Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
231/21.0T8BCL.G1
Relator: JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE
Descritores: INSOLVÊNCIA DECRETADA POR TRIBUNAL FRANCÊS
RECUSA DE RECONHECIMENTO
REGULAMENTO (CE) N.º 1346/2000
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/02/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Numa acção declarativa de condenação no pagamento de um crédito por fornecimento de mercadorias, intentada em Portugal, por um credor português, contra uma cidadã portuguesa, residente em França, a invocação por esta, tendo em vista obstar à sua condenação, dos efeitos da sentença proferida em 2015, por um tribunal francês, que a declarou insolvente e da decisão do mesmo tribunal, em 2016, que declarou encerrado o processo de insolvência, coloca um problema de reconhecimento dos efeitos de tais decisões, de acordo com a lei do Estado em que foram proferidas, na ordem jurídica nacional.
II – Tendo em consideração a data de abertura do processo de insolvência, a fonte do reconhecimento é o Regulamento (CE) 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, que regula principalmente a competência internacional, a determinação do direito aplicável e o reconhecimento de decisões estrangeiras no domínio dos processos de insolvência intentados em cada um dos Estados-Membros.
III – O Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, que sucedeu e revogou aquele só se aplica aos processos de insolvência abertos após 26 de junho de 2017.
IV – O Regulamento (CE) 1346/2000 prevê:
- o processo de insolvência “principal”, referido no n.º 1 do art.º 3º, por ser instaurado no Estado-Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor e que tem alcance universal, visando abarcar todo o património do devedor;
- o processo de insolvência “territorial”, referido no n.º 2 do art.º 3º, e que é o processo instaurado no Estado-Membro em cujo território o devedor possui um estabelecimento e cujos efeitos ficam limitados aos bens situados no território desse Estado, o qual pode ser “independente”, referido no n.º 4, se for instaurado antes do processo principal ou “secundário”, referido no n.º 3 e no art.º 27º, se for instaurado após a abertura de um processo principal.
V - Da conjugação dos n.ºs 1 dos artigos 16º e 17º e do art.º 25º, decorre que o Regulamento (CE) n.º 1346/2000 adoptou um modelo de reconhecimento automático, ou seja, os efeitos da decisão que determine a abertura de um processo de insolvência, proferida por um órgão jurisdicional competente nos termos do Regulamento, são reconhecidos em todos os outros Estados-Membros, logo que a decisão produza efeitos no Estado de origem, sem necessidade de quaisquer formalidades, pelo que a autoridade e a eficácia de tais decisões proferidas no Estado-Membro de origem podem ser invocadas directamente perante as autoridades de todos os Estados-Membros, sem necessidade de qualquer procedimento prévio de reconhecimento e, assim, sem qualquer controlo formal e, muito menos, sem qualquer controlo do mérito, realizando o principio da confiança mútua na administração da justiça entre os Estados-Membros, como referido no Considerando (22).
VI – Mas o reconhecimento da decisão de abertura de um processo principal é limitado pela abertura de um processo territorial. Não são reconhecidos os efeitos do processo principal que dizem respeito aos bens e às situações jurídicas que estejam abrangidas pelo âmbito de um processo territorial.
VII - O Regulamento (CE) n.º 1346/2000 estabelece no seu art.º 26º uma única causa de recusa de reconhecimento: os efeitos produzidos serem manifestamente contrários à ordem pública do Estado do reconhecimento, em especial aos seus princípios fundamentais ou aos direitos e liberdades individuais garantidos pela sua Constituição.
VIII - Na medida em que o art.º 26º exige que os “…efeitos [sejam] manifestamente contrários à ordem pública desse Estado…”, a recusa com tal fundamento só é possível em casos excepcionais.
IX - Residindo a Ré em França e tendo aí sido instaurado um processo de insolvência, nada permite afirmar que não era aí que a Ré tinha o “centro dos interesses principais”, pelo que aquele processo deve ser considerado “principal”, com vocação para abranger todo o património do devedor, esteja ele situado em França ou em Portugal.
X – O principio da igualdade (art.º 13º da CRP) e o direito de acesso aos tribunais (art.º 20º, n.º 1 da CRP) integram a ordem pública do Estado português.
XI – Ainda que a recorrente não tenha tido conhecimento do processo de insolvência e, portanto, não tenha reclamado o seu crédito, não foi colocado em crise o seu direito de acesso aos tribunais, porquanto tais circunstâncias em nada afectaram a sua posição de credora, já que o seu crédito foi reconhecido no processo, só não tendo sido pago por insuficiência de bens.
XII - Face à abrangência do art.º 26º do Regulamento (CE) 1346/2000, referindo-se ao processo de insolvência, o §1 do n.º 1 do art.º 25º não pode ser entendido como excluindo a possibilidade de a decisão de encerramento ser ela própria e de forma autónoma objecto de recusa de reconhecimento, porque se trata de uma decisão que implica efeitos diferentes dos da decisão de abertura.
XIII – O L-641-11 do Code de Commerce francês estabelece como efeito essencial da decisão de encerramento do processo de insolvência, que os credores não recuperam os seus direitos contra o devedor, a não ser nos casos nele previstos.
XIV – O facto de a solução ser diferente no direito português (art.º 233º, n.º 1, alínea c) do CIRE) não é, por si só, fundamento para a recusa de reconhecimento.
XV – Aquele normativo estabelece condições de procedência da tutela jurisdicional pretendida, as quais podem ser condições de acionabilidade ou exequibilidade, consoante esteja em causa uma acção tendo em vista exigir o cumprimento da prestação ou a realização coactiva da mesma, pelo que o que está em causa é o elemento nuclear e material do próprio direito de crédito, que é a exigibilidade e não qualquer limitação ao direito de acesso aos tribunais, em si mesmo considerado.
XVI – É o credor que cabe alegar e provar que se verifica alguma das situações que lhe permitem obter a tutela jurisdicional pretendida e não ao devedor.
XVII – Aquele efeito da decisão de encerramento do processo de insolvência não contende com o principio da igualdade porque as situações ali previstas dizem essencialmente respeito à posição do devedor e não dos credores e cada uma delas tem um fundamento material bastante e objectivo, que emerge da natureza das realidades a que se reportam.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

1. Relatório

EMP01..., Lda. intentou ação declarativa de condenação contra AA e BB, pedindo a condenação solidária dos réus a pagar-lhe:

- a quantia de € 5.496,15, correspondente ao montante total das faturas em dívida, acrescida dos juros de mora vencidos, à taxa comercial, no montante de € 2.431,41;
- a quantia já despendida com a cobrança da dívida, mais precisamente com a provisão para honorários de advogado, no valor de € 615,00;
- os juros vincendos até efetivo e integral pagamento dos montantes aludidos.

Alegou, para tanto e em síntese, ter fornecido à 1ª Ré produtos do seu comércio destinados ao exercício da atividade comercial da mesma, que não os pagou; o 2º Réu era casado com a 1ª ré no regime de comunhão de adquiridos na data de tal fornecimento, pelo que a dívida em causa é uma dívida comum do casal.

A 1ª Ré contestou, alegando, no que releva à economia do recurso, ter sido declarada insolvente em 2015, no processo de insolvência que correu termos no Tribunal de Comércio de ..., França; o encerramento da liquidação foi declarado a 25/07/2016; no referido processo foi reconhecido o crédito da A. como comum, no montante de € 5.496,15; nada deve àquela.

A A., notificada para responder, fê-lo dizendo que ainda que a Ré tenha sido declarada insolvente em França, os respetivos efeitos sempre estariam circunscritos aos bens que aí se encontrassem, não tendo qualquer validade nesta sede.

Instruídos os autos com a documentação pertinente, realizou-se o julgamento, tendo sido proferida sentença com o seguinte decisório:

Em face do exposto, o tribunal decide julgar a presente ação parcialmente procedente, e, em consequência:
a) absolver a ré AA do pedido;
b) condenar o réu BB a pagar à autora a quantia de € 5.496,15 (cinco mil quatrocentos e noventa e seis euros e quinze cêntimos) acrescida de juros de mora, à taxa comercial, vencidos desde o 15º dia contado sobre a data de vencimento de cada uma das faturas em dívida, até efetivo e integral pagamento;
c) condenar o réu BB a pagar à autora a quantia de € 40,00 (quarenta euros) a título de indemnização pelos custos de cobrança da dívida;
Custas por autora e réu BB, na proporção de 54% e 46%, respetivamente (considerando o decaimento da autora pela absolvição de um dos devedores e a parte em que decaiu no pedido formulado) - artigos 527º, n.º 1 e 2, e 258º, nºs 1 e 3, do C.P.C..

A A. interpôs recurso, pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que condene a Recorrida no pedido, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

I. O presente recurso tem como objecto a matéria de Direito da sentença proferida nos presentes autos que absolveu a Ré, fundamentando a sua decisão com recurso à aplicação do Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência, reconhecendo automaticamente a decisão decretada na França.
II. Desde logo diga-se que tratando-se de um processo de insolvência aberto antes de 26 de Junho de 2017, aplicar-se-ia, ao caso concreto dos autos, se fosse esse o caso, o Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, ao invés do Regulamento que o Tribunal a quo considerou na sua decisão.
III. Em qualquer caso, apesar da base de qualquer dos referidos Regulamentos assentar num princípio de universalidade/unicidade, não é correto afirmar-se a existência de um modelo puro, uma vez que estabelecem regras relativas à atribuição de competência internacional aos Tribunais dos Estados-Membros; à determinação da lei aplicável; ao reconhecimento de decisões estrangeiras; à articulação entre um processo de insolvência principal e um processo de insolvência secundário, entre outras, aliás, conforme ao que é admitido no considerando n.º 22 do Regulamento que o Tribunal considerou – salvo o devido respeito, erradamente – aplicável.
IV. Existem, por isso, excepções ao carácter universalista dos aludidos Regulamentos que procura harmonizar o Direito internacional Privado, carácter que não se pode ter como absoluto.
V. Acresce que, durante o suposto «procedimento de liquidação judicial simplificado» (cf. ponto 10 dos factos dados como provados) relativo à Recorrida, nunca a Recorrente foi informada ou teve conhecimento do mesmo, dessa forma sendo coarctada nos seus direitos ou intentos quanto à possibilidade de, por exemplo, reclamar os seus créditos ou diligenciar no sentido de acautelar os seus direitos de forma eficaz, tanto mais que só veio a ter conhecimento da suposta insolvência da Recorrida, no decurso dos presentes autos, isto é, volvidos cerca de 5 anos desde o encerramento desse processo (cf., entre o mais, ponto 12 dos factos dados como provados).
VI. Na verdade, impedir ou limitar a prossecução da acção, restringindo, por via da decisão de absolvição, a pretensão da Recorrente para com a Recorrida, de ver o seu crédito ressarcido, equivalerá à violação da igualdade, do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.
VII. Tal decisão de absolvição consubstancia, aliás, uma clara incompatibilidade com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
VIII. Assim, a alegada insolvência da Recorrida em França não produz quaisquer efeitos nem tem qualquer validade em Portugal, posto que os respectivos efeitos sempre estariam circunscritos aos bens que ali se encontrassem, importando salientar que o disposto nos artigos 19.º e 20.º do Regulamento (EU) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio de 2015, se refere, apenas, ao reconhecimento da validade da abertura de um processo e dos respectivos efeitos sobre bens e/ou situações jurídicas no território do Estado de abertura do processo, não implicando, naturalmente, qualquer extensão de eficácia a bens ou situações jurídicas de outros territórios.
IX. Assim, ao decidir como decidiu – i. e., que a eventual insolvência da Recorrida decretada em França produz efeitos quanto aos bens que se encontram em território português – o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 1.º, 3.º, 7.º, 19.º, 20.º, 32.º e 33.º, do Regulamento (EU) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Maio de 2015, 7.º, 275.º, 276.º, 288.º, 290.º e 293.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 1.º, 3.º, 4.º, 16.º, 17.º, 25.º e 26.º do Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000, 271.º, 272.º, 273.º, 274.º, 294.º, 295.º e 296.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 13.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa, preceitos estes que deveriam ter sido interpretados no sentido de que os efeitos da eventual insolvência decretada em França circunscrevem-se aos bens que se encontram nesse estado, sem qualquer extensão a bens ou situações jurídicas do território Português.
X. Sem prescindir, segundo o disposto no n.º 2 do artigo 342.º do CC, «[a] prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita».
XI. Em face de tal, não poderia o Tribunal a quo ter interpretado o disposto no artigo L643-11 do Code de Commerce no sentido de que não se verificavam as excepções aí consagradas, uma vez que dos factos dados como provados e dos documentos juntos pela Recorrida não seria, em qualquer caso, possível extrair conclusões suficientes que levassem a excluir a sua subsunção, ou não, nas excepções previstas, designadamente, quer no n.º 2, quer no n.º 3, valendo por dizer que o Tribunal a quo fundou a sua decisão em circunstâncias constantes daquela lei, sem que as mesmas tivessem sido alegadas ou se encontrassem como demonstradas.
XII. Pelo exposto, ao decidir como decidiu – i. e., que as excepções do referido artigo não contemplam a situação dos autos – o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil e L643-11 do Code de Commerce, preceito este que deveria ter sido interpretado no sentido de que não foram alegados nem demonstrados, como incumbiria à Recorrida, quaisquer factos susceptíveis de integrar a previsão daquela norma.

