Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
848/21.2S3LSB.L1-5
Relator: MANUEL JOSÉ RAMOS DA FONSECA
Descritores: PENA DE MULTA
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REENVIO
Sumário: I–Reconhecido que a sentença padece de vício decisório – art. 410.º/2CPP – cumpre retirar, no possível, as devidas ilações à luz do art. 426.º/1CPP, entre as quais e se necessário fazendo o enquadramento jurídico dos factos e, sendo caso, escolhendo e determinando a pena a aplicar ao Arguido.

II–Optando-se por pena de multa, determinada a mesma, se ainda assim operar insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quanto à concreta questão do apuramento da situação económica e pessoal do Arguido, visando a fixação do quantitativo diário da pena de multa, deve operar reenvio do processo limitado a esta concreta matéria.

(Sumário da responsabilidade do relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, na 5.ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–RELATÓRIO


1.–Decisão recorrida
Mediante Sentença datada e depositada a 13julho2023 (ref.s 427538357 e 427725175), foi o Arguido AA absolvido da imputada prática, como autor material e na forma consumada, de 1 (um) crime de furto simples, p. p. pelo art. 203.º/1CP.

2.–Recurso
Inconformado com o referido Acórdão, do mesmo e junto do Tribunal a quo interpôs o Ministério Público recurso (entrado a 28setembro2023 - ref. 37127306) motivando-o e delimitando-o no objeto com as conclusões (medianamente aceitáveis na condensação exigível) que se transcrevem (SIC, com exceção da formatação do texto, optando-se pelo integral itálico, da responsabilidade do Relator):

i)–Conclusões
I.– O presente recurso funda-se em divergências que se prendem com a absolvição do arguido AA pela prática do crime de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º, nº 1do Código Penal.
II.–Entende-se que o Tribunal incorreu no vício previsto no art. 410º, nº2, al.b) do CPPenal, porquanto os factos não provados (factos A) a C)) estão em contradição com a motivação da matéria de facto.
III.–Por tal motivo, tais factos deveriam ser dados igualmente como provados e consequentemente o arguido condenado em conformidade.
IV.–A par daquele vício existe igualmente erro de julgamento (art. 412º, nº 3 do CPPenal) quanto a tais factos não provados (alíneas A) a C)) porquanto o Tribunal a quo não teve efectivamente em consideração toda a prova produzida, nem a conjugou entre si – seja a prova documental junta aos autos, com especial destaque para a detenção do arguido, a apreensão dos objectos e os fotogramas juntos aos autos, seja os depoimentos prestados em audiência com principal enfoque no depoimento do agente da PSP BB e do Vigilante CC, cujos depoimentos estão acima transcritos.
V.–Também por via deste erro os factos não provados (alíneas a) a c) deveriam ser dados por provados e o arguido condenado em conformidade.
Nestes termos e nos demais de direito aplicável, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve o arguido ser condenado, pela prática de um crime de furto previsto e punido pelo artigo 203º do Código Penal, devendo ser-lhe aplicada pena consonante com a sua jovem idade e a sua ausência de antecedentes criminais.
Contudo, V. Exas decidindo farão, uma vez mais, a já costumada JUSTIÇA.”

3.–Resposta ao recurso
Regularmente admitido o recurso (a 9outubro2023 - ref. 429070371) e de tal notificado o Arguido, este (a 11outubro2023 - ref. 37236048) respondeu ao mesmo de forma direta, pugnando no sentido da improcedência do recurso, formulando as conclusões (sintéticas e adequadas) que se transcrevem (SIC, com exceção da formatação do texto, optando-se pelo integral itálico, da responsabilidade do Relator):
I.–“Não foi produzida em julgamento prova bastante de que o arguido tenha praticado os factos que lhe foram imputados pelo MP.
II.–Não foi produzida prova suficiente de que tenha sido o arguido nestes autos o efetivo suspeito dos factos reportados pelos seguranças da superfície comercial, que NÃO reconheceram o arguido.
Nestes termos e nos mais de direito, deve a presente resposta ser considerada procedente, por provada, desatendendo-se o douto recurso aqui em crise, com as legais consequências, com o que se fará
JUSTIÇA! “

4.–Tramitação subsequente
Recebidos os autos nesta Relação, o processo foi com vista ao Digníssimo Procurador-Geral Adjunto, o qual, com concreta e circunstanciada explanação, acompanhando a posição exarada pelo Ministério Público na primeira instância, emitiu parecer (a 22outubro2023 - ref. 20638681) pugnando pela procedência do recurso interposto, sendo que, porém, qualifica de forma diferenciada o invocado vício de reporte ao art. 410.º/2CPP.
Este parecer foi notificado para efeito de eventual contraditório, aqui inexistindo resposta do Arguido.
Efetuado o exame preliminar, foi determinado que o recurso seja julgado em conferência. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

II–FUNDAMENTAÇÃO

1.–Apreciação do recurso

i)–Acórdão recorrido
Dada a sua relevância para o enquadramento e melhor compreensão do infra a decidir em termos de delimitação do objeto de recurso, urge, desde já, aqui verter quer a factualidade que o Tribunal a quo deu como provada e não provada, as razões para tal e ainda, por fim, o enquadramento jurídico que efetua na fundamentação de direito.

a.–Factos provados
(SIC, com exceção da formatação do texto, optando-se pelo integral itálico, da responsabilidade do Relator)
1.–“No dia 19 de junho de 2021, pelas 16h41, individuo não identificado dirigiu-se à loja “...”, no ..., sito na …, em …, pertencente à sociedade “...”, com o intuito de se apoderar de quaisquer artigos que aí encontrasse com valor económico.
2.–Ali chegado, e em execução de tal desígnio, o individuo não identificado retirou dos expositores onde se encontravam para serem vendidas, 3 malas de senhora, 2 carteiras de senhora e diversos artigos de vestuário e calçado, tudo no valor global de 108,00 €.
3.–De seguida, o individuo não identificado colocou tais artigos dentro de um saco que transportava consigo e dirigiu-se para o exterior do estabelecimento comercial, sem proceder ao seu pagamento, integrando-as assim no seu património.
4.–No exterior da loja, o individuo não identificado foi intercetado pelo respetivo vigilante na posse dos mencionados artigos, que foram de imediato entregues ao seu legítimo possuidor.
Mais se provou:
5.–O arguido não possui antecedentes criminais registados.”

b.- Factos não provados
(SIC, com exceção da formatação do texto, optando-se pelo integral itálico, da responsabilidade do Relator)
A.–“O arguido praticou os factos descritos nos pontos 1 a 4 dos factos provados.
B.–O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito de se apoderar dos artigos supra mencionados, com vista a fazê-los seus, como veio a conseguir, bem sabendo que estes não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade do seu legítimo dono.
C.–Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.”

c.–Motivação
SIC, com exceção da formatação do texto, optando-se pelo integral itálico, da responsabilidade do Relator, mas mantendo-se os sublinhados)
“A convicção deste Tribunal quanto à matéria de facto provada e não provada fundouse na análise crítica e conjugada da globalidade da prova, quer a que resulta dos autos, como a produzida em sede de audiência de julgamento, devidamente valorada de acordo com as regras da experiência comum e com a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Com efeito, dos elementos probatórios tidos em consideração, destacam-se os seguintes:
Prova testemunhal: BB, agente da PSP; DD, agente da PSP; EE, vigilante da ...; CC, vigilante da ...; FF, vigilante da ... com poderes de representação da empresa ...; e GG, vigilante da ....
Prova documental: - Auto de notícia por detenção, a fls. 1 a 5; Queixa, a fls. 8 e ss.; Auto de apreensão, a fls. 18 a 19; Auto de exame e avaliação, a fls. 20; Fatura, a fls. 25; e Auto de visionamento, a fls. 124 a 130; e

