Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1867/23.0T8CSC.L1-4
Relator: PAULA POTT
Descritores: JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
PROPORCIONALIDADE
ERPI
DEVER DE OBEDIÊNCIA
VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DE PERSONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Justa causa de despedimento – Proporcionalidade da sanção – Artigos 330.º e 351.º do Código do Trabalho
 (Sumário da autoria da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência, na 4.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
Sentença recorrida
1. Por sentença de 28.11.2023 (referência citius ...), o 2.º Juízo do Trabalho de Cascais, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, (doravante também Tribunal de primeira instância, Tribunal recorrido ou Tribunal a quo), proferiu a seguinte decisão:
“III – Decisão
Nestes termos, pelo exposto e de harmonia com as normas legais citadas, julga-se totalmente improcedente, por não provada, a presente acção e:
1- Declara-se válido e lícito o despedimento da trabalhadora AA, sem direito a indemnização ou compensação;
2- Absolve-se o réu Instituto XX de todos os pedidos formulados pela autora.
Nos termos do art.º 98°-P n.º 1 do CPT, fixa-se à causa o valor de €2.000,00 (dois mil euros).
Custas pela autora sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido. “
Alegações da recorrente
2. Inconformada com a sentença mencionada no parágrafo anterior, a recorrente (autora, trabalhadora), dele veio interpor o presente recurso (cf. referência citius 35191573 de 27.2.2023), pedindo a revogação da sentença recorrida e que seja “declarada a ilicitude do despedimento da recorrente pela recorrida, com as legais consequências”.
3. Nas suas alegações vertidas nas conclusões, a recorrente impugna a decisão recorrida com base nos argumentos que o Tribunal a seguir sintetiza:
• Os factos provados 6, 10 e 11 devem ser considerados não provados (cf. artigo 21º das alegações de recurso);
• Tais factos devem ser reapreciados à luz dos depoimentos das testemunhas BB, CC e DD referidos nos artigos 11º a 14º das alegações, para os quais remete a conclusão 3º do recurso;
• Desses depoimentos não resulta que a recorrente tivesse conhecimento de que não podia usar a grua de transferência vertical com a utente em questão, comportamento que serviu de base ao despedimento, nem que tenha estado presente nas reuniões em que foram transmitidas orientações quanto ao tratamento da utente em questão;
• A recorrente agiu sem culpa e não se provaram prejuízos resultantes da sua atuação;
• A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 330.º n.º 1 e 351.º n.ºs 1 e 2 do Código do Trabalho (CT);
• A interpretação desses preceitos legais feita na sentença recorrida, infringe o artigo 53.º da Constituição da República Portuguesa (CRP);
• O despedimento da autora foi ilícito por não existir justa causa uma vez que não se provou a culpa da autora ou, se o Tribunal assim não entender, a sanção aplicada não foi adequada, nem proporcional ao comportamento da recorrente.
Contra-alegações da recorrida
4. A recorrida (executada, empregadora) contra-alegou (cf. referência citius 35309533 de 9.3.2023), pugnando pela improcedência do recurso, defendendo, em síntese:
• A impugnação da matéria de facto deve improceder por resultar dos depoimentos das testemunhas CC, BB e EE que a autora conhecia as indicações clínicas sobre os equipamentos a usar com a utentes, nomeadamente que não era adequado usar a grua de transferência vertical com a utente em causa;
• Os restantes funcionários conheciam essas indicações, incluindo os que ali trabalhavam há alguns meses, como a testemunha CC, não sendo plausível, à luz das regras da experiência, que a autora, que ali trabalhava há anos, não conhecesse essas indicações;
• Apesar disso, a recorrente usou a grua de transferência vertical com a utente em questão sabendo que lhe provocava dor;
• Devido ao comportamento da recorrente, a utente foi encontrada a chorar pela testemunha EE e ficou num estado ansioso como refere a testemunha BB;
• Dos meios de prova produzidos resulta que referida utente sofrera um acidente vascular cerebral, mas tinha capacidade cognitiva e pediu à recorrente que não usasse o equipamento de transferência vertical uma vez que lhe causava dor;
• Esta não foi a primeira infracção disciplinar cometida pela recorrente e a sua gravidade inviabiliza a subsistência da relação laboral.