A Ré contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. A Recorrente possuiu em França (..., sito em 24, Rue ... ... (...);
2 – País onde a Recorrida viveu e vive;
3 – Dadas as dificuldades enfrentadas pela mesma, foi esta declarada insolvente, no processo que correu seus termos no Tribunal do Comércio de ..., em França.
4. Em abono da verdade, não se pode deixar de afigurar que a Sentença ora recorrida se acha doutamente elaborada;
5. Considerou o Tribunal de 1ªInstância, e, bem, aplicar aos presentes autos o REGULAMENTO (UE) 2015/848 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, de 20 de maio de 2015, atento o disposto nos artºs 1º, nº 4 do artº 2 e o anexo A, parte relativa a França.
6. Não existe, pois, quaisquer efeitos daquela decisão do Tribunal de ..., que sejam contrários à Ordem Pública Portuguesa ou aos princípios garantidos pela Constituição Portuguesa.
7. Estando, assim, o Tribunal Português, vinculado ao reconhecimento e respeito de tal decisão na nossa ordem jurídica.
8. Face ao exposto, é de concluir que, em face da factualidade dada como provada a Recorrente, na qualidade de credora da Recorrida, não poderá exigir-lhe a cobrança do seu crédito por via dos presentes autos.

2. Questões a apreciar

O objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC), sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso, cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

O Tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas (isto é, questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” (cfr. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, p. 139).

Pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, pelo não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida.

Assim e sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, a questão essencial a que cabe responder no presente recurso é a de saber se os efeitos da decisão proferida a 25/07/2016 pelo Tribunal Comercial de ..., França, que declarou o encerramento por insuficiência de bens, de um procedimento de liquidação judicial simplificado da Ré, procedimento esse aberto por decisão do mesmo tribunal de 07/09/2015, devem ser reconhecidos em Portugal e, em consequência, a Ré deve ser absolvida do pedido como decidiu o tribunal a quo.

3. Fundamentação de facto

O tribunal a quo consignou:
Da discussão da causa, e com interesse para a sua decisão, resultaram provados os seguintes factos:
1. A autora exerce a atividade de comércio por grosso de produtos alimentares;
2. A ré AA casou com o réu BB, sem convenção antenupcial, em ../../1996;
3. A ré AA dedicou-se, até ../../2015, à exploração de um restaurante denominado “...”, na ..., França;
4. No âmbito das atividades referidas em 1. e 3., de outubro a dezembro de 2014, a autora, a pedido da ré AA, forneceu-lhe artigos do seu comércio que foram objeto e estão identificados nas seguintes faturas:
- Fatura nº ...03, com data de emissão de 09/10/2014, e data de vencimento de 25/10/2014, junta com doc. ... da petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido -, no valor global de € 4.692,54 (IVA incluído);
- Fatura nº ...29, com data de emissão de 16/10/2014, e data de vencimento de 31/10/2014, junta com doc. ... da petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido -, no valor global de € 413,19 (IVA incluído);
- Fatura nº ...13, com data de emissão de 20/11/2014, e data de vencimento de 06/12/2014, junta com doc. ... da petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido -, no valor global de € 1.379,60 (IVA incluído);
- Fatura nº ...97, com data de emissão de 23/12/2014, e data de vencimento de 07/01/2015, junta com doc. ... da petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido -, no valor global de € 489,40 (IVA incluído);
5. A autora emitiu notas de crédito a favor da ré AA no valor global de € 1.478,58, por conta dos valores referidos em 4.;
6. A ré AA aceitou os produtos entregues pela autora;
7. A autora solicitou à ré AA, por mais do que uma vez, que lhe entregasse o valor indicado nas referidas faturas;
8. Em 07/09/2015, foi proferida sentença pelo Tribunal Comercial de ... em que, tendo-se constatado a cessação dos pagamentos da ré AA, se determinou o início de um procedimento de liquidação judicial simplificado, se estabeleceu a data de ../../2015 como data de cessação dos pagamentos e se nomeou CC como liquidatário;  
9. A autora consta como credora da ré AA, do valor de € 5.496,15, no processo referido em 8., correspondente às faturas referidas em 4., deduzidas no valor das notas de crédito referidas em 5.;
10. Em 25/07/2016, foi proferida sentença pelo Tribunal Comercial de ... em que se determinou o encerramento do referido procedimento de liquidação judicial simplificado, por insuficiência de bens;
11. O casamento dos réus (referido em 2.) foi dissolvido por divórcio decretado por sentença datada de 11/05/2018, transitada em julgado em ../../2019, proferida pelo Tribunal Judicial de ..., ..., ...;
12. Em ../../2022, o liquidatário CC nomeado no processo referido em 8. certificou à autora a total incobrabilidade do crédito referido em 9.;
13. A autora entregou ao seu mandatário constituído nos autos a quantia de € 615,00 para cobrança dos valores referidos em 4., deduzidos dos valores das notas de crédito referidas em 5..
            *
Não se provaram quaisquer outros factos dos alegados, com interesse para a decisão da causa, designadamente que:
a) A ré AA e o réu BB estivessem separados desde ../../2013, passando desde então a destinar exclusivamente para si próprios os proventos do seu trabalho;
b) O réu BB nunca participou na instalação e gestão do estabelecimento da ré AA referido em 3., nem nunca beneficiou dos respetivos rendimentos.
*
4. Fundamentação de direito

4.1. A questão essencial: reconhecimento na ordem jurídica portuguesa dos efeitos de uma decisão proferida por um tribunal francês

Sinteticamente resulta da factualidade provada que:
- a ré AA, residente em França, dedicou-se, até ../../2015, à exploração de um restaurante denominado “...”, na ..., França;
- a 2014 a A., com sede em Portugal, forneceu à Ré diversos produtos do seu comércio;
- a 07/09/2015, o Tribunal Comercial de ..., França determinou o início de um procedimento de liquidação judicial simplificado da Ré;
- no referido processo, a aqui A. foi reconhecida como credora pelo valor de € 5.496,15;
- no referido processo, a 25/07/2016, Tribunal Comercial de ... declarou o encerramento do referido procedimento de liquidação judicial simplificado, por insuficiência de bens;
- a ../../2021 a A., invocando a qualidade de credora dos RR., intentou a presente acção em Portugal;
- a Ré invocou as sentenças proferidas pelo Tribunal Comercial de ... para impedir a sua condenação.

Na fundamentação de direito da sentença recorrida, reconheceu-se que “por força das obrigações emergentes do contrato celebrado entre autora e ré, gerou-se na esfera jurídica daquela um crédito sobre esta, num total de € 5.496,15, bem como dos respetivos juros moratórios.”

Porém, tendo em consideração que a 07/09/2015, o Tribunal Comercial de ... determinou o início de um procedimento de liquidação judicial simplificado da Ré e que, no mesmo processo, a 25/07/2016, aquele tribunal declarou o encerramento do referido procedimento de liquidação judicial simplificado, por insuficiência de bens, o tribunal a quo ponderou:
Considerando esta factualidade, impõe-se concluir que o REGULAMENTO (UE) 2015/848 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência, é aplicável à situação dos autos, atento o disposto nos artigos 1º, 2º, nº 4, e o anexo A, parte relativa a França, em que se refere o processo em causa de “liquidation judiciaire”.
Assim sendo, impõe-se o reconhecimento automático por este tribunal das referidas sentenças proferidas pelo Tribunal de Comércio de ..., por força do disposto nos artigos 19º, 20º e 32º, do referido Regulamento, uma vez que inexiste notícia da existência de qualquer processo de insolvência secundário previsto 3º, nº 2, do mesmo Regulamento, único caso em que os efeitos da insolvência se restringiriam aos bens do devedor que se encontrassem no respetivo território.
Assim sendo, inexistindo ainda quaisquer efeitos daquelas decisões do Tribunal do Comércio de ... que se revelem manifestamente contrários à ordem pública portuguesa, em especial aos seus princípios fundamentais ou aos direitos e liberdades individuais garantidos pela sua Constituição (artigo 33º do referido Regulamento), este tribunal está vinculado ao reconhecimento e respeito de tais decisões na nossa ordem jurídica.
Posto isto, por força do artigo 7º, nº 1 e nº 2, alínea k), do referido Regulamento, é aplicável à situação dos autos, no que respeita aos efeitos da insolvência da ré, a lei francesa, concretamente no que dispõe quanto aos direitos dos credores após o encerramento do processo de insolvência.
Assim, analisando o artigo L643-11 do Code de commerce (https://www.legifrance.gouv.fr/codes/article_lc/LEGIARTI000046811404), impõe-se concluir que não está previsto, como regra, que os credores recuperem o direito de exercício individual das suas ações contra o devedor. E as exceções previstas nesse mesmo normativo não contemplam nem a situação da autora, credora nos presentes autos, nem a situação da ré devedora.
Não obstante, face ao que infra se exporá, sempre se consigna que ao abrigo do referido o artigo L643-11 do Code du Commerce, não está o co-obrigado ao pagamento impedido de cobrar da ré o montante que haja pago em seu lugar.
Face ao exposto, é de concluir que, em face da factualidade provada 8. a 10. e 12., a autora, na qualidade de credora da ré, não poderá exigir-lhe a cobrança do seu crédito por via dos presentes autos.