Concretizando:
O arguido requereu o seu julgamento na ausência, pelo que se desconhece a sua versão quanto aos factos.
Assim, o tribunal formou a sua convicção através da análise concatenada dos demais elementos de prova, acima elencados.
Os factos provados n.ºs 1, 3 e 4 resultam do depoimento testemunhal prestado por CC, vigilante da ... que prestava funções na Central da empresa, estando a visualizar as imagens de videovigilância da ... sita no .... Relatou que viu um individuo a retirar objetos para dentro de um saco da loja, sendo que dirigiu para a saída da loja sem passar pela caixa para efetuar o pagamento. Assim, informou o vigilante que se encontrava na porta da ... A propósito da descrição do individuo disse que lhe pareceu jovem e de ascendência indiana, não conseguindo descrevê-lo.
No que concerne aos objetos subtraídos (facto provado n.º 2) foi valorada a fatura constante de fls. 25, que elenca os objetos furtados e o respetivo valor. O valor dos objetos foi também confirmado por FF, vigilante da ... com poderes de representação da empresa Primark, muito embora não se recordasse dos objetos em concreto nem tenha presenciado os factos.
Relativamente à ausência de antecedentes criminais do arguido (facto provado n.º 5), valorou-se o Certificado de Registo Criminal da mesma junto aos autos (Referência CITIUS n.º 26790369).
No que concerne aos factos não provados não foi produzida prova que os sustentasse com o grau de certeza exigível em processo penal. Com efeito, os factos constantes da acusação pública não foram suficientemente corroborados pelo acervo probatório constante dos autos e produzido em audiência, o qual não permite formular senão conjeturas não alicerçadas em prova suficiente para concluir por um juízo de culpabilidade do arguido.
Vejamos:
O vigilante CC observou os factos através das imagens de videovigilância da ..., contudo não viu pessoalmente o autor dos mesmos, apenas se recordando que era jovem e que parecia ser de origem indiana. A este propósito cumpre salientar que o individuo utilizava uma máscara, não sendo possível visualizar parte do rosto (Cfr. Auto de visionamento, a fls. 124 a 130).
Por seu turno, o vigilante HH não assistiu aos factos e os vigilantes GG e EE, que à data dos factos prestavam funções na ..., não tinham qualquer memória dos acontecimentos.
Os agentes da PSP BB e DD relataram que forma chamados à ... do ..., onde tinha sido retido um individuo suspeito de subtrair artigos da loja. Não presenciaram os factos, limitando-se a identificar o individuo que tinha sido retido pelos vigilantes. A este propósito referiram que a identificação do arguido foi feita através da exibição de uma fotografia do passaporte mostrada pelo responsável pelo menor.
Do exposto conclui-se que as únicas testemunhas que presenciaram os factos não se recordam dos mesmos, sendo que a demais prova produzida não é suficiente para o tribunal concluir que os factos foram praticados pela pessoa identificada nestes autos como sendo o arguido.
Mais se diga que, no caso concreto, a prova constante dos autos é insuficiente para fazer um raciocínio indiciário porquanto inexistem elementos concretos e diretos que permitam concluir que os objetos descritos no ponto 2 da matéria de facto provada foram subtraídos pelo arguido.
Neste conspecto, importa ainda convocar o princípio da presunção da inocência (in dubio pro reo), que encontra acolhimento constitucional no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa. Este princípio fundamental exige que em caso de dúvida razoável, o tribunal decida pela absolvição do arguido.
Concretizando, para um facto ser considerado provado, o tribunal tem que formular uma convicção para além de toda a dúvida razoável e, na hipótese de haver uma dúvida razoável, em obediência ao princípio do in dubio pro reo, não se podem considerar provados factos em relação aos quais existe tal dúvida. Assim, não basta um mero juízo de maior probabilidade de que os factos terão ocorrido de determinada forma, exigindo-se um forte juízo de certeza de que os factos terão ocorrido de determinada forma e não de outra.
Por todo o exposto, como já se adiantou, no caso em apreço, existe uma dúvida razoável de que o arguido tenha sido autor dos factos elencados nos pontos 1 a 4 dos factos provados, razão pela qual o Tribunal considerou o facto não provado A.
Pelos motivos explanados, também se consideram, naturalmente, não provados os factos atinentes aos elementos intelectual e volitivo do dolo (factos não provados B e C).

2.–Objeto do recurso
O poder de cognição do Tribunal ad quem mostra-se primariamente delimitado em função das conclusões extraídas pelo recorrente da sua fundamentação de motivação, já que é nelas que se sintetizam as razões da sua discordância com a decisão recorrida (arts. 402.º;403.º;412.º/1CPP).
Contudo, está ainda o Tribunal ad quem obrigado a decidir todas as questões de conhecimento ex officio, tais quais as nulidades insanáveis, ou que não se mostrem sanadas, que afetam o processado (arts. 379.º/2;410.º/3CPP) e dos vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum (art. 410.º/2CPP) e que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19outubro1995, in DR I-Série-A, de 28dezembro995 e Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 10/2005, de 20outubro2005, in DR I-Série-A, de 7janeiro2005).
Umas e outras definem, pois, o objeto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior.
Nos termos do disposto no art. 428.º/1CPP [a]s relações conhecem de facto e de direito” “devendo por isso, subsumir o direito aos factos”. (nesta específica expressão, Pires da Graça, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 16maio2012, NUIPC 30/09.7GCCLD.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt/jstj)
Resumindo, havendo tão só recurso em matéria de facto, a Relação conhece do objeto do recurso, e se modificar a matéria de facto, extrai as consequências jurídicas decorrentes; sendo o recurso de facto e de direito, conhece de ambos; sendo o recurso somente de direito, conhece do recurso, sem prejuízo do disposto no art. 410.º/2/3CPP.
Ou seja: a função do Tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que o convocou o Tribunal ad quem a um juízo de mérito.
À luz destes considerandos, foquemo-nos em quais sejam as questões a decidir neste recurso.

São questões a apreciar na sede de recurso:
1.ª– vícios decisórios - quer como invocados pelo Ministério Público recorrente quer como pelo Ministério Público nesta 2.ª instância;
2.ª– na sua verificação, quais as consequências processuais, consoante esteja, ou não, este Tribunal ad quem habilitado com os necessários elementos;

3.ª–erro de julgamento;

