Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
15581/21.7T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE FACTO IRRELEVANTE
ABUSO DO DIREITO
INALEGABILIDADE DE NULIDADES FORMAIS
Nº do Documento: RP2024040815581/21.7T8PRT.P1
Data do Acordão: 04/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A reapreciação da prova, na sequência da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, e ainda que essa impugnação cumpra o ónus previsto no artigo 640 do CPC, só deve ter lugar se não se traduzir na prática de um ato inútil, na medida em que sempre seria irrelevante à apreciação do objeto do recurso, segundo qualquer das soluções plausíveis.
II - O abuso do direito, concretamente na modalidade do venire contra factum proprium pode implicar a inalegabilidade de nulidades formais.
III - Porém, tal só poderá suceder em casos nítidos em que o alegante contribuiu para o vício de forma e criou, censuravelmente, uma clara situação de confiança na contraparte, que esta, numa avaliação objetiva, aceitou sem negligência da sua parte.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 15581/21.7T8PRT.P1

Recorrente – AA
Recorrida – A..., Limitada

Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Carlos Gil e Anabela Mendes Morais.

Acordam na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto:[1]

I – Relatório
A..., Limitada, instaurou a presente ação e, demandando AA e mulher BB, pediu a condenação dos réus no pagamento da quantia de 36.300,00€, a título de comissão/remuneração, correspondente a 30.000,00€ acrescido de IVA ou, em alternativa, na quantia de 30.000,00€, a título de indemnização por incumprimento contratual (pelo interesse contratual positivo) nos termos gerais de direito.

Fundamentando a sua pretensão, alega ter celebrado com o réu, com o consentimento da ré, um contrato de mediação imobiliária nos termos do qual foi incumbida de promover a venda, em regime e exclusividade, do imóvel que descreve. Realizou várias ações de promoção, visitas de potenciais compradores, tendo encontrado um interessado cuja proposta os réus não aceitaram; quando em fevereiro de 2021, entrou em contato com o réu para lhe comunicar a existência de um potencial comprador este informou-a que já havia vendido o imóvel, tendo a autora apurado que o tinha feito através de outra sociedade de mediação imobiliária.

Regularmente citados, os réus contestaram, arguindo a ilegitimidade passiva da ré, a incapacidade do réu para celebrar o contrato, cuja anulabilidade invocam e narrado distinta factualidade para a celebração do contrato e ainda a sua  nulidade, por não conter quaisquer dados de identificação, caraterísticas do imóvel, encargos que recaiam sobre o mesmo, bem como a falta de comunicação/informação das suas cláusulas que são pré-elaboradas pela autora. Pugnam, em suma, pela total improcedência da pretensão da autora.

A autora, convidada a responder à matéria de exceção, defendeu a procedência do pedido.   

Foi proferido despacho a dispensar a realização da audiência prévia. Foi julgada improcedente a exceção da ilegitimidade passiva da ré. Foi fixado o valor da causa, o objeto do litígio e os temas da prova [1. Atuação do réu. 2. Não entrega pelo réu à autora da quantia devida no âmbito do acordo celebrado. 3. Conhecimento da ré do acordo celebrado e aplicação da quantia obtida com a venda do imóvel nas despesas e vida em comum do casal. 4. Doença do réu e incapacidade para entender e perceber o acordo que estava a celebrar. 5. Ausência de comunicação e explicação pela autora das cláusulas que compunham o acordo em questão].

Realizada a audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Nestes termos, julgo a presente ação parcialmente procedente e, em consequência: a) condeno o réu a pagar à autora a quantia de 30.000,00 euros (trinta mil euros), acrescida do IVA à taxa legal em vigor. b) Absolvo a ré do pedido contra si formulado”.