Destarte e como já ficou referido, a questão essencial é saber se os efeitos da decisão proferida a 25/07/2016 pelo Tribunal Comercial de ..., França, que declarou o encerramento por insuficiência de bens, de um procedimento de liquidação judicial simplificado da Ré, procedimento esse aberto por decisão do mesmo tribunal de 07/09/2015, devem ser reconhecidos em Portugal e, em consequência, a Ré deve ser absolvida do pedido, como decidiu o tribunal a quo.

 “Reconhecer uma sentença estrangeira é atribuir-lhe no Estado do foro (Estado requerido, Estado ad quem) os efeitos que lhe competem segundo a lei do Estado onde foi proferida (Estado de origem, Estado a quo), ou pelo menos alguns desses efeitos.” (cfr. Ferrer Correia in Lições de Direito Internacional Privado I, Coimbra, 2013, 4.ª reimpressão da edição de Outubro de 2000, p. 454).

Estamos, assim, perante um problema de saber se deve ser atribuída relevância aos efeitos jurídicos produzidos pela decisão de um tribunal francês, segundo a lei do Estado onde foi proferida, na ordem jurídica interna, para o que, naturalmente, importa saber quais são as condições para que tal possa ocorrer.

4.2. Fonte jurídica do reconhecimento

A decisão recorrida tomou como fonte jurídica do reconhecimento o Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015.

A recorrente invoca que, a haver reconhecimento, será com base no Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29 de Maio de 2000.

Vejamos

A União Europeia procedeu à regulação dos processos de insolvência (veremos melhor qual o sentido rigoroso desta expressão), inicialmente através do Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho de 29 de Maio de 2000 e, desde 26 de Junho de 2017, através do Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015.

O art.º 91º do Regulamento (EU) 2015/848, revogou o Regulamento (CE) n.º 1346/2000.

No entanto, o art.º 84º n.º 1 do mesmo Regulamento dispõe:
1. O disposto no presente regulamento é aplicável apenas aos processos de insolvência abertos após 26 de junho de 2017. Os atos praticados pelo devedor antes dessa data continuam a ser regidos pela lei que lhes era aplicável no momento em que foram praticados.
2. Não obstante o artigo 91.º do presente regulamento, o Regulamento (CE) n.º 1346/2000 continua a aplicar-se a processos de insolvência abrangidos pelo âmbito de aplicação do referido regulamento que tenham sido abertos antes de 26 de junho de 2017.

Destarte, pese embora aquela revogação, o Regulamento (CE) n.º 1346/2000 continua a aplicar-se aos processos de insolvência que tenham sido abertos antes de 26 de junho de 2017.

É o caso dos autos, uma vez que está directamente em causa o reconhecimento dos efeitos de uma decisão do Tribunal Comercial de ..., França num processo aberto em 2015.

Destarte, neste ponto tem razão a recorrente, quando afirma que não tem aplicação o Regulamento (EU) 2015/848, mas sim o Regulamento (CE) n.º 1346/2000.

4.3. O Regulamento (CE) n.º 1346/2000 como fonte do reconhecimento
Como resulta do art.º 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o Regulamento é uma das fontes internas do direito comunitário, dispondo tal normativo que o mesmo “tem carácter geral. É obrigatório em todos os seus elementos e directamente aplicável em todos os Estados-Membros.”

Por outro lado, o n.º 4 do art.º 8º da CRP dispõe que as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.

Destarte e por força das referidas normas, os Regulamentos têm efeito directo na ordem jurídica portuguesa.

Outra questão é a do primado do direito da União Eurpeia sobre o ordenamento jurídico interno de cada um dos Estados-Membros, ou seja, em caso de conflito entre as normas de direito da União Europeia e as normas nacionais, os Estados têm o dever de aplicar as primeiras e de desaplicar a norma de direito nacional.

Muito embora não exista nos Tratados da União Europeia norma que expresse tal primado este princípio foi reconhecido pelo Tribunal de Justiça da União Europeia nos acórdãos históricos de 5 de Fevereiro de 1963, proferido no processo 26/62, consultável  https://eur-lex.europa.eu/legal-content/Pt/TXT/HTML/?uri=CELEX:61962CJ0026&from=PT e de 15 de Julho de 1964, no processo 6/64, https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:61964CJ0006&from=PT.

O Tribunal de Justiça da União Europeia tem afirmado que todo o direito da União Europeia prevalece sobre todo o direito nacional, incluindo as respetivas normas constitucionais.

Mas, se não há dúvidas quanto ao primado do Direito comunitário sobre o Direito ordinário dos Estados Membros (no que ao direito português diz respeito, cfr. o n.º 4 do art.º 8º da CRP), é objecto de controvérsia o eventual primado sobre a Constituição (sobre esta questão, que aqui não releva, cfr. Jorge Miranda, in Constituição Portuguesa Anotada, Universidade Católica Editora, Volume I, pág. 127 e segs).

Impõe-se agora uma análise sucinta dos aspectos essenciais do Regulamento com relevância para a economia do recurso.

O Considerando (2) do Regulamento (CE) 1346/2000 indica qual o objectivo do Regulamento (sublinhado nosso):
“(2) O bom funcionamento do mercado interno exige que os processos de insolvência que produzem efeitos transfronteiriços se efectuem de forma eficiente e eficaz. A aprovação do presente regulamento é necessária para alcançar esse objectivo, o qual se insere no âmbito da cooperação judiciária em matéria civil, na acepção do artigo 65.º do Tratado.”

E o Considerando (8) indica o objecto normativo do Regulamento: 
(8) Para alcançar o objectivo de melhorar a eficácia e a eficiência dos processos de insolvência que produzem efeitos transfronteiriços, é necessário e oportuno que as disposições em matéria de competência, reconhecimento e direito aplicável neste domínio constem de um acto normativo da Comunidade, vinculativo e directamente aplicável nos Estados-Membros.

Embora resulte claro da leitura do Regulamento, impõe-se precisar que o mesmo “não regula[…] o processo de insolvência, não estabelece um Direito Europeu da Insolvência. Os tribunais de cada Estado-Membro continuam a aplicar o Direito processual interno às insolvências internacionais. O[…] Regulamento[…] sobre insolvência regula[…] principalmente a competência internacional, a determinação do direito aplicável e o reconhecimento de decisões estrangeiras. Trata-se, portanto, de fonte[…] europeia[…] de Direito Internacional Privado.”  (sublinhado nosso) (cfr. Luís Lima Pinheiro in Direito Internacional Privado, AAFDL Editora, Volume II, Tomo II, 5ª edição, pág. 297-298).

Nessa medida, consta do Considerando (6) que “(…) o presente regulamento deve limitar-se às disposições que regulam a competência em matéria de abertura de processos de insolvência e de decisões directamente decorrentes de processos de insolvência e com eles estreitamente relacionadas. Além disso, o presente regulamento deve conter disposições relativas ao reconhecimento dessas decisões e ao direito aplicável…”

Aliás, “O presente regulamento reconhece que não é praticável instituir um processo de insolvência de alcance universal em toda a comunidade, tendo em conta a grande variedade de legislações de natureza substantiva existentes”, como consta do Considerando (11).

No que diz respeito ao âmbito de aplicação, como decorre do art.º 1º, n.º 1, o Regulamente “é aplicável aos processos colectivos em matéria de insolvência do devedor que determinem a inibição parcial ou total desse devedor da administração ou disposição de bens e a designação de um síndico.”

“Processos colectivos” significa que têm por finalidade a satisfação conjunta dos credores.

O art.º 2º do Regulamento define:
a) «Processos de insolvência», os processos colectivos a que se refere o n.º 1 do artigo 1.º A lista destes processos consta do anexo A;
b) «Síndico», qualquer pessoa ou órgão cuja função seja administrar ou liquidar os bens de cuja administração ou disposição o devedor esteja inibido ou fiscalizar a gestão. A lista destas pessoas e órgãos consta do anexo C;
 c) «Processo de liquidação», um processo de insolvência na acepção da alínea a) que determine a liquidação dos bens do devedor, incluindo os casos em que o processo encerrado através de concordata ou de qualquer outra medida que ponha fim à situação de insolvência, ou em virtude da insuficiência do activo. A lista destes processos consta do anexo B;
(...)”

Podemos desde já adiantar que, no que a França diz respeito:
- consta do Anexo A ao Regulamento, que os processos de insolvência a que se refere a alínea a) do art.º 2º são: “Liquidation judiciaire; // - Redressement judiciaire avec nomination d’un administrateur”
- consta do Anexo B, que o processo de liquidação a que se refere a alínea c) é: “- Liquidation judiciaire”
- consta do Anexo C que o síndico a que se refere a alínea b) do art.º 2º é: “ - Représentant des créanciers; - Mandataire liquidateur; - Administrateur judiciaire; -  Commissaire à l’exécution de plan”.

Do ponto de vista do “devedor”, o Considerando (9) clarifica que o Regulamento “é aplicável aos processos de insolvência, independentemente de o devedor ser uma pessoa singular ou colectiva, um comerciante ou um não comerciante.”

Avançando
Teoricamente existem dois modelos de regulação da insolvência transnacional, ou seja, da insolvência que tem conexão com diversos ordenamentos jurídicos: o da universalidade, que sustenta que os efeitos do processo não se limitam ao território onde a insolvência é declarada e o da territorialidade, que sustenta o contrário, ou seja, sustenta a circunscrição destes efeitos ao território onde a insolvência é declarada. (cfr. Catarina Serra in Lições de Direito da Insolvência, 2ª edição, pág. 658).

Como refere Luís Lima Pinheiro, in loc. cit., pág. 300, “um puro sistema universal não atende suficientemente aos interesses dos pequenos credores locais e às vantagens oferecidas por processos territoriais de insolvência em certas circunstâncias. Daí que mereça preferência um sistema misto de pendor universalista.”

O Regulamento em análise adopta um sistema misto segundo o qual “o processo de insolvência principal é aberto no Estado-Membro em que se situa o centro dos principais interesses do devedor e tem vocação para abranger todo o património do devedor. Mas admite-se a instauração de processos territoriais noutros Estados-Membros em que o devedor tenha estabelecimentos; os efeitos destes processos secundários são limitados aos bens situados no território dos Estados em que são instaurados.” (Luís Lima Pinheiro, ob. cit. pág. 300-301).

Isto mesmo consta do Considerando (12) onde se afirma:
“O presente regulamento permite que o processo de insolvência principal seja aberto no Estado-Membro em que se situa o centro dos interesses principais do devedor. O processo tem alcance universal, visando abarcar todo o património do devedor. Para proteger a diversidade dos interesses, o presente regulamento permite que os processos secundários eventualmente instaurados corram paralelamente ao processo principal. Pode-se instaurar um processo secundário no Estado-Membro em que o devedor tenha um estabelecimento. Os efeitos dos processos secundários limitar-se-ão aos activos situados no território desse Estado. (…)”

E é depois traduzido em dois normativos: o art.º 3º e o art.º 27º.