Parecer do Ministério Público
5. O digno magistrado do Ministério Público junto ao Tribunal da Relação, emitiu parecer (cf. referência citius 21257872 de 8.3.2024), ao abrigo do disposto no artigo 87.º n.º 3 do Código de Processo do Trabalho (CPT), pugnado pela improcedência do recurso e defendendo, em síntese:
• Não merece censura a apreciação da matéria de facto nem a decisão de direito proferida pela primeira instância;
• Não foi violado o princípio da proporcionalidade na aplicação da sanção de despedimento;
• O artigo 331.º do CT elenca taxativamente as sanções abusivas, não tendo a recorrente provado, como lhe cabia nos termos do artigo 342.º n.º 1 do Código Civil (CC), factos que se possam enquadrar nas situações previstas no artigo 331.º do CT;
6. Foi observado o contraditório previsto no artigo 87.º n.º 3 do CPT, não tendo as partes respondido ao parecer mencionado no parágrafo que antecede.
Delimitação do âmbito do recurso
7. Têm relevância para a decisão do recurso as seguintes questões, vertidas nas conclusões:
A. Impugnação da matéria de facto
B. Despedimento ilícito por falta de justa causa e violação do princípio da proporcionalidade na aplicação da sanção
Factos
8. Nota: os factos provados e não provados serão a seguir agrupados, respectivamente, em dois parágrafos, com indicação da numeração que lhes foi atribuída na sentença recorrida, para facilitar a leitura e remissões.
9. Factos provados
1. AA celebrou acordo escrito com o Instituto XX, pessoa colectiva n.º ..., designado “Contrato de Trabalho a Termo Certo”, datado de 13 de Março de 2015, pelo qual se comprometeu a desempenhar as funções atinentes à categoria profissional de Empregada de Enfermaria 3ª/ Auxiliar de Serviços Gerais, em regime de tempo completo e para proceder a limpezas em locais onde se encontram hospitalizadas doentes do foro psicogeriátrico, competindo-lhe velar pela sua segurança, cuidar da sua higiene pessoal, como seja o banho, roupa, artigos de toilette, devendo ainda dar-lhe as refeições, entre outras tarefas. - fls. 79
2. No dia 28 de Fevereiro de 2023, pelas 9h00, no Centro Psicogeriátrico YY, a utente da ré, FF encontrava-se em sofrimento, com dores e a chorar - depoimento de GG.
3. A utente FF encontrava-se no estado indicado em 2) em virtude d[e] a autora ter usado uma grua de transferência vertical para movimentação da utente aquando da realização dos cuidados de higiene à mesma.
4. À data de 28 de Fevereiro de 2023 a utente FF apresentava uma hemiplegia esquerda e diminuição do equilíbrio do tronco, em virtude de ter sofrido um acidente vascular cerebral.
5. No estado de saúde de FF, a utilização de grua de transferência vertical era contraindicada, por lhe causar muita dor e desconforto.
6. O descrito em 4) e 5) era do conhecimento da autora.
7. FF comunicou à autora a sua recusa no uso da grua de transferência vertical, mas tal recusa não impediu a autora de usar a mencionada grua para movimentar a utente.
8. Questionada pela enfermeira BB sobre os motivos que a levaram a usar a grua de transferência vertical numa utente sem indicação clínica para tal, a autora referiu que tinha conhecimento de tal situação, mas que não estava para realizar esforços desnecessários.
9. O comportamento da autora colocou em risco a saúde e a estabilidade clínica da utente FF.
10. A informação sobre os equipamentos que devem ser utilizados no trabalho com os utentes é transmitida em reuniões de equipa, nas quais a autora esteve presente.
11. Nas reuniões indicadas em 10) a autora foi informada de que em casos como o da utente FF deveria ser utilizada a grua de transferência horizontal ou o apoio de outro colega para efectuar a movimentação do utente.
12. Na data indicada em 2) a autora trabalhava em equipa com a auxiliar de enfermagem CC.
13. Na data indicada em 2) CC prestou-se a auxiliar a autora na movimentação da utente FF, auxílio que a autora declinou.