II – Do Recurso
Inconformado, o réu veio apelar. Pretendendo a revogação da sentença, formula as seguintes Conclusões:
1 - A sentença está fatalmente inquinada, por se considerarem incorretamente selecionados e julgados vários factos que integravam os temas da prova.
2 - Dão-se por integralmente reproduzidos os factos provados e os factos não provados.
3 - Os documentos juntos aos autos e os depoimentos prestados em audiência de julgamento (objeto de gravação) impunham decisão diversa daquela que foi proferida sobre os factos constantes dos artigos 8.º, 40.º, 53.º e 59.º da contestação e do ponto 28. dos factos provados.
4 - A informação do registo predial (Doc. n.º 1) e a certidão de nascimento (Doc. n.º 3) juntas com a contestação impunham que a matéria constante do artigo 8.º dessa peça processual fosse considerada assente.
5 - Analisando a apresentação ... de 26.02.2001 (aquisição) e o averbamento oficioso de 15.04.2014 (retificação), constata-se que metade do imóvel foi adquirido, em comum, por CC, casada com DD no regime da comunhão geral, e AA, casado com EE no regime da separação de bens.
6 - No momento da aquisição, o recorrente era casado com EE e não com a ré BB.
7 - A referida EE foi a primeira mulher do recorrente (como se retira do assento de nascimento junto como Doc. n.º 3 à Contestação), pelo que estamos perante um bem próprio deste.
8 - Deveria ter sido considerado provado que: “O R. marido adquiriu a metade do imóvel de que era dono por doação de sua Mãe (1/4) e por compra anterior ao casamento com a aqui ré (1/4)”.
9 - Os depoimentos da testemunha FF (gravação do dia 17.05.23, com início às 14:58 e termo às 15:10) e da testemunha GG (gravação do dia 17.05.23, com início às 15:11 e termo às 15:26) impunham que a factualidade constante do artigo 40.º da contestação fosse considerada assente.
10 - Estas duas testemunhas foram as únicas que depuseram sobre este assunto e foram coincidentes e perentórias em afirmar que a imobiliária “B...” foi contratada por todos os comproprietários do imóvel para promover a sua venda.
11 - A este respeito, realçam-se a passagem de 02:16 a 04:23 do depoimento de FF e a passagem de 03:15 a 06:00 do depoimento de GG.
12 - No trecho da sentença dedicado à “Convicção”, relativamente a estas testemunhas, é mencionado o seguinte: “FF (...), a qual afirmou, falaram com a imobiliária que já conheciam, a GG, para vender, mas não era com exclusividade e que os três – a testemunha, a sua irmã, a outra comproprietária, e o réu, assinaram um contrato de mediação imobiliária com a B..., o qual se manteve até à venda.” e “GG, consultora imobiliária, conhece o réu e as sobrinhas desde 2017, sempre como vendedores, tendo mediado duas outras vendas para além da do prédio em questão. Afirmou que os 3 comproprietários, em finais de 2018, princípios de 2019 pedem-lhe para que tente vender o prédio, no entanto a angariação só se veio a formalizar em finais de 2019, altura em que coloca a placa; que o contrato era com exclusividade, mas só para a venda da parte do réu”.
13 - Ambos os depoimentos foram considerados isentos e sem hesitações pelo tribunal, pelo que não se entende por que razão não foram levados em linha de conta, tanto mais que não foram infirmados por qualquer outro meio de prova.
14 - O princípio da livre apreciação da prova nunca atribui ao juiz o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas, ou seja, a livre apreciação da prova não pode confundir-se com uma qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, sendo antes uma conscienciosa ponderação desses elementos e das circunstâncias que os envolvem.
15 - A livre convicção não pode confundir-se com a íntima convicção do julgador, impondo-lhe a lei que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência.
16 - Deveria ter sido considerado assente que: “Esta imobiliária havia sido contratada, em meados de 2019, por todos os comproprietários do imóvel — o réu e as duas sobrinhas, FF e HH — para promover a sua venda”.
17 - O depoimento da testemunha GG determinava que a matéria constante do artigo 53.º da Contestação fosse dada como provada.
18 - Faz-se notar a passagem de 08:00 a 09:28 desse depoimento.
19 - Esta testemunha — cujo depoimento “não teve hesitações, tendo sido escorreito” — explicou, com pormenor, o contacto que estabeleceu com a recorrida, através do qual a advertiu de que não poderia promover a venda do imóvel em causa, já que o contrato de mediação da “B...” ainda estava ativo e em execução.
20 - Fazendo uso das regras da experiência comum, não pode deixar de considerar-se credível o depoimento desta testemunha, tanto mais que as testemunhas arroladas pela recorrida se limitaram a negar terem sido elas a receber o telefonema em causa, não contestando a sua ocorrência.
21 - Deveria ter sido considerado provado que: “Após ter visto no prédio a placa da “C...”, uma colaboradora da “D..., LDA.” contactou a autora e advertiu-a de que não poderia promover a venda daquele imóvel já que o contrato de mediação da “B...” ainda estava ativo e em execução”.
22 - O depoimento da testemunha II (gravação do dia 17.05.2023, com início às 14:22 e termo às 14:58), a informação clínica de 21.09.2020 (Doc. n.º 4 junto com a contestação), a informação clínica de 28.06.2021 (Doc. n.º 5 junto com a contestação) e a certidão eletrónica da sentença de acompanhamento (Doc. junto por requerimento de 03.03.2023) impunham que a factualidade constante do artigo 59.º da contestação fosse selecionada e considerada assente.
23 - Não estamos perante matéria de direito ou matéria conclusiva ou simplesmente irrelevante para a apreciação do mérito da causa dentro das várias soluções plausíveis de direito — tanto assim que não faz parte do rol de artigos mencionados a esse respeito a páginas 15 da sentença (parte final do último parágrafo do capítulo III).
24 - A factualidade do referido artigo 59.º é da máxima pertinência, designadamente, tendo em conta a escapatória jurídica (abuso do direito) em que se firma a condenação.
25 - Embora tenha entendido que o contrato de mediação imobiliária em causa é formalmente nulo, o tribunal considerou que o recorrente agiu em abuso do direito — na modalidade de venire contra factum proprium — ao invocar tal nulidade.
26 - E fundou o seu entendimento na alegada circunstância de o réu ter criado na autora “uma situação de confiança manifestando a sua vontade de negociar, intervindo ativamente nas visitas ao prédio, deslocando-se às instalações da autora para rever os termos do contrato apenas quanto ao preço, agindo como seu dono e representante das demais comproprietárias e criando essa certeza na mente da autora e dos seus colaboradores e quando confrontado com a existência das penhoras nega a vigência”.
27 - O ponto de partida deste raciocínio pressupõe uma atuação livre, consciente e voluntária por parte do recorrente — só assim fazendo sentido que a sua conduta seja valorada e, em função desse juízo de valor, possa ser penalizada.
28 - Se os comportamentos, alegadamente, contraditórios do recorrente se ficaram a dever à sua incapacidade cognitiva para entender os atos que praticou, então sempre seria iníquo e desajustado castigá-lo por tal razão — mormente, numa situação para a qual a recorrida fortemente contribuiu, sendo a principal responsável, ao não cumprir as especiais obrigações a cargo do mediador, impostas pela Lei n.º 15/2013.
29 - A matéria do artigo 59.º da contestação não poderia deixar de ser dada como assente, já que, a este respeito, a testemunha II, médica neurologista, foi absolutamente perentória ao afirmar que o recorrente, “à data (ano de 2020) padecia de anosognosia, ou seja, não reconhecia/negava a doença” e, em maio desse ano, “não estaria já capaz de celebrar um contrato” — como é referido na sentença.
30 - Tal resulta evidente das passagens de 18:56 a 20:20, de 21:20 a 23:42 e de 27:48 a 28:30 do depoimento de II.
31 - O depoimento da Sra. Dra. II é absolutamente claro e taxativo quanto à incapacidade de o recorrente, no momento em que apôs a sua assinatura no contrato de mediação imobiliária — como, aliás, é reconhecido pelo tribunal na sua decisão.
32 - Deveria ter sido levado à matéria selecionada e considerado provado que: “Por força da sua doença, no momento em que subscreveu o contrato de mediação imobiliária que lhe foi apresentado pela A., o R. era, seguramente, incapaz de entender o sentido e alcance da declaração negocial que estava a fazer”.
33 - O depoimento da testemunha II (gravação do dia 17.05.23, com início às 14:22 e termo às 14:58), a informação clínica de 21.09.2020 (Doc. n.º 4 junto com a contestação), a informação clínica de 28.06.2021 (Doc. n.º 5 junto com a contestação) e a certidão eletrónica da sentença de acompanhamento (Doc. junto por requerimento de 3.03.2023) impunham que o ponto 28. dos Factos Provados fosse considerado não provado.
34 - Conjugando os meios de prova mencionados, não é possível afirmar que “o réu tomou conhecimento das condições do acordo (...) incluindo a respeitante à exclusividade da qual o réu tinha conhecimento, manifestando vontade em que assim fosse”.
35 - Ainda que tais condições possam ter sido “explicadas e negociadas pelo colaborador da autora”, resulta inequívoco que o recorrente, ao tempo, já não tinha capacidade para tomar conhecimento de matérias desta complexidade, nem para manifestar a sua vontade de forma livre e consciente.
36 - A este propósito realçam-se as passagens de 18:56 a 20:20, de 21:20 a 23:42 e de 27:48 a 28:30 do depoimento de II.
37 - Pelas razões expostas, a matéria em causa deveria ter sido incluída nos factos não provados.
38 - Corrigidas as deficiências apontadas no julgamento da matéria de facto, a factualidade apurada impunha decisão diametralmente oposta à proferida, obrigando a que a ação fosse julgada improcedente.
39 - Mesmo que se considere inalterada a matéria de facto apurada, o desfecho da ação terá de ser outro: o da improcedência do pedido e da absolvição dos réus[2].
40 - A sentença de que se recorre assenta grande parte da sua fundamentação jurídico-factual no teor do Acórdão da Relação do Porto de 25.01.2022 (consultável em dgsi), apenas divergindo no momento da apreciação da existência do abuso do direito.
41 - Até este último momento (o da opção pela aplicação do abuso do direito), a análise efetuada e o raciocínio seguido pelo tribunal são exemplares e inatacáveis, aqui se dando por reproduzido esse trajeto da sentença, que não merece reparo: desde o último parágrafo da página 17 (“Prescreve o art. 16.º da mencionada Lei que...”) até ao primeiro parágrafo da página 20 (“...acórdão da Relação do Porto de 25/1/2022, consultável em dgsi”).
42 - A prova produzida nos autos demonstra, sem margem para quaisquer dúvidas, que a recorrida não cumpriu quase nenhum dos deveres legais que sobre si impendiam, designadamente, os que constam dos artigos 16.º e 17.º da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro (que estabelece o regime jurídico da atividade de mediação imobiliária).
43 - Resultou evidente, em especial do depoimento da testemunha JJ, que todo o procedimento de angariação da mediação e de celebração do contrato respetivo foi tratado pela recorrida de forma completamente amadora, leviana e irresponsável.
44 - Esta testemunha confessou a sua absoluta inexperiência na área da mediação imobiliária — quando tudo se iniciou, desempenhava as funções de consultor da recorrida há pouquíssimo tempo — e relatou sem pudor todos os atropelos ao mencionado regime jurídico da atividade de mediação imobiliária.
45 - O contrato de mediação foi celebrado em casa do recorrente — na sequência de uma passagem ocasional do consultor JJ pela zona —, logo no primeiro encontro e sem que a recorrida se tivesse certificado da correspondência entre as reais características do imóvel e as que terão sido fornecidas pelo recorrente e constam do contrato.
46 - O contrato de mediação não identifica quaisquer características do prédio, limitando-se a referir apenas a sua localização e a remeter para uma suposta “Ficha de Angariação” que deveria fazer parte integrante do contrato, mas que não existe — se existisse teria sido junta pela recorrida, o que não ocorreu.
47 - O contrato não faz sequer referência ao artigo da matriz, ao número da descrição no registo predial ou à licença de utilização — dados básicos de identificação de um imóvel.
48 - E também não indica os ónus e encargos que sobre o mesmo impendiam — designadamente, duas penhoras da Fazenda Nacional em nome do recorrente, que a testemunha JJ confessou só ter conhecido por ter sido alertado para esse facto por um cliente.
49 - A Apelada violou também o dever imposto pela alínea a) do n.º 1 do referido artigo 17.º, dado que não só não se certificou da capacidade e legitimidade do recorrente, como admitiu que sabia desde sempre que este não era o único proprietário do imóvel a vender e aceitou promover a venda sem o consentimento expresso dos restantes comproprietários — essa consciência da ilicitude fica patente na afirmação da recorrida de que “por diversas vezes (...) solicitou a presença das demais comproprietárias”.
50 - Os deveres legais que o regime jurídico da atividade de mediação imobiliária estabelece para as empresas do ramo têm uma relevância que extravasa a mera relação contratual que é estabelecida entre a mediadora e o seu cliente — é também por razões de ordem pública que as empresas de mediação estão sujeitas às obrigações preceituadas na Lei n.º 15/2013.
51 - Em caso de incumprimento, não podem as empresas de mediação escudar-se na má vontade ou falta de colaboração do cliente, dado que, nesses casos, podem (devem) sempre recusar-se a contratar.
52 – O recorrente, no momento da celebração do contrato de mediação, (já) não tinha capacidade para tomar conhecimento de matérias desta complexidade, nem para manifestar a sua vontade de forma livre e consciente.
53 - De acordo com o depoimento inequívoco e esclarecedor da médica neurologista, no momento da contratação com a recorrida, o recorrente tinha “compromisso na evocação de memória”, o que comprometia o seu julgamento sobre os assuntos que lhe eram apresentados.
54 - Num caso destes, não faz sentido falar-se em “momentos de lucidez” — como refere a sentença a páginas 14, in fine —, uma vez que a afetação da memória distorce a análise e adultera o julgamento e a tomada de decisão.
55 - Se a recorrida tivesse cumprido os seus deveres legais — como, obviamente, lhe competia — o apelante não se teria exposto à situação em análise nos autos e não teria sido vítima da sua incapacidade.
56 - E ainda que a recorrida pudesse não se ter apercebido dessa condição debilitante do recorrente, sempre teria obrigação de ficar “desconfiada” das sucessivas contradições do recorrente e, mormente, da irritação que manifestava “quando lhe era pedido para falar com os demais herdeiros”.
57 - Se a recorrida tivesse respeitado as suas obrigações, nenhuma consequência teria tido a alegada “situação de confiança” criada (inconscientemente) pelo apelante — como parte profissional da relação, a recorrida tinha o dever de conduzir, respeitar e fazer respeitar os procedimentos legais.
58 - Ao invés de desempenhar a sua atividade no estrito respeito pela lei, preferiu atropelar as regras básicas da mediação imobiliária e vir agora, despudoradamente, lançar mão do argumento do abuso do direito por parte do recorrente.
59 - Ao subscrever esta posição da apelada, o tribunal produziu uma decisão manifestamente iníqua e desajustada, que castiga de forma injustificada o recorrente e branqueia e despenaliza o comportamento consciente, ilegal e irresponsável da recorrida.
60 - Para que se pudesse considerar que “o réu criou na autora uma situação de confiança”, teria de ter ficado demonstrado que esse comportamento do recorrente havia sido intencional (com dolo ou negligência censurável) e que a atitude da recorrida havia sido isenta de reparos.
61 - Se a conduta do recorrente foi determinada pela sua incapacidade cognitiva para entender os atos que praticou, então sempre será iníquo e desajustado castigá-lo por tal razão e, ao mesmo tempo, isentar a recorrida de quaisquer responsabilidades ou consequências, numa situação pela qual esta foi a principal responsável (como parte profissional e conhecedora dos imperativos legais).
62 - Sendo certo que, mesmo numa situação em que tivesse havido intenção de enganar ou de aligeirar procedimentos por parte do recorrente — o que apenas se admite em dialética de mera concessão — sempre a recorrida teria contribuído em maior parte e decisivamente para o desfecho final, ao atuar voluntariamente em desconformidade com o regime legal da mediação imobiliária.
63 - Como se viu, e em resumo, o comportamento da recorrida é fortemente censurável, por ser violador da boa-fé e das boas práticas, e ilegal, por violar várias normas do regime jurídico da atividade de mediação imobiliária e do regime jurídico das cláusulas contratuais legais, designadamente tendo em consideração que: a) Ofereceu os serviços sabendo que havia outra mediadora a promover a venda do imóvel — ignorou a placa existente no prédio (as imagens do google maps eternizaram esse facto) e até a advertência feita por essa mediadora (empresa que já antes havia intermediado outras vendas de imóveis da família do recorrente); b) Impôs exclusividade sabendo que, necessariamente, estava a fazer incorrer o recorrente numa incompatibilidade; c) Não obteve a devida autorização das restantes comproprietárias para o negócio, bem sabendo que o prédio não era só do recorrente; d) Promoveu a venda da totalidade do prédio sem ter essa autorização (ou mero conhecimento) das proprietárias de metade do imóvel; e) Não confirmou as características, ónus e encargos do imóvel (violando ostensivamente deveres impostos pelo regime jurídico de mediação imobiliária).
64 - Deveria a ação ter sido julgada improcedente e absolvido o recorrente do pedido — o que aqui se requer seja determinado.
65 - A decisão violou as disposições constantes dos artigos 16.º e 17.º da Lei n.º 15/2013, dos artigos 334 e 570 do Código Civil e do artigo 607 do Código de Processo Civil.

Não houve resposta ao recurso, recebido nos termos legais. Mantido o sentido do despacho que o recebeu, os autos correram Vistos e nada se observa que obste ao conhecimento do seu mérito. Atentas as conclusões apresentadas pelo apelante, o objeto do recurso traduz-se em saber se a) Deve ser alterada a decisão relativa à matéria de facto e se, sendo-o ou não, b) Deve a sentença ser revogada e o apelante absolvido do pedido, porquanto não se verifica a exceção material do abuso do direito, que fundou a sua condenação.  
  
III – Fundamentação
Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
A impugnação da decisão relativa à matéria de facto onera o recorrente com o cumprimento do disposto no artigo 640 do Código de Processo Civil, o que, no caso em apreço, consideramos ter sido feito. Sem embargo desse cumprimento, a reapreciação da prova pelo Tribunal da Relação, conducente a uma eventual alteração daquela decisão, só deve realizar-se quando a alteração pressuposta ou previsível possa ter alguma utilidade para o conhecimento do objeto do recurso ou, dito de outro modo, não deve ser feita, se os concretos pontos de facto (a alterar ou a acrescentar) forem de todo irrelevantes para a solução da ou das questões objeto de recurso. De outra forma, acrescente-se, estar-se-ia a praticar um ato inútil e, por isso, processualmente proibido, como decorre do disposto no artigo 130 do CPC.

