Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
27590/22.4T8LSB.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: ARRENDAMENTO
ARRENDAMENTO VINCULÍSTICO
ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
COMUNICAÇÃO
NRAU
DURAÇÃO
RENOVAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1- O carácter vinculístico de um contrato de arrendamento habitacional celebrado antes da vigência do RAU perde-se nos casos em que, perante a comunicação do senhorio da intenção de fazer o contrato transitar para o NRAU, a oposição do inquilino respeite tão só à actualização da renda (art.º 33º, nº 5, al. b), parte final, do NRAU), como nos casos em que a oposição do inquilino respeite tão só ao tipo e duração do contrato (art.º 31º, nº 10, al. b), do NRAU), já que em ambas as situações o contrato passa a considerar-se celebrado com prazo certo de cinco anos, renovável automaticamente por iguais períodos salvo oposição do senhorio.
2- Se o contrato de arrendamento habitacional, não obstante ter sido celebrado antes da vigência do RAU, perdeu já o seu carácter vinculístico, por passar a ter prazo de duração certo e determinado de cinco anos, mais assistindo ao senhorio o direito à oposição à renovação automática do contrato, então a admissibilidade da transmissão por morte da posição do arrendatário já não se afere a partir da norma transitória constante do art.º 57º do NRAU, mas antes a partir do disposto nos art.º 1106º e 1107º do Código Civil.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

MC e marido, AC, intentaram acção declarativa de condenação com processo comum contra AS, pedindo que seja declarada a caducidade de contrato de arrendamento que identificam, com fundamento no falecimento da inquilina, e que a R. seja condenada a entregar a fracção objecto do contrato de arrendamento livre de pessoas e coisas, bem como no pagamento de uma indemnização mensal de €1.000,00, desde a citação até à entrega efectiva.
Alegam para tanto, e em síntese, que:
· São proprietários da fracção autónoma em questão, dada em arrendamento à mãe da R.;
· Tendo a mãe da R. falecido em 7/1/2022, extinguiu-se o contrato de arrendamento em questão, caducidade que a R. não reconhece, recusando-se a restituir o locado, por entender que o arrendamento se lhe transmitiu, em virtude de residir em economia comum com a inquilina desde o início do arrendamento;
· O valor locatício da fracção é, no mínimo, de €1.000,00 mensais, considerando a área, local e valores praticados.
Citada a R., apresentou contestação onde, em síntese, alega que os AA. acordaram com a sua mãe a transição do arrendamento para o NRAU, pelo que lhe é aplicável o disposto nos art.º 1106º e 1107º do Código Civil, não se tendo assim extinguido o arrendamento por caducidade com o óbito da sua mãe, mas tendo-se transmitido para si, porque vivia com a inquilina em economia comum há mais de um ano. Conclui pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.
Foi proferido despacho saneador tabelar e dispensada a identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova.
Após realização da audiência final foi proferida sentença pela qual a acção foi julgada improcedente, com a absolvição da R. dos pedidos contra si formulados.