1.º–vícios decisórios
No âmbito dos vícios a que alude o art. 410.º/2CP estabelece-se a necessidade de o Tribunal ad quem conhecer a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a decisão de direito não encontre na matéria de facto provada uma base tal que suporte um raciocínio lógico subsuntivo (art. 410.º/2a)CPP); de verificar uma contradição insanável da fundamentação sempre que através de um raciocínio lógico conclua que da fundamentação resulta precisamente a decisão contrária ou que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a contradição entre os fundamentos aduzidos (art. 410.º/2b)CPP); de concluir por um erro notório na apreciação da prova sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo Tribunal (art. 410.º/2c)CPP).
Tudo isto, necessariamente em resultado do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum.
Estamos, assim, perante vícios da decisão recorrida, ligados aos requisitos de labor da sentença (art. 374.º/2CPP) ao nível da matéria de facto, e não perante vícios do julgamento. E dai que, tratando-se de erros de lógica na interpretação dos factos, tornem a sentença oposta ao teor de Lei, pelo que enquanto persistirem gera-se uma impossibilidade decisória e, quando impossível a imediata sanação, uma inerente necessidade de o Tribunal de recurso determinar o reenvio – total, ou parcial – dos autos para novo julgamento (art. 426.ºCPP). (sobre o conceito de vícios do art. 410.º/2CPP cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, rel. Juiz Conselheiro Raul Borges, 8julho2020, NUIPC 142/15.8PKSNT.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt/jstj; sobre o relacionamento e distinção de finalidades entre os art. 374.º/2 410.º/2CPP, cfr. Maria João Antunes in RPCC, Ano 4, Tomo 1 - Janeiro-Março 1994, p. 121, em anotação a Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 6maio1992, in CJ, 1992 T4 p. 5; sobre a delimitação dos vícios do art. 410.º/2CPP a questões de facto somente da sentença, cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, rel. Juiz Conselheiro Pereira Madeira, 20junho2002, proc. n.º 01P4250, rel. Juiz Conselheiro Armindo Monteiro, 8novembro2006, proc. n.º 06P3102, acessíveis in www.dgsi.pt/jstj; sobre a distinção dos vícios do art. 410.º/2CPP e a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o Tribunal firmou sobre os factos, cumprindo o princípio da livre apreciação da prova – art. 127.ºCPP - cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, rel. Juiz Conselheiro Henrique Gaspar, 8novembro2006, proc. n.º 06P3102, acessível in www.dgsi.pt/jstj)

a)–Da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão

Debrucemo-nos, então, acerca do vício invocado pelo Ministério Público recorrente (alínea a) do art 410.º/2CPP).
Este vício, necessariamente a constar do texto da decisão recorrida e a reportar à mesma questão, constitui-se nos casos de incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Deste modo, abrange a dita alínea b), do número 2 do artigo 410.ºCPP, dois vícios distintos: 1) a contradição insanável da fundamentação; e, 2) a contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
No primeiro caso, incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado. Por seu turno, a contradição entre a fundamentação e a decisão abrange as situações em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas.
(sobre o conceito do vício em causa cfr. Santos e Leal Henriques in CPP Anotado, Vol. II, 2.ª Edição, p. 737; Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, III.º Vol., 2.ª edição, p. 340/341 e notas; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, rel. Armando Leandro, 3julho2002, processo 1748/02-3, acessível in www.dgsi.pt/jstj; sobre a delimitação à mesma questão de facto, cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, rel. Juiz Conselheiro Andrade Saraiva, 22maio1996, processo 96P306, acessível in www.dgsi.pt/jstj; sobre a distinção entre este vício e a falta de fundamentação da sentença, por reporte ao art. 372.º/2 e 379.ºCPP, cfr. Germano Marques da Silva idem; sobre a delimitação positiva e negativa de casos que integrem o vício em causa, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª ed., p. 1082)
Escreve Sérgio Gonçalves Poças (in Recurso da matéria de facto, Revista “Julgar”, nº 10, p. 27) que quando o recorrente alega este vício deve especificar no texto da decisão – é aqui que incide a análise, insiste-se – a matéria da contradição, aquilo que está em contradição; importa alertar o recorrente para a necessidade de produzir uma alegação precisa (e ainda mais precisa nas conclusões) que visa a matéria que realmente está em causa e não perder-se em críticas genéricas contra a decisão, naturalmente votadas ao fracasso; cometerá erro, quiçá irremediável, o recorrente que se consuma em fórmulas genéricas, inconformadas, que nada fundamentam; o recorrente está onerado a identificar clara e precisamente a factualidade em que se materializa a contradição que invoca.”

Descendo ao concreto caso dos autos.

A conclusão II do recurso do Ministério Público diz-nos que “Entende-se que o Tribunal incorreu no vício previsto no art. 410º, nº2, al.b) do CPPenal, porquanto os factos não provados (factos A) a C)) estão em contradição com a motivação da matéria de facto.”

Por facilidade, recordemos aqui quais sejam tais factos, para então vislumbrar na fundamentação da motivação de recurso o que o Ministério Público recorrente encontra, e como tal aponta, de contraditório entre esses factos e a motivação inerente. Tudo na certeza que o que conste e apontado seja se tem que conter e limitar ao texto da sentença, não a opiniões e apreciações.

“Da discussão da causa não resultou provado que:
A)- O arguido praticou os factos descritos nos pontos 1 a 4 dos factos provados.
B)- O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito de se apoderar dos artigos supra mencionados, com vista a fazê-los seus, como veio a conseguir, bem sabendo que estes não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade do seu legítimo dono.
C)- Mais sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.”

Ou seja, e de forma simples, afirma a sentença que inexiste prova de que seja o Arguido o autor dos factos ocorridos e dados como provados, sendo que estes são:
1)-No dia 19 de junho de 2021, pelas 16h41, individuo não identificado dirigiu-se à loja “...”, no ..., sito na …, em …, pertencente à sociedade “...”, com o intuito de se apoderar de quaisquer artigos que aí encontrasse com valor económico.
2)-Ali chegado, e em execução de tal desígnio, o individuo não identificado retirou dos expositores onde se encontravam para serem vendidas, 3 malas de senhora, 2 carteiras de senhora e diversos artigos de vestuário e calçado, tudo no valor global de 108,00 €.
3)-De seguida, o individuo não identificado colocou tais artigos dentro de um saco que transportava consigo e dirigiu-se para o exterior do estabelecimento comercial, sem proceder ao seu pagamento, integrando-as assim no seu património.
4)-No exterior da loja, o individuo não identificado foi intercetado pelo respetivo vigilante na posse dos mencionados artigos, que foram de imediato entregues ao seu legítimo possuidor.”

Estando em causa, como está, na tese do Ministério Público recorrente a contradição entre factos que nos dizem não estar provada uma autoria do Arguido quanto aos factos dados como provados, vejamos onde consta do texto da decisão, ao nível da fundamentação, que afinal seja o Arguido o autor dos factos provados.

Argumenta o Ministério Público que da motivação de facto consta que:
“O vigilante CC observou os factos através das imagens de videovigilância da ..., contudo não viu pessoalmente o autor dos mesmos, apenas se recordando que era jovem e que parecia ser de origem indiana. A este propósito cumpre salientar que o individuo utilizava uma máscara, não sendo possível visualizar parte do rosto (Cfr. Auto de visionamento, a fls. 124 a 130).
(…)
Os agentes da PSP BB e DD relataram que forma chamados à ... do ..., onde tinha sido retido um individuo suspeito de subtrair artigos da loja. Não presenciaram os factos, limitando-se a identificar o individuo que tinha sido retido pelos vigilantes. A este propósito referiram que a identificação do arguido foi feita através da exibição de uma fotografia do passaporte mostrada pelo responsável pelo menor.”

E, como tal, destas premissas extrai o Ministério Público recorrente que, tendo o Tribunal a quo percorrido este caminho
“- através de uma câmara de vigilância, um indivíduo é visto a furtar na ...;
- esse indivíduo é retido pelos vigilantes que estão naquela loja;
- a polícia é então chamada ao local e identifica (e detém) o indivíduo que momentos antes havia sido visto a furtar e que se encontrava retido pelos vigilantes. “.
devia concluir que o Arguido é o dito indivíduo “embora diga que não conseguiu apurar que este indivíduo é o arguido” .

Daí que entenda o Ministério Público recorrente “o Tribunal faz uma certa confusão entre, não se ter apurado a verdadeira identidade da pessoa detida por um lado e, o facto de a pessoa detida ter sido a autora dos factos, por outro.”