Isto dito, constatamos que a sentença deu como não provados “5 - Os factos alegados nos artigos 3.º, 4.º, 8.º (quanto à aquisição do imóvel em data anterior ao casamento dos réus), 15.º, 16.º, 17.º (apenas quanto à data), 18.º, 19.º, 20.º, 21.º a 26.º, 28.º, 29.º, 38.º, 40.º, 42.º (quanto à assinatura do acordo nas instalações da autora), 43.º, 53.º, 54.º, 55.º, 56.º (quanto às fortes insistências), 57.º, 58.º, 61.º, 64.º,70.º, 72.º, 113.º, 114.º da contestação”, impugnando o apelante os assinalados a negrito, pois pretende que os mesmos se considerem provados e, além desses, também provado o alegado no artigo 59.º da contestação, bem como não provado o facto provado n.º 28.

Assim, pretende que se dê como provado: “8.º O R. marido adquiriu a metade do imóvel de que era dono por doação de sua Mãe (1/4) e por compra anterior ao casamento com a aqui R. (1/4) — como se vê da informação do registo predial que aqui se junta (Doc. n.º 1)”; “40.º Esta imobiliária havia sido contratada, em meados de 2019, por todos os comproprietários do imóvel — o aqui R. e as duas sobrinhas, FF e HH — para promover a sua venda” e “53.º Acresce que, após ter visto no prédio a placa da “C...”, uma colaboradora da “D..., LDA.” contactou a A. e advertiu-a de que não poderia promover a venda daquele imóvel já que o contrato de mediação da “B...” ainda estava ativo e em execução” e, bem assim, ainda da contestação, o artigo “59.º Por força da sua doença, no momento em que subscreveu o contrato de mediação imobiliária que lhe foi apresentado pela A., o R. era, seguramente, incapaz de entender o sentido e alcance da declaração negocial que estava a fazer”. Por outro lado, entende que o facto dado como provado no ponto 28. [O réu tomou conhecimento das condições do acordo, as quais lhe foram explicadas e negociadas pelo colaborador da autora, incluindo a respeitante à exclusividade da qual o réu tinha conhecimento, manifestando vontade em que assim fosse] deve, agora, ser considerado como facto não provado.

Na análise a fazer, prévia à eventual reapreciação da prova, importa não esquecer o verdadeiro objeto do recurso, averiguando da real relevância, ou não, para esse objeto, dos concretos factos impugnados.

Tal como resulta inequívoco das conclusões apresentadas pelo apelante, afirma-se o mesmo plenamente concordante com a análise jurídica, com a aplicação do Direito, feita pela primeira instância, concretamente com o entendimento de padecer de nulidade o contrato de mediação, elogiando até o decidido. Discorda, no entanto – e, se bem vemos, apenas – na conclusão da inalegabilidade dessa nulidade, em razão do abuso do direito. Ou seja, o recorrente concorda que o contrato de mediação é nulo e sustenta, em recurso, que nulo devia ser declarado, por não se verificar a aludida exceção do abuso do direito que, no caso, obstou ou tornou inoperante/ilegítima a alegação/ invocação dessa nulidade.

Sendo assim, como resulta inequívoco das conclusões apresentadas, a pretendida alteração ao ponto de facto provado n.º 28 mostra-se irrelevante, porquanto nada acrescentaria juntar outros vícios do contrato ao vício declarado e aceite pelo apelante (naturalmente) e pela apelada (que sequer respondeu ao recurso). O mesmo se poderia dizer relativamente ao artigo 59.º da contestação, na medida em que dele decorre uma eventual anulabilidade por incapacidade acidental. Ainda assim, e especificamente quanto a este artigo 59.º, sempre diremos que a reapreciação fará sentido, mas, na ponderação de todas as soluções plausíveis de direito, enquanto factualidade a atender na apreciação da exceção do abuso do direito[3].

No mais, o artigo 8.º da contestação mostra-se irrelevante, tendo em conta o facto já fixado na matéria provada com o n.º 11, onde se concretiza que o recorrente é proprietário de ½ do imóvel, proporção adquirida sucessivamente em dois quartos.

Assim, entendemos que apenas há lugar à reapreciação da prova quanto aos artigos 40.º e 53.º da contestação e, pelas razões já ditas, quanto ao artigo 59.º da mesma peça processual.

Antes de mais, transcrevemos, ainda que com síntese, e sublinhamos a motivação da decisão relativa à matéria de facto: “(...) a sua demonstração suportar-se na prova testemunhal produzida, no seu confronto e na sua apreciação crítica.
- JJ fez a angariação do imóvel e celebrou o acordo, intervindo em todos os seus atos e interagindo com o autor[4]; declarou ter contactado com o réu na sua casa depois de a empregada de limpeza à porta do prédio onde o réu habita lhe ter dito que este teria um prédio para vender. O acordo foi assinado pelo réu logo nesse primeiro encontro, o qual lhe disse que pretendia exclusividade. Nesse dia pediu para ver o prédio, ao que o réu acedeu, tendo lá ido os dois, num automóvel conduzido pelo réu, e colocou a sua placa. Na altura questionou o réu sobre a existência de uma outra placa, da qual apenas tomou conhecimento quando chegou ao imóvel acompanhado do réu, tendo este referido que era para retirar, só não o tendo feito porque não conseguiu abrir a porta da fração onde estava a placa por não ter as chaves. (...) disse que o réu tinha um discurso coerente, congruente e que era completamente autónomo, não tendo ficado com dúvidas que o réu sabia o que estava a assinar, tendo explicado todos os pontos do acordo, nomeadamente a questão da exclusividade e que foi o réu quem definiu o preço do imóvel. (...) Afirmou, também que quando se aperceberam que existiam comproprietários o réu esclareceu ser ele o responsável pela gestão/orientação de todo o processo de venda em nome das sobrinhas. Fez algumas visitas ao imóvel com potenciais compradores sempre acompanhado pelo réu que era quem abria o prédio. Ao todo terá estado com o réu, pelo menos, seis vezes; confirmou a existência de uma proposta (...) um cliente que alertou para a existência de penhoras e ter falado sobre a questão com o réu que lhe disse serem situações muito antigas e que já estavam resolvidas. (...) Afirmou desconhecer que alguém da B... tenha contactado a autora. Pese embora a confusão do depoimento desta testemunha quanto à entrega/conhecimento da certidão predial, a verdade é que no restante o seu depoimento não foi confuso, mas antes coerente, lógico, sem hesitações e escorreito.
- KK, diretor comercial da autora, o qual relatou ter estado, presencialmente, com o réu por três vezes (...) e o descreveu com “uma pessoa normal”, que apareceu sempre sozinho, “super simpático”, só se irritando quando lhe era pedido para falar com os demais herdeiros. (...)  
- II, médica neurologista, que confirmou o teor dos documentos juntos com a contestação, os quais são de sua autoria, afirmou que a avaliação neuropsiquiátrica que o réu realizou a 29.6.2020 foi feita a seu pedido, tendo-se concluído que o réu ao nível da orientação temporal e espacial não apresentava falhas, que as funções executivas a fluência verbal estava sem alterações, o raciocínio abstrato e perceção cognitiva estavam no limite dos normais, tendo a psicóloga concluído que o funcionamento cognitivo do réu estava abaixo do estado para as características próprias para o seu estado e havia compromisso da memória de trabalho. Mais afirmou que, à data (2020) padecia de anosognosia, ou seja, não reconhecia/negava a doença. Foi perentória esta testemunha ao afirmar que em maio/2020, o réu não estaria já capaz de celebrar um contrato, mas que o terceiro que interagisse com ele não se conseguiria aperceber das suas limitações (...)
- FF, sobrinha do réu e comproprietária do prédio descrito, a qual afirmou, falaram com a imobiliária que já conheciam, a GG, para vender, mas não era com exclusividade e que os três – a testemunha, a sua irmã, a outra comproprietária, e o réu, assinaram um contrato de mediação imobiliária com a B..., o qual se manteve até à venda. Afirmou que, a si, o réu nunca lhe disse que tinha pedido a outra imobiliária para tratar da venda, nem sabendo se no prédio foi colocada uma placa da autora por não passar por lá.
- GG, consultora imobiliária, conhece o réu e as sobrinhas desde 2017, sempre como vendedores, tendo mediado duas outras vendas. Afirmou que os 3 comproprietários, em finais de 2018, princípios de 2019 pedem-lhe para que tente vender o prédio, no entanto a angariação só se veio a formalizar em finais de 2019, altura em que coloca a placa; que o contrato era com exclusividade, mas só para a venda da parte do réu. (...) O depoimento desta testemunha não teve hesitações, tendo sido escorreito, no entanto, não foi apresentado o contrato de mediação imobiliária a que alude e que afirmou assinado por todos os comproprietários e em regime de exclusividade, o qual, até por se tratar de um acordo obrigatoriamente reduzido a escrito, era necessário para corroborar alguns aspetos do seu depoimento, também nada foi apresentado sobre a publicitação no site da autora e a eliminação do imóvel do site antes do conhecimento da venda e o seu telefonema não foi corroborado por mais nenhuma testemunha ou meio de prova, sendo certo que o consultor responsável pela venda era a testemunha JJ e o diretor comercial da agência e superior hierárquico daquele era a testemunha KK e ambos afirmaram desconhecer a existência de tal contacto. (...)
Da conjugação destes depoimentos com os documentos juntos aos autos é-nos permitido concluir que o réu conhecia os termos do acordo celebrado com a autora, pese embora já estivesse doente e com as suas capacidades cognitivas comprometidas. (...) essa incapacidade não impediu o réu de celebrar a escritura de compra e venda no ano de 2021, nem levou os seus familiares a diligenciar para que o não fizesse ou que tratassem de lhe nomear um representante para acautelar eventuais invalidades da compra e venda. Não se demonstrando o início do estado de incapacidade alegado na petição inicial nem a gravidade, naquela data, ali alegada por nenhum meio de prova o ter corroborado; ausência de prova essa assente, desde logo, no depoimento da médica neurologista que acompanha o réu, na data de início da conveniência das medidas de acompanhamento fixada na sentença que as aplicou ao réu e na impossibilidade de se recorrer, no caso concreto, uma vez que a autora não foi parte no processo de acompanhamento de maior, da factualidade dada como provada na sentença referida.
Em suma, o réu, nos seus momentos de “lucidez”, decidiu contratar com a autora, subscreveu o contrato, interagiu com a autora, várias vezes, na execução do acordo, não disse nada a ninguém, nem às restantes comproprietárias e mais tarde vendeu o imóvel juntamente com elas por intermédio de outra imobiliária. No que respeita aos factos não provados a sua não prova ficou a dever-se à prova do contrário e, bem assim, à ausência de produção de qualquer meio de prova que cabalmente demonstrasse tais factos. (...)”.

Além dos documentos juntos aos autos (declarações médicas relativas ao recorrente; decisão judicial de acompanhamento e o próprio contrato de mediação, este, aliás, levado, sem discordância, à factualidade) ouvimos toda a prova testemunhal e de parte, produzidas em audiência. Daremos nota, no entanto, e, ainda assim, sucintamente, da que temos por relevante à reapreciação da factualidade impugnada e, como tal, porque relevante, admitida.