Os AA. recorrem desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
A) Os recorrentes são senhorios da fracção autónoma, Letra C, que corresponde ao rés-do-chão esquerdo do prédio no regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, n.º …, em Lisboa;
B) Para aquela fracção foi celebrado contrato de arrendamento para habitação própria e permanente em data anterior a 1982;
C) A partir daquela data, 2 de Novembro de 1982, passou MS a ser inquilina do respectivo locado, pagando as rendas ao senhorio e tratando entre si de todos os assuntos relacionados com o local, objecto daquele contrato de arrendamento;
D) Por carta de 20-10-2020, a A. comunicou a MS o seguinte:
Como certamente tem conhecimento o v/contrato encontra-se sujeito ao NRAU desde o ano de 2012;
Houve acordo quanto ao acerto do valor de rendas, proposto pelo inquilino e aceite pelo senhorio, durante o tempo acordado;
Sendo assim, considerando o V/RABAC e o valor tributário do locado, a renda encontrada foi aquela que vos foi transmitida através da minha carta de 22 de Setembro, ou seja, de €206,20 e que se aplica à renda referente ao mês de Dezembro de 2020;
E) Ali, o arrendatário alegou e comprovou que o rendimento anual bruto corrigido do seu agregado familiar é inferior a cinco retribuições mínimas nacionais anuais;
F) Assim, inexistindo acordo das partes, a transição só opera depois de decorrido certo prazo sobre a recepção pelo senhorio da resposta do arrendatário à sua comunicação inicial – cinco anos, ficando a actualização das rendas condicionadas durante esse período em função de percentagem do RABC.;
G) Somente após a sobrevinda do termo do prazo de diferimento assegurado ao arrendatário poderá o senhorio promover a transição do contrato para o NRAU, sem que aquele possa invocar as circunstâncias previstas na lei, o que não foi feito pelo senhorio;
H) Por carta recebida pelos senhorios em 01 de Abril de 2022, remetida por AS (R), esta informa do falecimento de sua mãe, MS, inquilina daquele locado, ocorrido em 07 de Janeiro de 2022 (assento de óbito);
I) Na mesma carta, a Ré solicita a transmissão do contrato de arrendamento para o seu nome, dizendo que residia com a mãe em economia comum desde o início do referido contrato de arrendamento;
J) Em resposta a esta carta os senhorios informaram a, agora ré, que aquele contrato de arrendamento por falecimento da inquilina caducou, não havendo lugar a transmissão a seu favor, considerando que a mesma não preenchia os requisitos para o efeito;
K) Nesta acção os AA não discutem a transição do contrato de arrendamento, antes não aceitam a transmissão do contrato de arrendamento para a filha, aqui Ré;
M) A inquilina, mãe da Ré, faleceu a 7 de Janeiro de 2022 na vigência da Lei n.º 6/2006 de 27 de Fevereiro, na redacção dada pela Lei 2/2020 de 31/03, no seu art.º 57.º, transmissão por morte, afasta aquela transmissão por falta de requisitos para aquela transmissão a favor da filha;
N) O Tribunal a quo, para julgar a acção improcedente aplicou o disposto nos artigos 1106.º e 1107.º do CC, considerando não caduco o arrendamento e assim se transmitindo a sua filha, aqui Ré.
A R. apresentou alegação de resposta, aí pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem-se tão só com a caducidade do arrendamento por não ser transmissível à R., em consequência do óbito da primitiva inquilina.
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Na sentença recorrida considerou-se provada a seguinte factualidade (com correcção das referências processuais e eliminação da referência aos meios de prova):
1. Os AA. são senhorios da fracção autónoma, letra C, que corresponde ao rés‑do‑chão esquerdo do prédio no regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, n.º …, em Lisboa, inscrito no art.º matricial … C, da freguesia de Benfica.
2. Foi celebrado contrato de arrendamento para habitação própria e permanente em data anterior a 1982.
3. Com data de 2/11/1982 foram os AA. notificados pelo Tribunal de Família de Lisboa, 3.º Juízo, de que por sentença transitada em julgado foi atribuído o direito ao arrendamento da casa de morada da família sita na fracção identificada em 1. para a requerente MS, arrendamento que estava titulado em nome do requerente marido, daquele divórcio.
4. A partir de 2/11/1982 passou aquela MS a ser inquilina da fracção identificada em 1., pagando as rendas ao senhorio e tratando entre si de todos os assuntos relacionados com o local, objecto daquele contrato de arrendamento.
5. Mediante carta de 29/10/2020 a A. comunicou a MS o seguinte:
(…)
Acuso recebida a v/carta com data de 30 de Setembro pp, cujo conteúdo tomei devida nota:
Como certamente tem conhecimento o v/contrato encontra-se sujeito ao NRAU desde o ano de 2012;
Houve acordo quanto ao acerto do valor de rendas, proposto pelo inquilino e aceite pelo senhorio, durante o tempo acordado;
Esta situação não invalidou a sujeição do contrato àquele NRAU, cujo valor da renda se considera sujeito;
Sendo assim, considerado o v/ RABAC e o valor tributário do locado, a renda encontrada foi aquela que vos foi transmitida através da minha carta de 22 de Setembro, ou seja de 206,20€ e que se aplica à renda referente ao mês de Dezembro de 2020;
Apresento os m/cumprimentos. (…)”.
