Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:4689/23.4BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:04/24/2024
Relator:MARCELO DA SILVA MENDONÇA
Descritores:IPDLG
INDISPENSABILIDADE
SUBSIDIARIEDADE
REJEIÇÃO LIMINAR
Sumário:I - O recurso ao processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, ainda que intentado por cidadão estrangeiro que tenha despoletado o procedimento administrativo com vista à emissão de autorização de residência em território nacional, depende da verificação, ante os factos concretos, do pressuposto da indispensabilidade desse meio processual, isto é, da sua necessidade para a emissão urgente de uma decisão de mérito imprescindível à protecção de um direito, liberdade e garantia, tendo em conta o estatuído pelo n.º 1 do artigo 109.º do CPTA.
II - Tendo presente o pressuposto da indispensabilidade, impõe-se que do caso concreto igualmente transpareça uma evidente situação de urgência que não possa ou não seja suficientemente acautelada, em tempo útil, pelo normal decretamento de uma providência cautelar, em processo que é igualmente de natureza urgente, eventualmente complementada pelo reforço de garantias que dimana da possibilidade do decretamento provisório da medida cautelar, no que se caracteriza pelo requisito da subsidiariedade, cuja exigência resulta da conjugação entre os artigos 109.º, n.º 1, e 110.º-A, n.º 1, do CPTA.
III - Faltando a demonstração dos pressupostos supra descritos, resulta a ausência de idoneidade do meio processual, razão pela qual não é de admitir o articulado inicial, devendo o juiz, em consequência, rejeitar liminarmente a petição inicial, atento o disposto no artigo 110.º, n.º 1, do CPTA.
Votação:c/ declaração de voto
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: I - Relatório.

S…, cidadão do Paquistão, doravante Recorrente, que no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa deduziu intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias contra a Agência para a Integração, Migrações e Asilo, I.P. (AIMA), doravante Recorrida, com vista à intimação da Recorrida para, no âmbito do procedimento administrativo de autorização de residência para o exercício de actividade profissional, emitir ao ora Recorrente o correspondente título de residência, inconformado que se mostra com a sentença do TAC de Lisboa, de 19/12/2023, que decidiu indeferir liminarmente o requerimento inicial, contra a mesma veio interpor recurso ordinário de apelação, apresentando alegações, nas quais formula as seguintes conclusões (transposição feita a partir da peça de recurso inserta no SITAF):

(…) 34 – Diante do exposto, concluímos o seguinte:

a) Constitui objecto do presente processo a demonstração da violação do direito à residência em Portugal Recorrente, em razão de a parte Requerida, de maneira injustificável, não encerrar o processo de autorização de residência no tempo previsto em lei, ocasionando-lhe inefáveis constrangimentos e, sobretudo, transgressão dos seus direitos fundamentais;

b) O juizo a quo, ao se debruçar indeferiu a Petição Inicial, por em tese, não estarem presentes os pressupostos da acção de intimação;

c) Todavia, salvo o devido respeito, não assiste razão o juizo a quo, na medida em que face a inobservância dos prazos previstos em lei para a concessão da autorização de residência do Recorrente, o mesmo está a ter diversos direitos fundamentais atordoados e, como tal, a presente acção torna-se devidamente legítima e a observar todos os postulados previstos em lei;

d) Afinal, a ferramenta processual estatuída no artigo 109º do CPTA é a instrumentalização do preceito fundamental vertido no artigo 20º, 5º da Constituição da República Portuguesa, o qual visa que o legislador ordinário consolide no ordenamento jurídico, determinados mecanismos, cujo primacial escopo seja a de proteger de modo efetivo e célere, a ameaça ou a violação de direitos fundamentais;

e) O Recorrido, em razão de sua inércia injustificada, na qualidade de órgão da Administração Pública, viola o direito à igualdade, delineados nos artigos 13º e 15º, n.º 1 , ambos da Constituições da República Portuguesa. Além do princípio da igualdade supracitado, o preceito intangível da legalidade é desacatado, na medida em que a postura do Recorrido é flagrantemente uma violação à lei – como se demonstrará mais adiante -, e, por derradeiro, das premissas da dignidade humana e do Estado Democrático de Direito, consoante ordenam os artigos 1º e 2º da Constituição da República Portuguesa;