Quanto aos artigos 40.º e 53.º da contestação tivemos em conta, especialmente, os depoimentos de FF [Ficheiro n.º 202305171545858], sobrinha do recorrente e comproprietária do imóvel e GG [Ficheiro n.º 20230517151135], consultora imobiliária na empresa onde o réu e família “já tiveram vários negócios”. A sobrinha do recorrente referiu ser comproprietária do imóvel, tal como a sua irmã, sendo o restante (1/2) propriedade do recorrente. Era intenção (mas, não sabe dizer quando) vender o prédio, pois não estava em propriedade horizontal e precisava de obras. Era uma “decisão conjunta” e esperavam uma proposta, tendo falado com a imobiliária onde tinham vendido outros prédios. Acha que [o contrato] era com exclusividade e “creio que a GG recolheu as assinaturas de todos”; era a “B...”. Foi posta uma placa no prédio e manteve-se a angariação até à venda. Ouviu falar da autora como ouviu falar de outras imobiliárias, mas nunca foi contactada. Acha estranho que o tio fizesse outro contrato, e com exclusividade. A testemunha GG, por seu turno referiu que esta angariação “foi através dos comproprietários”, pois iam vender a herança em partes, e a parte da Rua ... foi falada consigo pelo Eng. AA [recorrente] e pelas sobrinhas CC e FF. Foi, pelo menos, no fim de 2018 ou início de 2019, e começou a angariar e colocou a placa entre fins de 2019 e princípios de 2020. O contrato era exclusivo “porque sempre se deram bem e era consigo que trabalhavam”. Achou estranho quando viu lá outra placa e contactou a imobiliária. Na altura o Eng. AA disse que não sabia, mas “achava que eram compradores e, se necessário, falavam comigo”. Falou com as sobrinhas e não sabiam de nada. Viu o imóvel à venda no site da autora, ligou e explicou que tinha exclusivo. Mas disseram-lhe que nada tinham a ver. Falou com o consultor responsável, que era um senhor ucraniano, um nome totalmente de leste; “deixaram de o ter na internet, passado uns dias, e a placa foi retirada”; a placa estava no 1.º andar, onde tinham uma inquilina, o que achou estranho, e pensou que era para subarrendar. O Eng. AA queria vender a parte dele, mas entretanto “chatearam-se”, e as sobrinhas não queriam, e a exclusividade, por isso, era só com o Eng. AA. Se vendesse a parte dele “elas estavam abertas a negociar”. Ele queria um valor e elas outro. O contacto foi com um ucraniano, ou de leste.

Os depoimentos acabados de referir são, no mínimo, confusos em relação ao contrato eventualmente celebrado com a outra imobiliária e aos seus precisos contornos e não são corroborados – como salienta a motivação da primeira instância – por qualquer documento. Relativamente ao contacto com a autora, é estranho que, como é testemunhado, se tenha restringido a um telefonema, recebido por cidadão ucraniano ou de leste, que não quis saber. Telefonema único, não repetido e não confirmado por qualquer outro meio documentável. Fica a dúvida se o próprio telefonema, a ter existido, foi efetivamente dirigido à autora. Considerando o acabado de referir, entendemos que os factos pretendidos dar como provados, não devem ser assim considerados e acrescentados à factualidade dada como assente. 

Relativamente ao artigo 59.º da contestação, a testemunha JJ, consultor imobiliário na autora [Ficheiro n.º 20230517102655] referiu ter conhecido o réu “num trabalho de farming[5], na zona” e através de um contacto na rua. Estabeleceu contacto telefónico, e o réu reconheceu que tinha um imóvel para venda. Acompanhou o contrato celebrado. Explicou ao réu o modo de trabalhar da empresa e as modalidades em que podiam trabalhar. Conheceu o imóvel e colocou a placa nesse mesmo dia. Achou o réu perfeitamente lúcido. Também a testemunha KK, funcionário da autora [Ficheiro n.º 20230517114735] referiu ter estado com o recorrente três vezes, presencialmente, além de ter trocado com ele dois ou três telefonemas, e esclareceu que o mesmo se apresentava sozinho, a conduzir e sempre lhe pareceu um cliente normal e simpático. A testemunha II, neurologista [Ficheiro n.º 20230517142257] referiu, por sua vez, que conhece o réu como seu doente e, embora não tendo memória da primeira consulta ou das seguintes, confirma os relatórios que elaborou, sendo certo que os diários clínicos, também juntos, não são relatórios e o relatório neuropsicológico não é seu. Pode retirar algumas conclusões, desde logo que, em maio de 2020, mês anterior ao da sua avaliação, teria de dizer que o réu não estaria capaz de fazer um contrato de mediação, mas quem interagisse com ele não o descortinaria e até a testemunha, em casos semelhantes, o não consegue [descortinar] perante um doente desacompanhado, tendo necessidade, para perceber, de contactar um familiar, pois “não é visível”.

A conclusão retirada pela testemunha II não pode ser ignorada e é no sentido da impercetibilidade de qualquer afetação visível do recorrente, mesmo para um especialista, sendo, por isso, demasiadamente subjetiva a (outra) conclusão de o réu, para mais em data anterior, estar incapaz de celebrar o negócio aqui em causa. Tenha-se presente, por outro lado, que a razão da reapreciação deste facto se prende indelevelmente com a capacidade negocial percetível, no enquadramento plausível da questão do abuso do direito. Entendemos, por tudo, não dar como provada a matéria constante do artigo 59.º da contestação.

Em suma, a impugnação da decisão de facto apresentada pelo recorrente mostra-se improcedente, porque infundada.

Independentemente do que acabamos de concluir devemos ter presente – e para tanto transcrevemos parte do depoimento da testemunha JJ – que os poderes do Tribunal da Relação, ancorados no disposto no artigo 662 do CPC, quando a decisão da primeira instância relativa à matéria de facto apresente patologias que consistam, nomeadamente, na “falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares” e se revelem impeditivas ao “estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso”, devem tais patologias ser supridas “a partir dos elementos que constem do processo ou da gravação” o que, visto de outra perspetiva, equivale à ampliação oficiosa da matéria de facto – faculdade que “nem sequer está dependente da iniciativa do recorrente” – quando os elementos probatórios, porque existentes nos autos, não justificam a anulação da decisão recorrida – 662, n.º 2, alínea c) do CPC[6].

Estamos a referir-nos, concretamente, ao alegado pelo recorrente nos artigo 36.º [Em data que se desconhece — mas, presume-se, pouco antes de 27.05.2020 -, o R. foi contactado por um colaborador ou representante da A.] e 37.º [Através de tal contacto, a A. ofereceu ao R. a prestação dos seus serviços, propondo a celebração de um contrato de mediação imobiliária com vista à venda do prédio da Rua ...] da contestação do apelante, e que se mostra, no essencial, claramente provado pelo depoimento da testemunha da autora que fez o primeiro contacto com o réu, e não foi considerado provado ou não provado pelo tribunal recorrido.

Dir-se-á que não estamos perante um facto (iniciativa do contacto e proposta contratual) essencial e, celebrado um contrato – por definição acordo de vontades – normalmente assim é, mas a essencialidade, a complementaridade ou a instrumentalidade de determinado facto não é resultado de uma conclusão abstrata, antes se liga ao objeto do litígio e, no caso, do recurso, e este, como se assinalou, prende-se com o abuso do direito do réu ao invocar a nulidade do contrato. Daí que tenhamos tal factualidade como complementar e útil à apreciação jurídica do caso.

Pelas razões ditas, o ponto 2 da matéria de facto provada deve ser esclarecido, acrescentando-se (o que se deixará em itálico) “, na sequência de ter sido contactado por um colaborador da autora, que lhe ofereceu a prestação dos seus serviços,”.

III.I – Fundamentação de facto
Em conformidade com o decidido em primeira instância e, nesta sede, a propósito da  matéria de facto provada e não provada, transcrevemos:
Factos Provados    
1 - A autora é uma sociedade que se dedica à atividade de mediação imobiliária, operando sob a marca C....
2 - Em 27.5.2020, na sequência de ter sido contactado por um colaborador da autora, que lhe ofereceu a prestação dos seus serviços, o réu assinou um acordo escrito, elaborado pela autora, intitulado “contrato de mediação imobiliária particular”, nos termos do qual a autora se comprometeu, pelo período de 9 meses, a conseguir um interessado na compra, do imóvel situado na “Rua ..., freguesia ..., concelho do Porto, com Cód. Postal ... Porto”, pelo valor de 700.000,00 euros:



3 - Em tal acordo foi assinalada, manualmente, a quadrícula a indicar que “o imóvel se encontra livre de ónus e encargos”; a quadrícula a indicar que “O (A)(s) cliente(s) contrata(m) a Mediadora em regime de exclusividade (...)”, constando, ainda, dessa cláusula que “2. No regime de exclusividade e exclusividade simples e nos termos da legislação aplicável, apenas e só a mediadora contratada tem o direito de promover e divulgar o negócio, objeto do contrato de mediação, durante o respetivo período de vigência. 3. No caso de negócio se realizar diretamente através dos clientes será devida à mediadora respetivamente: a) no caso de exclusivo, 100% da totalidade da remuneração acordada na cláusula seguinte. b) (...). 4. Será devida à mediadora a remuneração referida na cláusula seguinte quando o negócio visado neste contrato não se venha a concretizar por causa imputável ao cliente”:




4 - Ficou, ainda, estabelecido que “1. A remuneração será devida à mediadora se esta ou se uma das sociedades de mediação integrarem a rede (...) conseguir interessado que concretize o negócio visado pelo presente contrato, nos termos e com as exceções previstas no art. 19.º da Lei n.º 15/2013, de 08 de fevereiro. 2. O cliente obriga-se a pagar à mediadora a título de remuneração a quantia de 6% calculada sobre o preço pelo qual o negócio é efetivamente concretizado, acrescida de IVA à taxa legal em vigor. 3 - A remuneração da mediadora será paga da seguinte forma: a) o total da remuneração aquando da celebração do CPCV, quando o valor do sinal for igual ou superior a 12% do valor da venda; b) 50% do total da remuneração aquando da celebração do CPCV, sempre que o sinal entregue seja superior a 6% e inferior a 12% do valor da venda, sendo os restantes 50% aquando da celebração da escritura de compra e venda; c) aquando da celebração da escritura de compra e venda sempre que o sinal for inferior a 6% do valor da venda ou na inexistência de CPCV.”



5 - (...) que o acordo celebrado se renovaria “(...) automaticamente por iguais e sucessivos períodos de tempo, caso não seja denunciado por qualquer das partes contraentes através de carta registada com aviso de receção a enviar à outra parte com a antecedência mínima de 10 dias em relação à data da sua renovação”.



6 - E que “1. O cliente entregará à mediadora todos os elementos necessários e úteis para a concretização do negócio no prazo de 5 dias, contados da data da assinatura do presente contrato”.