14. Na data indicada em 2) existia no Centro Psicogeriátrico YY uma grua de transferência horizontal.
15. A autora tem averbada no seu registo disciplinar a sanção de repreensão registada, por factos ocorridos em 22 de Junho de 2022, atinentes ao não acatamento de instruções transmitidas por superior hierárquico.
16. À data de 14-11-2022, a autora encontrava-se apta para o desempenho das funções correspondentes à sua categoria profissional, sem quaisquer recomendações - fls. 11.
17. O réu entregou à autora a quantia de €978,29 a título de retribuições e demais créditos laborais emergentes da cessação do acordo indicado em 1).
10. Factos não provados
a. A autora ameaçou a utente FF.
b. Na sequência da recusa da utente FF em ser colocada na grua de transferência vertical, a autora chamou à utente “velhaca”.
c. A autora já tinha ameaçado a utente FF noutras ocasiões.
d. A autora desconhecia a existência de indicação clínica para que a grua de transferência vertical fosse utilizada com a utente FF.
e. A Autora desconhecia por completo que doença concreta padecia a utente, nem tinha conhecimento / capacidade para aferir tal situação.
f. Na data indicada em 2) a autora tinha limitações para o trabalho, nomeadamente levantamento de pesos.
g. Nas circunstâncias indicadas em 8) a autora disse à enfermeira BB que não tinha condições físicas, para sozinha, realizar todo o processo de transferência da utente em causa em braços.
h. A enfermeira BB apenas transmitiu à autora que a utente FF não gostava da utilização da grua.
Quadro legal relevante
11. Para a apreciação do recurso tem relevo, essencialmente, o quadro legal seguinte:
Constituição da República Portuguesa ou CRP
Artigo 53.º
(Segurança no emprego)
É garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa ou por motivos políticos ou ideológico
Código do Trabalho
Artigo 330.º
Critério de decisão e aplicação de sanção disciplinar
1 - A sanção disciplinar deve ser proporcional à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor, não podendo aplicar-se mais de uma pela mesma infracção.
2 - A aplicação da sanção deve ter lugar nos três meses subsequentes à decisão, sob pena de caducidade.
3 - O empregador deve entregar ao serviço responsável pela gestão financeira do orçamento da segurança social o montante de sanção pecuniária aplicada.
4 - Constitui contra-ordenação grave a violação do disposto nos n.ºs 2 ou 3.
Artigo 351.º
Noção de justa causa de despedimento
1 - Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
2 - Constituem, nomeadamente, justa causa de despedimento os seguintes comportamentos do trabalhador:
a) Desobediência ilegítima às ordens dadas por responsáveis hierarquicamente superiores;
b) Violação de direitos e garantias de trabalhadores da empresa;
c) Provocação repetida de conflitos com trabalhadores da empresa;
d) Desinteresse repetido pelo cumprimento, com a diligência devida, de obrigações inerentes ao exercício do cargo ou posto de trabalho a que está afecto;
e) Lesão de interesses patrimoniais sérios da empresa;
f) Falsas declarações relativas à justificação de faltas;
g) Faltas não justificadas ao trabalho que determinem directamente prejuízos ou riscos graves para a empresa, ou cujo número atinja, em cada ano civil, cinco seguidas ou 10 interpoladas, independentemente de prejuízo ou risco;
h) Falta culposa de observância de regras de segurança e saúde no trabalho;
i) Prática, no âmbito da empresa, de violências físicas, injúrias ou outras ofensas punidas por lei sobre trabalhador da empresa, elemento dos corpos sociais ou empregador individual não pertencente a estes, seus delegados ou representantes;
j) Sequestro ou em geral crime contra a liberdade das pessoas referidas na alínea anterior;
l) Incumprimento ou oposição ao cumprimento de decisão judicial ou administrativa;
m) Reduções anormais de produtividade.
3 - Na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes.
Código de Processo do Trabalho ou CPT
Artigo 87.º
Julgamento dos recursos
1 - O regime do julgamento dos recursos é o que resulta, com as necessárias adaptações, das disposições do Código de Processo Civil que regulamentam o julgamento do recurso de apelação e de revista.
2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, quando funcionar como tribunal de revista, o Supremo Tribunal de Justiça tem os poderes estabelecidos no Código de Processo Civil.
