Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3539/19.0T8VCT-D.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
CIRCUNSTÂNCIAS SUPERVENIENTES
INUTILIDADE DE JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
(I)LEGITIMIDADE DE RECUSA DE JUNÇÃO DE DOCUMENTOS
DIREITO DE RESERVA À VIDA PRIVADA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/02/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O dever de cooperação para a descoberta da verdade que, à luz do art. 417º do CPC, impende quer sobre as partes, quer sobre terceiros, conhece dois limites: por um lado, os limites impostos nas als. a) e b) do nº 3 de respeito pelos direitos fundamentais consagrados nos arts. 25º, nº1, 26º, nº 1 e 34º, nº 1 da CRP; por outro lado, o limite imposto na al. c) do nº 3 de respeito pelo direito ou dever de sigilo.
II - O legislador fez ele próprio uma prévia ponderação de interesses tendo concluído que, no confronto entre os direitos fundamentais previstos nas. als. a) e b) do nº 3 do art. 417º do CPC e o dever de cooperação, devem prevalecer os primeiros em detrimento dos segundos, consagrando esta opção na norma em análise.
III - Diversamente, no caso da al. c) do nº 3 do art. 417º do CPC, relativa ao dever de sigilo, essa ponderação de interesses não foi feita previamente, antes prevendo expressamente o legislador que seja feita de forma casuística, nos termos regulados no nº 4 do art. 417º, que remete para o incidente de quebra de sigilo previsto no art. 135º do CPP, no qual se deverá analisar se a quebra do segredo se mostra justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade para a descoberta da verdade e a necessidade de proteção de bens jurídicos.
IV - O interesse que se pretende tutelar com a possibilidade de recusa do dever de cooperação nas situações em que o cumprimento do mesmo implica intromissão na vida privada é o interesse do próprio obrigado a esse dever de que aspetos da sua vida particular permaneçam sigilosos e resguardados, não sendo divulgados publicamente.
V - Nos casos em que o próprio titular do interesse a acautelar já revelou e assumiu publicamente um determinado facto, tendo-o inclusivamente confessado judicialmente, não existe qualquer justificação válida para que recuse a junção de um documento relativo ao facto por si revelado e confessado, com a invocação de que o mesmo pertence ao foro da sua vida privada. A partir do momento em que o facto foi revelado pelo próprio a quem o mesmo respeita, tal facto perdeu a sua natureza de facto privado, desaparecendo o interesse que se visava proteger com a possibilidade de recusa legítima estabelecida na al. b) do nº 3 do art. 417º, porquanto o próprio titular prescindiu da proteção da vida privada ao ter assumido e declarado publicamente a factualidade que se pretende (contra) provar com a junção do documento.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

RELATÓRIO

Banco 1..., CRL veio propor contra AA e BB ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que se declarem nulos, por vício de simulação, os reconhecimentos de dívida e as letras de câmbio que visavam garantir os supostos valores mutuados pela 2ª ré ao 1º réu.
Em apertada síntese, invoca que, quer a declaração de dívida do 1º réu relativamente à 2ª ré, quer as letras subscritas pelo primeiro, assentam numa divergência de vontade entre o declarado e as vontades reais dos declarantes, pois o 1º réu nunca quis pedir de empréstimo à 2ª ré qualquer quantia e esta também nunca lhe quis emprestar qualquer valor, tendo as declarações sido feitas de forma simulada e combinada entre ambos, com o intuito de enganar os verdadeiros credores do 1º réu.
A 2ª ré nunca teria sequer meios económicos para emprestar ao 1º réu a quantia de € 88 062,42, já que a mesma é uma jovem solteira, aufere o salário mínimo nacional, não dispõe de outras fontes de rendimento e reside em casa dos pais, de quem recebe ajuda para fazer face a despesas pessoais.
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O réu AA contestou invocando as exceções de caso julgado e de falta de interesse em agir, tendo também impugnado a factualidade invocada pela autora, negando a existência de qualquer acordo simulatório entre si e a 2ª ré, pois esta emprestou-lhe efetivamente os valores de que se confessou devedor.
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A ré BB contestou defendendo que a presente ação deveria ser considerada extinta, por inutilidade superveniente da lide, atenta a homologação do plano especial de acordo de pagamento.
Invocou também as exceções de caso julgado, impropriedade do meio processual utilizado, falta de interesse processual e ineptidão da petição inicial.
Impugnou ainda a factualidade invocada pela autora, negando a existência de qualquer acordo simulatório entre si e o 1º réu, pois emprestou-lhe efetivamente os valores de que o mesmo se confessou devedor.
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A autora exerceu o contraditório relativamente às exceções invocadas, pugnando pelo seu indeferimento, e requereu o desentranhamento da contestação apresentada pela 2ª ré, por intempestividade.
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Em 14.4.2021 foi proferido despacho (ref. Citius 46727624) que:

a) considerou tempestiva a contestação apresentada pela 2ª ré;
b) dispensou a realização da audiência prévia;
c) julgou não verificada a ineptidão da petição inicial;
d) considerou verificados os demais pressupostos processuais;
e) julgou improcedentes as exceções de caso julgado, de falta de interesse em agir e de impropriedade do meio processual;
f) considerou não ocorrer motivo de extinção do processo por inutilidade superveniente da lide;
g) fixou à causa o valor de € 88 062,42;
h) considerou que o “objecto do processo assenta em apreciar o pedido de declaração de nulidade, por simulação, dos reconhecimentos de dívida e, consequentemente, das letras de câmbio emitidas para garantia dos valores alegadamente mutuados pela 2.ª Ré ao 1.º Réu”;
i) enunciou os seguintes temas da prova:
“1. Crédito da Autora sobre o 1º Réu.
2. Os reconhecimentos de dívida invocados pela 2ª Ré para justificar o seu crédito sobre o 1º Réu, tal como as letras de câmbio, concretizam uma estratégia delineada pelos dois Réus para enganar a Autora.
3. Os Réus quiseram enganar os credores de AA, sendo que as declarações que prestaram divergem das suas vontades reais.
4. O 1º Réu socorreu-se da 2ª Ré porque já não dispunha de crédito na Banca para satisfazer as suas dívidas.”
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Em 23.11.2021 foi proferido despacho (ref. Citius 47787004) de indeferimento do pedido da autora para a 2ª ré juntar aos autos:

- declarações de IRS dos últimos três anos;
- comprovativos de transferência da quantia de € 88 062,42 a favor do 1º réu;
- extratos das suas contas bancárias entre ../../2018 e ../../2019;
- recibos de vencimento de ../../2017 a janeiro de 2019;

em virtude de ter considerado que, atentos os temas da prova, a junção de tal documentação não reveste interesse para a justa decisão da causa.
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Realizou-se a audiência final e, após, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu os réus do pedido.
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Foi interposto recurso do despacho proferido em 23.11.2021 (ref. Citius 47787004), o qual foi apreciado no âmbito do apenso A onde, em ../../2022, foi proferido acórdão (ref. Citius 8260342) que revogou o despacho recorrido e determinou a notificação da ré BB para proceder à junção aos autos dos documentos requeridos pela autora.
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Na sequência da prolação do referido acórdão, foi proferido despacho, em ../../2022 (ref. Citius 49291193), que anulou a sentença proferida nos autos e determinou a notificação da ré BB para proceder à junção aos autos dos documentos requeridos pela autora.
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Notificada do aludido despacho, a 2ª ré veio opor-se à junção dos documentos invocando o direito de reserva à intimidade da vida privada.
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Em 12.12.2022 foi proferido despacho (ref. Citius 49663589) que determinou a renovação da notificação da ré BB para proceder à junção aos autos dos documentos requeridos pela autora.
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A 2ª ré interpôs recurso desse despacho, o qual foi apreciado no âmbito do apenso C, onde, em ../../2023, foi proferido acórdão (ref. Citius 8920347) com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, devendo ser proferido despacho a apreciar a legitimidade ou ilegitimidade da recusa invocada pela ré, com a tramitação subsequente que se revele necessária, nos termos antes explicitados.”
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Em ../../2024, foi proferido despacho (ref. Citius 51618275) com o seguinte teor:

“Por acórdão de ../../2022, o Venerando Tribunal da Relação julgou procedente o recurso de apelação interposto pela Autora, revogou o despacho recorrido e determinou a notificação da Ré BB para proceder à junção aos autos dos documentos requeridos pela A.
Este Tribunal determinou a anulação da sentença entretanto proferida, mais determinando a notificação da Ré BB para, em 10 dias, proceder à junção aos autos dos documentos requeridos pela Autora, em cumprimento do determinado pelo Tribunal da Relação de Guimarães.
Após ser notificada para o efeito, a Ré BB apresentou requerimento, em ../../2022, dizendo, além do mais, que a junção dos documentos em causa viola o seu direito de reserva à intimidade da vida privada, previsto no artigo 26.º n.º 1 da C.R.P.
Este Tribunal renovou a notificação à Ré BB para proceder à junção aos autos dos documentos em causa e a Ré BB interpôs recurso de apelação.
O Venerando Tribunal da Relação de Guimarães revogou a decisão recorrida, determinando que fosse proferido despacho a apreciar a legitimidade ou ilegitimidade da recusa invocada pela Ré, com a tramitação subsequente que se revelasse necessária.
Cumpre decidir.
Em momento posterior à interposição do recurso por parte da Autora, foram carreados diversos documentos para os autos e ouvidos os RR. em sede de depoimentos de parte. Efetivamente, constam já dos autos, nomeadamente, os comprovativos dos rendimentos da Ré BB (cfr. docs. ...7 a ...2 e docs. ...3 a ...6, juntos com o requerimento de ../../2022), sendo que a mesma demonstrou ser proprietária de casa própria (ver docs. ...1 a ...5 juntos com o requerimento de ../../2022).
As diligências probatórias requeridas pela A., com o decorrer dos autos, tornaram-se inúteis, em nada relevando para a justa decisão da causa.
A verdade é que a A. insiste agora pela junção de documentos, mas opôs-se à junção dos mesmos pela Ré em momento anterior.
A Ré BB defende nos autos que a junção dos documentos em apreço viola o seu direito de reserva à intimidade da vida privada, previsto no artigo 26.º n.º 1 da C.R.P. Entende a R. que lhe assiste o direito de se escusar a nova junção, até porque a documentação em causa não é imprescindível para a descoberta de verdade material, face a toda a prova produzida.
O Tribunal considera que, em face do desenrolar do processo, os documentos em causa se tornaram totalmente inúteis, considerando-se legítima a recusa da Ré BB, nos termos do disposto no art. 417º nº 3 al. b) do CPC.”
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A Banco 1..., CRL não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1.ª - As declarações de IRS da ré dos últimos três anos, os seus recibos de vencimento de ../../2017 a Janeiro de 2019, os comprovativos da alegada transferência da quantia de € 88 062,42 a favor do 1.º réu, assim como os extractos bancários requeridos eram e são elementos de prova pertinentes e de imprescindível importância para a descoberta da verdade material, pois permitirão apurar se a ré efectivamente mutuou ao réu o valor global de € 88 062,42 que está na base das 3 letras de câmbio emitidas em 04.04.2018 - vd. art.º 411.º e n.º 2 do art.º 429.º do CPC e art.º 341.º CC
2.ª - Independentemente das provas entretanto produzidas nos autos, a verdade é que não foi pela ré BB dado cumprimento ao decidido no douto acórdão do TRG de 30.06.2022, não tendo a mesma, pois, junto aos autos os aludidos documentos pretendidos pela autora, sendo que, os comprovativos dos rendimentos da ré BB a que se reporta a Mm.ª Juiz a quo no despacho impugnado, ou seja, os documentos ...7 a ...2 e ...3 a ...6 juntos com o requerimento de ../../2022, não são sequer referentes ao período em discussão nos autos (../../2017 a Janeiro de 2019).
3.ª - Deste modo, uma vez que não foram juntos aos autos pela ré quaisquer dos documentos requeridos pela autora e admitidos pelo TRG, nem outros de onde se pudessem inferir iguais informações, viu-se a autora impedida de, em sede da audiência de julgamento entretanto realizada, confrontar as testemunhas arroladas e os próprios réus já ouvidos em sede de depoimentos de parte com tais documentos e, pois, de fazer prova em juízo da simulação dos reconhecimentos de dívida e, consequentemente, das letras de câmbio emitidas para garantia dos valores alegadamente mutuados pela ré ao réu. - vd. n.º 1 art.º 7.º CPC e art.ºs 341.º e 342.º CC
4.ª - Ao decidir que os documentos em causa, requeridos pela autora, se tornaram totalmente inúteis, o Tribunal a quo desrespeita o douto acórdão do TRG de 30.06.2022, retirando a tais elementos probatórios a utilidade e relevância já definitivamente conferida aos mesmos para a justa decisão da causa, o que configura violação do caso julgado e violação do dever de cumprir a decisão superior - vd. arts.º 613.º n.º 1, 628.º e 152.º n.º 1 CPC