É dizer, na tese do Ministério Público recorrente, o individuo visto pela videovigilância, retido pelos seguranças e entregue às autoridades, que então o identificaram, é o Arguido, pelo que não tendo feito o Tribunal recorrido tal percurso, como que confundido que não se tivesse apurado a verdadeira identidade do individuo detido por um lado e o facto de a pessoa detida ter sido a autora dos factos, por outro, tendo a motivação da matéria de facto todos os elementos em contrário, não pode operar a declaração de não prova, pelo que opera o vício alegado: contradição insanável.

Contudo, da análise – que não meramente perfunctória - da matéria em causa não se vislumbra nem se alcança qualquer contradição insanável entre apontados factos dados como provados e não provados e a motivação inerente. Para tal, seria necessário que constasse do texto da sentença, ao nível dos factos entre si, ou em contraposição destes com o texto da fundamentação, que o dito indivíduo autor dos factos fosse o Arguido e também se dissesse o contrário.

E isso não é dito, muito embora o Ministério Público recorrente, para o fundamentar, afirme que “Se o arguido é identificado pela policia – como admite o Tribunal – na sequência da sua retenção por vigilantes após ser visto a furtar (ainda que através das câmaras de videovigilância) – como igualmente deu como provado nos factos 1 a 4 - como é possivel dizer que não se pode afirmar com o grau de certeza que é exigível no processo penal que o arguido foi o autor dos factos e que o arguido não foi identificado? (sublinhado nosso)

É que, de facto, a certeira afirmação é tão só do Ministério Público recorrente, uma vez que na sentença tal não é afirmado. Antes é dito que “Do exposto conclui-se que as únicas testemunhas que presenciaram os factos não se recordam dos mesmos, sendo que a demais prova produzida não é suficiente para o tribunal concluir que os factos foram praticados pela pessoa identificada nestes autos como sendo o arguido.”

No fundo, o que aqui o Ministério Público recorrente está a fazer – mormente quando recorre à valoração, validação e delimitação da duvida razoável - mais não é do que sindicar a convicção do Tribunal a quo. O que, não pode por esta via do vício fazer.

E daí que, em jeito de pré-conclusão quanto a esta parte, se diga que é essencial firmar que (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, rel. Juiz Conselheiro Henrique Gaspar, 8novembro2006, proc. n.º 06P3102, acessível in www.dgsi.pt/jstj)[o]s vícios do artigo 410º, nº 2, do CPP não podem, por outro lado, ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o Tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inscrito no artigo 127º do CPP. Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é a convicção que o Tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função do controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410º, nº 2, do CPP, a convicção pessoalmente formada pelo recorrente e que ele próprio alcançou sobre os factos.” E dai que a discordância não se possa buscar numa “inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão” (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional, 198/2004, rel. Juiz Conselheiro Moura Ramos, 24março22004, acessível in www.tribunalconstitucional.pt),

Ora, bem vista a situação, o que da sentença na verdade se colhe é um quadro de fundamentação das provas e consequente apreciação e fixação dos factos, posição com a qual o Ministério Público recorrente está em desacordo. Porém, tal discordância não se pode buscar em qualquer contradição insanável entre os factos e os seus fundamentos, sim terá que se basear – a existir – em quadro de vicio diferenciado.

Concluindo, não cremos que o embaraço da questão se funde na argumentada contradição, uma vez que do texto em si mesmo essa contradição intrínseca não opera. O Tribunal limita-se a concluir à luz de certas premissas. Se estas estão, ou não, erradamente avaliadas, essa é a questão a infra perceber, no momento próprio.
Assim sendo, cumpre concluir, sem necessidade de mais considerandos, porque supérfluos e inúteis, pela improcedência do recurso neste segmento.

b)– Erro notório na apreciação da prova
Haverá erro notório, como invoca o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto no seu parecer alínea c) do art 410.º/2CPP)?

Antes de nos debruçarmos sobre a questão, diremos que qualquer que seja a decisão infra, sempre inexistirá qualquer possibilidade de a decisão consubstanciar efeito surpresa para com o Arguido, mesmo quando só na sede referida tenha sido colocada pelo Ministério Público que é uno. Assim o é porque não só se cumpriu o art. 417.ºCPP, como a questão sempre é do conhecimento oficioso.
Adiante.

O erro notório na apreciação da prova verifica-se quando aos olhos da generalidade das pessoas, considerando-as como padrão de homem médio, perante a simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, é evidente que o Tribunal, na análise e valorização da prova, incorreu em vício de raciocínio na apreciação da prova.

São os casos de falha grosseira, ostensiva, na análise da prova, v.g. quando se retira de um facto provado uma conclusão logicamente inaceitável, ou quando se dá como assente algo patentemente errado, ou quando se retira de um facto provado uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, ou quando se violam critérios legalmente fixados, regras sobre prova vinculada, regras da experiência e a lógica normal da vida comum, as legis artis ou quando o Tribunal se afasta, sem fundamento, dos juízos dos peritos.

É dizer, constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou entre cada um desses, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, e por isso incorreta, incongruência esta que resulta duma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revela, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas e apreciada não por simples projeções de probabilidade, mas segundo as regras da “experiência comum” e da lógica normal da vida, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar.

(sobre o conceito do vício em causa Germano Marques da Silva idem, p. 341; sobre a delimitação positiva e negativa de casos que integrem o vício em causa, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque idem, p. 1094)

Por conseguinte, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos tais quais o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.

Ou seja, estão em causa vícios endógenos, que permitem atacar a decisão na sua regularidade formal, e que não se confundem com o erro de julgamento em matéria de facto, a que se reporta o art. 412.º/3CPP, pois neste o quanto está em causa é um discordância quanto à forma, isto é, como o Tribunal a quo valorou a prova e decidiu a matéria de facto. (sobre a distinção, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, rel. Juiz Conselheiro Raul Borges e Juíza Conselheira Margarida Blasco, respetivamente de 8julho2020 e de 18fevereiro2021, NUIPC 142/15.8PKSNT.L1.S1 e NUIPC87/11.0GBSXL.L2.S2, acessíveis in www.dgsi.pt/jstj) E daí que não se possa confundir este erro com a opinião que um recorrente formule sobre a prova produzida, divergente da que veio a vingar.

Concluindo, o erro-vício não só não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, como é distinto do erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida, pois que, tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências, indagando-se o primeiro através da análise do texto e reconduzindo-se a última a erro de julgamento da matéria de facto, analisando-se assim em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas.

Descendo ao concreto caso dos autos.

Na tese sufragada pelo Digníssimo Procurador-Geral Adjunto, o Tribunal a quoao definir a solução final (conclusão) contrariou, insustentavelmente, o que provinha das premissas (motivação de facto), circunstância captável por um ficcionado observador mediano, colocado na posição da Mmª Julgadora, perante o mesmo quadro informativo.” É dizer, seguindo esta tese, à luz da prova produzida em audiência e da fundamentação que consta da sentença, na normalidade das coisas, deveria ter sido dado como provado que o indivíduo visto a praticar os atos é o Arguido, sendo que só o não foi por erro notório que do texto, sem dificuldade, se extrai.

Adiante-se, desde já, que resulta do global texto da sentença ser manifesto e notório ter-se apreciado a prova de forma errada, o que impediu a produção da decisão ajustada ao caso, de acordo com a verdade histórica ou material. De facto, expressam-se na decisão entendimentos e conclusões sobre a prova produzida que são contrários às regras do raciocínio lógico-dedutivo e da experiência comum.