f) No caso do Recorrente, por força do seu contrato de trabalho e das condições anteriormente mencionadas, o mesmo apresentou o seu pedido de autorização de residência ao abrigo do artigo 88º (…) da Lei n.º 23/2007, de 04 de Julho, no dia 23.08.2022, uma vez que arremata todos os pressupostos para esta finalidade, de acordo com a documentação apresentada;

g) O Recorrente apresentou a sua Manifestação de Interesse no dia23.08.2022, pelo que, nos termos do artigo 82º, n.º 5 da Lei 23/2007, de 04 de Julho, o pedido de autorização de residência deveria ser decidido no prazo de 90 (noventa) dias;

h) Entretanto, não foi isto que sucedeu, o Recorrido há MAIS DE UM ANO E QUATRO MESES, não concedeu uma resposta definitiva sobre o pedido de Autorização de Residência do Recorrente, causando-lhe inefáveis transtornos e, sobretudo, transgressão aos seus direitos fundamentais;

i) Uma das consequências do desrespeito ao aludido prazo, é o deferimento tático do título de residência em favor do Recorrente, nos moldes do 82º, n.º 715 da Lei º 23/2007, de 04 de Julho, conjugado com o artigo 130º, n.º 1 do CPA;

j) Isto posto, o Recorrido, ante a inobservância do referido prazo previsto em lei, deveria tomar uma providência no sentido de apreciar o pedido de Autorização de Residência do Recorrente;

k) Sucede que em face da conduta omissiva do Recorrido, o Recorrente tem inúmeros direitos fundamentais atropelados, não podendo, sair do país para ver sua família, caso ocorra alguma emergência, posto que, desprovido do título de residência o mesmo não poderá, regressar a Portugal, bem como, o mesmo está inibido de se socorrer dos benefícios do sistema nacional de saúde, e, ainda, de contrair empréstimos bancários para adquirir o seu imóvel próprio, dentre outros inúmeros direitos que apenas são concedidos aos portadores do título de residência;

l) De facto, a omissão da decisão sobre o pedido de concessão de autorização de residência vai indiscutivelmente bulir com o exercício de direitos fundamentais por parte do Recorrente, cerceando, entre outros, o seu direito à identidade pessoal, à vida familiar, à sua liberdade e o direito à estabilidade no trabalho, o recurso ao serviço nacional de saúde, na medida em que é manifesto que o Requerente se mostra privado da possibilidade de beneficiar da aplicação do principio da equiparação ou do tratamento nacional, previsto no artigo 15.º, n.º da CRP, permanecendo, em consequência, em situação irregular em território nacional;

m) Em caso idêntico, julgou o Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra – Unidade Orgânica 3, no âmbito do processo 935/23.2BESNT, de acordo com a sentença em anexo, onde reconheceu a procedência da acção de intimação para tutelar o direito do interessado e, ainda, conheceu o pedido, intimando a Recorrida a proceder o agendamento, a fim de decidir relativamente ao pedido de autorização de residência;

n) Portanto, só podemos concluir que a presente acção respeita todos os respetivos pressupostos legais, devendo ser conhecida e decretada a sua procedência, reformando in totum, a decisão proferida pelo juizo a quo, aceitando a petição inicial e, após o devido trâmite legal, intimar o Recorrido a proceder o agendamento para efeitos de apreciar o processo de autorização de residência do Recorrente.