7 - No âmbito do acordo assinado, a autora promoveu uma visita inicial ao imóvel, publicitou o imóvel no seu site, colocou uma placa de venda no imóvel e realizou visitas ao imóvel com potenciais compradores.
8 - Em julho/2020 a autora conseguiu um potencial comprador para o imóvel, não tendo o réu aceite a proposta apresentada.
9 - Em 13.10.2020 foi assinada pelo réu uma “adenda ao contrato de mediação imobiliária” nos termos da qual a autora se obrigou a “diligenciar no sentido de conseguir interessado para a compra do imóvel acima identificado pelo preço máximo de 650.000,00€ (...)”.
10 - Em 8/1/2021 foi assinada pelo réu uma nova “adenda ao contrato de mediação imobiliária” nos termos da qual a autora se obrigou a “diligenciar no sentido de conseguir interessado para a compra do imóvel acima identificado pelo preço máximo de 600.000,00€ (...)”.
11 - O imóvel referido em 2., mostra-se descrito na conservatória do registo predial sob o n.º ..., correspondendo a uma casa de rés do chão e três andares, mostrando-se inscrito, na proporção de 1/2 a favor de FF e de HH, e na proporção de 1/2 a favor do réu, o qual viu 1/4 inscrito a seu favor mediante a inscrição AP. ... de 2001/02/26 e o restante 1/4 mediante a inscrição Ap. ... de 2008/03/28; A 30.01.2019 incidiam duas penhoras a favor da Fazenda Nacional sobre a quota parte pertencente ao réu, demonstradas pela Ap. ... de 2014/06/19 e pela Ap. ... de 2014/06/19.
12 - Em 24.02.2021, após ter entrado em contacto com o réu para lhe comunicar a existência de outro potencial comprador, a autora recebeu um email enviado através do endereço de email de LL, onde o réu comunica “Venho por este meio informar que o prédio sito na Rua ..., já foi vendido.”
13 - O réu sempre se assumiu perante a autora como representante das demais comproprietárias, suas sobrinhas, recusando a solicitação da autora para que estas reunissem consigo.
14 - Por escritura pública de compra e venda realizada em 26.02.2021, o réu, FF e HH declararam vender e MM declarou comprar, pelo preço de 500.000,00 euros, o prédio descrito em 11.
15 - Nesse ato foi declarado que se encontrava assegurado o cancelamento das penhoras referidas em 11. e pelos “outorgantes que a presente compra teve intervenção de mediador imobiliário a cargo da sociedade com a firma D..., Lda. (...)”
16 - O réu contraiu casamento com a ré em 2.05.1992, sem convenção antenupcial.
17 - A ré não conhece a autora, nunca contactou com ela, nem consentiu na celebração do acordo referido.
18 - O réu nasceu a ../../1943.
19 - Por sentença proferida em 28.11.2022 no processo de acompanhamento de maior que correu termos perante o Juízo Local Cível de Vila do Conde, Juiz 2, sob o n.º 882/22.5T8VCD, já transitada em julgado, o réu foi sujeito às medidas de acompanhamento representação geral e administração total de bens, tendo sido fixado que tais medidas se tornaram convenientes a partir de 28 de junho de 2021.
20 - O réu passou a ser seguido, pelo menos desde fevereiro/2020, na consulta de neurologia pela Sra. Dra. II, fazendo medicação; em 21.9.2020, em nova consulta apresentava alterações de memória e de orientação espacial, tendo a médica concluído que o réu padecia de “doença de Alzheimer provável com alterações de memória recente, de orientação, de funções práxicas e executivas. O compromisso da memória recente afeta já a capacidade do doente para gerir a sua pessoa e bens” e, em 28.6.2021, em nova consulta concluiu que “quadro demencial a evoluir. Considero que neste momento não tem capacidade para gerir a sua pessoa e bens, nem conduzir veículos motorizados”.
21 - Nessa sequência, em 21.7.2021 foi solicitado junto da ARS Norte a sujeição do réu a uma junta médica para avaliação do grau de incapacidade para efeito de atribuição de atestado médico de incapacidade multiusos.
22 - Aquando do acordo referido, no imóvel em questão estava colocada uma placa a anunciar a sua venda pela sociedade D..., Lda. que, ao tempo, laborava sob a designação de B....
23 - Quando o réu foi alertado para a existência de penhoras, mostrou-se conhecedor das mesmas, informando que eram antigas e estavam resolvidas.
24 - O preço da venda do imóvel aposto no acordo foi indicado pelo réu.
25 - O réu deslocou-se, várias vezes, às instalações da autora, tendo reunido e apresentando um discurso coerente e conhecedor das condições contratuais.
26 - O réu informou a autora que o imóvel tinha vários arrendatários, identificando-os, bem como o valor das suas rendas, bem como identificou os andares que se encontravam devolutos conhecendo em particular a situação de cada um dos arrendatários.
27 - Foi o réu quem acompanhou os colaboradores da autora ao imóvel, o mostrou inicialmente, que auxiliou na colocação da placa de “vende-se” da autora e acompanhou as visitas que foram realizadas pelos colaboradores da autora com potenciais compradores, deslocando-se sozinho em veículo automóvel conduzido por si.
28 - O réu tomou conhecimento das condições do acordo, as quais lhe foram explicadas e negociadas pelo colaborador da autora, incluindo a respeitante à exclusividade da qual o réu tinha conhecimento, manifestando vontade em que assim fosse.
29 - A placa referida em 22. ficou no imóvel quando a autora colocou a sua por o réu ter referido não ter a chave do apartamento que dava acesso à placa, tendo afirmado que já ali estaria há muito tempo.

Factos não provados
1. Que a ré tenha consentido na celebração do acordo descrito pelo réu.
2. Que a autora tenha publicitado o imóvel em vários sites imobiliários, através da folha de montra, junto de várias revistas da especialidade e que tenha contactado com os arrendatários.
3. Que a venda a cliente angariado pela autora muito provavelmente seria realizada no período de vigência do contrato.
4. Os factos alegados nos artigos 14.º e 15.º, segunda parte da petição inicial.
5 - Os factos alegados nos artigos 3.º, 4.º, 8.º (quanto à aquisição do imóvel em data anterior ao casamento dos réus), 15.º, 16.º, 17.º (apenas quanto à data), 18.º, 19.º, 20.º, 21.º a 26.º, 28.º, 29.º, 38.º, 40.º, 42.º (quanto à assinatura do acordo nas instalações da autora), 43.º, 53.º, 54.º, 55.º, 56.º (quanto às fortes insistências), 57.º, 58.º, 61.º, 64.º,70.º, 72.º, 113.º, 114.º da contestação.
6 - Os factos alegados nos artigo 4.º, parte final, 9.º primeira parte e 27.º primeira parte da resposta.

III.II – Fundamentação de Direito
Em síntese, a sentença recorrida fundamentou o decidido, no que, sem perder de vista o objeto do recurso, com síntese se transcreve e sublinha: “(...) Invoca o réu a nulidade do contrato por neste não estar indicado o número da descrição predial, o artigo matricial, a licença de utilização do prédio, nem a existência de ónus e encargos sobre o prédio quando sobre o mesmo incidiam duas penhoras da Fazenda Nacional em nome do réu. A autora alegou ter sido o réu quem entregou toda a documentação referente ao imóvel (...) pese embora do acordo celebrado conste ser sobre o réu que recai a obrigação de entregar à autora os documentos referentes ao imóvel, a verdade é que esta, enquanto empresa de intermediação imobiliária não cumpriu as obrigações impostas pelo n.º 1 do art. 17.º da Lei 15/2013, de 8/2, não diligenciando no sentido de identificar total e corretamente o imóvel nem que fossem tomadas em consideração as penhoras que oneravam, em parte, o imóvel objeto de mediação, nem procedeu no âmbito do contrato em apreço a qualquer referência à existência desses concretos ónus.
Isto significa que a autora “(...) violou os deveres que sobre si impendiam e que se encontram consignados no art. 17.º n.º 1, al. b), da Lei n.º 15/2013, de 8.02, o que, à partida terá por consequência a nulidade do contrato, por vício de forma, em conformidade com o preceituado no n.º 5 do art. 16.º. E também dúvidas não restam de que a arguição de tal nulidade foi feita por quem detém legitimidade para tanto – o cliente da empresa de mediação imobiliária.” – acórdão da Relação do Porto de 25/1/2022 (...)  resta-nos analisar da alegada inalegabilidade do incumprimento de um formalismo contratual, por verificação de uma situação de abuso do direito (...) Voltando ao caso concreto, somos do entendimento que a invocação da nulidade com fundamento nos aspetos que vimos de referir assume a forma de um abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium. É que o réu criou na autora uma situação de confiança manifestando a sua vontade de negociar, intervindo ativamente nas visitas ao prédio, deslocando-se às instalações da autora para rever os termos do contrato apenas quanto ao preço, agindo como seu dono e representante das demais comproprietárias e criando essa certeza na mente da autora e dos seus colaboradores e quando confrontado com a existência das penhoras nega a vigência. (...) Assim, a nulidade invocada por falta de cumprimento das formalidades apontadas é de improceder. (...) No que respeita à invalidade do contrato violação dos deveres de informação/esclarecimento das suas cláusulas, nomeadamente a respeitante à exclusividade, por se tratar de um contrato pré-elaborado pela autora. (...) Alegou, ainda, o réu que à data da celebração do contrato já se encontrava incapaz para celebrar qualquer negócio, não estando lúcido, nem capaz de entender o que estava a fazer, o que era percetível para todos que com ele se relacionassem, pelo que invoca a anulabilidade do contrato com esse fundamento. (...) não é possível concluir que a incapacidade do réu fosse notória e conhecida da autora, a declaratária, pelo que deve a anulabilidade invocada improceder. Aqui chegados e concluindo-se pela validade do contrato celebrado resta determinar se assiste à autora o direito de reclamar o pagamento da comissão acordada (...)  a autora não chegou a ter a possibilidade de vir a concretizar a compra e venda do imóvel, porquanto, o réu e as restantes comproprietárias procederam à sua venda por intermédio de outra mediadora imobiliária – cfr. art. 19.º, n.ºs 1 e 2 da Lei n.º 15/2013, de 8/2. Na verdade, podemos concluir que a autora encetou diligências destinadas à promoção do imóvel com vista à obtenção de um comprador, tendo chegado a apresentar uma proposta que o réu rejeitou, mas que por causa da venda do imóvel, sem a sua intervenção, viu-se impossibilitada de continuar a cumprir as obrigações contratuais que tinha assumido, impossibilidade essa gerada por uma conduta do réu. Deste modo, é devida à autora a quantia correspondente à remuneração acordada contabilizada sobre o preço pelo qual o imóvel foi vendido (...) E não apenas sobre a quota parte pertencente ao réu porquanto o acordo não foi para ser mediada a venda da sua quota parte, mas de todo o imóvel”.

Como se disse, considerando o sentido da sentença e o recurso apresentado, na aplicação do Direito está em causa saber se o apelante agiu em abuso do direito, concretamente na sua modalidade de venire contra factum proprium (vcfp[7]).

Como detalhadamente esclarece Fernando Augusto Cunha de Sá[8], o Código Civil de 1867 não consagrava a figura do abuso do direito, embora já alguma jurisprudência então a admitisse e também se sustentasse que ela estava implícita no artigo 13.º desse diploma [Quem, em conformidade com a lei, exerce o proprio direito, não responde pelos prejuizos que possam resultar desse mesmo exercicio]. No anteprojeto do atual Código Civil (CC), da autoria de Vaz Serra, o abuso do direito estava previsto em oito preceitos, merecendo destacar, ao que nos importa, os números 5, 6 e 7 do respetivo articulado[9]. Depois das revisões ministeriais, os preceitos do anteprojeto foram reduzidos a um único normativo, enquadrado nas disposições gerais; inicialmente o artigo 274 e, posteriormente, o artigo 334 que, entre a segunda revisão ministerial e o projeto do CC ficou com semelhante redação[10]. Ora, como decorre do artigo 334 do CC, “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

O que seja, em que se traduz, o abuso do direito, é tema de vasto tratamento doutrinário e jurisprudencial, sendo correto dizer-se, como primeira aproximação, que “O conceito de abuso do direito tende a articular-se com o princípio da justiça comutativa, do equilíbrio ente os direitos e deveres das partes ou do equilíbrio entre as prestações: enquanto exercício ilegítimo, o abuso da autonomia privada tende a concretizar-se em algum desequilíbrio entre os direitos e os deveres das partes, e o desequilíbrio entre os direitos e os deveres das partes tende a disciplinar-se através de uma (de alguma) intervenção externa – em regra, através de alguma intervenção externa de um tribunal”[11].