6. Por carta recebida pelos AA. em 1/4/2022, remetida pela R., esta informa do falecimento de sua mãe, MS, inquilina daquele locado, ocorrido em 7/1/2022.
7. Na mesma carta a R. solicita a transmissão do contrato de arrendamento para o seu nome, dizendo que residia com a mãe em economia comum desde o início do referido contrato de arrendamento.
8. Em resposta a esta carta os AA. informaram a R. que aquele contrato de arrendamento por falecimento da inquilina caducou, não havendo lugar a transmissão a seu favor, considerando que a mesma não preenchia os requisitos para o efeito.
9. O valor locatício da fracção identificada em 1. variará entre €900,00 e €1.000,00 mensais, considerando a área, local e valores praticados.
10. À data do óbito de MS a R. tinha vindo a partilhar, com aquela, que era a sua mãe, as receitas e despesas do agregado familiar, que se pautava pelas regras de solidariedade e entreajuda.
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Na sentença recorrida considerou-se não provado que em Janeiro de 2022 a renda mensal da fracção identificada em 1., recebida pelos AA., era de €157,35.
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Na sentença recorrida ficou assim sustentada a transmissão do arrendamento para a R., a determinar a não extinção do mesmo por caducidade:
Na medida em que o fundamento da acção assenta na alegação da caducidade do contrato de arrendamento e que o fundamento da defesa assenta na transmissão desse mesmo contrato de arrendamento, dúvidas não subsistem de que os elementos relevantes para a determinação da lei aplicável são a lei aplicável ao contrato e a data do óbito da inquilina (07-01-2022).
No que respeita à lei aplicável ao contrato, tendo sido operada a transição para o NRAU, por acordo entre os senhorios e a inquilina (cfr. ponto 5 dos factos provados), haverá que considerar aplicável, em bloco, tal regime.
Pelo exposto, sob uma perspectiva lógica, tendo senhorios e inquilina optado pelo regime decorrente do NRAU, o contrato de arrendamento - não obstante anterior ao RAU e ao NRAU - deixou de se encontrar sujeito, simultaneamente à lei antiga e à lei nova, dentro do quadro do regime transitório (previsto no artigo 59.º do NRAU), para  se passar a encontrar integralmente regulado pela lei nova, como se tivesse sido celebrado já no quadro do NRAU.
Tudo vale por dizer que a lei aplicável ao contrato é o NRAU, conforme vontade das partes.
Com efeito, ao operarem a transição do contrato para o NRAU, as partes fazem‑no em bloco, não podendo, nessa medida, os senhorios pretender algo que não quiseram, a saber, a aplicação do regime transitório, que apenas se aplicaria aos contratos anteriores ao NRAU.
Em suma, ao operarem a transição para o NRAU senhorios e inquilina optaram pela aplicação do NRAU e afastaram a aplicação do regime anterior e, com este, das normas transitórias previstas pelo legislador para os casos específicos da transmissão do arrendamento, duração dos contratos, etc.
Posto isto, haverá, então, que atentar a que em 07-01-2022 se encontra(va)m em vigor os artigos 1106.º e 1107.º do Código Civil, os quais determinam que o arrendamento urbano para habitação não caduca por morte do arrendatário quando lhe sobreviva pessoa que com ele vivesse em economia comum há mais de um ano. É o caso.
No caso, resultando assente que a R residia com a inquilina há mais de um ano à data da sua morte, o arrendamento transmitiu-se “ope legis”, isto é, por mero efeito da aplicação da lei.
Assim sendo, haverá que concluir, sem mais delongas, que a R demonstrou a vigência de contrato de arrendamento e que, por essa razão, a utilização que tem vindo a fazer da fracção identificada nos autos é legítima, porque titulada.