O primeiro regula a competência internacional e dispõe:
1. Os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência. Presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais das sociedades e pessoas colectivas é o local da respectiva sede estatutária.
2. No caso de o centro dos interesses principais do devedor se situar no território de um Estado-Membro, os órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro são competentes para abrir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento no território desse outro Estado-Membro. Os efeitos desse processo são limitados aos bens do devedor que se encontrem neste último território.
3. Quando um processo de insolvência for aberto ao abrigo do disposto no n.º 1, qualquer processo de insolvência aberto posteriormente ao abrigo do disposto no n.º 2 constitui um processo secundário. Este processo deve ser um processo de liquidação.
4. Nenhum processo territorial de insolvência referido no n.º 2 pode ser aberto antes da abertura de um processo principal de insolvência ao abrigo do n.º 1, salvo se:
a) Não for possível abrir um processo de insolvência ao abrigo do n.º 1 em virtude das condições estabelecidas pela legislação do Estado-Membro em cujo território se situa o centro dos interesses principais do devedor;
b) A abertura do processo territorial de insolvência for requerida por um credor que tenha residência habitual, domicílio ou sede no Estado-Membro em cujo território se situa o estabelecimento, ou cujo crédito tenha origem na exploração desse estabelecimento.

E no artigo 27.º o qual dispõe:
«O processo referido no n.º 1 do artigo 3.º que for aberto por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro e reconhecido noutro Estado-Membro (processo principal) permite abrir, neste outro Estado-Membro, em cujo território um órgão jurisdicional seja competente por força do n.º 2 do artigo 3.º, um processo de insolvência secundário sem que a insolvência do devedor seja examinada neste outro Estado. Este processo deve ser um dos processos referidos no anexo B, ficando os seus efeitos limitados aos bens do devedor situados no território desse outro Estado-Membro.»

Assim distingue-se:
- o processo de insolvência “principal”, referido no n.º 1 do art.º 3º, por ser instaurado no Estado-Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor e que tem alcance universal, visando abarcar todo o património do devedor;
- o processo de insolvência “territorial”, referido no n.º 2 do art.º 3º, e que é o processo instaurado no Estado-Membro em cujo território o devedor possui um estabelecimento e cujos efeitos ficam limitados aos bens situados no território desse Estado, o qual pode ser “independente”, referido no n.º 4, se for instaurado antes do processo principal ou “secundário”, referido no n.º 3 e no art.º 27º, se for instaurado após a abertura de um processo principal.

Relativamente a esta questão o Ac. do TJ  (Primeira Secção), de 11 de Junho de 2015, processo C-649/13, consultável in https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:62013CJ0649&qid=1713190954577 declarou:
Os artigos 3.°, n.º 2, e 27.° do Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência, devem ser interpretados no sentido de que os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro da abertura de um processo de insolvência secundário são competentes, alternativamente com os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro da abertura do processo principal, para se pronunciarem sobre a determinação dos bens do devedor que fazem parte da esfera dos efeitos deste processo secundário.
A determinação dos bens do devedor que fazem parte da esfera dos efeitos de um processo de insolvência secundário deve ser realizada de acordo com as disposições do artigo 2.º, alínea g), do Regulamento n.º 1346/2000.

Quanto à lei aplicável ao processo de insolvência, dispõe o art.º 4º, n.º 1 (sublinhado nosso):
Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado-Membro em cujo território é aberto o processo, a seguir designado “Estado de abertura do processo.”

E o n.º 2 discrimina, de forma exemplificativa, em face do advérbio “nomeadamente”, um conjunto de realidades substantivas cuja regulação é determinada pela lei do Estado de abertura do processo.

Mas esta é a regra, pois o Regulamento contem disposições que afastam a aplicação da lei do Estado de abertura do processo, relativamente aos efeitos do processo de insolvência sobre determinadas situações, tais como os direitos reais de terceiros, os contratos de trabalho, as acções pendentes relativas a bens ou direitos de cuja administração ou disposição o devedor está inibido (cfr. art.ºs 5º, 10º e 15º).

Finalmente e em decorrência do disposto no n.º 1 do art.º 4º, caso seja aberto um processo territorial (na acção referida supra), o art.º 28º dispõe que “salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao processo secundário é a do Estado-Membro em cujo território tiver sido aberto o processo secundário.”

Esta norma abrange tanto o processo territorial secundário, como independente (cfr. Luís Lima Pinheiro, ob. cit., pág. 319)

No que diz respeito à questão central do recurso, o Regulamento dispõe sobre o reconhecimento das decisões proferidas por órgãos jurisdicionais de outros Estados-membros, que determinem a abertura de processo de insolvência, que designem um síndico, que sejam relativas à tramitação e ao encerramento de um processo de insolvência ou que homologuem qualquer acordo (art.ºs 16º, 18º e 25º) e, ainda, as decisões directamente decorrentes do processo de insolvência e que com ele estejam estreitamente relacionadas, mesmo que proferidas por outro órgão jurisdicional e as relativas às medidas cautelares tomadas após a apresentação do requerimento de abertura do processo de insolvência (art.º 25º, n.º 1, § 2 e 3).

Assim dispõem:
- o artigo 16º:
1. Qualquer decisão que determine a abertura de um processo de insolvência, proferida por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro competente por força do artigo 3.º, é reconhecida em todos os outros Estados-Membros logo que produza efeitos no Estado de abertura do processo.
A mesma regra é aplicável no caso de o devedor, em virtude da sua qualidade, não poder ser sujeito a um processo de insolvência nos restantes Estados-Membros.
2. O reconhecimento de um processo referido no n.º 1 do artigo 3.º não obsta à abertura de um processo referido no n.º 2 do artigo 3.º por um órgão jurisdicional de outro Estado-Membro. Este último processo constitui um processo de insolvência secundário na acepção do capítulo III.

- o art.º 17.º:
1. A decisão de abertura de um processo referido no n.º 1 do artigo 3.º produz, sem mais formalidades, em qualquer dos demais Estados-Membros, os efeitos que lhe são atribuídos pela lei do Estado de abertura do processo, salvo disposição em contrário do presente regulamento e enquanto não tiver sido aberto nesse outro Estado-Membro um processo referido no n.º 2 do artigo 3.º
(…)”

- o art.º 25º, n.º 1 § 1:
1. As decisões relativas à tramitação e ao encerramento de um processo de insolvência proferidas por um órgão jurisdicional cuja decisão de abertura do processo seja reconhecida por força do artigo 16.º, bem como qualquer acordo homologado por esse órgão jurisdicional, são igualmente reconhecidos sem mais formalidades. (…)

Relativamente ao n.º 1 do art.º 16º, o já citado Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção), de 02 de Maio 2006, processo C341/04, considerou que o artigo 16.°, n.° 1, primeiro parágrafo, do regulamento deve ser interpretado no sentido de que a decisão proferida por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro chamado a conhecer de um pedido para esse efeito, baseado na insolvência do devedor e destinado à abertura de um processo mencionado no Anexo A do mesmo regulamento, constitui uma decisão de abertura do processo de insolvência na acepção dessa disposição, quando essa decisão implique a inibição do devedor e nomeie um síndico mencionado no Anexo C do referido regulamento. Dessa inibição resulta que o devedor perde os poderes de gestão sobre o seu património.”

Em geral existem dois modelos de reconhecimento: o automático e o individualizado (cfr. Luís Lima Pinheiro, Direito Internacional Privado, Volume III, Tomo II, 3ª edição, pág. 68-70, que seguiremos de perto).

No modelo de reconhecimento automático, certos efeitos produzem-se na ordem jurídica do estado de reconhecimento pela simples verificação das condições fixadas por normas de reconhecimento, independentemente de um procedimento prévio de reconhecimento.

No modelo de reconhecimento individualizado, o ordenamento local faz depender certos modos de relevância da sentença estrangeira de um procedimento de verificação da conformidade da sentença com as condições de reconhecimento, o qual pode ser de mérito – implica o exame  da correção da determinação  dos factos e da determinação, interpretação e aplicação do direito feitos pelo tribunal de origem – ou formal – limita-se a verificar se a decisão estrangeira  cumpre determinados requisitos de validade,  extrínseca, se o tribunal de origem é competente na perspectiva do Estado de reconhecimento e se respeitos garantias mínimas de justiça substantiva e processual (é o que sucede na ordem jurídica nacional com o disposto nos artigos 978º a 985º do CPC).

Da conjugação dos n.ºs 1 dos artigos 16º e 17º e do art.º 25º, decorre que o Regulamento (CE) n.º 1346/2000 adoptou um modelo de reconhecimento automático, ou seja, os efeitos da decisão que determine a abertura de um processo de insolvência, proferida por um órgão jurisdicional competente nos termos do Regulamento, são reconhecidos em todos os outros Estados-Membros, logo que a decisão produza efeitos no Estado de origem, sem necessidade de quaisquer formalidades, pelo que a autoridade e a eficácia de tais decisões proferidas no Estado-Membro de origem podem ser invocadas directamente perante as autoridades de todos os Estados-Membros, sem necessidade de qualquer procedimento prévio de reconhecimento e, assim, sem qualquer controlo formal e, muito menos, sem qualquer controlo do mérito, realizando o principio da confiança mútua na administração da justiça entre os Estados-Membros, como referido no Considerando (22).

Neste sentido, o Acórdão do Tribunal de Justiça (Grande Secção), de 02 de Maio 2006, processo C341/04, consultável in https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:62004CJ0341 considerou, nomeadamente, que “o artigo 16.º, n.º 1, primeiro parágrafo, do regulamento deve ser interpretado no sentido de que o processo principal de insolvência aberto por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro deve ser reconhecido pelos órgãos jurisdicionais dos outros Estados-Membros, sem que estes possam fiscalizar a competência do órgão jurisdicional do Estado de abertura.”

De notar, no entanto, que “o reconhecimento da decisão de abertura de um processo principal é limitado pela abertura de um processo territorial. Não são reconhecidos os efeitos do processo principal que dizem respeito aos bens e às situações jurídicas que estejam abrangidas pelo âmbito do processo territorial.
No que toca à decisão de abertura de um processo territorial, só são reconhecidos os efeitos relativos a bens localizados no território do Estado de abertura do processo. A extensão de eficácia aos outros Estados-membros limita-se pois ao reconhecimento da validade da abertura do processo territorial e dos efeitos por este produzidos sobre os bens localizados no território do Estado de abertura do processo.” (cfr. Luís Lima Pinheiro, in ob. cit., pág. 341, sendo os sublinhados nossos).

Finalmente e como decorre do § 1 do n.º 1 do art.º 25º, desde que a decisão que determine a abertura de um processo de insolvência seja reconhecida, assim também são reconhecidas imediata e automaticamente as decisões relativas à tramitação, ao encerramento de um processo de insolvência e à homologação de acordo homologado por esse órgão jurisdicional.

Mas, como refere Luís Lima Pinheiro, in Direito Internacional Privado, Volume III, Tomo II, 3ª edição, pág. 68 e em particular, na mesma obra, Volume II, Tomo II, pág. 339, isso “não exclui que as autoridades do estado de reconhecimento possam ser chamadas a verificar, a título incidental, se a decisão deve ser reconhecida, quando esta for invocada junto destas autoridades. Por exemplo, quando a decisão for invocada para paralisar uma ação individual de um credor….”

É o que sucede quando for invocado que a sentença estrangeira não reúne alguma das condições de reconhecimento e, assim, o mesmo deve ser recusado.