Concretizando, procede-se à descrição dos factos integrantes do crime de furto simples – é nessa qualificativa que a acusação se baseia e os factos na mesma descritos aí são integrantes - pela forma acima sintetizada e não se considera provada a sua autoria pelo Arguido porque ficou sem se perceber de forma clara e suficiente se o individuo visto, retido, entregue, detido, identificado e constituído Arguido é a mesma pessoa.

Para todos os legais efeitos, urge aqui não repetir – a não ser no a excecionar infra -, sim dar por integralmente reproduzidos os factos provados e não provados, assim como a fundamentação e exame crítico que o Tribunal a quo verteu em sede de sentença.

Assim delimitada a situação, note-se, sem que tal por qualquer modo signifique que este Tribunal a quo está aqui a entrar no campo na pura avaliação de prova, ou de verificação do desempenho e respeito pelas regras de livre apreciação de prova, tão só se está a percecionar que atento o objeto da acusação a normalidade do texto da decisão deve decompor o “episódio” em 6 fases: a) um individuo, com máscara, é visto na loja, através de videovigilância e por vigilante que aí desempenha funções, a praticar determinados factos – retirou artigos dos expositores, colocou em saco que transportava consigo, dirigiu-se para o exterior da loja, sem proceder a pagamento; b) sem hiato temporal o dito vigilante comunica tal ocorrência aos vigilantes de loja; c) sem ínterim os vigilantes de loja retêm o indivíduo na posse do saco onde estavam os ditos bens; d) é chamada a PSP ao local; e) o dito individuo e os bens são entregues a agentes da PSP, que o detém; f) os agentes da PSP logram obter a identificação - através duma fotografia dum passaporte exibida pelo seu responsável uma vez que era menor à data dos fatos - do dito indivíduo, o qual é constituído como Arguido.

Retomando, o Ministério Público junto deste Tribunal Superior entende que da fundamentação resulta vocacionada razão para ser feita a ligação entre o indivíduo visto nas câmaras de videovigilância e o posteriormente identificado Arguido, pelo que ao conduzir a leitura desta mesma fundamentação à conclusão oposta a que chega o Tribunal, qual seja a de que o Arguido não é o individuo autor dos factos, opera um texto eivado de notório erro de avaliação.

Ora, dúvida inexiste de que uma coisa é um individuo ser visto a praticar os factos e outra é afirmar que o indivíduo em causa é o Arguido. Para isso é necessária uma concreta identificação do individuo em moldes tais que se possa fazer essa ligação, o que terá que decorrer de produção de prova em audiência e assim resultar na apreciação da mesma.

Repetimos, por indispensável, que da motivação de facto consta que:
“O vigilante CC observou os factos através das imagens de videovigilância da ..., contudo não viu pessoalmente o autor dos mesmos, apenas se recordando que era jovem e que parecia ser de origem indiana.A este propósito cumpre salientar que o individuo utilizava uma máscara, não sendo possível visualizar parte do rosto (Cfr. Auto de visionamento, a fls. 124 a 130).
(…)
Os agentes da PSP BB e DD relataram que forma chamados à ... do ..., onde tinha sido retido um individuo suspeito de subtrair artigos da loja. Não presenciaram os factos, limitando-se a identificar o individuo que tinha sido retido pelos vigilantes. A este propósito referiram que a identificação do arguido foi feita através da exibição de uma fotografia do passaporte mostrada pelo responsável pelo menor.” (sublinhado nosso)

Por seu turno, da motivação de facto também consta – ainda que com reporte aos factos provados – que:
CC, vigilante da ... que prestava funções na Central da empresa, estando a visualizar as imagens de videovigilância da ... sita no .... Relatou que viu um individuo a retirar objetos para dentro de um saco da loja, sendo que dirigiu para a saída da loja sem passar pela caixa para efetuar o pagamento. Assim, informou o vigilante que se encontrava na porta da .... A propósito da descrição do individuo disse que lhe pareceu jovem e de ascendência indiana, não conseguindo descrevê-lo.

Ou seja, é o depoimento da mesma testemunha CC que serve à fundamentação de ligação daquelas fases a) e b) da sequência de relato, uma vez que por essa via se afirma que um individuo, com máscara, é visto na loja através de videovigilância e por vigilante que aí desempenha funções, a praticar determinados factos, sendo que sem hiato temporal o dito vigilante comunica tal ocorrência aos vigilantes de loja.

É certo que existe uma frase de fundamentação que, sendo inócua – como será -, assim não foi tida pelo Tribunal a quo e que se traduz na génese que no texto conduz ao vicio em apreço.

De facto, em sede de fundamentação, entre aquela primeira afirmação por reporte à matéria de facto não provada, onde se expõe o considerado no depoimento da testemunha CC e a terceira afirmação desse trecho, onde se expõe o dito pelas testemunhas PSP, existe uma óbvia segunda, onde se apresenta que: “Por seu turno, o vigilante HH não assistiu aos factos e os vigilantes GG e EE, que à data dos factos prestavam funções na ... não tinham qualquer memória dos acontecimentos.”

Ora, II, apresentado como vigilante, certo é que igualmente tinha funções de representação da empresa Primark, como consta do texto da sentença onde são reportados os elementos probatórios considerados pelo Tribunal a quo nesse próprio campo de motivação da matéria de facto. As demais testemunhas tidas como vigilantes – EE e GG – sim seriam as testemunhas a quem a testemunha CC teriam fornecido as indicações de reporte ao visto pelo sistema de videovigilância.

Porém, ao reportar o facto de estas testemunhas, ou não terem assistido aos factos, ou não terem memória dos acontecimentos, conjugando-o com o depor das testemunhas PSP, que, obviamente não presenciaram os factos determinantes da comunicação entre a testemunha CC e as demais testemunhas vigilantes, e daí a razão de terem sido chamados ao local, como agentes da PSP e para exercerem os seus deveres funcionais, entre os quais os que vieram a realizar de detenção e identificação do indivíduo entregue pelos vigilantes, o Tribunal a quo extraiu a conclusão de avaliação que se traduz em dizer que não se logrou fazer conexão de identificação entre o individuo retido e entregue aos elementos da PSP, por estes detido e uma vez identificado, constituído Arguido.

Diga-se, desde já, que sendo a “normalidade” algo que passaria pelo facto de as testemunhas não serem desconhecedoras dos factos, ou não estarem desmemoriadas, certo é que estas vicissitudes, ainda assim não conduzem à afirmação a que o Tribunal a quo chega quando afirma, como o faz no facto provado 4, que mesmo tendo ocorrido uma imediata retenção do individuo visto a praticar certos atos [a referida fase c) da sequência de relato], que chamada ao local a PSP e a si, pelos vigilantes, entregue o dito indivíduo e bens, é este detido e aqueles apreendidos [as referidas fases d) a e) da sequência de relato], mas depois a identificação feita não liga o dito indivíduo ao constituído Arguido, sendo que para tanto se baseia na conjugações de afirmações das quais resulta que “A este propósito cumpre salientar que o individuo utilizava uma máscara, não sendo possível visualizar parte do rosto (Cfr. Auto de visionamento, a fls. 124 a 130) ou que “A este propósito referiram que a identificação do arguido foi feita através da exibição de uma fotografia do passaporte mostrada pelo responsável pelo menor.”

É neste particular que o erro notório opera, uma vez que é o próprio Tribunal a quo quem considera a prova documental de referência ao auto de notícia por detenção, detenção esta confirmada pelas testemunhas agentes da PSP, mas depois diz que não extrai valoração dessa prova no sentido da autoria.

