Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1274/23.4T8VCD-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
AVALIAÇÃO DE BENS
SEGUNDA PERÍCIA
Nº do Documento: RP202404041274/23.4T8VCD-A.P1
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMAÇÃO
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O artigo 1114.º do Código de Processo Civil não veda a realização de segunda perícia nos processos de inventário.
II - O prazo de 10 dias para requerer segunda perícia conta-se da notificação do relatório em que o perito responde por escrito ao pedido de esclarecimentos admitido pelo tribunal.
III - Desde que não concorde com os resultados da primeira perícia a parte pode requerer segunda perícia; para o efeito necessita de fazer a alegação fundada das razões da discordância, não a alegação de ter razões fundadas para discordar; assim, no requerimento (só) tem de dizer com que aspectos do resultado da primeira perícia não concorda, porque não concorda e qual o motivo que torna verosímil que o resultado deva ou possa ser diferente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2024:1274.23.4T8VCD.A.P1

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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. Relatório:
AA, com o cartão de cidadão n.º ...07, contribuinte fiscal n.º ...02, residente na ..., França, requereu inventário para partilha de bens comuns na sequência de divórcio contra BB, com o cartão de cidadão ...63, residente em Vila do Conde.
O requerente foi nomeado cabeça de casal e nessa qualidade apresentou relação de bens.
A interessada deduziu reclamação da relação de bens, impugnando além do mais o valor do imóvel comum relacionado como verba n.º 22, requerendo a realização de prova pericial para avaliação do mesmo bem.
O requerido manifestou concordância com a realização da prova pericial.
Foi ordenada a produção desse meio de prova.
O perito designado apresentou relatório pericial.
Notificada do relatório por expediente elaborado em 05-02-2024 a interessada formulou pedido de esclarecimentos, mediante requerimento de 14-02-2024.
Foi ordenada e cumprida a notificação do perito para prestar os esclarecimentos pedidos no prazo de 10 dias.
O perito respondeu à notificação.
Notificada dessa resposta por expediente elaborado em 26-02-2024, a interessada apresentou, em 04-03-2024, novo requerimento no qual:
«[...] vem, nos termos estatuídos no art. 487.º e seguintes do CPC, requerer segunda perícia relativamente à verba 22, porquanto:
(...) pese embora o Exmo. Sr. Perito tenha prestado os esclarecimentos [...] a interessada não se mostra devidamente elucidada, nem, em virtude dos mesmos serem inexactos, os pode acompanhar.
Primeiramente, desde que exista o consentimento da pessoa que tem a fruição do imóvel, o direito à privacidade alegado pelo Sr. Perito não sai beliscado. Com efeito, porque não existe a obrigação dos mandatários (bem como do Tribunal) em conhecer o interior do imóvel em questão, mostrava-se efectivamente importante – por forma a que se percebesse concretamente do estado do interior da residência – que o relatório pericial contivesse registos fotográficos para o respectivo efeito.
A resposta ao quesito “o que entende por acabamentos médios”, por se tratar de uma reprodução ipsis verbis do que já tinha sido anteriormente adiantado pelo Sr. Perito, em nada veio esclarecer.
Em terceiro lugar, os esclarecimentos do Sr. Perito são manifestamente omissos relativamente ao quesito 5.º. Ou seja, o Sr. Perito não responde, de forma cabal, se para aferir o valor do imóvel foi tida em consideração a proximidade deste em relação ao mar. Diz, apenas, que foi tida em conta a sua localização, mas não responde, tal como pedido, se foi considerada a dita proximidade a um factor que, inequivocamente, valoriza o imóvel.
Nestes termos e, tendo em consideração os apontados fundamentos, requer-se, à luz da apontada norma, que seja realizada segunda perícia sobre o mesmo objecto e com vista à averiguação dos mesmos factos da primeira.»
O cabeça-de-casal opôs-se ao requerimento para realização de segunda perícia, defendendo que o mesmo deve ser indeferido por intempestivo e meramente dilatório, com o argumento de que o requerimento foi apresentado fora do prazo legal previsto no artigo 487.º do Código de Processo Civil e a segunda perícia é inócua porque a interessada sabe que o cabeça-de-casal está disposto a aumentar o valor do imóvel em função do seu valor de mercado.