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A Recorrida não contra-alegou.
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
O parecer do MP foi notificado às partes.
Sem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, por se tratar de processo urgente (cf. artigo 36.º, n.º 2, do CPTA), mas com apresentação prévia do projecto de acórdão, o processo vem à conferência da Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS para o competente julgamento.
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II - Delimitação do objecto do recurso.
Considerando que são as conclusões de recurso a delimitar o seu objecto, nos termos conjugados dos artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicáveis “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, cumpre apreciar e decidir, resumidamente, se a decisão recorrida, ao sindicar a matéria da idoneidade do meio processual, incorreu em erro de julgamento ao considerar que, ante os factos concretamente alegados pelo ora Recorrente, não se verificava o pressuposto da indispensabilidade, conforme prescreve o n.º 1 do artigo 109.º do CPTA a quem queira lançar mão do processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias (a indispensabilidade do recurso ao processo de intimação - em situação de especial urgência).
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III - Matéria de facto.
Tendo presente que a decisão recorrida não fixou matéria de facto e que o ora Recorrente nada impugna sobre tal temática no recurso que interpôs, concluímos que, face à delimitação supra do objecto do recurso, não se mostra necessário nesta instância recursiva proceder à fixação de qualquer probatório.
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IV - Fundamentação de Direito.
Na parte que aqui nos importa perscrutar, vejamos a fundamentação de direito e o dispositivo da sentença recorrida, transcrevendo-se os seguintes excertos, por serem aqueles que, de modo mais relevante, interessam à decisão do presente recurso:
(…) Incumbe, por isso, ao interessado a alegação e prova da factualidade necessária a caracterizar uma situação de lesão ou de ameaça de lesão do direito que, no caso concreto, considere posto em risco pelo agir administrativo. Neste sentido, tem o Requerente de concretizar e densificar, no requerimento inicial, a existência de uma situação jurídica individualizada que caracterize um direito, liberdade e garantia, cujo conteúdo normativo se encontre suficientemente densificado na Lei Fundamental ou na lei para ser jurisdicionalmente exigível por essa via processual e ainda a ocorrência de uma situação, no caso concreto, que ameace o direito, liberdade e garantia invocado, e que só possa ser evitada através do meio processual urgente da intimação.
Dito de outro modo, é o Requerente que tem o ónus de justificar a especial urgência no recurso a este meio, para prevenir a lesão, ou garantir o exercício do direito “em tempo útil”, individualizando os factos concretos que permitam concluir que a emissão urgente de uma decisão de mérito é indispensável para assegurar o exercício do direito a que se arroga.
(…)
Ou seja, o Requerente não alegou a indispensabilidade do presente meio processual para salvaguardar direitos, liberdades e garantias que, no seu caso concreto – SAMI ULLAH – estejam na eminência de ser atropelados, não se tendo também predisposto a produzir qualquer prova, nomeadamente testemunhal.
O Requerente limitou-se a alegar, de forma genérica, que o facto de o procedimento administrativo atinente à emissão de autorização de residência não se encontrar ainda concluído, impede a emissão do título de residência e do exercício de alguns direitos constitucionalmente consagrados, como o direito à identidade pessoal, à vida familiar, à liberdade, à estabilidade no trabalho, à saúde e ao princípio da equiparação ou do tratamento nacional.
O invocado pelo Requerente carece de densificação e descreve um circunstancialismo fático que é transversal a qualquer cidadão estrangeiro que se encontre em Portugal a aguardar a decisão da administração quanto à sua autorização de residência e, portanto, sente receio, ansiedade, agonia, saudades de casa e dos seus familiares. Por sua vez, limita-se a aludir à jurisprudência e doutrina selecionadas, que permitem a possibilidade de recurso ao presente meio processual em situações que, em abstrato e de forma hipotética, podem até ser semelhantes à sua, mas não aduz factos concretos que permitam a este tribunal fazer o enquadramento fáctico-jurídico concreto habilitador de tal juízo no seu caso concreto, no caso de SAMI ULLAH.
(…)
Nesta medida, a pretensão do Requerente mereceria tutela através de uma ação administrativa, mais concretamente, mediante um pedido de condenação à prática do ato devido, como meio de reação à inércia e à omissão do dever de decidir da Administração, tendo em consideração que alega ter submetido a manifestação de interesse em 23.08.2022.
(…)
Atento o exposto, é, pois, evidente que o meio processual urgente que o Requerente elegeu é inadequado para assegurar a sua pretensão, na medida em que não se encontram reunidos os requisitos previstos no já mencionado artigo 109.º do CPTA, porquanto não foram alegados factos concretos que permitam concluir que a emissão urgente de uma decisão de mérito é absolutamente indispensável para assegurar, em tempo útil, o exercício de um direito, liberdade e garantia, razão pela qual urge indeferir liminarmente o presente requerimento inicial (cfr. artigo 590.º, n.º 1 do CPC) (…)
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Desde já adiantamos que a decisão recorrida será confirmada. Vejamos as razões.
A decisão recorrida labora no domínio adjectivo prévio, que se encontra inculcado a montante da fase de sindicância do mérito da causa. Isto é, tendo o Tribunal a quo que emitir um despacho liminar, a proferir no prazo máximo de 48 horas, nos termos do artigo 110.º, n.º 1, do CPTA, é nesse preciso momento inicial que se impõe ao juiz aquilatar sobre a verificação dos pressupostos do processo de intimação, que se encontram plasmados no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA.