Pires de Lima e Antunes Varela, comentando o artigo 334 do CC[12], dão conta de se estar perante uma conceção objetiva do abuso do direito, não sendo “necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito; basta que se excedam esses limites”. Acrescentam que os fatores subjetivos não são alheios ao conceito. Por outro lado, é exigido que “o excesso cometido seja manifesto” e que, para “determinar os limites impostos pela boa-fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade”.

O segundo dos referidos autores refere, noutra obra, que “Não se trata, neste caso, da violação de um direito de outrem, ou da ofensa a uma norma tuteladora de um interesse alheio, mas do exercício anormal do direito próprio. O exercício do direito em termos reprovados pela lei, ou seja, respeitando a estrutura formal do direito, mas violando a sua afetação substancial, funcional ou teleológica”. E, a propósito do vcfp, diz-nos: “A fórmula do manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé abrange, por seu turno, de modo especial, os casos que a doutrina e a jurisprudência condensam sob a rubrica do venire contra factum proprium. São os casos em que uma pessoa pretende destruir uma relação jurídica ou um negócio, invocando por exemplo, determinada causa de nulidade, anulação, resolução ou denúncia de um contrato, depois de fazer crer à contraparte que não lançaria mão de tal direito ou depois de ter dado causa ao facto invocado como fundamento da extinção da relação ou do contrato”[13]

Jorge Ribeiro de Faria, depois de realçar a conceção objetiva que transparece do artigo 334 do CC e que sempre será de exigir, “como de resto frisava Manuel de Andrade, que o direito seja exercido em termos abertamente ofensivos da justiça”, acrescenta “que o efeito do abuso do direito não deve ser fixado de maneira igual para todas as situações. Por isso mesmo que esse efeito possa ser um simples dever de indemnizar (e, claro, se há a culpa reclamada pelos princípios gerais da responsabilidade civil) ou a possibilidade de se exigir mesmo a restituição das coisas ao “statu quo ante” – se não se puder dizer que o titular do direito tira uma utilidade legítima do abuso (...). Ou nem uma coisa nem outra, ou pelo menos não só, e uma vez que as potencialidades abertas pela figura para repor a justiça no relacionamento inter-subjetivo são enormes”[14].

José de Oliveira Ascensão, depois de referir que os direitos “não são absolutos”, uma vez que “o próprio exercício é disciplinado por regras jurídicas”, diz-nos que o excesso em relação aos limites do exercício do direito deve ser manifesto: “O princípio da autonomia privada impede uma intromissão cerrada no controlo do exercício dos direitos. Só quando houver um excesso manifesto se justifica esta intromissão exterior”. Por outro lado, “O ato é ilegítimo desde que desconforme a padrões objetivos de comportamento, não se exigindo a consciência do agente de prosseguir um exercício contra o direito. Isto não significa que, havendo intenção contrária ao direito, esta não deva ser também relevante; mas não é nunca decisiva”[15].

Fernando Baptista de Oliveira considera que o instituto aqui em tema tutela “situações em que a aplicação de um preceito legal, normalmente ajustada, numa concreta situação da relação jurídica, se revela injusta e fere o sentido de justiça dominante”; esse instituto, “bem como os princípios da boa fé e da lealdade negocial, são meios de que os tribunais devem lançar mão para obtemperar a situações em que alguém, a coberto da invocação de uma norma tuteladora dos seus direitos, ou do exercício da ação, o faz de uma maneira que, objetivamente, e atenta a especificidade do caso, conduz a um resultado que viola o sentimento de Justiça, prevalecente na comunidade, que, por isso, repudia tal procedimento, que apenas formalmente respeita o Direito, mas que, em concreto, o atraiçoa”[16].

O autor, referindo-se à modalidade do vcfp, dá nota que a mesma se verifica “naqueles casos em que uma pessoa pretende destruir uma relação jurídica ou um negócio, invocando, por exemplo, determinada causa de nulidade ou de anulação, resolução ou denúncia, depois de fazer crer à contraparte que não lançaria mão de tal direito ou depois de ter dado causa ao facto invocado como fundamento da extinção dessa relação jurídica ou contrato”. Refere, ainda que “Paradigmático do venire contra factum proprium é o caso de uma das partes num contrato nulo fez a sua prestação, a qual foi recebida e aproveitada pela contraparte e esta, mais tarde, ciente de que não é possível restituir a prestação recebida nem o seu valor, ou não existe fundamento para invocar o enriquecimento, invoca a nulidade do negócio jurídico apenas para colher um benefício, tirar um desforço ou libertar-se de um vínculo que, entretanto, se lhe tornou indesejável. (...) Embora seja necessário ter presente que a opção pela paralisação do exercício do direito quando esteja em causa a nulidade por vício de forma pode suscitar algumas reservas, o certo é que há situações que justificam esse efeito por razões de interesse e ordem pública”[17].

Elsa Vaz Sequeira, depois de dar nota da controvérsia respeitante à natureza do abuso do direito, sustenta que, não obstante, “afigura-se correto afirmar que todos lhe reconhecem uma específica função, que é a de permitir soluções materialmente adequadas ao caso concreto. A jurisprudência refere que se trata de uma válvula de salvaguarda de índole subsidiária [Ac. RP 27.06.2018 (8/17.7T8GDM.P1), Ac. RE 28.03.2019 (1110/13.0T2STC.E2)]”. Quanto às inalegabilidades formais, ou seja, “quando uma parte faz crer à contraparte que o contrato celebrado é formalmente válido, quando o não é, vindo posteriormente pedir a declaração de nulidade daquele”, a autora sustenta que tal inalegabilidade “está dependente da verificação dos pressupostos da tutela da confiança”. E acrescenta: “Inicialmente a jurisprudência tinha por suficiente o preenchimento dos pressupostos gerais da tutela da confiança (situação de confiança, justificação da confiança, imputação da confiança e investimento da confiança). A doutrina, contudo, ciente do desvio que a inalegabilidade representa ao regime imperativo da nulidade, tem sugerido que a esses se adicione três requisitos específicos. A saber: i) só podem estar em jogo interesses das partes interessadas e não de terceiros de boa-fé; ii) a imputação da situação de confiança ao contraente a responsabilizar não se basta com a exigência de um nexo de causalidade, exigindo simultaneamente um imputação culposa, ou seja, assente num juízo de censura; iii) o investimento de confiança deve possuir uma natureza sensível por dificilmente ser assegurado por outra via (Menezes Cordeiro, 2018: 348; Baptista Machado, 1991: 394). Esta visão mais exigente já encontrou eco na jurisprudência, como ilustram, v.g., os Acs. Do STJ 11.12.2014 (1370/10.8TBPFR.P1-S1) e 25.05.2012 (850/07.7TVLSB.L1.S2)”[18].
Paulo Mota Pinto[19] entende que o artigo 334 do CC consagra “uma conceção objetivista – ou, pelo menos, mista – do abuso, e não uma conceção puramente subjetiva, que faça depender a existência do abuso simplesmente de uma intenção emulativa do agente”. O preceito, segundo este autor, “indica como critérios o excesso manifesto (no sentido de clamoroso) dos limites impostos: 1.º) pelos bons costumes – trata-se, segundo é entendimento geral, de uma cláusula geral que reenvia para os princípios impostos pela consciência  social dominante tendo uma componente descritiva (são os costumes) e outra normativa (os bons costumes), e que se pode aproximar dos guten Sitten alemães; 2.º pela boa fé (...); e 3.º) pela função social e económica do direito – fórmula esta que se nos afigura mais nublosa (pois é difícil saber o que é a função do direito)”.

A propósito do vcfp refere que estamos “num domínio que todos sentem movediço, que carece, tal como a cláusula geral da boa fé, de ser “precisado jurídico-teoreticamente”, na expressão de Wieacker”. Dando exemplo, entre outros casos, daqueles “em que a nulidade do contrato por vício de forma é culposamente provocada pela parte que a vem depois invocar, criando com o seu comportamento a confiança legítima na outra parte de que consideraria o contrato válido ou que nunca invocaria a nulidade, com base na confiança tendo a contraparte orientado a sua vida”, o autor considera que a “confiança é um poderoso meio de “redução da complexidade” social”, e vem a perguntar se “poderá, no plano dogmático, afirmar-se um princípio geral de proibição do comportamento contraditório, no direito privado”. Negando-o conclui que não existe “uma regra geral de coerência do comportamento dos sujeitos jurídico-privados, juridicamente exigível”, ou seja, em princípio, o indivíduo “só é obrigado a manter o seu comportamento se assumiu esse compromisso negocial – segundo o princípio do cumprimento pontual das vinculações negociais”; no entanto – considera – “que o negócio jurídico não pode – sob pena de flagrante injustiça em muitos casos – ser o único modo de proteção das expectativas dos sujeitos na não contradição da conduta da contraparte, havendo, antes do negócio jurídico, designadamente antes do “limiar da vinculação contratual”, ainda casos em que o indivíduo é obrigado a honrar as expectativas que criou, através da “correspondência” à confiança que despertou – designadamente, casos em que a pessoa não pode justamente venire contra factum proprium”. Trata-se, acrescenta, “não só de uma forma de proteção extra-negocial da confiança, como de uma proteção não apenas “negativa”, mas “positiva”, na medida em que o confiante pode exigir a “correspondência” a essa confiança, isto é, ser colocado na situação correspondente ao cumprimento da vinculação em que confiou, e não apenas na situação em que estaria se não tivesse depositado confiança no comportamento alheio”[20].
Depois de uma “Breve referência histórica e comparatística”[21] e também da referência à doutrina e jurisprudência portuguesas[22], o autor, dando nota dos pressupostos  do comportamento contraditório, assinala que, antes de mais, deve “existir um comportamento anterior do agente – o “factum proprium” a que se refere a expressão -, que seja suscetível de fundar uma situação objetiva de confiança (1.º)” [23]. Depois, há que “apurar a imputação ao agente (2.º), quer desse comportamento anterior, quer do atual comportamento”. De seguida, “há que verificar a necessidade e o merecimento de proteção do atingido com a conduta contraditória. Assim, este tem de estar de boa fé (3.º), isto é, há de ter confiado na situação criada pelo ato anterior, ignorando não culposamente eventuais intenções contrárias do agente”. Por último, “importa apurar a existência e o tipo de “disposição” levada a cabo, ou seja, o “investimento de confiança”, ou baseado na confiança, realizado (4.º)[24][25].

O mesmo autor, a propósito do impedimento da invocação da nulidade por falta de forma, admitida pela jurisprudência nacional, “designadamente, pela proibição do abuso de direito” refere tratar-se de “hipóteses em que é impedida a invocação do vício de forma por um dos contraentes, seja devido ao seu dolus praeteritus – se uma das partes obstou à observância da forma legal pré-ordenadamente, para deixar aberta uma “escapatória”, vindo depois a invocar esse vício – seja por um inadmissível comportamento contraditório (venire contra factum proprium), por falta de forma, mesmo que não provocada dolosamente pela parte que a vem invocar, lhe é imputável, tendo a outra parte efetuado um “investimento” com base na confiança depositada na validade do negócio, seja por outras circunstâncias (como a execução do contrato ou o decurso do tempo, relacionado com a conduta do invocante) que levam a considerar abusivo o comportamento de quem invoca a nulidade”. Acrescenta que o impedimento de invocação do vício formal, sustentado no abuso do direito, “fora já defendido por Manuel de Andrade, quando a nulidade ocorra “em circunstâncias que tornam a sua arguição verdadeiramente escandalosa”, e foi igualmente discutida nos trabalhos preparatórios do Código Civil”[26].