A Mma. Juíza a quo proferiu de seguida o seguinte despacho:
«Quanto ao pedido da realização da segunda avaliação, indefere-se a mesma, atenta a sua extemporaneidade, na medida em que ultrapassou o prazo de dez dias após o conhecimento do primeiro relatório- art.º 487º, n.º 1 do Código Processo Civil.
Para além do mais, sempre se dirá que I.A realização da segunda perícia tem como objecto os mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexactidão dos resultados desta. II. O pedido de realização de segunda perícia carece de ser fundamentado com as razões da discordância do requerente relativamente ao relatório pericial apresentado. III. Não é de admitir a realização de segunda perícia se, em face dos fundamentos apresentados, os mesmos evidenciam sobretudo uma discordância em relação aos resultados da primeira perícia, e não sérias dúvidas sobre a inexactidão dos resultados alcançados de modo a suscitar no julgador a necessidade da sua realização para o apuramento da verdade (Ac. TRE de 28/09/2023, Rel. Maria Adelaide Domingos).
No caso em apreço, a interessada não concorda com o valor atribuído ao imóvel.
Contudo, os fundamentos que a interessada invoca para justificar o pedido de segunda perícia encontra-se já explicitado na primeira perícia e nos esclarecimentos, pelo que a realização de nova perícia revela-se não essencial e desnecessária, não subsistindo o fundamento invocada pela interessada.
Face ao exposto, indefere-se a realização da segunda perícia
Do assim decidido, a interessada interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I - O presente recurso versa sobre matéria de direito vertida no despacho com a ref. 457441385, por via do qual o Tribunal recorrido não admitiu a segunda perícia requerida pela ora Apelante.
II - Qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado e o tribunal pode ordená-la oficiosamente e a todo o tempo desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade” (artigo 487.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, doravante CPC).
III - Relativamente ao prazo para requerer a segunda perícia, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre explicam que: “[a] iniciativa das partes há de ter lugar no prazo de 10 dias após a notificação do relatório (art. 485.º n.º 1) ou dos esclarecimentos8 e aditamentos requeridos em reclamação apresentada (arts. 485.º n.º 4 e 220.º n.º 2)”.
IV - A segunda perícia, com pelo menos o mesmo número de peritos da primeira (artigo 488.º-b) do CPC), tem por objecto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexactidão dos resultados desta (artigo 487.º- 3) e não invalida a primeira, sendo ambas livremente apreciadas pelo tribunal (artigo 489.º do CPC).
V - Antes das alterações introduzidas pelo D.L. 329-A/95, de 12/12 ao CPC de 1961 não era assim; a qualquer das partes era lícito requerer segundo exame vistoria ou avaliação (artigo 609.º, n.º 1, do CPC1961), sem a indicação de razões de discordância com a primeira perícia.
VI - Foi o D.L. n.º 329-A/95, de 12/12 que, visando uma remodelação, “em bases essencialmente inovadoras, [d]o processo de produção da prova pericial” veio anunciar que uma segunda perícia “se for requerida pelas partes, só terá lugar sob indicação de motivos concretos de discordância em relação aos resultados da primeira.”
VII - Propósito legislativo que importa não perder de vista na interpretação da expressão “alegando fundadamente as razões de discordância relativamente ao relatório pericial apresentado”, enquanto condição imposta à parte em vista da realização da segunda perícia, por forma a evitar um rigor de exegese formal que estorve o exercício de um direito fundamental, como é o direito à prova. O direito à prova entronca, se bem vemos, no princípio constitucional de acesso aos tribunais ou a tutela jurisdicional, condensado no artigo 20.º, n.º 1, da Lei Fundamental, por implicar este, como implica, a garantia de uma protecção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva, a qual não se vislumbra possível sem a concessão às partes de uma ampla liberdade de disposição dos meios de prova, respeitados que sejam os tempos e os modos exigidos para a sua produção ou formação.
VIII - A segunda perícia, com excepções para o caso irrelevantes, rege-se pelas disposições aplicáveis à primeira (artigo 488.º do CPC) e a primeira perícia só pode ser indeferida nos casos em que o juiz verifica que ela é impertinente ou dilatória (artigo 476.º, n.º 1, do CPC), ou seja, nos casos em que a perícia não respeita aos factos da causa ou respeitando embora aos factos da causa, o seu apuramento não requer o meio de prova pericial, por não exigir os conhecimentos especiais que esta pressupõe (artigo 388.º do Código Civil).