Em resultado dessa primeira análise, o juiz da causa tanto pode admitir a petição inicial, seguindo-se a citação da outra parte, como pode rejeitá-la, neste último caso, se algum dos pressupostos enunciados no n.º 1 do artigo 109.º não se mostrar, em concreto, preenchido.
“In casu”, foi precisamente o que ocorreu. A Meritíssima Juíza a quo, tendo que proferir o despacho inicial no processo de intimação que lhe calhou em distribuição, emitiu, ante as circunstâncias do caso concreto, a decisão liminar de rejeição da p.i. com base no fundamento já atrás veiculado: a falta do pressuposto da “indispensabilidade que subjaz ao processo de intimação”.
E decidiu bem, como veremos já de seguida.
O n.º 1 do artigo 109.º do CPTA dita o seguinte: “A intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar” (destaques nossos).
O processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias é de utilização excepcional, cujos requisitos encontram-se formulados no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA em termos intencionalmente restritivos, segundo o entendimento sufragado no “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, de Mário Aroso de Almeida e de Carlos Alberto Fernandes Cadilha, 5.ª Edição, Almedina, página 929, em anotação ao artigo acabado de citar.
Entre os pressupostos do processo de intimação, prescritos pelo n.º 1 do artigo 109.º do CPTA, impõe-se destacar o da sua indispensabilidade, que, contrariamente ao propugnado pelo Recorrente, nos antecipamos a dizer que não se vislumbra no caso em apreço.
Em termos sintéticos, a indispensabilidade do processo de intimação significa, de acordo com a doutrina inscrita na obra e pelos autores já atrás assinalados, que a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias não é a via normal de reação a utilizar em situações de lesão ou ameaça de lesão de direitos, liberdades e garantias. A via normal de reação é a da propositura de uma ação não urgente (…)”, “associada à dedução do pedido de decretamento de uma providência cautelar, destinada a assegurar a utilidade da sentença que, a seu tempo, vier a ser proferida no âmbito dessa ação. Só quando, no caso concreto, se verifique que a utilização das vias não urgentes de tutela não é possível ou suficiente para assegurar o exercício, em tempo útil, do direito, liberdade ou garantia é que deve entrar em cena o processo de intimação.
A intervenção da intimação está, assim, excluída nas situações em que a célere emissão de uma decisão sobre o mérito da causa, que ponha definitivamente termo ao litígio, não é indispensável para proteger o direito, liberdade ou garantia, bastando, para o efeito, a propositura de uma ação não urgente, complementada pelo decretamento de uma providência cautelar que dê uma regulação provisória ao caso.
Pelo contrário, o processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias há de ser chamado a intervir em situações que não possam ser acauteladas deste modo, porque é urgente a obtenção de uma pronúncia definitiva sobre o mérito da causa.” (cf. páginas 933 a 935 da obra citada).
Compulsadas as conclusões recursivas, o Recorrente, em síntese, aduz que não pode sair do país para ver a família que se encontra no Paquistão, em caso de emergência, sem o perigo de não poder reentrar em Portugal; que está inibido de se socorrer do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e deste obter os respectivos benefícios; e que não pode contrair um empréstimo bancário para adquirir um imóvel.
Pois bem, olhando rigorosamente o alegado pelo Recorrente, tudo não passa de alocuções vagas, de meros receios, conjecturas ou hipóteses, sem, contudo, qualquer adesão a factos concretos, devidamente circunstanciados, que demonstrem alguma vez o Recorrente se ter confrontado com uma situação de concreta carência ou de ter sido colocado pelas autoridades portuguesas numa situação de perigo ou de não poder usufruir de algum dos direitos clamados.
Em boa verdade, não se vê como pode estar o Recorrente inibido de sair do país para, em caso de necessidade urgente, apoiar a família no seu país de origem, pois que, não dando a conhecer nestes autos que, por exemplo, se encontra sujeito a medida de privação da liberdade, é óbvio que pode sair do território nacional quando e como quiser, podendo regressar a Portugal, desde que, naturalmente, cumpra os requisitos de entrada como qualquer outro cidadão, já que, sobre o Recorrente, de acordo com o conhecido no presente processo, não impende qualquer ordem de expulsão e/ou de proibição de reentrada em território nacional.
Por outro lado, o Recorrente não concretiza qualquer situação em que o SNS lhe tivesse recusado a prestação de cuidados de saúde, sendo um facto público e notório que o SNS português não fecha as portas a quem dele precise, mesmo a um cidadão estrangeiro, nomeadamente, em situação de urgência.
De resto, apesar de dizer que não pode contrair um empréstimo bancário para aquisição de imóvel, o certo é que o Recorrente não densifica devidamente, nem, muito menos, comprova, a situação concreta em que tal pretensão lhe tivesse sido recusada por instituição bancária ou financeira pela circunstância de ser cidadão estrangeiro sem título de residência emitido. De novo, não passa a presente alegação disso mesmo, de uma mera suposição ou conjectura, sem adesão à realidade de factos comprovados.
O Recorrente ainda acrescenta, nas conclusões de recurso, que no seu caso estão em crise os direitos à identidade pessoal, à vida familiar, à sua liberdade e o direito à estabilidade no trabalho, na medida em que é manifesto que se mostra privado da possibilidade de beneficiar da aplicação do principio da equiparação ou do tratamento nacional, previsto no artigo 15.º, n.º 1, da CRP.
Neste último conspecto, o Recorrente, novamente, limita-se a alegar de forma genérica e sequencial a violação de vários direitos, sem, contudo, acoplar factos concretos e realmente demonstrativos de estarmos perante uma situação de especial urgência ou de acentuada discriminação que seja indispensável acautelar ou impedir de modo imediato e de forma definitiva pela utilização do processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.