SEM PRESCINDIR,
5.ª - O tribunal a quo não explica as razões por que considera inúteis os documentos em causa, nem o porquê de entender que “em nada relevam para a justa decisão da causa”, nem tão pouco refere o porquê de julgar legítima a recusa da ré, não dando assim a conhecer às partes o percurso lógico e racional por si efectuado e que serviu para formar a sua convicção, pelo que, em face desta omissão de fundamentação, a decisão recorrida, nesta parte, padece de nulidade - vd. al. b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC
Ainda que assim não se entenda,

6.ª - Tendo em consideração o objecto do litígio e os temas de prova fixados ressalta a absoluta necessidade do conhecimento quer das declarações de IRS da ré dos últimos três anos e dos seus recibos de vencimento de ../../2017 a Janeiro de 2019, quer dos comprovativos da alegada transferência da quantia de € 88 062,42 a favor do 1.º réu, assim como dos extractos das contas bancárias da ré entre ../../2018 a ../../2019.
7.ª - Com efeito, tais documentos são determinantes e imprescindíveis para demonstrar a factualidade controvertida nos autos, na medida em que permitirão aferir se, nas datas em causa, a ré dispunha de rendimentos que lhe permitissem dispor a favor do réu de € 88 062,42, se houve ou não efectiva entrega de quaisquer quantias pela 2.ª ré a título de empréstimo ao 1.º réu, ou se essas quantias, eventualmente, foram apenas depositadas / transferidas para alguma conta deste para, imediatamente depois, voltarem a entrar na conta da ré ou de terceiro das suas relações, possibilitando, assim, em conjugação com a restante prova, averiguar se se verifica ou não a invocada simulação.
8.ª - Tendo em conta a impossibilidade da autora obter, por si, a informação pretendida e a imprescindibilidade da mesma para a descoberta da verdade, o seu conhecimento sobrepõe-se ao interesse próprio da ré BB da protecção da sua esfera privada, tanto mais que não se vislumbra que a junção dos aludidos documentos possa envolver a revelação de factos significativos da sua vida privada cuja ocultação seja imposta por razões mais relevantes do que a necessidade de alcançar uma decisão justa - vd. art.º 417.º, do CPC
9.ª - O direito de reserva de intimidade da vida privada e familiar constitucionalmente protegido cede em nome da realização da justiça e da segurança enquanto valores do Estado de Direito Democrático e na justa medida em que tal se tenha por necessário, proporcional e adequado, como sucede no caso - cfr. art.º 335.º CC e arts. 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da CRP
10.ª - Assim, sempre com o devido respeito, entendemos que não andou bem o tribunal “a quo” ao decidir, como decidiu, porquanto, como exposto, a informação pretendida com a documentação solicitada à ré e ordenada juntar aos autos é necessária – tendo em conta o pedido, a causa de pedir, os temas da prova, bem como o ónus e regras de prova – e imprescindível – no sentido de não poder ser obtida de outro modo, afigurando-se por isso ilegítima a recusa da ré BB.”

Terminou pedindo que se revogue a decisão recorrida, deliberando-se que é ilegítima a recusa da ré BB, determinando-se de novo a notificação da mesma para que proceda à junção aos autos dos documentos requeridos pela autora (ou seja, das declarações de IRS da ré dos últimos três anos, dos comprovativos de transferência da quantia de € 88 062,42 a favor do 1.º réu, dos extractos das contas bancárias da ré entre ../../2018 a ../../2019 e dos recibos de vencimento da mesma de ../../2017 a Janeiro de 2019), sob pena de inversão do ónus da prova.
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A ré BB contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
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O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente., em separado, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
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Apesar de o tribunal a quo não ter proferido o despacho referido no art. 617º, nº 1, não tendo apreciado a nulidade da decisão invocada no recurso, por se ter entendido que não se verificava a situação de indispensabilidade referida no nº 5, do art. 617º, ambos do CPC, não se determinou a baixa à 1ª instância para tal efeito.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:

I -  saber se a decisão recorrida violou o caso julgado decorrente do decidido no acórdão, de ../../2022, proferido no apenso A;
II - saber se a decisão recorrida padece de nulidade por violação do disposto no art. 615º, nº 1, al. b), do CPC; 
III - saber se os documentos requeridos pela autora, em face do desenrolar do processo, se tornaram totalmente inúteis, em nada relevando para a justa decisão da causa;
IV - saber se a recusa de junção de documentos por parte da 2ª ré é ou não legítima.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Os factos que relevam para a decisão a proferir encontram-se enunciados no relatório que antecede e resultam do iter processual dos autos principais e apensos.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

I - Violação do caso julgado decorrente do decidido no acórdão, de ../../2022, proferido no apenso A

A recorrente alega, no que respeita à questão da violação do caso julgado, que:

“... ante o decidido no douto acórdão do TRG de 30.06.2022, não compete agora ao Tribunal a quo fazer juízos acerca da utilidade ou inutilidade de tais elementos probatórios requeridos pela autora / recorrente, porquanto estes foram já definitivamente julgados pertinentes para ajusta composição do litígio e para a prevalência da verdade material, pelo Tribunal da Relação.
Não se compreende, nem se aceita, por isso, que o tribunal a quo, em face do já decidido pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 30.06.2022 e antes mesmo de produzida a prova determinada nesse douto acórdão, sem ainda ter tido a possibilidade de a analisar, venha concluir que a mesma se tornou totalmente inútil.
É que, salvo o devido respeito, em rigor, uma tal decisão do Juízo Central de Viana do Castelo traduz um desrespeito pela decisão anterior da Relação, evidenciando que apesar do aí superiormente decidido, o tribunal de 1.ª instância não considerará a prova admitida, retirando-lhe a utilidade e relevância já conferida à mesma pela Relação para a justa decisão da causa.
O que configura, pois, violação do caso julgado e violação do dever de cumprir a decisão superior emanada pelo TRG em 30.06.2022 (cfr. arts.º 613.º n.º 1, 628.º, e art.º 152.º n.º 1 CPC).

Vejamos se lhe assiste razão.

Dispõe o art. 619º, nº 1, do CPC (diploma ao qual pertencem todas as normas subsequentemente citadas sem menção de diferente origem) que, transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º.
Esta norma é aplicável aos acórdãos, por via do art. 666º, nº 1.

Assim, verificado o trânsito em julgado, forma-se caso julgado que se traduz na impossibilidade de a decisão proferida ser substituída ou modificada por qualquer tribunal, incluindo por aquele que a proferiu.
Segundo o critério da eficácia, há que distinguir entre o caso julgado formal, que só é vinculativo no processo em que foi proferida a decisão (art. 620º, nº 1), e o caso julgado material, que vincula no processo em que a decisão foi proferida e também fora dele, consoante estabelece o art. 619º.
Do caso julgado decorrem dois efeitos essenciais, a saber: a impossibilidade de qualquer tribunal, incluindo o que proferiu a decisão, voltar a emitir pronúncia sobre a questão decidida - efeito negativo - e a vinculação do mesmo tribunal e eventualmente de outros, estando em causa o caso julgado material, à decisão proferida - efeito positivo do caso julgado (Acórdãos da Relação do Porto, de 20.10.2015, e da Relação de Guimarães, de 28.6.2018, in www.dgsi.pt).
Com a impossibilidade de pronúncia sobre a mesma questão visa-se garantir, primordialmente, o valor da segurança jurídica, fundando-se a proteção a essa segurança jurídica, relativamente a atos jurisdicionais, no princípio do Estado de Direito, pelo que se trata de um valor constitucionalmente protegido, destinando-se a evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objeto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior (Acórdão da Relação do Porto, de 5.12.2016, in www.dgsi.pt).
O caso julgado formal só tem um valor intraprocessual, pois, como decorre do art. 620º, do CPC, as sentenças e despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.
O despacho, sentença ou acórdão que recai unicamente sobre a relação processual abrange todo aquele que decide uma questão que não é de mérito. Já a expressão “dentro do processo” abrange não só o processo da ação principal, mas também o dos incidentes que dele dependendo correm por apenso – pela sua natureza a questão incidental relaciona-se com o objeto do processo e a sua decisão destina-se a ter nele eficácia (Acórdão da Relação de Lisboa, de 5.7.2018, in www.dgsi.pt).
No que toca à eficácia, como escreve Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, pág. 578, o “caso julgado abrange a parte decisória do despacho, sentença ou acórdão, isto é, a conclusão extraída dos seus fundamentos (art. 659.°, n.º 2, “in fine”, e 713.° n.º 2), que pode ser, por exemplo, a condenação ou absolvição do réu ou o deferimento ou indeferimento da providência solicitada. Como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), o respetivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos.
Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independentemente dos respetivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”.
E, como referido por Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código de Processo Civil”, 3.°-253) a “economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportando à coerência das decisões que proferem, e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidas por aquele critério eclético, que sem tomar extensiva a eficácia de caso julgado a todos os motivos objetivos da sentença reconhece todavia essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que foram antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado”.

Ora, no acórdão, de ../../2022, proferido no apenso A, importava decidir se a junção dos documentos requeridos pela autora se revestia de interesse para a justa decisão da causa, pois foi com base neste fundamento que a decisão recorrida indeferiu o pedido de junção dos documentos.
No aludido acórdão considerou-se, relativamente ao mencionado requerimento de prova apresentado pela autora, que, “para a justa composição do litígio e para a prevalência da verdade material, o requerimento de prova em questão se mostra relevante, dada a natureza e especificidade da matéria em questão, motivo pelo qual deverá ser atendido e, como tal deferido, notificando-se a ré BB para proceder à junção aos autos dos documentos requeridos”.
Em conformidade, decidiu tal acórdão revogar o despacho recorrido e determinar a notificação da ré BB para proceder à junção aos autos dos documentos requeridos pela autora.