IX - A estas causas de indeferimento da primeira perícia acresce uma outra específica da segunda perícia, que respeita à falta de alegação fundada das razões de discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.
X - Alegação fundada das razões de discordância que lida à luz da exposição de motivos do diploma reformador, antes referida, corresponde à indicação de motivos concretos de discordância em relação aos resultados da primeira perícia, prescindindo de um juízo (de mérito) sobre a procedência de tais razões.
XI - Emitir tal juízo significará tomar posição sobre a primeira perícia entrando assim na análise crítica da prova, tarefa a ter lugar na sentença (artigo 607.º, n.º 4, do CPC), depois de às partes haver sido concedido a faculdade de extraírem as suas conclusões sobre as provas produzidas (artigo 604.º, n.º 3, alínea e), do CPC).
XII - Razões fundadas de discordância não corresponde, para efeitos da norma, a razões procedentes, mas tão só à indicação dos motivos concretos da discordância; trata-se de emitir um juízo sobre a admissibilidade do meio de prova (2ª perícia) e não de emitir um juízo de valor sobre a prova (1ª perícia).
XIII - Descendo ao caso em concreto, denota-se que a Apelante logrou identificar, de forma clara, as imprecisões cujos esclarecimentos que antecederam apresentavam. Com efeito, a Apelante expressamente aduziu: [nota do relator: segue reprodução do texto do requerimento].
XIV - Sempre com todo e o merecido respeito, temos para nós que apresentando a parte requerimento com a identificação clara das inexactidões a corrigir o juiz deve deferir a realização da segunda perícia, não lhe sendo lícito tomar posição sobre o bem, ou mal, fundado das razões de discordância que fundamentam o requerimento. Só o carácter impertinente ou dilatório ou a total ausência de fundamentação constitui causa de indeferimento do requerimento para realização de segunda perícia (Cf. vide doutrina mencionada no corpo das alegações).
XV - No caso, e como se disse, o requerimento da segunda perícia indica os pontos de discordância com o relatório pericial e, por conseguinte, o requerimento encontra-se (minimamente) fundamentado.
XVI - As razões de indeferimento, se, por um lado, começam desde logo por estar erradas na medida em que o requerimento da segunda perícia foi tempestivamente apresentado; por outro lado, o Tribunal a quo ao exarar que “os fundamentos que a interessada invoca para justificar o pedido de segunda perícia encontra-se já explicitado na primeira perícia e nos esclarecimentos, pelo que a realização de nova perícia revela-se não essencial e desnecessária, não subsistindo o fundamento invocada pela interessada” está a encetar uma apreciação de mérito que, com todo o respeito, não poderia.
XVII - Destarte, ao não interpretar a norma do art.º 487.º do CPC e ao não cotejar com as demais, nos termos mencionados supra, o Tribunal recorrido incorreu em lapso e, por isso, o despacho ora sob censura deve, modestamente, ser revogado por outro que esteja em harmonia com o direito.
Nestes termos e nos melhores de direito que v. exas. mui sabiamente suprirão, deverá ser declarada procedente a presente apelação, revogando-se o despacho recorrido e substituindo-o por outro que determine a realização da requerida segunda perícia.
O cabeça de casal não respondeu a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.


II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se o requerimento para realização da segunda perícia foi formulado dentro do respectivo prazo legal e, na afirmativa, se a requerente alegou fundadamente as razões da sua discordância para justificar a realização deste meio de prova. Antes e de forma oficiosa cabe decidir se o requerimento tem cabimento no processo de inventário.


III. Fundamentação de facto:
Os factos que importam para a decisão são relativos ao curso do processo e estão reproduzidos no relatório.


IV. Matéria de Direito:

A] Da admissibilidade da segunda perícia no processo de inventário:
Em alguns arestos publicados dos Tribunais da Relação tem-se colocado a questão de saber se no processo de inventário a realização de segundas perícias está arredada.
Esta questão não foi colocada nos autos, mas como, a existir, se trata de um obstáculo de natureza processual à diligência requerida que pode ser conhecido oficiosamente (v.g. princípio da legalidade dos actos processuais), sobre ela diremos o seguinte.
Tanto quanto vemos não existe nas normas do Código de Processo Civil que regulam o processo de inventário disposição que vede aquele meio de prova.