O Regulamento em análise estabelece uma única condição de recusa de reconhecimento (sublinhados nossos):
“Qualquer Estado-Membro pode recusar o reconhecimento de um processo de insolvência aberto noutro Estado-Membro ou execução de uma decisão proferida no âmbito de um processo dessa natureza, se esse reconhecimento ou execução produzir efeitos manifestamente contrários à ordem pública desse Estado, em especial aos seus princípios fundamentais ou aos direitos e liberdades individuais garantidos pela sua Constituição.”

Decorre desta norma que a recusa do reconhecimento só é possível quando os efeitos da decisão proferida por um tribunal de outro Estado-Membro forem manifestamente contrários à ordem pública internacional do Estado em que a decisão é invocada.

E, deste modo, não é a decisão em si mesma que é analisada à luz da ordem pública do Estado de reconhecimento, mas os efeitos que ela produzirá se for reconhecida.

Por outro lado, na medida em que o art.º 26º exige que os “…efeitos [sejam] manifestamente contrários à ordem pública desse Estado…”, a recusa de reconhecimento com tal fundamento só tem lugar em casos excepcionais.

Assim refere Luís Lima Pinheiro in Direito Internacional Privado, Volume II, Tomo II, pág. 342 (sublinhado nosso) “[t]rata-se, indiscutivelmente, da ordem pública internacional do Estado de reconhecimento, cláusula geral que só funciona em casos excepcionais, e abrange princípios fundamentais tanto materiais como processuais”.

E o fundamento para tal excepcionalidade é o princípio da confiança mútua, como consta do Considerando (22) do Regulamento em análise (sublinhado nosso):
22) (…) O reconhecimento das decisões proferidas pelos órgãos jurisdicionais dos Estados-Membros tem de assentar no princípio da confiança mútua. Neste contexto, os motivos do não reconhecimento devem ser reduzidos ao mínimo. A resolução de conflitos entre os órgãos jurisdicionais de dois Estados-Membros que se considerem competentes para proceder à abertura do processo principal dever-se-á regular por este mesmo princípio. A decisão proferida pelo órgão jurisdicional que proceder à abertura em primeiro lugar deve ser reconhecida nos demais Estados-Membros, sem que estes estejam habilitados a submeter a decisão desse órgão jurisdicional a quaisquer formalidades de reconhecimento.”

O TJ (Grande Secção), no processo C341/04, 02 de Maio 2006, já referido, assim o considerou, aplicando a jurisprudência sobre a “ordem pública” referida no art.º 27º, n.º 1 da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial (Convenção de Bruxelas), afirmando:
“63. No contexto da Convenção de Bruxelas, o Tribunal de Justiça declarou que o recurso à cláusula de ordem pública, que figura no artigo 27.°, n.º 1, dessa Convenção, na medida em que constitui um obstáculo à realização de um dos seus objectivos fundamentais, deve intervir apenas em casos excepcionais (acórdão de 28 de Março de 2000, Krombach, C-7/98, Colect, p. I-1935, n.°s 19 e 21).
64. Essa jurisprudência pode ser transposta para efeitos da interpretação do  artigo 26.° do regulamento.”

A Convenção de Bruxelas não era aplicável às falências (art.º 1º, 2) (como não era o Regulamento (CE) 44/2001 (art.º 1º n.º 2, alínea b)), que lhe sucedeu e não é o Regulamento (UE) 1215/2012 ( art.º 1º, n.º 2, alínea b)) que sucedeu ao Reg 44/2001).

No entanto o TJ entendeu que a jurisprudência sobre a cláusula de ordem pública naquela Convenção era transponível para a interpretação do art.º 26º do Regulamento (CE) 1346/2000.

E o mesmo deve suceder relativamente ao actual Regulamento (UE) 1215/2012 porque o mesmo “constitui o compêndio normativo processual europeu geral, que estabelece os critérios de validade extraterritorial das decisões judiciais em matéria civil e comercial.
(…)
A importância do carácter geral do Regulamento Bruxelas I-bis revela-se em dois planos:
(i) Desde logo, ao constituir um “compêndio normativo geral”, este instrumento é útil para integrar, por analogia, as lacunas de regulamentação que possam existir noutros instrumentos legais específicos do Direito Europeu, no campo da validade extraterritorial de decisões;
(ii) O Regulamento Bruxelas I-bis também é útil para dele extrair determinados “princípios gerais de Direito Internacional Privado europeu” que possam revelar-se necessários para interpretar todo o sistema jurídico europeu de Direito Internacional Privado no sector da validade extraterritorial de decisões. (cfr. Rui Vouga in Reconhecimento e Execução de Decisões no Âmbito do Regulamento Bruxelas I-Bis, 2019, pág. 24, acessível in https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=AGVisiY_Syo%3D&portalid=30, obra que seguiremos de perto).

Ainda no sentido de que a ordem pública a que se refere o artigo 27.º, n.º 1 da Convenção de Bruxelas só intervém em casos excepcionais, cfr. os Acórdãos do Tribunal de Justiça:
- de 4 de Fevereiro de 1988, processo 145/86, consultável in https://eur-lex.europa.eu/resource.html?uri=cellar:0b8a41d8-6ed7-4659-b06e-d441527fb3ea.0009.03/DOC_1&format=PDF;
- de 28 de Março de 2000, processo C-7/98, consultável in https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:61998CJ0007&from=PT;
- de 2 de Abril de 2009, processo C-394/07, consultável in https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:62007CJ0394.

A ordem pública internacional é definida à luz do sistema jurídico do Estado em que a decisão é invocada.

Neste sentido os Acórdãos do Tribunal de Justiça:
- de 23 de Outubro de 2014, processo C-302/13, consultável in https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?docid=158845&doclang=PT;
- de 2 de Abril de 2009, processo C394/07, consultável in https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=73644&doclang=FR;
- de  6 de Setembro de 2012, processo C-619/10, consultável in https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=126427&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=2268656;
- de 28 de Abril de 2009, processo C-420/07, consultável in https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=78109&pageIndex=0&doclang=pt&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=2268839.

Não se encontra na lei portuguesa uma definição do conceito de «ordem pública internacional», que consubstancia «um conceito indeterminado, carecido de preenchimento valorativo na análise casuística» (Ac. da RC, de 03.03.2009, proc. 237/07.1YRCBR, consultável in www.dgsi.pt/jtrc).

Mas pode afirmar-se que se estará perante princípios e valores essenciais do Estado Português, enformadores e fundantes da sua própria ordem jurídica, que (de tão decisivos) jamais poderão ser postergados ( cfr. Acs. do STJ, de 21.02.2006, proc. 05B4168, de 26.06.2009, proc. 43/09.9YFLSB e de 23.10.2014, proc. 1036/12.4YRLSB.S1).

Na «ordem pública internacional» estamos perante «normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos, que formam os quadros fundamentais do sistema, sobre eles se alicerçando a ordem económico-social, pelo que são, como tais, inderrogáveis pela vontade dos indivíduos»; e consideram-se como tais as que «estabelecem as regras fundamentais da organização económica, as que visam garantir a segurança do comércio jurídico e proteger terceiros, as que tutelam a integridade dos indivíduos e a independência da pessoa humana e protegem os fracos e incapazes, as que respeitam à organização da família e aos estados das pessoas, visando satisfazer um interesse geral da colectividade» (Baptista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, 2.ª edição, Almedina, 1974, págs. 254-256).

Pretende-se, desse modo, «evitar que situações jurídicas dependentes de um direito estrangeiro e incompatíveis com os postulados basilares de um direito nacional venham inserir-se na ordem sociojurídica do Estado do foro e fiquem a poluí-la» (Ferrer Correia, Lições de Direito Internacional Privado (do reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras), Aditamento, 1975, pág. 96).

Entendida a ordem pública nos termos referidos, deve também entender-se que a contrariedade à mesma é de conhecimento oficioso, pois destina-se a proteger interesses públicos relevantes do Estado em que a decisão é invocada (cfr. Luís Lima Pinheiro, in DIP, Volume III, Tomo II, 3ª edição, AAFDL, pág.110).

De referir que, muito embora se entenda que o conteúdo da ordem pública internacional é definido em função e à luz do sistema jurídico do Estado em que a decisão é invocada, o Tribunal de Justiça tem considerado poder controlar os limites no quadro dos quais o tribunal de um EstadoMembro pode recorrer a esse conceito para não reconhecer uma decisão de outro EstadoMembro e, nesse sentido, tem intentado uma delimitação do conceito de ordem pública internacional.

Neste sentido:
- o  Acórdão do Tribunal de Justiça de 28 de Março de 2000, processo C7/98, consultável in https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:61998CJ0007&from=PT considerou:
25. De acordo com uma jurisprudência constante, os direitos fundamentais são parte integrante dos princípios gerais do direito cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça (v., designadamente, parecer 2/94, de 28 de Março de 1996, Colect., p. I-1759, n.° 33). Para este efeito, o Tribunal de Justiça inspira-se nas tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros, bem como nas indicações fornecidas pelos instrumentos internacionais para a protecção dos direitos do homem com os quais os Estados-Membros cooperam ou a que aderem. Neste quadro, a convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (a seguir «CEDH») reveste, a este respeito, um significado particular (v., designadamente, acórdão de 15 de Maio de 1986, Johnston, 222/84, Colect., p. 1651, n.° 18).
26. O Tribunal de Justiça reconheceu assim expressamente o princípio geral de direito comunitário nos termos do qual qualquer pessoa tem direito a um processo equitativo, que se inspira nos referidos direitos fundamentais (acórdãos de 17 de Dezembro de 1998, Baustahlgewebe/Comissão, C-185/95 P, Colect., p. I-8417, n.°s  20 e 21, e de 11 de Janeiro de 2000, Países Baixos e Van der Wal/Comissão, C-174/98 P e C-189/98 P, Colect., p. I-1, n.° 17).
            (…)
36. Importa sublinhar que, ao proibir que a decisão estrangeira seja objecto de revisão de mérito, os artigos 29.° e 34.°, terceiro parágrafo, da convenção proíbem o órgão jurisdicional do Estado requerido de recusar o reconhecimento ou a execução dessa decisão com base apenas no facto de existir uma divergência entre a regra de direito aplicada pelo órgão jurisdicional do Estado de origem e a que seria aplicada pelo órgão jurisdicional do Estado requerido se tivesse sido este último a conhecer do litígio. Do mesmo modo, o órgão jurisdicional do Estado requerido não pode controlar a exactidão das apreciações jurídicas ou da matéria de facto levadas a cabo pelo órgão jurisdicional do Estado de origem.
37. O recurso à cláusula de ordem pública, constante do artigo 27.°, n.° 1, da convenção, só é concebível quando o reconhecimento ou a execução da decisão proferida noutro Estado contratante viole de uma forma inaceitável a ordem jurídica do Estado requerido, por atentar contra um princípio fundamental. A fim de respeitar a proibição de revisão de mérito da decisão estrangeira, esse atentado devia constituir uma violação manifesta de uma regra de direito considerada essencial na ordem jurídica do Estado requerido ou de um direito reconhecido como fundamental nessa ordem jurídica.”

Precise-se que este Acórdão tem na base a execução de uma sentença penal que condenou o arguido numa indemnização.
           