Nos termos expostos, a R logrou fazer prova do facto impeditivo do direito invocado pelos AA, pelo que procede a excepção invocada e, consequentemente, improcedem os pedidos de condenação na entrega da fracção e no pagamento de indemnização decorrente de utilização ilícita do locado, uma vez que a utilização ocorre na execução de um contrato de arrendamento, o qual obriga os AA a facultarem à R o gozo da fracção, tendo como contrapartida o pagamento de renda”.
Já os AA. sustentam que, estando em causa um contrato de arrendamento celebrado antes da entrada em vigor do RAU, com a publicação do NRAU ficou o mesmo sujeito ao regime especial aí fixado, no que respeita à sua transição para o NRAU, avultando de entre as normas desse regime especial e transitório a actualização do valor da renda, por iniciativa do senhorio. Assim, e tendo presente que a transição do contrato para o NRAU só se teria verificado se a inquilina tivesse aceitado o valor da renda proposto pelos AA., o que não sucedeu, não há lugar a falar da transmissão do contrato para a R. por óbito da inquilina, porque das normas do referido regime especial resulta afastada a referida transmissão.
Do mesmo modo sustentam os AA. que, ainda que se entendesse que o contrato se encontrava sujeito ao NRAU desde 2012, nos termos constantes da comunicação de 29/10/2012, tal significava que o mesmo tinha passado a estar sujeito ao prazo determinado de cinco anos, pelo que após tal prazo “ou seja, 2017, a inquilina (falecida e mãe da Ré) não detinha título válido que lhe validasse a sua permanência no arrendado”.
Não sofre controvérsia que o contrato em questão nos autos, devendo ser classificado como um arrendamento habitacional, e tendo sido celebrado em data anterior a 1982, apresentava-se como um contrato de duração indeterminada, porque sujeito ao regime vinculístico que então vigorava.
Por outro lado, e uma vez que havia sido celebrado antes da entrada em vigor do RAU (aprovado pelo D.L. 321-B/90, de 15/10), com a entrada em vigor do NRAU (Lei 6/2006, de 27/2) ficou tal contrato sujeito às normas transitórias que constam dos art.º 27º e seguintes deste novo regime, com as suas sucessivas alterações.
Assim, e como desde logo resulta do nº 1 do art.º 28º do NRAU, “aos contratos a que se refere o artigo anterior aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 26.º, com as especificidades constantes dos números seguintes e dos artigos 30.º a 37.º e 50.º a 54.º”.
Mais concretamente, e no que respeita à possibilidade de o senhorio desencadear a transição total do contrato para o NRAU, Fernando de Gravato Morais explica (As novas regras transitórias na reforma do NRAU (Lei 31/2012), Revista Julgar nº 19, 2013, pág. 13 e seguintes) que “à luz do art.º 30.º, cabe ao senhorio tomar a iniciativa quanto à actualização da renda, tendo em vista, a final, a transição para o NRAU”. E mais explica que, perante a comunicação do senhorio a que respeita o referido art.º 30º, pode o inquilino tomar várias posições, com efeitos distintos. Assim, e se a “falta de resposta do arrendatário à comunicação do senhorio (…) tem valor declarativo, significando que – “vale como aceitação da renda, bem como do tipo e da duração do contrato propostos pelo senhorio, ficando o contrato submetido ao NRAU a partir do 1.º dia do 2.º mês seguinte [ao da recepção pelo arrendatário da comunicação do senhorio]” – art.º 31.º, n.º 7, do NRAU”, pode igualmente o inquilino aceitar totalmente a proposta do senhorio, relativamente ao valor da renda, ao tipo e à duração do contrato, como pode “aceitar, parcialmente, a proposta do senhorio, isto é, apenas concorda com o valor da renda proposto, mas não quanto aos outros aspectos”. E “se assim for, “no silêncio ou na falta de acordo das partes acerca do tipo ou da duração do contrato, este considera-se celebrado com prazo certo, pelo período de cinco anos” — art.º 31.º, n.º 7, al. b), do NRAU”, transformando-se “ex lege um contrato vinculístico num contrato de duração determinada” com prazo legal de cinco anos, e “devendo considerar-se que o contrato se renova se o senhorio não se opuser no prazo devido (art.º 1097.º do NRAU)”, o que significa que não ocorre “a sua caducidade no final do quinquénio”.