Significa isto que, por efeito do caso julgado formal decorrente da prolação deste acórdão, não é possível discutir novamente nos autos se os documentos em questão se mostram ou não relevantes para a decisão da causa, posto que o acórdão, de ../../2022, já decidiu essa matéria no sentido de os considerar relevantes.

Porém, analisando o despacho recorrido de ../../2024, o mesmo não refere, sem mais, que os documentos não são relevantes para a decisão da causa, antes diz que “[e]m momento posterior à interposição do recurso por parte da Autora, foram carreados diversos documentos para os autos e ouvidos os RR. em sede de depoimentos de parte. Efetivamente, constam já dos autos, nomeadamente, os comprovativos dos rendimentos da Ré BB (cfr. docs. ...7 a ...2 e docs. ...3 a ...6, juntos com o requerimento de ../../2022), sendo que a mesma demonstrou ser proprietária de casa própria (ver docs. ...1 a ...5 juntos com o requerimento de ../../2022).

As diligências probatórias requeridas pela A., com o decorrer dos autos, tornaram-se inúteis, em nada relevando para a justa decisão da causa(sublinhados nossos).

O que significa que, na ótica da decisão recorrida, ocorreram circunstâncias supervenientes que tornaram inútil a junção dos documentos requeridos pela autora, deixando os mesmos de relevar para a justa decisão da causa.

Esta decisão, porque se baseia numa situação fáctico-jurídica superveniente à prolação do acórdão proferido em ../../2022, nem viola o que foi decidido nesse aresto, nem constitui violação do dever de cumprir essa decisão.

A decisão poderá não ser acertada, mas tal é matéria a sindicar no âmbito da existência de erro de julgamento, e não em sede de violação de caso julgado ou do dever de acatamento de decisão do tribunal superior.
Consequentemente, improcede esta questão recursória.

II – Nulidade da decisão recorrida

A recorrente veio arguir a nulidade da decisão recorrida dizendo:

Porém, o tribunal a quo não explica as razões por que considerou “que, em face do desenrolar do processo, os documentos em causa se tornaram totalmente inúteis, nem o porquê de entender que tais documentos “em nada relevam para a justa decisão da causa”, quando o contrário foi já expressamente decidido pelo TRG no acórdão de 30.06.2022, nem tão pouco o porquê da legitimidade da recusa.
Por conseguinte, mostra-se inexistir fundamentação para a consideração como legítima da recusa da ré na junção aos autos dos referidos documentos, não dando, pois, o tribunal a quo a conhecer às partes o percurso lógico e racional por si efectuado e que serviu para formar a sua convicção.
Por isso, face a esta omissão, nesta parte, a decisão recorrida padece de nulidade - cfr. al. b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC”.

Dispõe o art. 615º, nº 1, do CPC, que é nula a sentença quando:

a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

As nulidades da decisão são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal supra citado.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da decisão.
As nulidades da decisão, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cf. Acórdão desta Relação de 4.10.2018, Relatora Eugénia Cunha, in www.dgsi.pt).

O vício da sentença decorrente da não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, abreviadamente designado como vício de falta de fundamentação, encontra-se diretamente relacionado com a obrigação de o juiz fundamentar as suas decisões que não sejam de mero expediente, obrigação essa que lhe é imposta pelos arts. 154º e 607º, nºs 3 e 4, e pelo art. 205º, nº 1, da CRP.
A exigência de fundamentação exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo tribunal superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao ato jurisdicional (José Lebre de Freitas, in A Ação Declarativa Comum À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, pág. 317).
Impõe-se ao juiz não só que explicite o que decidiu, mas também que indique os motivos que determinaram tal decisão, esclarecendo porque assim decidiu.
Na verdade, só sabendo os concretos fundamentos que justificaram a prolação da decisão as partes terão a possibilidade real e efetiva de proceder à sua impugnação e suscitar a sua sindicância por um tribunal superior. E o tribunal superior só pode sindicar a decisão se conhecer os fundamentos de facto e de direito que subjazem à decisão proferida.
Todavia, é entendimento pacífico e consolidado quer da doutrina, quer da jurisprudência, que só a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto ou de direito será geradora da nulidade em causa, não ocorrendo tal vício nas situações de mera deficiência, insuficiência ou mediocridade de fundamentação.
Assim, como já afirmava o Prof. Alberto dos Reis, (in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 140) “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade”.
Em idêntico sentido, referem Antunes Varela e outros (in Manual de Processo Civil, 2ª edição, p. 687), que, “para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente e incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”.

Transpondo estas considerações para o caso em apreço, e analisando o despacho recorrido, o qual se encontra supra transcrito, temos de concluir que o mesmo não padece de uma falta absoluta de fundamentação de acordo com o conceito que supra delineámos.

Nos primeiros cinco parágrafos, o despacho contém a matéria factual relevante, a qual coincide com a descrição de atos praticados no processo e apensos.
De seguida, contém a fundamentação, explicando o motivo pelo qual entende que as “diligências probatórias requeridas pela A., com o decorrer dos autos, tornaram-se inúteis, em nada relevando para a justa decisão da causa”, motivo esse que ocorre porque “[e]m momento posterior à interposição do recurso por parte da Autora, foram carreados diversos documentos para os autos e ouvidos os RR. em sede de depoimentos de parte. Efetivamente, constam já dos autos, nomeadamente, os comprovativos dos rendimentos da Ré BB (cfr. docs. ...7 a ...2 e docs. ...3 a ...6, juntos com o requerimento de ../../2022), sendo que a mesma demonstrou ser proprietária de casa própria (ver docs. ...1 a ...5 juntos com o requerimento de ../../2022).