O artigo 1114.º daquele diploma apenas regula no n.º 3 a composição da peritagem (se ela é singular ou colegial e em que condições é colegial), e no n.º 4 o prazo regra em que a avaliação deve ser realizada (30 dias, salvo se o juiz considerar adequada a fixação de prazo diverso). Nenhuma destas disposições se refere à segunda perícia ou impede a sua realização.
Embora das normas citadas transpareça uma intenção de maior simplicidade e celeridade relativamente ao processo comum, trata-se de uma intenção que deve orientar o juiz na condução do processo, mas que é sempre conferida no interesse das partes. Daí que, se uma destas entende mais adequado à salvaguarda dos respectivos interesses requerer segunda perícia e, nos termos comuns, apresenta razões válidas para a requerer, não se veja razão para interpretar aquelas normas extensivamente dando-lhes uma previsão que não têm e retirando delas uma previsão que vai contra o interesse da parte (cf., p. ex. o Acórdão da Relação de Guimarães de 11-01-2024, proc. n.º 3281/21.2T8VCT-A.G1, in www.dgsi.pt, com cuja posição concordamos).

B] Da tempestividade do requerimento:
A decisão recorrida apresenta como primeiro fundamento para a rejeição da segunda perícia a extemporaneidade do respectivo requerimento, alegadamente por violação do disposto no artigo 487.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
A interessada requereu a segunda perícia nos 10 dias subsequentes não à notificação do relatório pericial, mas sim à notificação da resposta do perito ao pedido de esclarecimentos que lhe formulou e que foi admitido pelo tribunal. O tribunal parece ter entendido que o prazo de 10 dias se contava da primeira notificação referida.
Ceremos que não lhe assiste razão.
O artigo 487.º do Código de Processo Civil, na parte relativa ao prazo para requerer a realização de segunda perícia, estabelece que qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira.
Como se vê a interpretação de que a norma se reporta à notificação do relatório pericial nem do ponto de vista literal é forçosa, porque não é exactamente isso que a norma refere; o que ela diz é que o prazo se conta do conhecimento do resultado da primeira.
Sendo indubitável que o «conhecimento» se adquire através da notificação, é, no entanto, possível discutir se o «resultado da primeira» perícia é aquele que o relatório pericial logo exprime, ou, sendo formulado e admitido pedido de esclarecimentos, apenas aquele que expressa a «versão final» ou a «versão esclarecida» do relatório.
O fundamento das reclamações não coincide com o fundamento da segunda perícia. Nos termos do artigo 485.º do Código de Processo Civil as partes podem reclamar do relatório pericial com fundamento na existência de qualquer «deficiência, obscuridade ou contradição no relatório» ou na falta da «fundamentação devida». Atendida a reclamação, cabe ao perito «completar, esclarecer ou fundamentar» o relatório. Diferentemente, nos termos do artigo 487.º, para requerer a segunda perícia a parte só necessita de justificar que «discorda» do relatório pericial apresentado, alegando fundadamente as razões da sua discordância, cabendo aos novos peritos que vierem a ser designados apresentar o seu (novo) relatório.
Nessa medida, podia entender-se que a parte não necessita de aguardar pelos esclarecimentos do perito para pedir a realização da segunda perícia porque, independentemente dos esclarecimentos, conhecendo o relatório dispõe de elementos para decidir se discorda ou não do mesmo. Mas não é exactamente assim.
Pode suceder que a superação das contradições, obscuridades ou deficiências do relatório aporte razões de convencimento do acerto da avaliação pericial e, como a parte tem de alegar «fundadamente as razões da sua discordância» para requerer segunda perícia, faz sentido que conheça os esclarecimentos para saber se e como pode fazer essa alegação fundada das razões da sua discordância.
Entendemos assim que o prazo de 10 dias para requerer a segunda perícia se conta da notificação do relatório em que o perito responde por escrito ao pedido de esclarecimentos admitido pelo tribunal.
Refira-se que esta solução foi igualmente seguida no Acórdão desta Relação e Secção de 07-12-2023, proc. 1066/20.2T8PVZ-A.P1, e bem assim nos Acórdãos da Relação de Lisboa de 14-09-2023, proc. n.º 16129/18.6T8LSB-A.L1-2, de 26-09-2019, proc. 2091/16.3T8TVD.L1-8, e de 02-11-2017, proc. n.º 34964/15.5T8LSB-A.L1-2, in www.dgsi.pt.
