aos tribunais da jurisdição administrativa responsabilidade extracontratual das pessoas colectivas de direito público (…).
Dito isto, e sabendo-se que é da competência da edilidade a responsabilidade pela manutenção do sistema de conduta de água da Vila de Amares, facilmente se concluir que o presente litígio só pode ocorrer nos tribunais de jurisdição administrativa – cfr. neste sentido douto Ac. do V.T.R.G. datado de 29-05-2014 (…)”.
Por sua vez, o TAF de Braga considerou que “Para aferir qual a jurisdição competente para apreciar o presente dissídio, importa atender à natureza da relação jurídica tal como configurada pela Autora, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente (cfr. artigo 5.º, n.º 1 do ETAF e 38.º da LOSJ). (…)
No caso sub judice, conforme resulta da leitura da petição inicial, a Autora pretende a condenação dos Demandados no pagamento de uma indemnização pelos danos causados nas suas frações em virtude do rebentamento de um tubo de canalização da máquina de lavar que se encontrava na cozinha da fração daqueles e cuja água caiu diretamente para o chão em vez de ir para o esgoto, infiltrando-se nas frações da Autora (cfr. artigos 6.º e 7.º da petição inicial).
Ora, atendendo aos termos como a Autora configurou a ação (no momento da sua propositura) e independentemente de, posteriormente, ter sido admitida a intervenção principal provocada do Município de Amares (que, conforme exposto, não releva), conclui-se que a mesma tem natureza tipicamente civilista, não sendo competentes para a sua apreciação os Tribunais Administrativos e Fiscais.”
Vejamos.
Cabe aos tribunais judiciais a competência para julgar as causas “que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” [artigos 211º, nº 1, da CRP; 64º do CPC; e 40º, nº1, da Lei nº 62/2013, de 26/08 (LOSJ)], e aos tribunais administrativos e fiscais a competência para julgar as causas “emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” [artigos 212º, nº 3, da CRP, 1º, nº 1, do ETAF].
A competência dos tribunais administrativos e fiscais é concretizada no artigo 4.º do ETAF com delimitação do “âmbito da jurisdição” mediante uma enunciação positiva (nºs 1 e 2) e negativa (nºs 3 e 4).
Tem sido reafirmado por este Tribunal, e constitui entendimento jurisprudencial e doutrinário consensual, que a competência material do tribunal se afere em função do modo como o Autor configura a acção e que a mesma se fixa no momento em que a acção é proposta. Como se afirmou no Acórdão deste Tribunal de 01.10.2015, Proc. 08/14 “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”.
Na presente acção, a Autora pretende a condenação dos Réus no pagamento de uma indemnização pelos danos nas fracções de que é proprietária causados pelo alegado rebentamento de um tubo de canalização da máquina de lavar que se encontrava na cozinha dos Réus e que provocou a inundação da respectiva fracção e infiltração nas fracções da Autora.
Como já se disse a competência do tribunal fixa-se “no momento da propositura da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente” – cfr. art. 5º, nº 1 do ETAF e igualmente o art. 38º da LOSJ.
A acção não vem inicialmente proposta contra o Município de Amares e a sua intervenção no processo, através da intervenção principal provocada, traduz-se numa modificação de facto legalmente irrelevante para a fixação da competência, nos termos dos supracitados normativos.
Assim, no momento da propositura da acção, face aos termos em que a Autora configurou na petição inicial a causa de pedir, o pedido e os Réus que demandou e sendo irrelevante para a fixação da competência a modificação do lado passivo por via da admissão da intervenção provocada do Município de Amares, não há dúvida de que a relação controvertida é uma relação privada, e não uma relação jurídica administrativa ou litígio enquadrável no art. 4º do ETAF (cfr., em sentido semelhante, os acórdãos deste Tribunal dos Conflitos de 23.03.2022, Proc. 040/21 e de 07.02.2024, Proc. 02/23-CP e, ainda, o Acórdão do STJ de 12.01.2010, Proc. nº 1337/07.3TBABT.E1.S1).
Deste modo, a competência material para conhecer a presente acção cabe aos tribunais judiciais.
Pelo exposto, acordam em julgar competente para apreciar a presente acção o Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Cível de Amares.
Sem custas.

Lisboa, 18 de Abril de 2024. - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa (relatora) – Nuno António Gonçalves.