Assim, o despacho contém fundamentação de facto e de direito, não padecendo do vício de nulidade previsto no art. 615º, nº 1, al. b).

Relembra-se que o acerto ou desacerto da decisão proferida é matéria irrelevante em sede de apreciação da existência de nulidade e só pode ser sindicada em sede de erro de julgamento.

Por conseguinte, considera-se que a decisão recorrida não padece do vício de nulidade que lhe é assacado pela recorrente, pelo que improcede esta questão recursória.

III - Total inutilidade dos documentos em face do desenrolar do processo e sua irrelevância para a justa decisão da causa

O despacho recorrido considerou que “[e]m momento posterior à interposição do recurso por parte da Autora, foram carreados diversos documentos para os autos e ouvidos os RR. em sede de depoimentos de parte. Efetivamente, constam já dos autos, nomeadamente, os comprovativos dos rendimentos da Ré BB (cfr. docs. ...7 a ...2 e docs. ...3 a ...6, juntos com o requerimento de ../../2022), sendo que a mesma demonstrou ser proprietária de casa própria (ver docs. ...1 a ...5 juntos com o requerimento de ../../2022).
As diligências probatórias requeridas pela A., com o decorrer dos autos, tornaram-se inúteis, em nada relevando para a justa decisão da causa.”

Analisemos, então, se os documentos referidos no despacho recorrido tornam inútil a junção dos documentos requeridos pela autora.

Relembramos que a autora pretendia a junção dos seguintes documentos:

- declarações de IRS dos últimos três anos;
- comprovativos de transferência da quantia de € 88 062,42 a favor do 1º réu;
- extratos das suas contas bancárias entre ../../2018 e ../../2019;
- recibos de vencimento de ../../2017 a janeiro de 2019.

Os comprovativos de rendimentos da ré BB que constituem os documentos ...7 a ...2, juntos com o requerimento de ../../2022, são os recibos de vencimento da ré BB emitidos por EMP01..., Lda. e relativos aos meses de novembro e dezembro de 2019, novembro e dezembro de 2020, novembro e dezembro de 2021.

Os documentos ...3 a ...6, juntos com o requerimento de ../../2022, são a demonstração de resultados por naturezas referente a EMP01..., Lda. em 31.12.2018, 31.12.2019, 31.12.2020 e 31.12.2021, onde constam os valores dos gastos com pessoal.
Estes documentos não tornam inútil a junção dos documentos pedidos pela autora porque os recibos de vencimento juntos não se reportam ao período peticionado pela autora, que é de ../../2017 a janeiro de 2019, e porque a demonstração de resultados da entidade empregadora da 2ª ré não é documento equivalente aos seus recibos de vencimento, não sendo passível de os substituir.
Por outro lado, nenhum dos documentos juntos contém informação que torne inútil a peticionada junção das declarações de IRS dos últimos três anos, dos comprovativos de transferência da quantia de € 88 062,42 a favor do 1º réu e dos extratos das contas bancárias entre ../../2018 e ../../2019.

Os documentos ...1 a ...5 juntos com o requerimento de ../../2022 também não tornam inútil a junção dos documentos pedidos pela autora, pois versam sobre factualidade distinta, designadamente a relativa à qualidade de proprietária da 2ª ré relativamente a um imóvel.

No que concerne ao depoimento de parte prestado pelos réus, verifica-se que os mesmos confessaram a matéria que consta dos artigos da petição inicial discriminados na ata da audiência final de 19.4.2022.
Essa matéria confessada não abrange a matéria que a ré pretende provar com a junção dos documentos e que, grosso modo, consiste em demonstrar que a 1ª ré não mutuou ao 1º réu o valor de € € 88 062,42.

Por conseguinte, diversamente do decidido no despacho recorrido, considera-se que, em face do desenrolar do processo, os documentos peticionados pela autora não se tornaram totalmente inúteis, pelo que se tem de revogar, nesta parte, a decisão recorrida, procedendo, consequentemente, esta questão recursória.

IV – (I)legitimidade da recusa de junção de documentos

Como referido supra, o acórdão proferido em 10.7.2023, no âmbito do apenso C, determinou que fosse apreciada a legitimidade da recusa da 2ª ré de junção dos documentos peticionados pela autora.
Essa recusa da 2ª ré teve como fundamento a circunstância de a junção dos documentos violar o seu direito de reserva à intimidade da vida privada.
O despacho recorrido considerou “legítima a recusa da Ré BB, nos termos do disposto no art. 417º nº 3 al. b) do CPC”, decisão da qual a recorrente discorda, pretendendo que essa recusa seja julgada ilegítima e, consequentemente, que se determine a notificação da 2ª ré para juntar aos autos os documentos peticionados.

Vejamos, então se a recusa da 2ª ré de junção dos documentos é ou não legítima.

No art. 7º encontra-se consagrado o princípio da cooperação, dispondo o seu nº 1 que, na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
Por seu turno, o art. 8º consagra o dever de boa fé processual de acordo com o qual as partes devem agir de boa fé e observar os deveres de cooperação referidos no art. 7º.
O referido princípio geral de cooperação encontra concretização noutras normas processuais, designadamente no art. 417º, o qual, sob a epígrafe “dever de cooperação para a descoberta da verdade”, dispõe que:

1 - Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.
2 - Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.
3 - A recusa é, porém, legítima se a obediência importar:
a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4.
4 - Deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.