Resta ainda verificar, como explica igualmente Fernando de Gravato Morais na obra em questão, que a consequência da oposição do arrendatário, respeitando apenas ao valor da renda proposto pelo senhorio, desencadeia o direito deste a escolher entre a denúncia do contrato ou a actualização da renda. E no que respeita à escolha da via da actualização da renda, “tem, acrescidamente, uma dimensão específica: a de transformação ex lege do contrato vinculístico (…) que deixa de ser vinculístico, passando a ser – imperativamente, no caso de o senhorio seguir esse caminho, não podendo o arrendatário opor-se – um negócio com prazo certo, pelo período de 5 anos (art.º 33.º, n.º 2, al. b), in fine do NRAU)”, apesar de não caducar no final do prazo, mas podendo o senhorio opor-se à sua renovação nos termos legais.
Por outro lado, e no que respeita à aplicação das regras da transmissão por morte, explica este mesmo autor que “decorre – literalmente – do art.º 26.º, n.º 2, do NRAU (referente aos contratos habitacionais celebrados na vigência do RAU), aplicável também ex vi art.º 28.º, n.º 1, do NRAU (que se insere no capítulo dedicado aos contratos habitacionais concluídos antes da vigência do RAU) o seguinte:
– “à transmissão por morte aplica-se o disposto no artigo 57.º …”.
Ora, apesar do lugar onde está sistematicamente situado o n.º 2 do art.º 26.º do NRAU, concluir, nos termos da sua redacção, mostra-se inapropriado.
Na verdade, o regime que emerge do art.º 57.º do NRAU é bem mais restrito do que o que resulta do regime geral do art.º 1106.º do CC.
Em primeiro lugar, aqui só há transmissão se ocorre a morte do “primitivo arrendatário”.
Em segundo lugar, as classes de sucessíveis são mais restritas e, dentro de cada classe, também há maiores limitações à transmissibilidade.
Em terceiro lugar, a transmissão não opera se à data da morte do arrendatário, o titular desse direito tiver outra casa, própria ou arrendada, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respectivo concelho quanto ao resto do País” (art.º 57.º, n.º 3, do NRAU).
Em quarto lugar, há restrições temporais ao nível do contrato (que passa a ser havido — logo transformado em — com prazo certo de 2 anos, na falta de acordo entre as partes) quando a transmissão opera para determinadas pessoas em dadas circunstâncias.
Como se constata, a norma tutela o vinculismo, mas com limites. Donde não faz sentido a aplicação da regra em causa sempre que tal vinculismo já não existe. O que significa que o art.º 57.º do NRAU se deve empregar apenas nos casos previstos:
– no art.º 26.º, n.º 4, al c), do NRAU, que deve ser lido em conjugação com o art.º 107.º do NRAU, como afirmámos acima;
– no art.º 36.º do NRAU.
Só nestas hipóteses permanece o vinculismo, logo só aqui se impõem restrições à transmissibilidade do arrendamento. Daí que a norma (art.º 26.º, n.º 2, aplicável ex vi art.º 28.º, n.º 1, ambos do NRAU) se deva interpretar restritivamente”.
Ou seja, perante um contrato de arrendamento habitacional celebrado antes da vigência do RAU (como é o caso do contrato dos autos) importa, em primeiro lugar, verificar se o senhorio promoveu a sua transição para o NRAU e se a mesma ocorreu na sua plenitude, isto é, no que respeita ao valor da renda, ao tipo e à duração do contrato (al. a) do art.º 30º do NRAU).
Se assim foi, deixa de fazer sentido a aplicação das regras transitórias dos art.º 27º e seguintes do NRAU, porque o arrendamento passou a reger-se em bloco pelas regras constantes dos art.º 1064º e seguintes do Código Civil do Código Civil, segundo o seu tipo e duração.