- o Acórdão do TJ de 11 de Maio de 2000, processo C-38/98, consultável in https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:61998CJ0038, considerou:
29. Por conseguinte, embora não caiba ao Tribunal de Justiça definir o conteúdo da ordem pública de um Estado contratante, compete-lhe, apesar disso, controlar os limites no quadro dos quais o juiz de um Estado contratante pode fazer recurso a esta noção para não reconhecer uma decisão emanada de um outro Estado contratante (acórdão Krombach, já referido, n.° 23).
(…)
31. Um recurso à cláusula de ordem pública, que consta do artigo 27.°, ponto 1, da convenção, só é concebível na hipótese de o reconhecimento ou a execução da decisão proferida num outro Estado contratante colidir de modo inaceitável com a ordem jurídica do Estado requerido, na medida em que haveria uma ofensa a um princípio fundamental. A fim de respeitar a proibição de revisão quanto ao mérito da decisão estrangeira, a ofensa deverá constituir uma violação manifesta de uma regra de direito considerada como essencial na ordem jurídica do Estado requerido ou de um direito reconhecido como fundamental nesta ordem jurídica (acórdão Krombach, já referido, n.° 37).”

- de 2 de Abril de 2009, processo C394/07, consultável in https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=73644&doclang=FR considerou:
26. No seu acórdão de 28 de Março de 2000, Krombach (C7/98, Colect., p. I1935, n.° 23), o Tribunal de Justiça declarou que, embora não lhe caiba definir o conteúdo da ordem pública de um Estado contratante, incumbelhe contudo controlar os limites no quadro dos quais o órgão jurisdicional de um Estado contratante pode recorrer a esse conceito para não reconhecer uma decisão de um órgão jurisdicional de outro Estado contratante.
27.  A este respeito, o Tribunal de Justiça precisa que o recurso à cláusula relativa à ordem pública só é concebível quando o reconhecimento ou a execução da decisão proferida noutro Estado contratante viole de uma forma inaceitável a ordem jurídica do Estado requerido, por desrespeitar um princípio fundamental. Esse desrespeito deve constituir uma violação manifesta de uma norma jurídica considerada essencial no ordenamento jurídico do Estado requerido ou de um direito nesse ordenamento reconhecido como fundamental (acórdão Krombach, já referido, n.° 37).
28.Relativamente ao exercício dos direitos de defesa, referido na questão prejudicial, o Tribunal de Justiça recorda que o mesmo ocupa um lugar eminente na organização e na tramitação de um processo justo e que figura entre os direitos fundamentais que resultam das tradições constitucionais comuns aos EstadosMembros e dos instrumentos internacionais relativos à protecção dos direitos do homem com os quais os EstadosMembros cooperaram ou a que aderiram, entre os quais a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma a 4 de Novembro de 1950, se reveste de especial significado (v., neste sentido, acórdão Krombach, já referido, n.os 38 e 39).
29. É verdade que os direitos fundamentais, como o respeito dos direitos de defesa, não surgem como prerrogativas absolutas, podendo comportar restrições. Contudo, estas restrições devem corresponder efectivamente a objectivos de interesse geral prosseguidos pela medida em causa e não constituir, à luz do fim prosseguido, uma violação manifesta e desmesurada dos direitos assim garantidos.

Rui Vouga, in ob. cit. pág. 119, considera como “restrições razoáveis e proporcionadas que prossigam um interesse legítimo, como por exemplo evitar dilações do processo e obstrução à justiça, sempre e quando essas restrições não comportem uma violação manifesta e desmesurada dos direitos fundamentais assim garantidos.”

- o  Acórdão do Tribunal de Justiça (Primeira Secção) de 6 de setembro de 2012, processo C619/10, consultável in https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?docid=126427&doclang=PT, considerou:
“51. Assim, o recurso à cláusula de ordem pública, constante do artigo 34.°, n.º 1, do Regulamento n.° 44/2001, só é concebível quando o reconhecimento ou a execução da decisão proferida noutro EstadoMembro violem de forma inaceitável a ordem jurídica do EstadoMembro requerido, por infringirem um princípio fundamental. Esse desrespeito deve constituir uma violação manifesta de uma norma jurídica considerada essencial no ordenamento jurídico do EstadoMembro requerido ou de um direito reconhecido como fundamental nesse ordenamento (v. acórdãos, já referidos, Krombach, n.° 37; Renault, n.° 30; e Apostolides, n.° 59).
52. Quanto ao direito a um processo justo, a que a questão submetida faz referência, importa recordar que esse direito resulta das tradições constitucionais comuns aos EstadosMembros e foi reafirmado no artigo 47.°, segundo parágrafo, da Carta, que corresponde, como resulta das explicações relativas a este artigo, ao artigo 6.°, n.° 1, da CEDH (v. acórdão de 22 de dezembro de 2010, DEB, C279/09, Colet., p. I13849, n.° 32).”

Neste Acórdão estava essencialmente em causa a fundamentação da sentença.

No específico âmbito que nos ocupa, o Tribunal de Justiça (Grande Secção), no processo C341/04, 02 de Maio 2006, consultável in https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:62004CJ0341, considerou:
65. No que respeita ao domínio processual, importa recordar que o Tribunal de Justiça reconheceu expressamente o princípio geral de direito comunitário nos termos do qual qualquer pessoa tem direito a um processo equitativo (acórdãos de 17 de Dezembro de 1998, Baustahlgewebe/Comissão, C-185/95 P, Colect, p. I-8417, n.°s 20 e 21; de 11 de Janeiro de 2000, Países Baixos e Van der Wal/Comissão, C-174/98 P e C-189/98 P, Colect., p. I-1, n.° 17; bem como Krombach, já referido, n.° 26). Esse princípio inspira-se nos direitos fundamentais que fazem parte integrante dos princípios gerais de direito cujo respeito é assegurado pelo Tribunal de Justiça inspirando-se nas tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros bem como nas indicações fornecidas, nomeadamente, pela Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, assinada em Roma em 4 de Novembro de 1950.
66. No que respeita mais precisamente ao direito de obter a comunicação dos documentos dos autos e, de um modo mais geral, ao direito de audição, aos quais a quinta questão colocada pelo órgão jurisdicional de reenvio faz referência, importa salientar que os mesmos ocupam um lugar de destaque na organização e no desenrolar de um processo equitativo. No quadro de um processo de insolvência, o direito dos credores ou dos seus representantes de participarem no processo no respeito do princípio da igualdade de armas reveste-se de particular importância. Embora as modalidades concretas do direito de audição sejam susceptíveis de variar em função da urgência que possa haver em decidir, qualquer restrição ao exercício desse direito deve ser devidamente justificado e rodeado de garantias processuais que assegurem às pessoas afectadas por esse processo uma possibilidade efectiva de impugnar as medidas adoptadas com urgência.
67 À luz destas considerações, há que responder à quinta questão que o artigo 26.° do regulamento deve ser interpretado no sentido de que um Estado-Membro pode recusar-se a reconhecer um processo de insolvência aberto noutro Estado-Membro quando a decisão de abertura tenha sido tomada em manifesta violação do direito fundamental de audição de que dispõe uma pessoa afectada por esse processo.”

E no ponto 68 considerou, em síntese, que embora seja da competência do órgão jurisdicional de reenvio determinar se ocorreu uma manifesta violação do direito de audição aquando do decurso do processo no órgão jurisdicional do outro EstadoMembro, esse órgão jurisdicional não se pode limitar a transpor a sua própria concepção da oralidade dos debates e do carácter fundamental de que esta última se reveste na sua ordem jurídica, devendo apreciar, face a todas as circunstâncias, se as pessoas afectadas pelo referido processo tiveram ou não oportunidade suficiente de ser ouvidas.

Na ordem jurídica nacional, o Acórdão do STJ de 20/11/2014, processo 7614/12.4TBCSC.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj, considerou que:
– Assim, só se a execução violar manifestamente um princípio fundamental da ordem jurídica do Estado requerido é que se justificará a recusa de exequatur: “O recurso à cláusula de ordem pública, constante do artigo 34.°, ponto 1, do Regulamento n.° 44/2001, só é concebível quando o reconhecimento ou a execução da decisão proferida noutro Estado contratante violem de forma inaceitável a ordem jurídica do Estado requerido, por infringir um princípio fundamental. A fim de respeitar a proibição de revisão de mérito da decisão estrangeira, essa infracção deve constituir uma violação manifesta de uma norma jurídica considerada essencial na ordem jurídica do Estado requerido ou de um direito reconhecido como fundamental nessa ordem jurídica (v. acórdãos, já referidos, Krombach, n.° 37, e Renault, n.° 30).” – acórdão do TJUE de 28 de Abril de 2009 cit..;
– Essa norma ou princípio pode ser substantivo ou processual. No entanto, porque em caso algum se pode proceder a uma “revisão de mérito” (artigo 45º), o tribunal requerido não pode recusar o exequatur “com base apenas no facto de haver uma divergência entre a norma jurídica aplicada pelo tribunal do Estado de origem e a que seria aplicada pelo tribunal do Estado requerido se fosse ele a decidir o litígio. Do mesmo modo, o tribunal do Estado requerido não pode controlar a exactidão das apreciações jurídicas ou da matéria de facto levadas a cabo pelo tribunal do Estado de origem (v. acórdãos, já referidos, Krombach, n.° 36, e Renault, n.° 29), devendo assumir que “o sistema de meios processuais existente” no Estado de origem “fornece aos particulares uma garantia suficiente” – acórdão do TJUE de 28 de Abril de 2009, cit.;
– Isto significa, nomeadamente, que, se tiver sido invocada contrariedade com a ordem pública processual, porque o processo concretamente seguido infringiu manifestamente normas ou princípios processuais fundamentais do Estado requerido, não é causa de recusa de exequatur a alegação de uma violação que poderia ter sido invocada perante o próprio tribunal que julgou e ou em via de recurso, requerendo a respectiva correcção, e não o foi. A tanto obriga a confiança nas decisões dos outros Estados, em que assenta o sistema do Regulamento, e que exige que o sistema do Estado de origem tenha a oportunidade de corrigir uma hipotética incorrecção, antes de ser suscitada perante o Estado requerido em via de oposição ao exequatur.”

Muito embora estivesse em causa uma questão de exequatur e não de reconhecimento, a doutrina do Acórdão pode ser transposta para a questão do reconhecimento.

4.3. Das restantes questões invocadas pela recorrente

A recorrente invoca que:
- o facto de não ter tido conhecimento do processo de insolvência da Ré, coarctou a possibilidade de reclamar os seus créditos ou diligenciar no sentido de acautelar os seus direitos de forma eficaz;
- impedir a prossecução da acção viola o principio da igualdade, do acesso ao direito e à tutela jurisdicional;
- a decisão de absolvição é incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado português;
- a insolvência da Ré em França não produz quaisquer efeitos, nem tem qualquer validade em Portugal, porque os seus efeitos sempre estariam circunscritos aos bens que ali se encontrassem;
- o tribunal a quo não podia ter aplicado o artigo L643-11 do Code de Commerce francês por a Ré não ter alegado nem demonstrado quaisquer factos susceptíveis de integrar a referida norma.

O tribunal é assim chamado a verificar, a titulo incidental, se os efeitos daquelas decisões devem ser reconhecidas.

Vejamos

1) Ao contrário do pretendido pela recorrente, as decisões em referência não produzem efeitos apenas em relação aos bens da Ré existentes em França.

Recorde-se que o art.º 2º, alínea a) do Regulamento define como «Processos de insolvência», os processos colectivos a que se refere o n.º 1 do artigo 1.º e cuja lista consta do anexo A.