António Menezes Cordeiro diz-nos, na sua dissertação de doutoramento, que “O Código Civil fere, no seu art. 334.º, determinados atos como abusivos. Prevê, para tanto, o titular que exceda manifestamente, no exercício do direito, limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico”. Sobre o vcfp, refere que tal locução “traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento anteriormente exercido”, ou seja, “postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo”. Entende que o vcfp, enquanto expressão de confiança “situa-se já numa linha de concretização da boa-fé”. E refere também, a propósito da confiança, que “o quantum de credibilidade necessário para integrar uma previsão de confiança, por parte do factum proprium, é pois função do necessário para convencer uma pessoa normal na posição de confiante e do razoável, tendo em conta o esforço realizado pelo mesmo confiante na obtenção do fator a que se entrega”[27].

O mesmo autor, em obra posterior[28], e concretamente sobre o vcfp, refere que só se considera como tal “a contradição direta entre a situação jurídica originada pelo factum proprium e o segundo comportamento do autor”. Depois de distinguir as hipóteses em que o vcfp se apresenta como positivo ou como negativo, esclarece, com relevo para a invocação de nulidades: “No que chamámos venire negativo, a situação paradigmática reside em alguém prevalecer-se de nulidades quando, conhecendo-as, tivesse em momento prévio mostrado a intenção de agir em execução do negócio viciado. Em rigor, poderíamos distinguir a hipótese de o agente ter manifestado a intenção de não invocar a nulidade, altura em que tal invocação seria um venire positivo, na modalidade acima referida de exercício de direito potestativo. Mas a hipótese mais típica é, aqui, simplesmente, a de se anunciar uma conduta que, depois, a “pretexto” da nulidade, seja negada”; e sobre a “concretização da confiança” o autor sustenta, como agora sintetizamos, que se pode trabalhar com um modelo de quatro proposições, concretamente “Uma situação de confiança (...) Uma justificação para essa confiança (...) Um investimento de confiança (...) A imputação da situação de confiança”[29].

A propósito das inalegabilidades formais, o mesmo autor, e na mesma obra, depois de dar nota de ter defendido “não ser possível um bloqueio direto, ex bona fide e na base da confiança, da alegação de nulidades formais”[30], afirma, no entanto, que “a persistência da nossa jurisprudência e confrontados com casos nos quais a via da inalegabilidade permite uma solução justa e imediata, enquanto o circunlóquio pela responsabilidade civil se apresenta problemático, entendemos rever a nossa posição. Assim, em casos bem vincados, admitimos hoje que as próprias normas formais cedem perante o sistema, de tal modo que as nulidades derivadas da sua inobservância se tornam verdadeiramente inalegáveis”. Mas – acrescenta – “as inalegabilidades formais não podem ser abandonadas ao sentimento ou à deriva linguística dos “casos clamorosos contrários à Justiça”. Apesar da dificuldade há que compor, para elas um modelo de decisão. (...) A inalegabilidade aproxima-se, assim, do venire, requerendo como ele: - a situação de confiança; - a justificação para a confiança; o investimento de confiança; - a imputação de confiança ao responsável que irá, depois, arcar com as consequências. Todavia, tratando-se de inalegabilidades formais, teríamos de introduzir, ainda, três proposições:  - devem estar em jogo apenas os interesses das partes envolvidas; nunca, também os de terceiros de boa-fé; - a situação de confiança deve ser censuravelmente imputável à pessoa a responsabilizar; - o investimento de confiança apresentar-se-á sensível, sendo dificilmente assegurado por outra via”. E conclui: “Nessa altura, a tutela da confiança impõe, ex bona fide, a manutenção do negócio vitimado pela invalidade formal. Summo rigore, passará a ser uma relação legal, apoiada no artigo 334.º em tudo semelhante à situação negocial falhada por vício de forma”.

Às considerações doutrinárias que precedem, juntamos, necessariamente a título exemplificativo, mas pela sua pertinência, o sumariado  no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.03.2019 [Processo n.º 499/14.8T8EVR.E1.S1, Relatora, Conselheira Rosa Tching, dgsi]: “I. O abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium, tem como pressuposto a existência de uma situação objetiva de confiança, cuja relevância é aferida pelo necessário para convencer uma pessoa normal e razoável, colocada na posição do confiante, e de um elemento subjetivo, ou seja, a criação, na pessoa do confiante, de uma confiança legítima e justificada. II. A paralisação da invocabilidade da nulidade por vício de forma, com base num censurável venire contra factum proprium, só de admitir em casos excecionais ou de limite, a ponderar casuisticamente, atentas as razões de interesse público de certeza e segurança do comércio jurídico que estão subjacentes às disposições legais respeitantes à forma. III. Em consonância com esta orientação geral, a jurisprudência tem admitido a paralisação da invocabilidade da nulidade por vício de forma, designadamente, quando é claramente imputável à parte que quer prevalecer-se da nulidade a culpa pelo desrespeito das regras legais que impunham a celebração do negócio por determinada forma qualificada ou quando a conduta das partes, sedimentada ao longo de período temporal alargado, se traduziu num escrupuloso cumprimento do contrato, sem quaisquer pontos ou focos de litigiosidade relevante, assumindo aquelas inteiramente os direitos e obrigações dele emergentes e criando, com tal estabilidade e permanência da relação contratual, assumida prolongadamente ao longo do tempo, a fundada e legítima confiança na contraparte em que se não invocaria o vício formal, verificado aquando da celebração do ato”.

Do conjunto de considerações que resultam das antecedentes citações doutrinárias e, por último, do exemplo jurisprudencial que sumariámos, deve concluir-se que o abuso do direito só se revela num exercício manifestamente contrário à boa-fé exigível. E se assim é, pela própria definição que nos surge no artigo 334 do CC, importará acentuar e acrescentar que o comportamento contraditório definidor de uma situação abusiva definível como venire contra factum proprium nulli conceditur, exige nessa contraditoriedade o mesmo excesso manifesto e uma responsabilidade efetiva pela criação de uma situação de confiança, alicerçada nesse comportamento contraditório e aceite, pela contraparte, na sequência de num juízo de normalidade e adequação entre o comportamento (factum proprium) e a sua aceitação como gerador (da situação de) confiança. Acresce que, se sempre assim é, nos casos em que se suscita o problema da inalegabilidade de um vício formal, desde logo atendendo às razões fundantes da observação da forma no negócio jurídico, a excecionalidade do venire, ou seja, do abuso do direito, é ainda mais vincada, não podendo prescindir da efetiva contribuição do alegante para a celebração do negócio viciado, ou melhor, da sua efetiva contribuição para o vício do negócio e, é claro, para a criação de uma situação de confiança na contraparte.

Dito isto, os factos revelam-nos o seguinte:
2 - Em 27.5.2020, na sequência de ter sido contactado por um colaborador da autora, que lhe ofereceu a prestação dos seus serviços, o réu assinou um acordo escrito, elaborado pela autora, intitulado “contrato de mediação imobiliária particular”, nos termos do qual a autora se comprometeu, pelo período de 9 meses, a conseguir um interessado na compra, do imóvel situado na “Rua ..., freguesia ..., concelho do Porto, com Cód. Postal ... Porto”, pelo valor de 700.000,00 euros.
7 - No âmbito do acordo assinado, a autora promoveu uma visita inicial ao imóvel, publicitou o imóvel no seu site, colocou uma placa de venda no imóvel e realizou visitas ao imóvel com potenciais compradores.
8 - Em julho/2020 a autora conseguiu um potencial comprador para o imóvel, não tendo o réu aceite a proposta apresentada.
12 - Em 24.02.2021, após ter entrado em contato com o réu para lhe comunicar a existência de outro potencial comprador, a autora recebeu um email enviado através do endereço de email de LL, onde o réu comunica “Venho por este meio informar que o prédio sito na Rua ..., já foi vendido.”
13 - O réu sempre se assumiu perante a autora como representante das demais comproprietárias, suas sobrinhas, recusando a solicitação da autora para que estas reunissem consigo.
18 - O réu nasceu a ../../1943.
22 - Aquando do acordo referido, no imóvel em questão estava colocada uma placa a anunciar a sua venda pela sociedade D..., Lda. que, ao tempo, laborava sob a designação de B....
23 - Quando o réu foi alertado para a existência de penhoras, mostrou-se conhecedor das mesmas, informando que eram antigas e estavam resolvidas.
25 - O réu deslocou-se, várias vezes, às instalações da autora, tendo reunido e apresentando um discurso coerente e conhecedor das condições contratuais.
26 - O réu informou a autora que o imóvel tinha vários arrendatários, identificando-os, bem como o valor das suas rendas, bem como identificou os andares que se encontravam devolutos conhecendo em particular a situação de cada um dos arrendatários.
27 - Foi o réu quem acompanhou os colaboradores da autora ao imóvel, o mostrou inicialmente, que auxiliou na colocação da placa de “vende-se” da autora e acompanhou as visitas que foram realizadas pelos colaboradores da autora com potenciais compradores, deslocando-se sozinho em veículo automóvel conduzido por si.
29 - A placa referida em 22. ficou no imóvel quando a autora colocou a sua por o réu ter referido não ter a chave do apartamento que dava acesso à placa, tendo afirmado que já ali estaria há muito tempo[31].

Uma primeira nota para um esclarecimento: embora a sentença, inequivocamente, conclua pela nulidade do contrato de mediação celebrado entre as partes, refere um considerando e identifica um preceito que, aquele e este, importa esclarecer. Refere-se que do contrato celebrado resultava que era o réu quem devia fornecer os elementos identificadores do imóvel e, por outro lado, cita-se o artigo 17.º da Lei n.º 15/2013, de 8 de fevereiro. Sem embargo, conclui-se pela nulidade do contrato, nos termos do n.º 5 do artigo 16.º do mesmo diploma legal.

Ora, o que é nulo é o contrato celebrado por incumprimento do estipulado nos n.ºs 1, 2 e 4 daquele artigo 16.º, como decorre do referido n.º 5 deste artigo, não por qualquer incumprimento do disposto no artigo 17.º da mesma Lei[32]. Por outro lado, e relevantemente, se a nulidade do incumprimento do disposto naqueles n.ºs 1, 2 e 4 não pode ser invocada pela mediadora é óbvio que a mediadora é a responsável pelo respetivo cumprimento.

Dito isto e, voltando aos factos apurados, não pode deixar de se dizer que o recorrente, a quem a autora se dirigiu para celebrar o contrato, e que assinou o contrato elaborado pela autora, não pode ser o causador das omissões dessa elaboração, que vieram a determinar a nulidade do negócio. Logo por aqui, seria de considerar muito excecional a inalegabilidade do vício formal.
Mas se a razão dessa inalegabilidade, como sustenta o tribunal recorrido, se funda na confiança criada pelo réu na autora, na medida em que o primeiro foi acompanhando a execução contratual levada a cabo pela segunda (com o acompanhamento das visitas ao imóvel e a definição e redefinição do preço), há que ver melhor o que sucedeu inicialmente e ao longo dessa execução, não só o comportamento do réu, mas também o da autora.