Tudo a fazer-nos concluir que nada do dito pelo Tribunal a quo seve para justificar a não prova da autoria, nem sequer se vislumbra como ficou o mesmo sem lograr perceber quanto ao modo como de um individuo visto, retido, entregue, detido, identificado e constituído Arguido afinal não é a mesma pessoa, uma vez que a argumentação de que a demais prova produzida não é suficiente para o tribunal concluir que os factos foram praticados pela pessoa identificada nestes autos como sendo o arguido” é só uma conclusão, sem qualquer corpo ou virtualidade de explicação.

De facto, acerca da autoria propriamente dita – cerne da questão -, toda a desvalorização do Tribunal a quo não só parte da dificuldade em perceber, face ao esquecimento e desconhecimento de certas testemunhas, que ainda assim é possível concluir que o indivíduo visto e subsequentemente retido e entregue, é o mesmo que é detido, identificado e constituído Arguido, como parte do facto de que se assim estava, então operaria razão para fazer uso da válvula do art. 334.º/3CPP, o que não fez.

Estamos aqui, consequentemente, perante duas anomalias processuais.

Por um lado, temos um Tribunal a quo que perante esquecimentos e desconhecimentos de testemunhas, obviamente geradoras de dificuldades de prova, logo abdica dos raciocínios próprios de conjugação entre todas as provas presentes à audiência de discussão e julgamento, bem como de valorar, ponderar e conjugar a prova direta e indireta, antes partindo para o fácil ilogismo da dúvida, diga-se de particular esmero, em que um individuo visto, retido, entregue, detido, identificado e constituído Arguido afinal não é a mesma pessoa. E isto sem que fenda na “guarda à vista” opere.

Tudo isto quando com toda a lógica e em cumprimento de deveres de descoberta da verdade, estando nesse estado bastaria ao Tribunal ir ao auto de notícia - sendo que quanto ao mesmo tão só basta reavivar que ainda que tenha deixado de “fazer fé em juízo”, ou seja, de possui a atribuição uma força probatória plena, certo é que não decorre daí que esteja destituído de qualquer valor probatório uma vez que constitui um meio de prova –, valorar e apreciar o seu conteúdo quanto aos factos narrados e presenciados pela autoridade que o elaborou, fazendo-o em conjugação com todos as demais provas ao seu dispor, e perceber-se-ia que o ali constante e confirmado pelas testemunhas PSP se reporta a uma situação em que um individuo foi visto por vigilantes, retido por vigilantes, entregue por estes a elementos da PSP, que o detiveram, identificaram e constituíram Arguido, sempre tratando-se da mesma pessoa.

Veja-se que para tal a dificuldade de conjugação, entre o teor do auto de notícia e demais documentação – mormente auto de apreensão - e o descrito pelas testemunhas, sequer existe uma vez que é globalmente reportado que se está perante individuo jovem, parecendo de origem indiana - o Arguido tinha à data dos factos 16 anos e 13 dias, ainda que de nacionalidade norte-americana, apresenta nome e aspeto ... compatível com a apontada origem, sendo que quer do auto de noticia, quer do ato de entrega sumário, reportado e recordado em sede de prova testemunhal prestada em audiência, decorre idêntica identificação e o Tribunal a quo faz uso dessas provas. Tal qual fez do auro de visionamento.

Será congruente, mormente em termos de adequação processual que sempre visa o cumprimento do busca da verdade, perante isto, um Tribunal que está imbuído da imediação se acolher nas dúvidas que diz persistirem quanto à autoria dos factos, e perante tal argumentar nesse sentido, mais quando se dúvidas no espírito lhe restassem antes deveria ter interrompido a audiência e ordenado a comparência do Arguido para que as testemunhas o reconhecessem, visto que inicialmente deferira a sua ausência?

É que julgar não significa simplesmente juntar uma amálgama de provas, explicitar de forma ponderada, bastante e lógica, o que de cada uma se retira quanto às razões duma concreta convicção, e depois dizer que se ficou com dúvidas sérias, no que respeita à versão acusatória, e dai usar o princípio in dubio pro reo duma forma exuberante. Outras obrigações existem e uma delas – que com a presunção de inocência se não confunde – é a da busca da verdade material. De facto, como afirma Sentís Melendo, citado por Miguel Machado (in O princípio in dubio pro reo e o novo CPP, ROA 49, p. 583-611, em especial, 608) a "suspeita, dúvida, certeza, evidência, são as etapas de um caminho até à verdade" (também, Vaz Serra, Provas - Direito Probatório Material -, in BMJ separata, 1962, p22), o que, logicamente é da natureza das coisas, pelo que do mesmo modo que não dá o Tribunal «saltos no escuro», antes usa, valora, se conduz e se rege por critérios de normalidade, os quais passam pelo recurso ao conjunto das provas, por si mesmas, entre si mesmas e na globalidade valoradas de modo que se atinge a certeza e a consequente evidência da ocorrência dos factos, bem para além do limite de qualquer dúvida.
E para esta busca, no caso concreto, não pode o Tribunal de julgamento olvidar que o CPP consagra a regra geral de obrigatoriedade da presença do Arguido, expressa no art. 332.º/1CPP, o qual, sob a epígrafe “presença do arguido” dispõe que é obrigatória a sua presença na audiência, sem prejuízo do disposto nos ns. 1 e 2 do artigo 333.º e nos ns. 1 e 2 do artigo 334.º. Obrigatoriedade essa que não é plena, uma vez que desde a Lei Constitucional 1/97-20setembro se consagra no art. 32.º/6CRP que A lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento.” Quadro constitucional este que deu azo às reforma operadas pela Lei 59/98-25agosto, posteriormente consolidada com as alterações impostas pelo DL 320-C/2000-15dezembro.

Não cumpre neste recurso cuidar de qualquer bondade ou fundamento do Arguido para lhe ser conferido o direito a ver-se julgado na ausência à luz do imposto nesse art. 334.º/2CPP. Tal direito mostra-se conferido.

Mas já cumpre perceber o porquê de se abdicar tout court e sem retorno do Arguido quando a argumentação da dúvida por ali podia ser sanada.

Por conseguinte, sendo certo que o Arguido se mostrava dispensado de estar presente à Audiência, tendo dado o seu expresso consentimento para tanto, igualmente também é certo que, perante a prova produzida, a presença do Arguido – independentemente de o mesmo prestar, ou não declarações, direito que sempre lhe assiste - seria um enorme contributo para a descoberta da verdade material, sobretudo numa situação de crime da natureza do aqui em causa e perante uma produção de prova em que o reconhecimento do autor do crime era a tónica fundamental da dúvida em que o Tribunal se diz manter.

É patente neste caso as consequências que tal ausência de dinâmica de condução da audiência gerou.

Porém, no contexto do caso aqui sob análise, o erro não se circunscreve - tal como decorre do já exposto - à não tomada das medidas necessárias à sua comparência pela via do art. 334.º/3CPP – sim culmina num erro mais grave e abrangente, patente em ilogismos de raciocínio formulado e na errada apreciação da prova a que se procedeu na assunção de um estado de dúvida que é, independentemente do contributo da presença do Arguido, inaceitável à luz das regras do raciocínio lógico-dedutivo e da experiência comum nesta área criminal.

Ora, da aplicação do princípio in dubio pro reo não pode resultar uma decisão sobre os factos violadora das regras do raciocínio lógico-dedutivo, e do senso comum.

Tal ocorrendo, como aqui ocorre, chama à imediata colação o vício da decisão sobre a matéria de facto de erro notório na apreciação da prova – art. 410.º/2c)CPP – a constar do texto da decisão, como conta nos moldes que se expressaram.