3 - Antes do julgamento dos recursos, o Ministério Público, não sendo patrono ou representante de qualquer das partes, tem vista no processo para, em 10 dias, emitir parecer sobre a decisão final a proferir, devendo observar-se, em igual prazo, o contraditório.
Código Civil ou CC
Artigo 70.º
(Tutela geral da personalidade)
1. A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral.
2. Independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida.
Artigo 396.º
(Força probatória)
A força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal.
Doutrina e jurisprudência que o Tribunal leva em conta
12. O Tribunal leva em conta os seguintes elementos, que serão mencionados infra na fundamentação:
Doutrina
Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, parte II, 9.ª edição, Almedina
Salvador da Costa, As Custas Processuais, 9.ª Edição,
Jurisprudência
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 1083/15.4T8MTS.P1.S1, publicado em dgsi.pt
Apreciação do recurso
A. Impugnação da matéria de facto
13. A recorrente discorda da resposta positiva dada pelo Tribunal aos factos provados 6, 10 e 11 e indica, como fundamento dessa discordância, os depoimentos das testemunhas BB, CC e DD.
14. Segundo o Tribunal julga perceber, a recorrente defende que, como nenhuma dessas testemunhas indicou concretamente quando tiveram lugar as reuniões em que foram prestadas as orientações de serviço sobre o tratamento dos utentes, nem afirmou que a recorrente esteve presente em tais reuniões, não é plausível julgar provado que a recorrente sabia que não podia usar a grua vertical para transferir a utente em causa.
15. A recorrida, por seu lado, defende que dos depoimentos das testemunhas CC, BB e EE resulta que não só a recorrente sabia que a grua vertical que usou não era adequada à utente em questão como utilizou essa grua contra a vontade da utente que tem capacidade cognitiva e expressou a sua vontade.
16. Para resolver esta questão, o Tribunal da Relação ouviu todos os depoimentos gravados, a saber, das testemunhas: GG (directora-gerente da recorrida); BB (enfermeira que trabalha para a recorrida e tinha funções de chefia directa da recorrente); EE (fisioterapeuta que trabalha para a recorrida); CC (auxiliar de enfermagem que trabalha para a recorrida); e DD (auxiliar de enfermagem que trabalha para a recorrida). A esse propósito, convém sublinhar que a prova testemunhal é livremente apreciada pelo Tribunal – cf. artigo 396.º do Código Civil (CC).
17. Com base na análise dos depoimentos referidos no parágrafo anterior, feita ao abrigo do disposto no artigo 662.º do Código de Processo Civil (CPC) e tendo em conta a regra de direito probatório material constante do artigo 396.º do CC, o Tribunal da Relação, no seu juízo autónomo, ficou convicto da realidade dos factos provados 6, 10 e 11, pelos motivos seguintes.
18. Com efeito, embora as testemunhas não indicassem as datas das reuniões de equipa nem tenham dito expressamente que a recorrente assistia a tais reuniões, todas as testemunhas foram unânimes em explicar que existiam reuniões regulares/mensais e além dessas eram convocadas outras quando entrava um utente novo ou um elemento do pessoal cuidador novo. Do conjunto de tais depoimentos resulta que a organização do trabalho da recorrente como auxiliar de enfermagem era a seguinte: a recorrente trabalhava com outra colega, que no dia do incidente objecto dos autos era a testemunha CC; as auxiliares de enfermagem têm por chefe uma enfermeira, que no caso da recorrente era a testemunha BB; nas reuniões de serviço as enfermeiras que chefiavam as equipas transmitiam a informação às auxiliares de enfermagem sobre o equipamento adequado consoante a situação de cada utente; a utente em questão não tinha força de um dos lados e todos os elementos da equipa sabiam que nesse caso as orientações eram de que a intervenção devia ser feita por duas pessoas (nos cuidados de higiene e transferência da utente da cama para a cadeira ou vice versa) ou devia ser utilizada a grua horizontal em que a utente fica sentada/reclinada, mas que não devia ser usada a grua vertical nos doentes que não têm força de sustentação no tronco, como era o caso da utente em questão, pelo facto de ter sofrido um acidente vascular cerebral. Este estado de saúde da utente resulta do facto provado 4, não impugnado.