Na doutrina defendem a mesma interpretação Paulo Pimenta, in Processo Civil Declarativo, Almedina, 2016, nota 857, e Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2, 4ª Edição, Almedina, 2019, pág. 342. No mesmo sentido pode ainda citar-se Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, Coimbra Editora, 1987, página 302, o qual, comentando a redacção do então artigo 613.º do Código de Processo Civil que fixava o prazo para se requerer «segundo exame» em «oito dias depois de efectuado o primeiro» (note-se que presentemente a norma não fala em efectuado, mas em conhecido, o que acentua que o que releva não é o relatório, mas o conhecimento do resultado do relatório), afirmava que o «ponto de partida para a contagem do prazo é o encerramento do auto das respostas dadas pelos peritos no exame ou na vistoria (art. 599.º). É então que fica concluído, e portanto efectuado, o primeiro arbitramento. Se houve reclamações contra as primeiras respostas, nos termos do artigo 600º, e os peritos não puderam dar logo, no mesmo dia, os esclarecimentos pedidos, o prazo há-de começar a correr desde o novo auto de respostas que terá de ser lavrado».
Em suma, o requerimento é tempestivo, não podendo ser rejeitado com fundamento no respectivo prazo.

C] Dos fundamentos do pedido de realização da segunda perícia:
A decisão recorrida rejeitou depois o requerimento da interessada com o fundamento de que este não satisfaz a exigência do artigo 487.º do Código de Processo Civil na medida em que as objecções invocadas estão «explicitadas na primeira perícia e nos esclarecimentos, pelo que a realização de nova perícia [é] não essencial e desnecessária».
Nos termos da norma em questão para requerer a segunda perícia a parte necessita de justificar que «discorda» do relatório pericial apresentado, «alegando fundadamente as razões da sua discordância»
O fundamento legal que permite à parte requerer segunda perícia é pois única e exclusivamente a discordância em relação aos resultados da primeira. Só por discordar dos resultados da primeira perícia a parte goza do direito de requerer este meio de prova. Já a alegação fundada das razões dessa discordância não é fundamento do requerimento, é conteúdo necessário do requerimento para que o mesmo possa ser deferido.
Dizendo-o por outras palavras, confrontada com o relatório da primeira perícia a parte pode não concordar com os seus resultados, com o modo como o perito respondeu aos quesitos formulados e com as conclusões que alcançou e levou ao relatório. Não concordando e só por isso nasce para a parte o direito de requerer segunda perícia.
Para o efeito necessita de apresentar um requerimento. Mas neste não é suficiente dizer que não concorda com o relatório apresentado. Para que o seu requerimento possa ser deferido a parte tem ainda de satisfazer uma condição alegatória: expor fundadamente as razões da sua discordância, isto é, não apenas apresentar os motivos pelos quais discorda, mas fazê-lo de forma fundada.
De acordo com o seu texto, e faz sentido, o que a lei exige é a alegação fundada das razões da discordância, não é a alegação de ter razões fundadas para discordar. A parte não tem que (expor razões para) convencer o tribunal que existem boas (fundadas) razões para pensar que o relatório apresentado possui (muito provavelmente) resultados errados. O que a parte tem de fazer é expor de forma fundada as razões da sua discordância, isto é, dizer com que aspecto não concorda, porque não concorda, que motivo torna verosímil que o resultado deva ou possa ser diferente do indicado no relatório apresentado.
Não cabe ao tribunal no momento de apreciar o requerimento tecer considerações ou formular juízos sobre a probabilidade de obtenção de um relatório com conclusões diferentes (cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, I, 2018, pág. 547).
Da mesma forma o tribunal não pode rejeitar o requerimento com o fundamento de que os aspectos que motivam as objecções da parte foram abordados pelos peritos no relatório apresentado, porque a lei não exige que as razões da discordância da parte se refiram a aspectos não abordados pelos peritos ou que excedam o teor do respectivo relatório. Essas discordâncias podem perfeitamente ter por objecto aspectos respondidos explicitamente pelos peritos da primeira perícia.