Como se disse, a autora foi procurar o réu. Quando viu o imóvel constatou que no mesmo se encontrava uma placa a anunciar a venda, e identificando outra mediadora imobiliária. Quando detetou que o imóvel era do réu apenas em compropriedade, descansou por este ter afirmado que as demais comproprietárias não tinham de ser convocadas, porquanto as representava. Quando foi advertida que o imóvel tinha penhoras, sossegou, pois o réu afirmou serem antigas e já resolvidas. Em suma, a cada contrariedade ou a cada dúvida, a afirmação indocumentada do réu com vista ao esclarecimento sempre se mostrou bastante, ainda que repetidamente. Não deixa de ser revelador que a autora não haja contactado a mediadora identificada na placa colocada no imóvel ou exigido um documento certificador da representação das sobrinhas, ou verificado as penhoras que um cliente detetou.

Estamos, de um lado, perante uma mediadora imobiliária (empresa) e, do outro, perante um cidadão com quase oitenta anos. Se a idade, de per si, não é um sintoma de incapacidade ou mesmo de incoerência negocial, já à estrutura empresarial, mormente neste ramo de negócio, e por força de lei, se impõem outros cuidados.

Em suma, também no pressuposto da confiança alegadamente criada pelo recorrente, não vemos como a autora tenha sido dela merecedora, ou seja, tenha deduzido do comportamento do réu um comportamento imaculado, revelador da execução do negócio sem qualquer problema que o pudesse objetivamente condicionar ou mesmo impedir.

Em conformidade, entendemos que não se verifica a exceção perentória do abuso do direito. Logo, o contrato de mediação padece de nulidade.

Não está em causa, atento o pedido formulado pela autora na ação e a sua inação no recurso, a liquidação indemnizatória da nulidade do contrato, a qual nunca seria, acrescente-se, nos moldes peticionados.

Por ser assim, o recurso revela-se procedente, havendo que revogar a sentença.

As custas, da ação e do recurso, são a cargo da autora, atento o seu decaimento (artigo 527, n.ºs 1 e 2 do CPC).

IV - Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se na 3.ª Secção Cível (5.ª Secção) do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o presente recurso de apelação e, em conformidade, revoga-se a sentença proferida em primeira instância e absolve-se o réu (recorrente) dos pedidos – principal e subsidiário – formulados pela autora (recorrida).

Custas na ação e no recurso a cargo da autora/recorrida.

Porto, 8.04.2024
José Eusébio Almeida
Carlos Gil
Anabela Morais
_________________
[1] Relator: José Eusébio Almeida; Adjuntos: Carlos Gil e Anabela Mendes Morais.
[2] Tenha-se presente que não está em causa a absolvição da ré, porquanto, nessa parte, a sentença mostra-se transitada.
[3] Ponderando, já se vê, a eventual relevância da culpa do declarante que abusa do direito, numa situação enquadrável no venire contra factum proprium, muito embora se tenha presente que a generalidade da doutrina objetiva o comportamento que cria uma situação de confiança na contraparte.
[4] Pretender-se-ia escrever “réu”.
[5] Não foi esclarecida em audiência a expressão utilizada, a qual, ao menos em tradução literal, se liga à agricultura ou agropecuária. No contexto [a testemunha andava a zona a ver se haveria imóvel para venda ou clientes a tal interessados] pode significar “exploração”.
[6] Citámos António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição Atualizada, Almedina, 2022, págs. 356/357.
[7] Por facilidade, permitimo-nos fazer uso da sigla utilizada por António Menezes Cordeiro, nomeadamente a fls. 744 da obra Da Boa Fé no Direito Civil, 4.ª Reimpressão, Almedina, 2011.
[8] Abuso do Direito, 2.ª Reimpressão da Edição de 1973, Almedina, 2005, págs. 114 e ss.
[9] “5. A nulidade de uma declaração de vontade por vício de forma pode ser invocada mesmo por aquele que, pelo seu procedimento quanto á forma, cometeu abuso do direito, caso a forma seja exigida para uma finalidade incompatível com a finalidade da declaração sem a forma legal; mas a dita nulidade, se invocada por tal pessoa, só pode ser atendida com obrigação de indemnizar completamente a outra parte, incluindo os prejuízos resultantes das oscilações monetárias, e apenas surte efeito uma vez saldada essa indemnização. 6. Quando a forma seja exigida para uma finalidade compatível com a eficácia da declaração sem a forma legal e houver abuso do direito por quem a invoca, não se atende esta alegação. A outra parte pode intentar ação para fazer declarar isso mesmo, obtendo título comprovativo do negócio para quaisquer efeitos úteis. 7. O abuso do direito consiste, para efeitos dos 5.º e 6.º, em a parte provocar dolosamente a nulidade ou proceder de modo a gerar na outra a legítima expectativa de que tal nulidade não seria invocada e vir depois alega-la”.
[10] De acordo com o artigo 297, resultante da primeira revisão ministerial, “O exercício dum direito, com a consciência de lesar outrem através de factos que contrariem os princípios éticos fundamentais do sistema jurídico, obriga a indemnizar os danos direta ou indiretamente causados”
[11] Nuno Manuel Pinto Oliveira, “O abuso do direito como limite da autonomia privada – ainda a propósito do conhecimento oficioso da alteração das circunstâncias”, in. Encontros de Direito Civil – Limites à Autonomia Privada, UCP Editora, 2023, págs. 9 e ss., a pág. 10.
[12] Código Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição, Revista e Atualizada, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra Editora, Limitada, 1987, págs. 298/299.
[13] Das Obrigações em Geral, Vol. I, 8.ª Edição, Almedina, Coimbra, 1994, págs. 552 e 555.
[14] Direito das Obrigações, Volume I, Atualizada e ampliada por Miguel Pestana de Vasconcelos e Rute Teixeira Pedro, Almedina, 2020, págs. 420 e 421.
[15] Direito Civil – Teoria Geral, Volume III, Coimbra Editora, 2002, págs. 265 e 277.
[16] Contratos Privados – Das Noções à Prática Judicial, Vol. I, 2.ª Edição, com a colaboração de Alexandre Norinho de Oliveira, Coimbra Editora, 2015, pág. 57/58.
[17] Ob. cit., págs. 62 e 61.
[18] Comentário ao Código Civil, parte Geral, 2.ª edição revista e atualizada, UCP Editora, 2023, págs. 961 e 969.
[19] “Sobre a proibição do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) no direito civil”, in Direito Civil – Estudos, Gestlegal, 2018, págs. 407 e ss, a pág. 458.
[20] Citamos, respetivamente, págs. 407, 409, 411, 414, 415 e 416.
[21] Onde assinala, nomeadamente (a pág. 422), “Um dos tratamentos mais recentes da proibição do comportamento contraditório” referindo “Singer, que atribui à proibição de venire contra factum proprium um significado menor do que lhe é muitas vezes imputado pela doutrina e atribuído pela jurisprudência. Para Singer, a hipótese da proibição do venire contra factum proprium pressupõe uma relação formal de contradição entre duas condutas de uma pessoa – só se poderia falar de comportamento contraditório se os atos em questão estiverem numa relação de negação entre eles”. Mais adiante (pág. 424), acrescenta: “Singer é assim levado a analisar o padrão de “confiança legítima”, ligando-o a partir de paralelos legislativos, ao princípio da culpa, o qual funcionaria aqui (sendo em certos casos complementado por um princípio de risco, não como princípio de imputação, mas como medida para a “dignidade de proteção” da confiança”.
[22] A proibição – refere – localiza-se dentro dos quadros do abuso do direito e já era referida antes do atual CC, designadamente por Manuel de Andrade e Vaz Serra, assim como Cunha de Sá. “Mas os primeiros tratamentos mais alongados da questão na nossa doutrina foram, segundo julgamos, os de Baptista Machado e de Menezes Cordeiro” (pág. 433) e, mais adiante, acrescenta, com referência à jurisprudência que “Uma das primeiras questões onde mais cedo se invocou a proibição de comportamento contraditório, com aplauso de parte significativa da doutrina, foi a possibilidade de obstar à invocação de nulidade resultante de vício de forma, através da proibição do abuso de direito. A jurisprudência admitiu, ainda nos anos 70, essa possibilidade, numa via prosseguida até hoje com invocação do abuso de direito e da proteção da confiança (pág. 435/436).
[23] Pressuposto imprescindível, ainda que haja de apurar-se a partir da perspetiva de uma “contraparte normal, colocada na posição da real, tal como para a interpretação da declaração negocial” (págs. 443/444).
[24] Para se estar perante uma hipótese de comportamento contraditório relevante – abusivo, diríamos – é forçoso afirmar “a contrariedade direta entre o anterior e o atual comportamento. Será o caso, designadamente, quando a confiança foi dirigida a uma determinada situação jurídica – por exemplo, à validade ou eficácia de uma vinculação negocial” e, por outro lado, só há que aplicar a proibição do venire contra factum proprium “se pela vinculação negocial ou pelas regras gerais da responsabilidade civil extracontratual – ou ainda por outro meio -, se não puder dar satisfação à pretensão do “confiante” – sendo, nesta medida, subsidiária” (pág. 445).
[25] Págs. 443, 444 e 445. O autor refere, ainda, que os pressupostos mencionados não têm aplicação automática, havendo que averiguar se existe “efetivamente uma “necessidade ético-jurídica” de impedir a conduta contraditória, designadamente, por não se poder evitar ou remover de outra forma o prejuízo do confiante, e por a situação conflituar com as exigências de conduta de uma contraparte leal, correta e honesta – com os ditames da boa fé em sentido objetivo” (pág. 446).
[26] Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Volume II, Coimbra Editora, 2008, págs. 1254/1256.
[27] Da Boa Fé no Direito Civil, 4.ª Reimpressão, Almedina, 2011, págs. 661, 742, 745, 753 e 759.
[28] Tratado de Direito Civil, V, Parte Geral, 2.ª Reimpressão da Edição de maio/2005, Almedina, 2011.
[29] Tratado de Direito Civil... cit., págs. 280, 282 e 292.
[30] Citamos, a propósito dessa anterior posição, o deixado escrito na obra Da Boa fé no Direito Civil (cit., a pág. 795): “a manutenção dos efeitos pretendidos pelo negócio nulo, mercê da intervenção subsequente do exercício do direito pressuposto, por forma que transcenda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, implica a obtenção, mediante obrigações legais, dois efeitos procurados através do ato nulo. É precisamente isso que o Direito, recorrendo ao art. 289.º/1, sem atender, de propósito, a especificidades concretas, não quer”. No entanto, já em artigo publicado em 2008 o autor sustentava, sempre com a necessidade de uma “fundamentação precisa”, a conclusão “que, hoje, o Direito português permite mesmo preterir normas formais” (“Do abuso do direito: estado das questões e perspetivas”, in. ARS IVDICANDI – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves, Volume II: Direito Privado, Universidade de Coimbra/Coimbra Editora, 2008, págs. 125/176, a pág. 150).
[31] Sublinhados nosso.
[32] Ainda que, revelador da falta de diligência da autora, seja manifesto o incumprimento da obrigação importa à empresa de mediação pela alínea a) do n.º 1 do artigo 17.º da Lei n.º 15/2013.