No que a França diz respeito consta do Anexo A ao Regulamento, que os processos de insolvência a que se refere a alínea a) do art.º 2º são, nomeadamente, a “Liquidation judiciaire”.

Foi o que sucedeu no caso, como resulta da leitura do original da decisão junto a fls. 165v.-167, que acompanha o e-mail enviado pelo Tribunal de Commerce D´... junto ao PE a 27/07/2022.

O processo de insolvência em referência só produziria efeitos em relação aos bens existentes em França se pudesse ser considerado um processo de insolvência “territorial”, secundário ou independente. 

Residindo a Ré em França e tendo aí sido instaurado um processo de insolvência, nada permite afirmar que não era aí que a Ré tinha o “centro dos interesses principais”, pelo que aquele processo deve ser considerado “principal”, com vocação para abranger todo o património do devedor, esteja ele situado em França ou em Portugal.

2) A recorrente invoca que o facto de não ter tido conhecimento do processo de insolvência da Ré, coarctou a possibilidade de reclamar os seus créditos ou diligenciar no sentido de acautelar os seus direitos de forma eficaz.

Impõe-se desconsiderar a segunda parte da alegação, por vaga, genérica e abstracta.

Quanto à primeira parte, como ficou referido a ordem pública internacional abrange princípios fundamentais tanto materiais como processuais.

Por outro lado, como também ficou referido, há que colocar em confronto os efeitos que se produzem em resultado do eventual reconhecimento da decisão e a ordem pública internacional do Estado do reconhecimento.

No caso, o alegado pela recorrente reconduzir-se-ia, à violação do art.º 20º n.º 1 da CRP, nos termos o qual “[a] todos é assegurado o acesso (…) aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos…”

Trata-se do direito à tutela jurisdicional, ou seja, “do direito subjectivo de levar determinada pretensão a […] um órgão jurisdicional” (Ac. TC 363/04), ou seja, do direito de acção.

E nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP Anotada, Volume, 2007, pág. 409 o “direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (…) é uma norma–principio estruturante do Estado de Direito democrático (…) e de uma Comunidade de estados (União Europeia) informada pelo respeito dos direitos do homem, das liberdades fundamentais e do Estado de direito (TUE, art.º 6º).”

Assim caracterizado não há dúvidas de que este direito integra a ordem pública internacional do Estado português.

Ainda assim, o direito de acesso à tutela jurisdicional não é absoluto, a Constituição não garante o acesso indiscriminado a juízo, podendo o direito ordinário delimitar os pressupostos ou requisitos de natureza processual de efectivação dessa garantia (Ac. do TC de 416/99).

Importa recordar que, à luz do n.º 1 do art.º 4º do Regulamento (CE) 1346/2000,
“a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado-Membro em cujo território é aberto o processo, a seguir designado "Estado de abertura do processo" e nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, é a “lei do Estado de abertura do processo determina as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência” e que, “determina, nomeadamente: (…) h) As regras relativas à reclamação, verificação e aprovação dos créditos.”

Há, portanto, que apelar às regras do Code de Commerce francês e que pode ser consultado in https://www.legifrance.gouv.fr/codes/texte_lc/LEGITEXT000005634379/

Vejamos então

O § 4 do L-641-3 do Code de Commerce francês dispõe:
Les créanciers déclarent leurs créances au liquidateur selon les modalités prévues aux articles L. 622-24 à L. 622-27 et L. 622-31 à L. 622-33.

Releva aqui o L-622-24 onde se dispõe:
A partir de la publication du jugement, tous les créanciers dont la créance est née antérieurement au jugement d'ouverture, à l'exception des salariés, adressent la déclaration de leurs créances au mandataire judiciaire dans des délais fixés par décret en Conseil d'Etat. (…)
(…)
Lorsque le débiteur a porté une créance à la connaissance du mandataire judiciaire, il est présumé avoir agi pour le compte du créancier tant que celui-ci n'a pas adressé la déclaration de créance prévue au premier alinéa.

Quanto a este último parágrafo dispõe o L-622-6:
Le débiteur remet à l'administrateur et au mandataire judiciaire, pour les besoins de l'exercice de leur mandat, la liste de ses créanciers, du montant de ses dettes et des principaux contrats en cours. Il les informe des instances en cours auxquelles il est partie.

Ou seja: os credores devem reclamar os seus créditos.

Mas se não o fizerem e o devedor levar ao conhecimento au mandataire judiciaire, a lei considera tais créditos como reclamados.

No caso dos autos a A. alega que não teve conhecimento do processo de insolvência da Ré, facto que lhe coarctou a possibilidade de reclamar os seus créditos.

Porém, consta da fundamentação de facto:
9. A autora consta como credora da ré AA, do valor de € 5.496,15, no processo referido em 8., correspondente às faturas referidas em 4., deduzidas no valor das notas de crédito referidas em 5.;

Ou seja: ainda que a recorrente não tenha tido conhecimento do processo de insolvência e, portanto, não tenha reclamado o seu crédito, não foi colocado em crise o seu direito de acesso aos tribunais, porquanto tais circunstâncias em nada afectaram a sua posição de credora, pois o seu crédito foi reconhecido no processo, só não tendo sido pago por insuficiência de bens.

Destarte os efeitos resultantes do reconhecimento da decisão de 07/09/2015, que determinou o início de um procedimento de liquidação judicial simplificado da Ré, de modo algum se apresentam como manifestamente contrários ao direito de acesso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, pois, ainda que a A. não tenha tido conhecimento do processo de insolvência tendo como devedor a Ré, isso em nada a prejudicou, já que o seu crédito foi reconhecido, pelo que não se mostra violada a ordem jurídica internacional do Estado português e, assim, improcede este fundamento de recusa do reconhecimento dos efeitos daquela decisão.

3) A recorrente alega ainda que impedir a prossecução da acção viola o principio da igualdade, do acesso ao direito e à tutela jurisdicional e que a decisão de absolvição é incompatível com os princípios de ordem pública internacional do estado português.

Estamos no domínio dos efeitos da decisão de 25/07/2016, que declarou o encerramento do procedimento de liquidação judicial simplificado da Ré, por insuficiência de bens.

Coloca-se aqui uma questão prévia.

Como ficou referido, o §1 do n.º 1 do art.º 25º dispõe que as decisões relativas (…) ao encerramento de um processo de insolvência proferidas por um órgão jurisdicional cuja decisão de abertura do processo seja reconhecida por força do artigo 16.º, são igualmente reconhecidas sem mais formalidades.

Dir-se-ia, assim que as decisões relativas ao encerramento de um processo de insolvência não poderiam ser objecto de recusa de reconhecimento autónoma e independente da decisão de abertura do processo.

Não cremos que possa ser assim.

Por um lado e face à ampla abrangência do art.º 26º, referindo-se ao processo de insolvência, o §1 do n.º 1 do art.º 25º não pode ser entendido como excluindo a possibilidade de a decisão de encerramento ser ela própria e de forma autónoma objecto de recusa de reconhecimento, porque se trata de uma decisão que implica  efeitos diferentes dos da decisão de abertura.

Destarte, entende-se que os efeitos da decisão de encerramento podem ser autonomamente objecto de análise à luz da ordem pública internacional do Estado português.

E também aqui importa recordar que, à luz do n.º 1 do art.º 4º do Regulamento (CE) 1346/2000, “a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado-Membro em cujo território é aberto o processo, a seguir designado "Estado de abertura do processo" e nos termos do n.º 2 do mesmo artigo, é a “lei do Estado de abertura do processo [que] determina as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência” e “nomeadamente: (…) k) Os direitos dos credores após o encerramento do processo de insolvência.”

Assim e num primeiro momento importa verificar quais os efeitos daquela decisão de 25/07/2016, sobre os direitos dos credores após o encerramento do processo de insolvência e, concretamente, verificar se a mesma decisão produz os efeitos elencados pela recorrente, ou seja, impede a prossecução da acção e determina a absolvição do pedido.

Num segundo momento, há que ter em consideração que o alegado pela recorrente – num primeiro momento, a violação do principio da igualdade, do acesso ao direito e à tutela jurisdicional; num segundo momento, que a decisão de absolvição é incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado português - não tem autonomia, porquanto a ordem pública internacional do Estado português abarca, como já vimos, o direito de acesso aos tribunais e, também, como veremos melhor, o principio da igualdade.

Em face do exposto, também aqui há que apelar às regras do Code de Commerce francês e que pode ser consultado in https://www.legifrance.gouv.fr/codes/texte_lc/LEGITEXT000005634379/

Vejamos

O efeito essencial que resulta da decisão de encerramento do processo de insolvência está plasmado no L-641-11, o qual dispõe
I.- Le jugement de clôture de liquidation judiciaire pour insuffisance d'actif ne fait pas recouvrer aux créanciers l'exercice individuel de leurs actions contre le débiteur. Il est fait exception à cette règle :
1° Pour les actions portant sur des biens acquis au titre d'une succession ouverte pendant la procédure de liquidation judiciaire ;
2° Lorsque la créance trouve son origine dans une infraction pour laquelle la culpabilité du débiteur a été établie ou lorsqu'elle porte sur des droits attachés à la personne du créancier ;
3° Lorsque la créance a pour origine des manœuvres frauduleuses commises au préjudice des organismes de protection sociale mentionnés à l'article L. 114-12 du code de la sécurité sociale. L'origine frauduleuse de la créance est établie soit par une décision de justice, soit par une sanction prononcée par un organisme de sécurité sociale dans les conditions prévues aux articles L. 114-17 et L. 114-17-1 du même code.
            (…)
III.- Les créanciers recouvrent leur droit de poursuite individuelle dans les cas suivants :
1° La faillite personnelle du débiteur a été prononcée ;
2° Le débiteur a été reconnu coupable de banqueroute ;
3° Le débiteur, au titre de l'un quelconque de ses patrimoines, ou une personne morale dont il a été le dirigeant a été soumis à une procédure de liquidation judiciaire antérieure clôturée pour insuffisance d'actif moins de cinq ans avant l'ouverture de celle à laquelle il est soumis ainsi que le débiteur qui, au cours des cinq années précédant cette date, a bénéficié des dispositions de l'article L. 645-11 ;
4° La procédure a été ouverte en tant que procédure territoriale au sens du paragraphe 2 de l'article 3 du règlement (CE) n° 1346/2000 du Conseil du 29 mai 2000 relatif aux procédures d'insolvabilité.
IV.-En outre, en cas de fraude à l'égard d'un ou de plusieurs créanciers, le tribunal autorise la reprise des actions individuelles de tout créancier à l'encontre du débiteur. Le tribunal statue lors de la clôture de la procédure après avoir entendu ou dûment appelé le débiteur, le liquidateur et les contrôleurs. Il peut statuer postérieurement à celle-ci, à la demande de tout intéressé, dans les mêmes conditions.
(…)

Do I. do normativo em referência resulta que a decisão de encerramento da liquidação por insuficiência do activo não faz renascer, na esfera jurídica dos credores, os direitos contra o devedor, ressalvadas as excepções legais.

A solução é diferente no direito português pois o art.º 233º, n.º 1, alínea c), do CIRE, dispõe:
1 - Encerrado o processo, e sem prejuízo do disposto no n.º 5 do artigo 217.º quanto aos concretos efeitos imediatos da decisão de homologação do plano de insolvência:
(…)
c) Os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do n.º 1 do artigo 242.º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em acção de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência.”