É sempre a partir do caso concreto que se perscruta a existência de fundamentos factuais que justifiquem a indispensabilidade do recurso ao processo de intimação. É o próprio requerente do meio processual de intimação que tem o ónus de alegar e provar os factos integradores/demonstrativos da requerida indispensabilidade do meio processual.
Acontece que, como já aflorámos, inexiste no caso vertente, por falta de alegação, qualquer situação realmente urgente ou premente que importe prevenir por intermédio do processo de intimação, ou seja, o Recorrente não associou ao requerimento inicial, nem agora, às conclusões recursivas, quaisquer factos suficientemente densificados que demonstrem tal urgência ou premência ou dos quais seja possível extrair um atropelo grave e irreversível aos direitos invocados.
Dito de outro modo, não transparece dos factos derramados no requerimento inicial, nem das conclusões de recurso, qualquer lesão séria ou ameaça de lesão dos direitos invocados pelo Recorrente que, a não ser travada pelo processo de intimação, já não será possível ou suficiente para impedir a ocorrência dessa lesão o decretamento de uma providência cautelar, ainda que provisoriamente, nos termos conjugados dos artigos 110.º-A, n.º 2, e 131.º do CPTA.
Neste particular aspecto, explicitam Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha na obra citada, na página 932, que “A utilização da intimação não está sujeita a prazo de caducidade (…)”, “mas, a nosso ver, só se justifica se esse for o único meio que em tempo útil permita evitar a lesão do direito, pelo que está necessariamente associada a uma situação de urgência” (destaque nosso).
Assim sendo, no caso concreto, impõe-se concluir pela falta do pressuposto da indispensabilidade do processo de intimação, exigido pelo n.º 1 do artigo 109.º do CPTA, e, como tal, é de julgar verificada a inidoneidade do meio processual.
Seguimos aqui a orientação de vasta e recente jurisprudência deste TCAS proclamada a propósito da concreta pretensão material de emissão da autorização de residência, com plena aplicação no caso vertente (no que especificamente diz respeito ao aludido requisito da indispensabilidade), da qual destacamos, entre outros, o recente acórdão de 11/01/2024, tirado no processo sob o n.º 1777/23.0BELSB, consultável no SITAF, enfatizando-se a seguinte passagem: É também vasta a jurisprudência que sustenta, em casos em tudo idênticos ao aqui em apreço, que invocando-se o direito à concessão da autorização de residência, a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias é um meio processual inidóneo (cfr., neste sentido, a título de exemplo, os recentes acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 7 de junho de 2023, Processo n.º 166/23.1BEALM, de 13 de julho de 2023, Processo n.º 489/23.0BELSB, de 13 de julho de 2023, Processo n.º 1151/23.9BELSB, de 26 de julho de 2023, Processo n.º 458/23.0BELSB, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt). – (destaque nosso).
No mesmo sentido, convoca-se o acórdão deste TCAS, de 13/07/2023, emitido no processo sob o n.º 489/23.0BELSB, “in” www.dgsi.pt, em cujo sumário consta o seguinte entendimento:
I Do art. 109º n.º 1, do CPTA, resulta que a utilização da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias depende dos seguintes pressupostos:
1) - a necessidade de emissão urgente de uma decisão de mérito seja indispensável para protecção de um direito, liberdade ou garantia [indispensabilidade de uma decisão de mérito];
2) - não seja possível ou suficiente o decretamento de uma providência cautelar no âmbito de uma acção administrativa normal [impossibilidade ou insuficiência do decretamento de uma providência cautelar no âmbito de uma acção administrativa, isto é, o requisito da subsidiariedade (…)
Tudo visto, acordamos em negar provimento ao presente recurso jurisdicional, sendo de confirmar a sentença recorrida.
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Sem custas, atenta a isenção prevista no artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do RCP.
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Em conclusão, é elaborado sumário, nos termos e para os efeitos do estipulado no artigo 663.º, n.º 7, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, nos seguintes moldes:
I - O recurso ao processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, ainda que intentado por cidadão estrangeiro que tenha despoletado o procedimento administrativo com vista à emissão de autorização de residência em território nacional, depende da verificação, ante os factos concretos, do pressuposto da indispensabilidade desse meio processual, isto é, da sua necessidade para a emissão urgente de uma decisão de mérito imprescindível à protecção de um direito, liberdade e garantia, tendo em conta o estatuído pelo n.º 1 do artigo 109.º do CPTA.
II - Tendo presente o pressuposto da indispensabilidade, impõe-se que do caso concreto igualmente transpareça uma evidente situação de urgência que não possa ou não seja suficientemente acautelada, em tempo útil, pelo normal decretamento de uma providência cautelar, em processo que é igualmente de natureza urgente, eventualmente complementada pelo reforço de garantias que dimana da possibilidade do decretamento provisório da medida cautelar, no que se caracteriza pelo requisito da subsidiariedade, cuja exigência resulta da conjugação entre os artigos 109.º, n.º 1, e 110.º-A, n.º 1, do CPTA.
III - Faltando a demonstração dos pressupostos supra descritos, resulta a ausência de idoneidade do meio processual, razão pela qual não é de admitir o articulado inicial, devendo o juiz, em consequência, rejeitar liminarmente a petição inicial, atento o disposto no artigo 110.º, n.º 1, do CPTA.
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V - Decisão.
Ante o exposto, acordam, em conferência, os Juízes-Desembargadores que compõem a Subsecção Administrativa Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso jurisdicional, e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.
Sem custas.
Registe e notifique.
Lisboa, 24 de Abril de 2024.
Marcelo Mendonça – (Relator)
Ricardo Ferreira Leite – (1.º Adjunto)
Pedro Figueiredo – (2.º Adjunto, em substituição)