O dever de cooperação para a descoberta da verdade que, à luz desta norma, impende quer sobre as partes, quer sobre terceiros, conhece dois limites: por um lado, os limites impostos nas als. a) e b) do nº 3 de respeito pelos direitos fundamentais consagrados nos arts. 25º, nº1, 26º, nº 1 e 34º, nº 1 da CRP; por outro lado, o limite imposto na al. c) do nº 3 de respeito pelo direito ou dever de sigilo.

O legislador fez ele próprio uma prévia ponderação de interesses, tendo concluído que, no confronto entre os direitos fundamentais previstos nas. als. a) e b) do nº 3 e o dever de cooperação, devem prevalecer os primeiros em detrimento dos segundos, consagrando esta opção na norma em análise.

Por conseguinte, nas situações referidas nas als. a) e b) do nº 3, o destinatário do dever de cooperação pode invocar legitimamente a recusa de cumprimento do que lhe for solicitado com o fundamento de que esse cumprimento viola os direitos fundamentais aí indicados.
A licitude dessa recusa tem, aliás, fundamento no art.º 32.º, n.º 8 da CRP que determina a nulidade de todas as provas obtidas mediante tortura, coação, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.

De onde resulta que, nos casos das als. a) e b) do nº 3, contrariamente ao defendido pela recorrente, não há que efetuar uma análise de qual o interesse preponderante no sentido de saber se os interesses aí salvaguardados devem ou não prevalecer no confronto com outros, mormente com os interesses de boa administração da justiça e descoberta da verdade material.
Diversamente, no caso da al. c) do nº 3, relativa ao dever de sigilo, essa ponderação de interesses não foi feita previamente, antes prevendo expressamente o legislador que seja feita de forma casuística.
Assim, determina o nº 4 do art. 417º que, se for deduzida escusa com fundamento na alínea c), é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
O nº 4 do art. 417º remete para o incidente de quebra de sigilo que se encontra previsto no art. 135º do CPP, no qual se deverá analisar se a quebra do segredo se mostra justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos.

No caso em apreço, a 2ª ré, notificada para proceder à junção aos autos de documentos, recusou-se a fazê-lo invocando a violação do direito de reserva à vida privada, ou seja, o fundamento previsto na al. b) do nº 3 do art. 417º.
Dispõe o art. 26º, nº 1, da CRP que a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação.
Acrescenta o nº 2 do mesmo artigo que a lei estabelecerá garantias efetivas contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias.
A nível civilístico, dispõe o art. 80º, do CC, que todos devem guardar reserva quanto à intimidade da vida privada de outrem, sendo a extensão da reserva definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas.
O legislador optou por não definir o que seja a intimidade da vida privada, recorrendo a uma cláusula geral, sem qualquer tipo de exemplificação.
No entanto, podemos dizer que a vida privada compreende um conjunto de atividades situações, atitudes ou comportamentos individuais que não têm relação com a vida pública, que estão desta separados e que estão estritamente ligados à vida individual e familiar da pessoa (Luísa Neto in CC Anotado, Coord. Ana Prata, 2ª ed. ,Vol. I, pág. 123).
Concretizando um pouco mais, e recorrendo às palavras do acórdão da Relação do Porto, de 11.4.2019, Relator Miguel Baldaia de Morais (in www.dgsi.pt)em termos gerais tem-se entendido que a reserva da vida privada que a lei protege compreende os actos que devem ser subtraídos à curiosidade pública, por naturais razões de resguardo e melindre, como os sentimentos, os afectos, os costumes da vida e as vulgares práticas quotidianas, as dificuldades próprias da difícil situação económica e as renúncias que implica e até por vezes o modo particular de ser, o gosto pessoal de simplicidade que contraste com certa posição económica ou social; os sentimentos, acções e abstenções que fazem parte de um certo modo de ser e estar e que são condição da realização e do desenvolvimento da personalidade. Tratar-se-á, numa delimitação possível ou de simples referência de critérios, dos sectores ou acontecimentos da vida de cada indivíduo relativamente aos quais é legítimo supor que a pessoa manifeste uma exigência de discrição como expressão de um direito ao resguardo.

Relembramos que os documentos cuja junção se pretende consistem:
- nas declarações de IRS dos últimos três anos;
- nos comprovativos de transferência da quantia de € 88 062,42 a favor do 1º réu;
- nos extratos das suas contas bancárias entre ../../2018 e ../../2019;
- e nos recibos de vencimento de ../../2017 a janeiro de 2019.

Estes documentos, na medida em que se referem aos rendimentos auferidos e aos movimentos bancários, reportam-se a aspetos da vida privada da 2ª ré, estando abrangidos pela possibilidade de recusa legítima, nos termos da al. b) do nº 3 do art. 417º.
Como analisámos supra, nesta situação não há que fazer qualquer ponderação casuística dos interesses em confronto de modo a fazer prevalecer o interesse preponderante, sendo a recusa legítima desde que a situação se enquadre no normativo citado.
Todavia, e embora todos os documentos se reportem a matéria da vida privada da 2ª ré, os comprovativos de transferência da quantia de € 88 062,42 a favor do 1º réu não estão abrangidos pela possibilidade de recusa legítima de junção.
O interesse que se pretende tutelar com a possibilidade de recusa do dever de cooperação nas situações em que o cumprimento do mesmo implica intromissão na vida privada é o interesse do próprio obrigado a esse dever de que aspetos da sua vida particular permaneçam sigilosos e resguardados, não sendo divulgados publicamente.
Nos casos em que o próprio titular do interesse a acautelar já revelou e assumiu publicamente um determinado facto, tendo-o inclusivamente confessado judicialmente, não existe qualquer justificação válida para que recuse a junção de um documento relativo ao facto por si revelado e confessado, com a invocação de que o mesmo pertence ao foro da sua vida privada. A partir do momento em que o facto foi revelado pelo próprio a quem o mesmo respeita, tal facto perdeu a sua natureza de facto privado, desaparecendo o interesse que se visava proteger com a possibilidade de recusa legítima estabelecida na al. b) do nº 3 do art. 417º, porquanto o próprio titular prescindiu da proteção da vida privada ao ter assumido e declarado publicamente a factualidade que se pretende (contra) provar com a junção do documento.
Ora, no caso em apreço, a 2ª ré na contestação afirmou que mutuou ao 1º réu a quantia de € 88 062,43 (cf. art. 33º).
Por outro lado, na audiência final, confessou a matéria dos arts. 34º a 37º da p.i. onde se alega, além do mais, que no processo especial para acordo de pagamento a 2ª ré reclamou um crédito sobre o 1º réu decorrente de diversos acordos e contratos de mútuo, no valor global de € 88 062,42.
Assim, o mútuo celebrado entre os réus, no valor de € 88 062,43, que integra matéria da vida privada da 2ª ré, deixou de revestir tal natureza a partir do momento em que foi publicamente revelado e assumido pela própria, deixando, a partir dessa revelação, de merecer a proteção legal de não intromissão na vida privada.
Por assim ser, não existe justificação legítima para recusar a junção dos documentos comprovativos de transferência da quantia de € 88 062,42 a favor do 1º réu pois estes referem-se precisamente ao mútuo que a 2ª ré declara que efetuou ao 1º réu e que a autora afirma que não ocorreu e que decorre de ato simulado.