2.º Das consequências do reconhecimento do erro notório na apreciação da prova;

Propugna o Ministério Público que este Tribunal Superior, uma vez decretado o vício que enuncia (e que se entendeu não operar, o que se mostra inócuo para a questão, uma vez que outro opera) deve condenar o Arguido pela autoria de factos integrantes de um crime de furto simples.

O n.º 1 do art. 426.ºCPP estatui que “[s]sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do nº 2 do artigo 410º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.

É dizer, operado o conhecimento pelo Tribunal de Recurso de vício indicado no art. 410.º/2CPP, cumpre retirar – no possível - as devidas ilações.

O que se faz eliminando-se dos factos não provados os pontos A a C, sendo a matéria de facto provada alterada e aditada em conformidade, como decorre do disposto no artigo 431.ºCPP, sem prejuízo de dever manter-se incólume quanto ao mais, tudo nos seguintes termos:
1.–“No dia 19 de junho de 2021, pelas 16h41, o Arguido AA dirigiu-se à loja “...”, no ..., sito na …, em …, pertencente à sociedade “...”, com o intuito de se apoderar de quaisquer artigos que aí encontrasse com valor económico.
2.–Ali chegado, e em execução de tal desígnio, o AA retirou dos expositores onde se encontravam para serem vendidas, 3 malas de senhora, 2 carteiras de senhora e diversos artigos de vestuário e calçado, tudo no valor global de 108,00 €.
3.–De seguida, o AA colocou tais artigos dentro de um saco que transportava consigo e dirigiu-se para o exterior do estabelecimento comercial, sem proceder ao seu pagamento, integrando-as assim no seu património.
4.–No exterior da loja, o AA foi intercetado pelo respetivo vigilante na posse dos mencionados artigos, que foram de imediato entregues ao seu legítimo possuidor.
5.–O AA agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito de se apoderar dos artigos supra mencionados, com vista a fazê-los seus, como veio a conseguir, bem sabendo que estes não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade do seu legítimo dono.
6.–Mais sabia o AA que a sua conduta era proibida e punida por lei penal
Mais se provou:
7.–O AA não possui antecedentes criminais registados.”

Dispõe o art. 203.º/1CP que “Quem com ilegítima apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”

Duma forma muito simples, dir-se-á que o furto constitui um crime contra a propriedade.

Constituem elementos do tipo objectivo de ilícito do furto simples: a)-ilegítima intenção de apropriação; b) subtracção de coisa móvel alheia; A estes elementos ainda há que acrescentar um elemento implícito: o valor patrimonial da coisa.

O elemento subjectivo da infracção é constituído pela ilícita intenção de apropriação, para si ou para outrem, de coisa alheia. Trata-se de um dolo específico que se preenche com a intenção de o agente, contra a vontade do proprietário ou detentor da coisa furtada, se passar a comportar relativamente a ela animo sibi rem habendi, integrando-a na sua esfera patrimonial ou na de outrem.
Assim vista a situação, mostram-se preenchidos os elementos típicos do crime de furto simples pelo qual o Arguido se mostra acusado. Inexistem causas de desculpação ou de exclusão da ilicitude.

Pareceria ser caso para decidir globalmente da causa.

Assim não o será face ao infra.

O CP traça um sistema punitivo que arranca do princípio basilar de que as penas devem ser executadas com um sentido pedagógico e ressocializador.

O art. 203.º/1CP - crime furto simples - prevê uma pena de multa de 10 a 360 dias ou uma pena de prisão de 1 mês a 3 anos.

É sabido que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º/1CP) e que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art. 40.º/2CP) pois esta, exprimindo a responsabilidade individual do agente pelo facto, representa o fundamento ético daquela.

Dai que, em concordância, disponha o art. 71.º/1CP que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, refletindo aquela o limite inultrapassável da pena e estas a necessidade comunitária da punição do caso concreto.

Por seu turno, o critério legal de escolha da pena encontra-se previsto no art. 70.ºCP e consiste na prevalência da pena de multa sobre a pena de prisão, previstas em alternativa na norma incriminadora, sempre que a aplicação daquela realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. In casu, a punição do crime praticado pelo Arguido é feita, em alternativa, pela aplicação de pena de prisão ou pena de multa.

Nada determina a aplicação duma pena privativa da liberdade. É, pois, a pena de multa a que será aplicada.

Militam em favor do Arguido, a idade, o baixo valor dos objetos subtraídos, imediatamente recuperados (ainda que não por sua ação), e a ausência de antecedentes criminais.

Militam em desfavor do Arguido, o grau de ilicitude dos factos, decorrente do modo da sua execução e do deliberado desprezo pela propriedade alheia, o dolo direto.

No que tange às necessidades de prevenção geral, estas surgem com considerável intensidade no que a estes específicos crimes de furto concerne. De facto, o fenómeno dos furtos em estabelecimentos comerciais é representativo de uma criminalidade de massa, com milhares de microlesões patrimoniais que ainda que se revelem uma bagatela individual, no global conjunto, já representam um elevado problema social e económico, a que se soma elevadas cifras negras, sobrecarregando os sistemas de justiça e consumindo recursos importantes. Dai, também as necessidades de consideração quanto ao especifico atentado contra o sentimento nuclear de normalidade na convivência social e de segurança da comunidade, bem como ao nível das consequências de instabilidade social ao nível do sentimento nuclear de posse, de propriedade de domínio sobre os bens necessários à subsistência económica ou à vivência pessoal.

No que, por seu turno, concerne às necessidades de prevenção especial, tais exigências ainda se revelam num grau médio a pender para o baixo, face à ausência de antecedentes criminais registados.

A pena fixa-se, assim, em 60 (sessenta) dias de multa.

Sendo certo que não se pode assacar ao Arguido qualquer atitude de desfavor na opção de optar – o que lhe foi consentido – em não estar presente a julgamento e no risco que tal ausência de participação no destino da sua sorte em relação aos autos tal pode gerar, igualmente é certo que para firmar a dosimetria da taxa diária há que atender à situação económica e financeira - art. 47.º/2CP.

Para tal não dispõe este Tribunal ad quem de quaisquer elementos essenciais, desde logo porque nada na sentença nos fala sobre qual é a concreta situação do Arguido a esse nível.

Mais, inexiste viabilidade de tal suprir, pela via de recurso a prova documental junta aos autos, mormente Relatório da Equipa de Reinserção Social de onde tal constasse, pois nenhum consta dos autos.

E mesmo assim o Tribunal a quo avançou para o julgamento com dispensa do Arguido.

Sendo conhecida a posição jurídica que propende a afirmar ponto de vista em que se afirma que a sentença, porque absolutória, neste campo está formalmente correta, pois que se conclui nesse sentido deverá proceder à "cesure", evitando a prova respeitante à escolha e medida de pena e dispensando a correspondente factualidade (argumento que fundam no art. 369.º/1CPP), certo é que não vimos seguindo tal raciocínio. E não o seguimos, pois vêm sendo inúmeros os casos em que esta opção se vem a revelar arriscada, pois o Tribunal a quo ao optar por não plasmar integralmente todos os factos provados e não provados, perante a alteração dos mesmos e subsequente qualificação jurídica agora supra determinada, gera a ocorrência de vício da Sentença, em concreto o do art. 410.º/2a)CPP onde se dispõe que “[m]esmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;”

Assim vista a situação, caso decidisse este Tribunal ad quem no demais que urge para se obter uma decisão formalmente completa sempre estaríamos perante insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quanto à concreta questão do apuramento da situação económica e pessoal do Arguido, visando a fixação do quantitativo diário da pena de multa.