Porém, esta diferenciação não é motivo de recusa de reconhecimento.

Só uma manifesta violação dos princípios da ordem pública internacional do Estado português o permitem.

Do L-641-11 não decorre qualquer extinção dos créditos verificados e que não foram pagos. Os créditos continuam a existir. E, portanto, o direito de exigir o cumprimento e o dever de cumprir continuam a existir.

O que sucede é que em concreto, os credores por créditos anteriores à abertura do processo de insolvência, não poderão obter a declaração ou a realização coactiva dos seus créditos, a não ser nos casos previstos na lei.
           
O credor pode exigir judicialmente o pagamento. Mas se não alegar e provar que se verifica alguma das situações previstas na lei, a sua pretensão não pode ser julgada procedente.

Tanto não há extinção, que o devedor não está proibido de pagar; mas se o fizer, não pode pedir a restituição do indevido.

Visto o normativo em termos globais – regra v. excepções – podemos afirmar que o mesmo estabelece condições de procedência, ou seja, condições para que o credor possa efectivamente obter a tutela jurisdicional pretendida, as quais podem ser condições de acionabilidade ou exequibilidade, consoante esteja em causa uma acção tendo em vista exigir o cumprimento da prestação, pressupondo a violação do direito de crédito ou a realização coactiva da prestação.

O réu não pode ser condenado a satisfazer o crédito e o executado não pode ver os seus bens apreendidos para dar pagamento ao crédito, a não ser nas situações (materiais) previstas na lei.

O estabelecimento de condições de procedência releva, assim, ao nível do elemento material e nuclear do direito de crédito, que é a exigibilidade.

Em geral, são visados todos os créditos anteriores à abertura do processo, reclamados ou não.

De extrema relevância é a compreensão da racionalidade da norma.

A ideia fundamental subjacente à norma é esta: o devedor cujos bens foram destinados ao pagamento dos credores não deve manter, ao longo da vida, o peso do passado e, portanto, das dívidas anteriores à abertura do procedimento coletivo.

Para facilitar a recuperação do devedor, para lhe dar uma segunda oportunidade, o legislador considerou necessário que ele pudesse sair do processo de insolvência sem estar sobrecarregado com as dívidas que não foram liquidadas com a venda de todos os seus ativos.

O objetivo é evitar que o devedor fique sempre sob a ameaça de ser processado pelos seus antigos credores.

É para atingir este objectivo que o legislador limita as situações em que os credores que não foram pagos, podem obter o reconhecimento ou a execução do seu direito.

Assim, a insolvência é circunscrita ao passivo que for verificado e ao activo que existir no âmbito temporal em que estiver pendente a insolvência, resolvendo a situação económica do devedor em tal quadro, ou seja, com a liquidação do activo que existir dá pagamento ao passivo verificado; quanto ao passivo restante, os credores apenas podem obter o seu pagamento nas situações excepcionais previstas na lei; o devedor não está proibido de pagar; mas se pagar, não poderá pedir a restituição do que pagou; não se verificando nenhuma de tais situações, permite-se ao devedor recuperar a sua vida económica, sem o peso daquele passivo restante, salvos os casos previstos na lei.

Podemos, aliás, dizer que estamos perante objectivos semelhantes aos da exoneração do passivo restante do direito português.

Mas também algumas das excepções, isto é, alguns dos casos em que os credores podem agir contra o devedor, apresentam semelhanças com as situações que impedem a concessão da exoneração do passivo restante do direito insolvencial português e que se traduzem no seguinte: o devedor teve comportamentos desconformes ao proceder honesto, lícito, transparente e de boa-fé para com os credores.

Assim não pode estar em causa:
- dívida com origem em infracção cuja culpabilidade do devedor tenha sido comprovada;
- dívida com origem em manobras fraudulentas cometidas em detrimento dos organismos de protecção social mencionados no artigo L. 114-12 do Código da Segurança Social;
- a falência pessoal do devedor;
- a insolvência ter sido declarada culposa;
- actuação fraudulenta para um ou vários credores.

De referir ainda que também neste regime o devedor fica sujeito a um “regime probatório” na medida em que uma das excepções – L644-11, III, 3º -, é o facto de o mesmo, menos de 5 anos antes da abertura do processo de insolvência em referência, ter sido sujeito passivo de outro processo de insolvência, também ele encerrado por insuficiência de bens.

Vejamos agora e concretamente as questões suscitadas pela recorrente.

Em primeiro lugar, é manifestamente equivocada a alegação de que o tribunal a quo não podia ter aplicado o artigo L643-11 do Code de Commerce francês por a Ré não ter alegados nem demonstrado quaisquer factos susceptíveis de integrar a referida norma.

Aquelas excepções beneficiam os credores, no sentido em que verificadas as realidades materiais nelas previstas, os credores podem obter o reconhecimento ou a execução do seu direito.

E sendo assim, é aos credores que cabe invocar a verificação de alguma delas para que lhe seja licito aos mesmos recuperar os seus direitos contra o devedor e não o contrário.

Porém, não só a recorrente não invoca nenhuma delas, como nenhuma delas se verifica in casu pois, além das já referidas:
- não estão em causa bens adquiridos em virtude de herança aberta na pendência do processo de insolvência;
- a dívida não se refere a direitos inerentes à pessoa do credor;
- a insolvência tenha sido aberta como “territorial”, no sentido do § 2 do art.º 3º do Regulamento (CE) n° 1346/2000;

De notar também que a lei francesa salvaguarda a possibilidade de, por alguma razão, a insolvência não ter abrangido todos os bens, prevendo a reabertura do processo.

Assim dispõe o L-643-13:
Si la clôture de la liquidation judiciaire est prononcée pour insuffisance d'actif et qu'il apparaît que des actifs n'ont pas été réalisés ou que des actions dans l'intérêt des créanciers n'ont pas été engagées pendant le cours de la procédure, celle-ci peut être reprise.

Em segundo lugar, como já ficou referido, no L-643-11 está em causa o elemento nuclear e material do próprio direito de crédito, que é a exigibilidade, pois os credores só poderão obter efectivamente o reconhecimento ou a execução do seu direito, se se verificar alguma das situações previstas na lei, que têm natureza material, e, nessa medida, contendem com a viabilidade do pedido ou da pretensão executiva e cuja inverificação dá lugar à absolvição do pedido

Não está, portanto, em causa qualquer limitação ao direito de acesso aos tribunais, em si mesmo considerado. O normativo não estabelece qualquer limitação ao direito de acção.

Estabelece, sim, que o credor apenas poderá ver efectivamente o devedor condenado a cumprir ou a ver realizada coactivamente a prestação, se se verificar alguma das situações previstas na lei. Estamos em pleno âmbito da exigibilidade do direito de crédito.

Não tem, portanto, fundamento, a alegação da recorrente de que foi impedida a prossecução da acção, que foi intentada e seguiu os seus termos até final, tendo sido proferida uma decisão de mérito – absolvição da Ré do pedido - por a A. não ter o direito de exigir o cumprimento da obrigação, por não ter sido alegada nem demonstrada nenhuma das situações em que o podia fazer.

Destarte, o problema não é de direito de acesso aos tribunais, mas de exigibilidade da obrigação.

Uma vez que os efeitos resultantes do reconhecimento da decisão de 25/07/2016, que declarou o encerramento do procedimento de liquidação judicial simplificado da Ré, por insuficiência de bens, não tem relação com o direito de acesso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, não se mostra violada a ordem jurídica internacional do Estado português e, assim, improcede este fundamento de recusa do reconhecimento dos efeitos daquela decisão.

Impõe-se finalmente compaginar os já referidos efeitos da decisão de  25/07/2016, com o principio da igualdade.

O principio da igualdade está plasmado no art.º 13.º CRP, o qual dispõe:

1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

O preceito citado proclama uma igualdade jurídico-formal, ou seja, uma igualdade na lei e na aplicação da mesma.

Não há dúvidas que é um principio fundamental da nossa Constituição e, desse modo, integra a ordem pública portuguesa.

O controlo pelos tribunais do respeito pelo principio da igualdade faz-se tendo fundamentalmente em consideração a vertente negativa do mesmo e que se traduz na proibição de privilégios e discriminações. Privilégios são situações de vantagem não fundadas e discriminações situações de desvantagem. (cfr. Rui Medeiros, CRP Anotada, Universidade Católica Editora, Volume I, anotação ao art.º 13º, pág. 166)

E refere Rui Medeiros, ob. cit. pág. 169: ”Apenas nos casos de violação desse principio negativo, dispõe o particular lesado de uma concreta pretensão jurídico-subjetiva suscetível de legitimar o recurso aos tribunais com vista ao cumprimento. Ou melhor, somente nesses casos existe uma competência de controlo jurisdicional do modo de actuação legislativo. Ou seja, “a teoria da proibição de arbítrio não é um critério de controlo judicial. Trata-se de um critério de controlabilidade judicial do principio da igualdade que não põe em causa a liberdade de conformação do legislador ou a discricionariedade legislativa. A proibição de arbítrio constitui um critério essencialmente negativo, com base no qual são censurados apenas os casos de flagrante e intolerável desigualdade. A interpretação do principio da igualdade como proibição do arbítrio significa uma autolimitação do poder do juiz, o qual não controla se o legislador, num caso concreto, encontrou a solução mais adequada ao fim, mais razoável ou mais justa.” (Acs [TC] n.ºs 455/02 e 531/06).”

Aquela vertente negativa significa a proibição de diferenciações sem fundamento material bastante, sem justificação razoável, segundo critérios objectivos, constitucionalmente relevantes (cfr. Ac. TC 39/88).

Nem a recorrente concretiza, nem se vislumbra, em que medida ou de que forma é que o facto de em caso de encerramento do processo de insolvência por insuficiência do activo, os credores só poderem efectivamente obter a condenação do dever no cumprimento ou efectivamente obter a realização coactiva do seu crédito em determinadas situações, viola o principio da igualdade, tanto mais quanto tais situações dizem essencialmente respeito à posição do devedor e não dos credores e cada uma delas tem um fundamento material bastante e objectivo, que emerge da natureza das realidades a que se reportam.

Em face do exposto, os efeitos resultantes do reconhecimento da decisão de 25/07/2016, que declarou o encerramento do procedimento de liquidação judicial simplificado da Ré, por insuficiência de bens, não violam o principio da igualdade, pelo que também sob este prisma carece de fundamento a invocada violação da ordem jurídica internacional do Estado português e, assim, a pretensão de recusa do reconhecimento dos efeitos daquela decisão.

Improcedendo todos os fundamentos de recusa de reconhecimento dos efeitos das decisões proferida pelo Tribunal Comercial de ..., França de ../../2015 e ../../2016, a decisão recorrida deve ser mantida e o recurso julgado totalmente improcedente.

4.4. Custas

As custas da apelação ficam a cargo da recorrente por vencida – art.º 527º, n.º 1 e 2 do CPC.

5. Decisão

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 1ª Secção da Relação de Guimarães em manter a decisão recorrida e, assim, julgar a apelação improcedente.

Custas pela recorrente

Notifique-se
*
Guimarães, 02/05/2024
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator: José Carlos Pereira Duarte
Adjuntos: Gonçalo Oliveira Magalhães
Alexandra Maria Viana Parente Lopes