19. Em particular, a testemunha CC presenciou os factos que estiveram na origem do despedimento e ofereceu-se para ajudar a recorrente quando viu a utente sem força e inclinada para um dos lados, na grua vertical. Segundo a testemunha, a recorrente recusou o seu auxílio, motivo pelo qual o Tribunal ficou convicto de que era reconhecível para recorrente, como foi para a testemunha CC, que o uso da grua vertical para transferir aquela utente era desadequado e causava desconforto e sofrimento desnecessário à utente. A testemunha CC disse trabalhar apenas há 10 meses para ré e saber que naquela utente não devia ser usada a grua vertical, por isso se ofereceu para ajudar a recorrente, ao ver a posição em que estava a utente. O que torna implausível, de acordo com as regras da experiência, que a recorrente, que ali exercia funções de auxiliar há vários anos (cf. facto provado 1, não impugnado), desconhecesse as indicações dadas quanto ao uso do equipamento de transferência em função do estado de saúde dos utentes e não discernisse que estava a causar incómodo e sofrimento desnecessários à utente.
20. A testemunha EE, no dia da ocorrência, ia a passar e encontrou a utente em questão a chorar no quarto e ouviu o relato da utente sobre o comportamento da recorrente que esteve na origem do despedimento. Segundo explicou a testemunha, a utente relatou-lhe que sentia dores e que tinha implorado à recorrente que não usasse a grua vertical. Sendo a testemunha fisioterapeuta confirmou a inadequação da utilização da grua vertical e o conhecimento geral, por parte de todos os cuidadores, dos casos, como o daquela utente, em que não deve ser usada a grua vertical. Do seu depoimento resulta que a recorrente já tinha estado envolvida noutro episódio de desrespeito/comportamento pouco educado, que originou uma sanção disciplinar.
21. A testemunha BB, não assistiu aos factos mas relatou que posteriormente, enquanto chefe directa da recorrente, procurou saber junto dela porque motivo usou a grua vertical que não era adequada para aquela utente. Segundo a testemunha, a resposta da recorrente foi que não estava para fazer esforços desnecessários. Do seu depoimento resulta que as orientações dadas quanto ao uso do equipamento de transferência eram conhecidas de todos os cuidadores, fossem enfermeiros ou auxiliares de enfermagem. O que, conjugado com a resposta dada pela recorrente à testemunha, sobre os motivos que a levaram a usar a grua vertical, leva o Tribunal a ficar convicto de que o comportamento da recorrente não se deveu ao desconhecimento das orientações dadas para a utilização do equipamento.
22. A testemunha GG foi chamada para falar com a utente em questão no dia do incidente que levou ao despedimento da recorrente e confirmou ter encontrado a utente em sofrimento e que esta lhe relatou ter pedido várias vezes à recorrente que não usasse a grua vertical.
23. A testemunha DD, auxiliar de enfermagem que trabalha para a ré há vários anos, não presenciou os factos mas confirmou que a orientação que lhe foi dada e às restantes auxiliares de enfermagem, nas reuniões regulares de equipa, era de não usar a grua vertical naquela utente e noutros em idêntica situação. Conhece a utente em questão e sabe que ela não consegue colocar-se de pé e que num dos lados não tem força, pelo que, a transferência dessa utente tem de ser feita por duas pessoas. A testemunha, quando trata dessa utente chama alguém ou usa uma grua horizontal, em forma de cegonha, em que a utente fica numa posição sentada, quase deitada.
24. Assim, à luz dos depoimentos acima analisados, afigura-se que não merece qualquer censura a resposta dada pelo Tribunal a quo aos factos provados 6, 10 e 11.
25. Motivos pelos quais improcede totalmente este segmento da argumentação da recorrente.
B. Despedimento ilícito por falta de justa causa e violação do princípio da proporcionalidade na aplicação da sanção
26. A título liminar, convém recordar que entre a recorrente como trabalhadora e a recorrida como empregadora, foi celebrado um contrato de trabalho, que teve por objecto o exercício, pela recorrente, das funções correspondentes à categoria profissional de empregada de enfermaria 3ª/ auxiliar de serviços gerais. A recorrida, empregadora, pôs termo a esse contrato de trabalho mediante despedimento motivado, na sequência da instauração de processo disciplinar – cf. factos provados 1 e 17 e processo e decisão de despedimento juntos com as referências citius 23740102 de 11.7.2023 e 23474512 de 31.5.2023, documentos que o Tribunal leva em conta ao abrigo do disposto nos artigos 607.º n.º 4, ex vi artigos 663.º n.º 2 do CPC e 87.º n.º 1 do CPT. Foi nesse contexto que a recorrente intentou a presente acção de impugnação da licitude e regularidade do despedimento.