DECLARAÇÃO DE VOTO:

Ainda que a invocação do requerente / recorrente se afigure carecida de melhor concretização, entendo que as regras da experiência permitem configurar que a falta da autorização de residência coloca em risco direitos do mesmo, na medida em que se encontram restringidos enquanto não ocorrer pronúncia quanto à sua pretensão.

Nesta medida, vem exposta a existência de uma situação jurídica individualizada que caracteriza um direito, liberdade e garantia e a sua ameaça, conforme exigido pelo artigo 109.º, n.º 1, do CPTA (seguindo o entendimento assumido, em casos semelhantes, nos acórdãos do STA de 11/09/2019, proc. n.º 1899/18.0BELSB, e deste TCA Sul de 29/11/2022, proc. n.º 661/22.0BELSB).

Já o mesmo não se verifica quanto à impossibilidade ou insuficiência do decretamento de uma providência cautelar, exigidos pela parte final do mesmo normativo, uma vez que este decretamento acautelará devidamente os direitos do recorrente até à decisão da causa principal, na medida em que, caso lhe seja perfuntoriamente reconhecida a bondade da pretensão que apresentou, estará a partir de então temporariamente munido da autorização que almeja.

Atento o exposto, seria de manter o juízo de rejeição liminar, ainda que com diferente fundamentação da decisão recorrida, assim se negando provimento ao recurso.


(Pedro Nuno Figueiredo)