Em alguns arestos encontra-se, por vezes, sustentado que a segunda perícia não é uma nova perícia, v.g. para rejeitar o recurso de apelação autónoma dizendo que ele não cabe na previsão da alínea d) do n.º 2 do artigo 644.º do Código de Processo Civil, ou para dizer que o seu objectivo é «unicamente a correcção de eventual inexactidão dos resultados da primeira» e, a partir daí, fazer o confronto entre o relatório e a alegação da requerente da segunda perícia para decidir sobre a sua realização.
Não podemos estar mais em desacordo com aquilo que, com todo o devido respeito, nos parece um jogo de palavras. A segunda perícia é prova pericial e é uma perícia nova e distinta da primeira. Aliás, só entendendo desse modo é possível compreender o disposto no artigo 489.º segundo o qual «a segunda perícia não invalida a primeira, sendo uma e outra livremente apreciadas pelo tribunal».
A segunda perícia não é uma forma de impugnação da primeira, não é uma forma de invalidação dos respectivos resultados, não é a forma de sobreposição a uma perícia de outra mais valiosa. A segunda perícia é a concretização do direito da parte à prova, a concretização da natureza equitativa do processo no qual se irão aplicar regras de ónus da prova e, por conseguir, decidir contra a parte onerada caso ela não consiga produzir prova suficiente dos factos que alegou e que lhe incumbia provar.
Ao decidirem sobre o requerimento da segunda perícia (ou ordenarem oficiosamente a sua realização), os tribunais devem, antes de mais, em ordem à realização material do processo equitativo, ter presente o modo como a prova pericial é produzida e o relevo probatório que normal e naturalmente é atribuído a este meio de prova.
Repara-se, por exemplo, no caso concreto. No despacho de nomeação o juiz nomeou perito «o que a secção venha indicar. Depois a secção lavrou uma cota mencionando que indicava «como perito avaliador CC». Na sequência dessa indicação, a secção notificou o perito da sua normação e para «proceder à avaliação do imóvel (verba 22)», enviando-lhe cópia da relação de bens e da reclamação. Por fim, o perito apresentou relatório, acompanhado de uma declaração escrita com o «compromisso de cumprimento consciencioso da função».
Deste conjunto de circunstâncias resulta que o juiz não apenas se demitiu de ser ele a nomear o perito, como se absteve de fornecer qualquer critério para a sua escolha, designadamente relacionado com a área do seu conhecimento técnico-científico, com as respectivas habilitações e/ou a sua experiência. Também a secção não justificou minimamente a escolha da pessoa eleita, escolha que assim foi feita de modo perfeitamente arbitrário. Não foi designado dia para o início da diligência (artigo 478.º, n.º 1), o que, a acontecer, teria permitido ao juiz elucidar o perito da importância da peritagem para o processo e apurar minimamente o acerto da escolha feita. O juiz não assistiu à diligência nem à inspecção (artigos 479.º, n.º 2, e 480.º, n.º 2), o que lhe permitiria verificar in loco os elementos de que o perito se serviu.
Salvo melhor opinião, atento o relevo que a prova pericial tem nos processos e a dificuldade da parte de contrariar os resultados desse meio de prova com meios de prova de diferente natureza (v.g. documental ou testemunhal), este circunstancialismo é particularmente nocivo para o processo e a realização da justiça e está na origem de muitas decisões menos felizes e menos conformes com a verdade dos factos.
Não havendo no nosso sistema legal, com excepção do âmbito das perícias médico-legais, um modelo institucional para validar de forma sistemática as competências técnico-científicas das pessoas que são chamadas a exercer as funções de perito, não obstante elas sejam chamadas a apurar ou apreciar factos que exigem «conhecimento especiais» que os juiz não possui e para cujo julgamento a sua dependência da palavra dos peritos é enorme, mas também não correspondendo o nosso sistema ao modelo dos peritos das partes (em que os peritos são ouvidos na qualidade de testemunhas arroladas pelas partes e que estas convidaram a analisar os factos sob julgamento que exigem conhecimentos especiais), a natureza equitativa do processo tem de compreender um amplo direito à prova e a faculdade de a parte só porque discorda do relatório pericial apresentado poder pedir a realização da segunda perícia para ao menos conseguir colocar ao lado daquele um relatório de outros peritos.