27. No presente recurso a recorrente defende que o seu despedimento foi ilícito por falta de justa causa. Segundo o Tribunal julga perceber, na óptica da recorrente, isso dever-se-ia ao facto de a recorrente desconhecer a ilicitude do seu comportamento, ter agido sem culpa e não ter provocado danos. Para o caso desta argumentação improceder, a recorrente defende então que a sanção de despedimento foi desproporcional. A recorrente alega que o Tribunal a quo interpretou erradamente os artigos 330.º e 351.º n.ºs 1 e 2 do CT, interpretação essa que viola o direito à segurança no emprego, consagrado no artigo 53.º da CRP.
28. Para resolver as questões enunciadas no parágrafo anterior, que aqui serão analisadas conjuntamente, o Tribunal acompanha a seguinte doutrina: Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, parte II, 9.ª edição, Almedina, páginas 964 a 973.
29. Assim, o Tribunal começa por sublinhar que nos termos do artigo 351.º do CT, quando há cessação do contrato de trabalho com justa causa, por iniciativa do empregador, como foi o caso, a lei refere-se a justa causa apenas em sentido subjectivo, ou seja a justa causa invocada pela empregadora tem necessariamente de assentar num comportamento grave e culposo da trabalhadora em questão, que constitua uma infracção disciplinar.
30. Em segundo lugar, há que levar em conta que o artigo 351.º do CT:
• contém uma cláusula geral de justa causa no seu n.º 1;
• enumera, a título exemplificativo, situações típicas de justa causa, no seu n.º 2;
• e prevê critérios de apreciação de justa causa no seu n.º 3.
31. Nesse contexto, a argumentação da recorrente convoca desde logo a necessidade de interpretar o conceito geral de justa causa constante do artigo 351.º n. 1 do CT. Para que exista uma situação de justa causa têm de verificar-se três requisitos:
• o elemento subjectivo, que consiste num comportamento ilícito do trabalhador, grave em si mesmo ou pelas suas consequências e culposo;
• o elemento objectivo, que consiste na impossibilidade prática e imediata de subsistência do vínculo laboral;
• a existência de um nexo de causalidade entre os elementos subjectivo e objectivo, ou seja, o comportamento do trabalhador deve ser causa adequada da impossibilidade de subsistência do contrato.
O Tribunal indicará a seguir por que motivo julga que se verificam estes três requisitos.
32. Para saber se se verifica o elemento subjectivo enunciado no parágrafo 31, a ilicitude do comportamento da recorrente deve ser apreciada do ponto de vista dos deveres laborais violados. Neste caso, como se apurou, a recorrente violou as orientações de serviço dadas quanto aos cuidados a prestar aos utentes. Adicionalmente, o comportamento da recorrente foi culposo, por não ter observado o grau de diligência devida por uma empregada de enfermaria auxiliar de serviços gerais, cujas funções eram prestar os cuidados e desempenhar as tarefas descritas no facto provado 1, naquela situação e àquela utente concreta cujo estado físico lhe era cognoscível. Além disso, dos factos provados resulta que a recorrente agiu dolosamente, com a intenção de não observar as orientações que lhe tinham sido dadas quanto ao modo de cuidar da utente em questão e com a intenção de desrespeitar a vontade dessa utente que, tendo o domínio das suas faculdades mentais, lhe pediu para que não usasse o equipamento de transferência vertical. Por fim, o Tribunal julga que o comportamento da recorrente foi grave, pelo facto de ter causado dor e sofrimento físico e emocional a uma utente internada numa instituição de geriatria, que visivelmente não tinha força de um lado, tinha sofrido um acidente vascular cerebral e, por isso, encontrava-se numa situação particularmente vulnerável (cf. factos provados 2 a 14). Em consequência, encontra-se preenchido o primeiro requisito da justa causa de despedimento.