Por conseguinte, resta concluir que a recusa da ré em juntar aos autos os documentos peticionados pela autora é legítima, nos termos da al. b) do nº 3 do art. 417º quanto às declarações de IRS dos últimos três anos, aos extratos das suas contas bancárias entre ../../2018 e ../../2019 e aos recibos de vencimento de ../../2017 a janeiro de 2019, pois tais documentos contêm informação relativa à sua vida privada, e é ilegítima quanto aos comprovativos de transferência da quantia de € 88 062,42 a favor do 1º réu.

Perante o ante exposto, procede parcialmente esta questão recursória.
*
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado parcialmente procedente, são recorrente e recorrida responsáveis pelo pagamento das custas, na proporção de metade para cada uma, em conformidade com a disposição legal citada.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência:
- revogam a decisão recorrida na parte em que considerou que, em face do desenrolar do processo, os documentos em causa se tornaram totalmente inúteis;
- revogam parcialmente a decisão recorrida e consideram que a recusa junção de documentos por parte da ré BB é legítima, nos termos da al. b) do nº 3 do art. 417º quanto às declarações de IRS dos últimos três anos, aos extratos das suas contas bancárias entre ../../2018 e ../../2019 e aos recibos de vencimento de ../../2017 a janeiro de 2019, pois tais documentos contêm informação relativa à sua vida privada (nesta parte mantendo e confirmando a decisão recorrida) e é ilegítima quanto aos comprovativos de transferência da quantia de € 88 062,42 a favor do 1º réu (nesta parte alterando a decisão recorrida).

Custas da apelação por recorrente e recorrida, na proporção de metade para cada uma.
Notifique.
*
Sumário (da responsabilidade da relatora, conforme art. 663º, nº 7, do CPC):

I - O dever de cooperação para a descoberta da verdade que, à luz do art. 417º do CPC, impende quer sobre as partes, quer sobre terceiros, conhece dois limites: por um lado, os limites impostos nas als. a) e b) do nº 3 de respeito pelos direitos fundamentais consagrados nos arts. 25º, nº1, 26º, nº 1 e 34º, nº 1 da CRP; por outro lado, o limite imposto na al. c) do nº 3 de respeito pelo direito ou dever de sigilo.
II - O legislador fez ele próprio uma prévia ponderação de interesses tendo concluído que, no confronto entre os direitos fundamentais previstos nas. als. a) e b) do nº 3 do art. 417º do CPC e o dever de cooperação, devem prevalecer os primeiros em detrimento dos segundos, consagrando esta opção na norma em análise.
III - Diversamente, no caso da al. c) do nº 3 do art. 417º do CPC, relativa ao dever de sigilo, essa ponderação de interesses não foi feita previamente, antes prevendo expressamente o legislador que seja feita de forma casuística, nos termos regulados no nº 4 do art. 417º, que remete para o incidente de quebra de sigilo previsto no art. 135º do CPP, no qual se deverá analisar se a quebra do segredo se mostra justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade para a descoberta da verdade e a necessidade de proteção de bens jurídicos.
IV - O interesse que se pretende tutelar com a possibilidade de recusa do dever de cooperação nas situações em que o cumprimento do mesmo implica intromissão na vida privada é o interesse do próprio obrigado a esse dever de que aspetos da sua vida particular permaneçam sigilosos e resguardados, não sendo divulgados publicamente.
V - Nos casos em que o próprio titular do interesse a acautelar já revelou e assumiu publicamente um determinado facto, tendo-o inclusivamente confessado judicialmente, não existe qualquer justificação válida para que recuse a junção de um documento relativo ao facto por si revelado e confessado, com a invocação de que o mesmo pertence ao foro da sua vida privada. A partir do momento em que o facto foi revelado pelo próprio a quem o mesmo respeita, tal facto perdeu a sua natureza de facto privado, desaparecendo o interesse que se visava proteger com a possibilidade de recusa legítima estabelecida na al. b) do nº 3 do art. 417º, porquanto o próprio titular prescindiu da proteção da vida privada ao ter assumido e declarado publicamente a factualidade que se pretende (contra) provar com a junção do documento.
*
Guimarães, 2 de maio de 2024

(Relatora) Rosália Cunha
(1º/ª Adjunto/a) Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade
(2º/ª Adjunto/a) Maria Gorete Morais