Não se objecte que o direito à prova não é absoluto. Não o é, por certo, mas os seus limites são os que decorrem da lei e do sistema jurídico. Por conseguinte, se a lei só exige que o pedido da segunda perícia seja formulado num requerimento em que a parte indique a sua discordância e os motivos reais, objectivados e concretos, pelos quais discorda, é precisamente o direito à prova e o dever de não o cercear desproporcionadamente que impede o indeferimento do requerimento a não ser que esse meio de prova seja manifestamente dilatório ou impertinente (o que, aliás, é difícil de configurar porque se a primeira perícia não o foi, dificilmente o será a segunda, a não ser que os factos sob julgamento tenham entretanto sido demonstrados por um meio de prova plena – v.g. confissão – ou deixado de ser relevantes para o julgamento da acção).
Centremos agora a atenção no caso.
No requerimento a interessada começa por dizer que não pode «acompanhar» os esclarecimentos por «os mesmos serem inexactos». Trata-se de uma manifestação de não concordância, ainda por cima genérica, sem conteúdo, não específica, com os esclarecimentos, não com o resultado da peritagem, pelo que a afirmação é inidónea para justificar o deferimento do requerimento.
Depois a requerente refere-se à circunstância de o perito não ter tirado fotografias, defendendo a improcedência da invocação do direito à privacidade. Esta menção é novamente inidónea.
O perito não é fotógrafo, não está lá para tirar fotografias e apresentar um relatório graficamente mais bonito, está lá para avaliar e para isso o que importa é que veja, analise, justifique, não que tire fotografias. Portanto, a discordância é com aspectos acessórios e irrelevantes da configuração do relatório, não com o resultado da peritagem e isso não basta para o fim a que a requerente se propõe.
A seguir a requerente diz que o perito não esclarece «o que entende por acabamentos médios». Não é verdade: o perito esclareceu que são os acabamentos próprios de uma construção a custos controlados, cujo regime impõe precisamente a utilização de materiais de qualidades, propriedades e valores médios para que o respectivo custo fique abaixo dos valores normais do mercado.
De todo o modo, o que a requerente tinha de alegar para justificar a realização da segunda perícia é que ao contrário do que o perito afirmou os acabamentos não são acabamentos médios, ou seja, que discorda dessa afirmação, que ela não é exacta e que outro perito verá que os acabamentos são superiores à média, não são os que é comum serem usados em construções a custo controlado e que o imóvel deve ser avaliado em função disso. Não é isso que a requerente sustenta e o que sustenta é, por isso, inidóneo.
Finalmente, a requerente alega que os esclarecimentos do perito «são manifestamente omissos» porque o perito «não responde, de forma cabal, se para aferir o valor do imóvel foi tida em consideração a proximidade deste em relação ao mar», sendo que esta é «um factor que, inequivocamente, valoriza o imóvel».
Esta alegação é deveras incompreensível ou então a requerente não soube exprimir a sua ideia. Se o perito diz que levou em conta a localização do imóvel evidentemente que levou em conta o seu contexto espacial, designadamente a sua distância em relação ao mar ou ... serra, aos serviços públicos, às fontes de poluição, etc., isto é, em simultâneo os factores que funcionam no sentido da valorização e os factores que funcionam no sentido da desvalorização do imóvel.
Como quer que seja, repete-se, o que a requerente tinha de alegar para justificar a realização da segunda perícia era que a localização do imóvel, rectius, o conjunto dos factos atinentes à localização do bem que interferem com a formação do seu valor de mercado, justifica que se lhe atribua um valor superior ao indicado pelo perito e porquê.
Seria isso que constituiria uma alegação fundada das razões da sua discordância relativamente ao relatório, leia-se, relativamente aos pressupostos e ao resultado da avaliação do perito. Mas não foi isso que a requerente alegou e o que alegou é, nessa medida, inidóneo.
Em suma, pese embora o que se expôs sobre a necessidade de preservar o direito à prova da parte, em rigor o requerimento da interessada não preenche os requisitos previstos no artigo 487.º do Código de Processo Civil e de que depende a realização da segunda perícia.
Por esse motivo a rejeição deste meio de prova deve ser confirmada.


V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam a decisão de rejeição da pretendida realização de segunda perícia.
Custas do recurso pela recorrente, que as não paga por disso estar dispensada, sendo que por não ter sido apresentada resposta às alegações não há lugar ao pagamento ao recorrido de custas de parte.

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Porto, 4 de Abril de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 813)
1.º Adjunto: Carlos Portela
2.º Adjunto: Isabel Peixoto Pereira








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