33. Quanto ao requisito objectivo, enunciado no parágrafo 31, a saber, a impossibilidade da subsistência do vínculo laboral, o mesmo não consiste numa impossibilidade objectiva mas reconduz-se, antes, à ideia de inexigibilidade. No caso em análise, atenta a gravidade do comportamento da recorrente, já acima enunciada no parágrafo 32, a vulnerabilidade dos utentes do centro geriátrico cujos cuidados diários de higiene e outros estavam confiados à recorrente e a existência de uma anterior sanção disciplinar aplicada à recorrente por desobediência às indicações dadas pelos seus superiores hierárquicos, afigura-se que o comportamento da recorrente conduziu, na prática e no contexto acima descrito, a uma irremediável perda de confiança por parte da empregadora em que a trabalhadora realizará as tarefas de acordo com as indicações dadas e sem colocar em risco o bem estar físico e emocional dos utentes da instituição geriátrica em questão. Uma tal perda de confiança compromete de forma imediata a manutenção futura do vínculo laboral. Pelo que, afigura-se que se verifica o segundo requisito da justa causa de despedimento.
34. Por fim, pelos motivos indicados no parágrafo anterior, existe nexo de causalidade entre o comportamento grave e culposo da recorrente e a impossibilidade prática de subsistência do contrato de trabalho de trabalho. Pelo que, verifica-se o terceiro e último requisito da justa causa de despedimento enunciado no parágrafo 31.
35. Adicionalmente, resulta dos factos provados 2 a 14 que o comportamento da recorrente se enquadra na situação típica de justa causa de despedimento prevista no artigo 351.º n.º 2 – a) do CT, por desobediência ilegítima a ordens dos seus superiores hierárquicos. Nesse contexto, a apreciação da justa causa de despedimento deve levar em conta os factores mencionados no artigo 351.º n.º 3 do CT, a saber, o quadro de gestão da empresa, o grau de lesão dos interesses do empregador, o carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e a demais circunstâncias que no caso sejam relevantes.
36. De entre os factores previstos no artigo 351.º n.º 3 do CT, o Tribunal pondera como se segue os que estão disponíveis nos autos.
37. Em primeiro lugar, o Tribunal leva em conta que a recorrente já tinha sido anteriormente punida disciplinarmente por desobediência a orientações dadas por um superior hierárquico, como resulta do facto provado 15. Ora este passado disciplinar tem relevo na apreciação da causa do presente despedimento, à luz do disposto no artigo 351.º n.º 3 do CT, na medida em que se projecta na perda de confiança que conduz à impossibilidade imediata de manutenção do vínculo laboral – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 1083/15.4T8MTS.P1.S1, pontos 4.1 e 4.3.
38. Em segundo lugar, no que respeita ao grau de lesão dos interesses do empregador, o Tribunal sublinha que, contrariamente ao que parece defender a recorrente, não é exigível, à luz do disposto no artigo 351.º n.º 1-a) e n.º 3, do CT, que a infracção disciplinar aqui em causa provoque danos ou prejuízos ao empregador (cf. Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, parte II, 9.ª edição, Almedina, página 979)
39. Em terceiro lugar, resulta dos factos provados 2 a 14, apreciados à luz do disposto no artigo 351.º n.º 3 do CT, que a trabalhadora demonstrou incapacidade de trabalhar em equipa, ao recusar a colaboração de outra trabalhadora no desempenho da tarefa em causa.
40. Por último, o Tribunal leva em conta que se extrai igualmente dos factos provados 2 a 14 que a recorrente lesou os direitos de personalidade de uma utente em situação vulnerável, internada no estabelecimento de geriatria da empregadora – artigo 70.º do CC – tendo demonstrado insensibilidade perante o sofrimento que causou a essa utente, ao responder à sua superior hierárquica que não estava para realizar esforços desnecessários quando simultaneamente se apurou que podia contar com o auxílio de outra funcionária e que o recusou.
41. Sendo a enumeração constante do artigo 351.º n.º 2 do CT meramente exemplificativa, uma tal violação dos direitos de personalidade de uma utente dos serviços prestados pela empregadora, embora não tipificada no artigo 351.º n.º 2 do CT, constitui em si mesma justa causa de despedimento, nas circunstâncias acima enunciadas conjugadas com o facto de a recorrente não ter respeitado a vontade expressa pela utente de não autorizar a utilização da grua vertical nos cuidados que lhe eram prestados – cf. factos provados 7 e 8.