Vício este que fluiria do texto decisório no quanto se revela na coerência jurídica ao nível da matéria de facto, tornando impossível uma decisão logicamente correta e conforme à lei, assim se traduzindo (usando a expressão de Simas Santos e Leal-Henriques in Recursos Penais, 9.ª Edição 2020, p. 74), numa insuficiência que aparece como uma lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito”, a qual tem de existir internamente no âmbito da decisão.

Numa forma simples, este vício traduz-se numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito, sobre a mesma. É dizer que o Tribunal não dá nem como provado nem como não provado algum facto necessário para justificar a posição tomada, quando poderia e deveria ter procedido a mais profunda averiguação, de modo a alcançar, justificadamente, a solução legal e justa. No fundo, é algo que falta para uma decisão de direito, seja a proferida efetivamente, seja outra, em sentido diferente, que se entenda ser a adequada ao âmbito da causa.

(sobre o conceito do vício em causa cfr. Prof. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, III vol., p. 339; sobre a delimitação à mesma questão de facto, cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, respetivamente rel. Juízes Conselheiros Rodrigues da Costa, Santos Cabral e Simas Santos, 20abril2006, processo 06P363, 4outubro2006, processo 06P2678 e 21junho2007, processo 07P2268; recentemente Juíza Conselheira Maria do Carmo Silva Dias, 21junho2023, NUIPC 1218/21.8PBVIS.C1.S1, todos acessíveis in www.dgsi.pt/jstj, bem como Acórdão da Relação de Lisboa, rel. Juíza Desembargadora Maria Perquilhas, 23março2023, NUIPC 1228/22.8SILSB.L1-9, acessível in www.dgsi.pt/jtrl)

In casu o vício manifestar-se-á quando da factualidade elencada na decisão recorrida resultar que faltam elementos que, podendo e devendo ter sido indagados, são necessários para se poder formular um juízo global seguro de fixação da taxa diária da pena de multa e surge em virtude do Tribunal a quo não se ter pronunciado (dando como provados ou não provados) todos os factos que, sendo relevantes para este trecho da decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação ou pela defesa, ou tenham resultado da discussão da causa.

Renovando, o reenvio do processo para novo julgamento depende, pois, dos vícios referidos nas alíneas do art. 410.º/2CPP poderem ou não ser supridos pelo tribunal de recurso.

Na decorrência do detetado vício extraiu, até ao momento, este Tribunal ad quem as consequências processuais possíveis.

Caso decidisse este Tribunal ad quem no demais que urge para se obter uma decisão formalmente completa sempre estaríamos perante insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quanto à concreta questão do apuramento da situação económica e pessoal do Arguido, visando a fixação do quantitativo diário da pena de multa.

Sendo provido o presente recurso, dado que se mostra a sentença em crise omissa quanto a esta matéria e, como tal, impedida esta Relação de fixar o quantitativo diário duma pena, devem os autos ser reenviados à 1.ª instância para novo julgamento quanto à concreta questão das condições socioeconómicas do Arguido, tudo com vista à fixação da taxa diária da pena de multa firmada.

Nesta conformidade, determina-se o reenvio do processo a fim de ser reaberta a audiência, após junção de atualizado Relatório da Equipa de Reinserção Social, seguida de novas alegações e última palavra ao Arguido (se o Tribunal entender ser necessário o mesmo comparecer e este quiser prestar declarações atualistas sobre a sua situação familiar e socioecónomica), tudo isto sem prejuízo da produção (requerida ou oficiosa) de qualquer outro meio de prova que, na perspetiva do Tribunal a quo, se revele importante apenas para o apuramento das condições pessoais e situação económica do Arguido e, a final, opere prolação de nova Sentença pelo mesmo Tribunal e juiz, em que em cumprimento do enquadramento jurídico supra e da pena de multa determinada, seja firmada taxa diária.

Fica prejudicada a 3.ª questão colocada.

III–DECISÃO

Nestes termos, em conferência, acordam os Juízes que integram a 5.ª Secção Penal deste Tribunal da Relação de Lisboa:
a.-em julgar não verificado o invocado vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (art. 410.º/2b)CPP);
b.-em julgar verificado o invocado vício de erro notório na apreciação da prova (art. 410.º/2b)CPP);
c.-consequentemente, eliminar dos factos não provados os pontos A a C, alterando e aditando a matéria de facto provada nos seguintes termos:
1. “No dia 19 de junho de 2021, pelas 16h41, o AA dirigiu-se à loja “...”, no ..., sito na .., em …, pertencente à sociedade “...”, com o intuito de se apoderar de quaisquer artigos que aí encontrasse com valor económico.
2. Ali chegado, e em execução de tal desígnio, o AA retirou dos expositores onde se encontravam para serem vendidas, 3 malas de senhora, 2 carteiras de senhora e diversos artigos de vestuário e calçado, tudo no valor global de 108,00 €.
3. De seguida, o AA colocou tais artigos dentro de um saco que transportava consigo e dirigiu-se para o exterior do estabelecimento comercial, sem proceder ao seu pagamento, integrando-as assim no seu património.
4. No exterior da loja, o AA foi intercetado pelo respetivo vigilante na posse dos mencionados artigos, que foram de imediato entregues ao seu legítimo possuidor.
5. O AA agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito de se apoderar dos artigos supra mencionados, com vista a fazê-los seus, como veio a conseguir, bem sabendo que estes não lhe pertenciam e que atuava contra a vontade do seu legítimo dono.
6. Mais sabia o AA que a sua conduta era proibida e punida por lei penal
7. O AA não possui antecedentes criminais registados.”
d.-em determinar que os factos praticados pelos AA, nos moldes ora dados como provados, integram os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime de furto simples, por que vinha acusado, p. p. pelo art. 203.º/1CP;
e.-que por esses factos vai o AA condenado na pena, não privativa da liberdade, de 60 (sessenta) dias de multa;
f.- em declarar não ser in casu e no mais possível a este Tribunal ad quem o recurso ao art. 431.ºCPP, pelo que ao abrigo do art. 426.ºCPP se determina o reenvio do processo ao Tribunal a quo a fim de ser reaberta a audiência, após junção de atualizado Relatório da Equipa de Reinserção Social, seguida de novas alegações e última palavra ao Arguido (se o Tribunal entender ser necessário o mesmo comparecer e este quiser prestar declarações atualistas sobre a sua situação familiar e socioecónomica), tudo isto sem prejuízo da produção (requerida ou oficiosa) de qualquer outro meio de prova que, na perspetiva do Tribunal a quo, se revele importante apenas para o apuramento das condições pessoais e situação económica do Arguido e, a final, opere prolação de nova Sentença pelo mesmo Tribunal e juiz, em que em cumprimento do enquadramento jurídico supra e da pena de multa determinada, seja firmada taxa diária.
Sem Custas.
Notifique (art. 425.º/6CPP).
D.N.


Lisboa, 7maio2024, data eletrónica supra.


o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos seus signatários; com datação eletrónica – art. 153.º/1CPC e com aposição de assinatura eletrónica - art. 94.º/2CPP e Portaria 593/2007-14maio


Relator: Juiz Desembargador Manuel José Ramos da Fonseca
1.ª Adjunta: Juíza Desembargadora Luísa Maria da Rocha Oliveira Alvoeiro
2.ª Adjunta: Juíza Desembargadora Ester Pacheco dos Santos