Já se não ocorreu essa transição plena para o NRAU, em razão da posição do inquilino quanto a qualquer um dos aspectos das alterações promovidas pelo senhorio, nos termos do art.º 30º do NRAU, e seja a oposição do inquilino respeitante tão só à actualização da renda, ou seja tão só respeitante ao tipo ou à duração do contrato, resulta das regras transitórias dos art.º 27º e seguintes do NRAU (mais concretamente do art.º 33º, nº 5, al. b), parte final, na primeira situação, e do art.º 31º, nº 10, al. b), na segunda situação) que, no que respeita à indeterminação do termo do contrato, a mesma desaparece, pois que o mesmo passa a considerar-se celebrado com prazo certo de cinco anos, renovável automaticamente por iguais períodos salvo oposição do senhorio, nos termos do NRAU (mais concretamente, dos art.º 1096º e 1097º do Código Civil). Ou seja, por força das próprias normas transitórias o arrendamento perde o seu carácter vinculístico e passa, no que à sua duração e renovação respeita, a ser regulado pelas regras gerais do NRAU (ou seja, aquelas que emergem dos art.º 1064º e seguintes do Código Civil).
Assim, resultando evidente da comunicação referida em 5 dos factos provados que em 2012 os AA. senhorios promoveram a transição do contrato de arrendamento para o NRAU, estando demonstrado que existiu acordo quanto ao valor da renda proposta pelos mesmos, desconhecendo-se se existiu igualmente acordo sobre o tipo e/ou duração do contrato, mas podendo admitir-se a falta desse acordo nesta questão parcelar (a bem da solução visada pelos AA.), a conclusão óbvia a retirar é que o contrato passou a estar imperativamente sujeito a prazo certo, de cinco anos.
Isso mesmo reconhecem igualmente os AA., quando afirmam que o contrato foi “convolado para contrato a prazo determinado de cinco anos”. Só que tal afirmação conclusiva permite igualmente concluir que é a partir das regras gerais aplicáveis ao arrendamento urbano que são reguladas as questões relativas à duração e termo do contrato.
Assim sendo, tal significa que o contrato passou a admitir a renovação automática do seu prazo de cinco anos (contado desde 2017), no termo do mesmo e por iguais períodos.
E como não está demonstrado (nem sequer foi alegado) que os AA. exerceram o seu direito à oposição à renovação, nos termos do art.º 1097º do Código Civil, o contrato mantinha-se em vigor à data do óbito da inquilina, ocorrido em 7/1/2022.
Coloca-se então a questão de saber se, tratando-se de um contrato de arrendamento habitacional com renda actualizada nos termos do NRAU e ao qual se aplica igualmente o NRAU, no que à sua duração e termo respeita, podia ocorrer a transmissão do arrendamento para a R. nos termos do disposto na al. c) do nº 1 do art.º 1106º e do art.º 1107º, nº 1, ambos do Código Civil, tendo presente que está demonstrado que a R. residia com a inquilina em economia comum há mais de um ano.
Os RR. entendem que tal transmissão não podia ser considerada nos termos dos art.º 1106º e 1107º do Código Civil, mas antes nos termos da regra transitória do art.º 57º do NRAU, assim pretendendo que não estavam reunidas as condições aí impostas para a transmissão. Todavia tal argumento é desde logo contraditório com a consideração da transição do contrato para o NRAU.
Com efeito, e como já se viu, o contrato perdeu o seu carácter vinculístico porque passou a ter prazo certo de duração de cinco anos, do mesmo modo passando a assistir aos AA. o direito à oposição à renovação automática do contrato no termo do prazo em questão.
Ou seja, se os AA. consideram que operou a transição do contrato para o NRAU, designadamente no que respeita à actualização da renda e à determinação (legal) do prazo de duração do mesmo, então não podem continuar a pretender que se está perante um contrato ao qual são aplicáveis as normas transitórias a que respeita o art.º 57º do NRAU, porque as mesmas assentam no carácter vinculístico do contrato, decorrente da data da sua celebração e da circunstância de o senhorio não ter tomado a iniciativa da sua transição para o NRAU.