42. Tendo em conta o passado disciplinar da recorrente, a actuação dolosa e a lesão dos direitos de personalidade de uma utente em situação vulnerável devido à doença e internamento em instituição geriátrica, afigura-se que a sanção disciplinar de despedimento aplicada à recorrente foi proporcional à gravidade da infracção e à culpabilidade da recorrente. Pelo que, contrariamente ao que defende a recorrente, não houve violação do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 330.º n.º 1 do CT.
43. Pelos fundamentos acima enunciados, a interpretação dos artigos 330.º e 351.º do CT, feita pelo Tribunal a quo, não violou o direito à segurança no emprego, consagrado no artigo 53.º do da CRP. Foi a própria recorrente quem, com o seu comportamento grave e doloso, comprometeu irremediavelmente a manutenção do vínculo laboral.
44. Enfim, tal como defende o digno magistrado do Ministério Público, não se verifica nenhuma das circunstâncias previstas no artigo 331.º do CT que levem à aplicação do regime das sanções abusivas aí previsto, nem a recorrente alegou tais circunstâncias; pelo que, não fazem parte do objecto do recurso – cf. artigo 608.º n.º 2 do CPC.
45. Motivos pelos quais, improcede totalmente o recurso e se mantém a sentença recorrida.
Em síntese
46. Improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto pelos motivos acima indicados na análise da questão A.
47. Verificam-se os três requisitos do conceito geral de justa causa de despedimento constantes do artigo 351.º n. 1 do CT.
48. O comportamento da recorrente enquadra-se na situação típica de justa causa de despedimento prevista no artigo 351.º n.º 2 – a) do CT, por desobediência ilegítima a ordens dos seus superiores hierárquicos.
49. Adicionalmente, a recorrente lesou os direitos de personalidade de uma utente em situação vulnerável, internada no estabelecimento de geriatria da empregadora – artigo 70.º do CC.
50. Tendo em conta o passado disciplinar da recorrente, a sua actuação dolosa e a gravidade do seu comportamento, afigura-se que ficou imediatamente comprometida a possibilidade de manutenção do contrato de trabalho, sendo a sanção disciplinar de despedimento aplicada à recorrente proporcional à gravidade da infracção e à culpabilidade da recorrente – cf. artigo 330.º do CT. Pelo que, não foi violado o disposto no artigo 53.º da CRP.
51. Motivos pelos quais improcede o recurso.
Custas do recurso
52. Tendo em conta o princípio da causalidade consagrado no artigo 527.º n.º 2 do CPC, aplicável ex vi artigo 87.º n.º 1 do CPT, a recorrida foi integralmente vencedora no recurso e, por isso, não deve ser condenada nas custas.
53. A recorrente, que decaiu no recurso, beneficia do apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e encargos (cf. documento junto com a referência citius 24407971 de 8.11.2023).
54. Pelo que, de acordo com a doutrina a seguir citada, a recorrente não deve ser condenada em custas por não existir apoio legal para essa condenação (cf. Salvador da Costa, As Custas Processuais, 9.ª Edição, Almedina, página 9):
“Beneficiando a parte vencida de apoio judiciário na modalidade de dispensa de custas, não tem apoio legal a condenação no seu pagamento, com a ressalva do apoio judiciário de que beneficie, mas sim a não condenação dela no pagamento de custas”
55. Isto, sem prejuízo de o reembolso das taxas de justiça pagas pela recorrida, pelo qual seja responsável a recorrente, dever ser suportado pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP, nos termos do artigo 26.º n.º 6 do Regulamento das Custas Processuais (RPC), o que será ordenado.
Decisão
Acordam os Juízes desta secção em:
I. Julgar improcedente o recurso e manter a decisão recorrida.
II. Não condenar a recorrente nas custas do recurso uma vez que beneficia do apoio judiciário, sem prejuízo do reembolso devido à parte vencedora ter lugar nos termos previstos no artigo 26.º n.º 6 do RCP.

Lisboa, 24 de Abril de 2024
Paula Pott
António José Alves Duarte
Francisca Mendes