Isso mesmo decorre do Acórdão do Tribunal Constitucional de 12/5/2010 (relatado por João Cura Mariano e disponível em www.tribunalconstitucional.pt), quando aí se afirma que “a diferença de regimes a operar sincronicamente tem o seu fundamento na circunstância de nos novos contratos de arrendamento habitacional já não vigorar o sistema de prorrogação forçada para o senhorio do vínculo contratual, ao contrário do que sucede na maioria dos contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor do NRAU”, pois que “enquanto nestes, com excepção dos contratos de duração limitada previstos no artigo 98.º e seg., do RAU, o senhorio não pode denunciar o contrato no termo do prazo acordado, estando vinculado através de renovações sucessivas, enquanto essa for a vontade do arrendatário, como ocorre com o contrato de arrendamento sub iudice, nos contratos celebrados após a entrada em vigor do NRAU, o prolongamento da relação contratual já não lhe pode ser imposto unilateralmente pelo arrendatário”, desde logo porque “o senhorio pode opor-se à renovação do contrato no termo do prazo acordado (artigo 1096.º, n.º 2, e 1097.º, do C.C.)”. E assim, “quando o senhorio deixa de estar sujeito à perduração indefinida do contrato, perdem sentido todos os resguardos e limitações que rodeavam o direito à transmissão com vista a atenuar o impacto negativo que ela ocasionava nos interesses do senhorio (…)”, sendo por isso que “existe uma diferença decisiva no regime da generalidade dos contratos celebrados anteriormente à entrada em vigor do NRAU, relativamente àquele que disciplina os contratos posteriormente outorgados, que fundamenta e justifica as diferenças de tratamento jurídico da admissibilidade da transmissão por morte da posição do arrendatário consagradas no artigo 1106.º, do C.C., para os novos contratos, e no artigo 57.º, do NRAU, para os contratos pré‑existentes”.
Dito de forma mais simples, se o contrato de arrendamento habitacional, não obstante ter sido celebrado antes da vigência do RAU, perdeu já o seu carácter vinculístico, por passar a ter prazo de duração certo e determinado de cinco anos, mais assistindo ao senhorio o direito à oposição à renovação automática do contrato, então a admissibilidade da transmissão por morte da posição do arrendatário já não se afere a partir da norma transitória constante do art.º 57º do NRAU, mas antes a partir do disposto nos art.º 1106º e 1107º do Código Civil.
Assim, e como no caso concreto se verifica que os AA. tomaram a iniciativa de fazer transitar o contrato para o NRAU, com os resultados que já se afirmaram, quer no que respeita à actualização da renda, quer no que respeita à fixação de prazo certo, por contraponto à sua anterior duração indeterminada, é forçoso concluir, acompanhando a jurisprudência e doutrina acima referidas, que é aplicável à transmissão do arrendamento por morte da inquilina o disposto nos art.º 1106º e 1107º do Código Civil, e não o disposto na norma transitória constante do art.º 57º do NRAU.
Assim, e ao contrário do pretendido pelos AA., o arrendamento não caducou por morte da inquilina, já que se transmitiu à R. que com aquela vivia em economia comum há mais de um ano, e nos termos dos art.º 1106º e 1107º do Código Civil.
Ou seja, na improcedência das conclusões do recurso dos AA. não há que fazer qualquer censura à sentença recorrida, quando aí se conclui que o arrendamento não caducou porque se transmitiu à R. nos termos dos referidos preceitos legais, e estando assim verificado o direito da R. à utilização habitacional da fracção arrendada contra o pagamento da renda respectiva, com a consequente improcedência dos pedidos formulados na acção.
***
DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso e mantém-se a sentença recorrida.
Custas do recurso pelos AA.

9 de Maio de 2024
António Moreira
Higina Castelo
Rute Sobral