Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
22076/21.7T8LSB.E2
Relator: ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: - Extinguindo-se por morte de qualquer um dos respetivos titulares, a relação de mandato está excluída do objeto da sucessão, não se transmitindo aos herdeiros do falecido;
- O que não contende com os atos atinentes à liquidação dessa relação jurídica extinta;
- O direito a exigir a prestação de contas pela administração dos bens assiste ao titular dos bens e/ou direitos administrados, integrando o objeto de sucessão em caso de morte do titular;
- Aos respetivos sucessores compete efetivar tal direito contra aquele que tem o dever de prestar contas, quer o titular tenha ou não exercido, ou manifestado a intenção de exercer, em vida, aquele direito;
- Por ser facto extintivo do direito a exigir contas, é sobre o administrador que recai o ónus de alegar e demonstrar que as contas foram prestadas, que o respetivo titular prescindiu do direito a exigi-las ou que as deu como prestadas e aprovadas.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Évora


I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Réu: (…)
Recorrida / Autora: (…)

A Autora, na qualidade de cabeça-de-casal e de herdeira de sua mãe, (…), falecida em 17/06/2018, instaurou a presente ação especial de prestação de contas pedindo que o Réu seja condenado a prestar contas da atividade desenvolvida no âmbito dos mandatos celebrados com a sua falecida mãe e, verificando-se a existência de saldo a favor da mandante, seja condenado ao respetivo pagamento à herança aberta por óbito da mesma, fazendo apelo ao regime inserto no artigo 1161.º, alínea d), do Código Civil.
Deduziu incidente de intervenção principal provocada de (…), sua irmã, com vista a assegurar a sua legitimidade ativa para instaurar a presente ação, já que são as únicas herdeiras da falecida mãe.
A Autora invocou que (…) outorgou duas procurações a favor do Réu, em 29/12/2010 e em 25/02/2013, conferindo-lhe poderes de administração de todos os seus bens, que o Réu nunca prestou contas à falecida (…), apesar de ter levado a cabo a administração dos seus bens no período que mediou entre 29/12/2010 e 05/03/2018, celebrando contratos de arrendamento de imóveis, recebendo rendas e dando a respetiva quitação, pagando despesas prediais, contratando a realização de obras e pagando taxas e impostos; que solicitou ao Réu que prestasse contas da administração do património da sua mãe após o falecimento dela, o que o Réu não fez.

Em sede de contestação, o Réu pugnou pela improcedência da ação e a sua absolvição do pedido.
Alegou que (…) não era capaz de gerir o seu património imobiliário e como era o seu falecido marido quem, de facto, geria tal património, foi sobretudo a este que foi dando conta da sua gestão, desde que a iniciou até ao momento em que cessou funções, sem prejuízo de também ter prestado contas à falecida sogra, dentro dos limites e com as condicionantes que o estado de saúde daquela permitia.
Mais invocou que os sogros nunca reclamaram da falta de prestação de informações acerca da gestão, com a qual sempre se mostraram concordantes, que aprovavam e louvavam, não deduzindo qualquer oposição ao modo de execução do mandato, o que equivale à respetiva aprovação. O que era do conhecimento da Autora, que sempre acompanhou a gestão, com acesso às contas bancárias, até que, a partir de março de 2018, passou a gerir o património de (…), passando a ter acesso às declarações de rendimentos de (…) dos anos em que o Réu exerceu a gestão do património e, como tal, a ter acesso aos rendimentos e despesas do referido património.

Foi admitida a intervenção principal provocada de (…), como associada da autora.

II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais documentados nos autos, foi proferida sentença julgando a ação conforme segue:
«- decido que o réu está obrigado a prestar contas relativamente à administração do património de (…), no período decorrido entre 29 de Dezembro de 2010 e 05 de Março de 2018;
- determino que, após trânsito, o réu seja notificado para, no prazo de 20 (vinte) dias, apresentar contas com a cominação de que, não o fazendo, não lhe será permitido contestar as que a autora apresente.»
Inconformado, o Réu apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida.
A Autora, em sede de contra-alegações, sustentou ser de manter a referida decisão.

Foi proferido acórdão por este TRE com o seguinte segmento decisório:
«Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação, em anular parcialmente a decisão recorrida para ampliação da matéria de facto quanto aos indicados artigos da contestação, com as eventuais consequências jurídicas que dessa alteração possam decorrer.»

Baixados os autos à 1.ª Instância, produzidas as diligências documentadas nos autos, foi proferida decisão nos seguintes termos:
«- decido que o réu está obrigado a prestar contas relativamente à administração do património de (…), no período decorrido entre 29 de Dezembro de 2010 e 05 de Março de 2018;
- determino que, após trânsito, o réu seja notificado para, no prazo de 20 (vinte) dias, apresentar contas com a cominação de que, não o fazendo, não lhe será permitido contestar as que a autora apresente.»
Inconformado, o R apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que determine a improcedência total da ação. As conclusões da alegação do recurso são as seguintes:
«Vem o presente recurso interposto de sentença que julgou procedente a ação especial de prestação de contas e determinou que o réu fosse obrigado a prestar contas relativamente à administração do património de (…), falecida mãe da Autora e do cônjuge do Réu, no período decorrido entre 29 de Dezembro de 2010 e 05 de Março de 2018;
Salvo melhor opinião, a decisão recorrida não reflete inteiramente o que os intervenientes e as testemunhas depuseram em sede de audiência e julgamento. A sentença recorrida parte de algumas premissas erradas, sem fundamento de facto e de direito bastante e não decorrem das regras de experiência comum;
Considera o ora recorrente incorretamente julgados os factos que constam nas alíneas B), C), E), G), H) e I) constantes do elenco de factos não provados, uma vez que as declarações de parte do Réu, os depoimentos das testemunhas e a prova documental constante nos presentes autos impunham que fosse proferida decisão diversa sobre as questões de facto acima mencionadas;
Deu como não provado o mui douto tribunal recorrido o facto alegado pelo Réu de que “B) A partir da data em que passou a gerir o património de (…), o Réu sempre foi prestando contas da sua gestão àquela e ao seu marido.”;
Sobre este facto apenas se pronunciaram em juízo a Autora e Réu. Nenhuma das testemunhas mostrou conhecimentos sobre tal facto;
Quanto a documentos, existe apenas o Doc. 2, junto pelo Réu na sua contestação, que consubstancia um email, enviado pelo Réu à Autora, datado de 3/Ago/14, não impugnado, no qual se refere taxativamente que “Continuarei a tratar destes assuntos só com o seu Pai mas estou disponível para os esclarecimentos que quiser com a condição de os pedidos serem feitos por email e respondidos pela mesma via”;
Sobre este assunto o Réu, declarou que teve periodicamente reuniões com eles os sogros a quem prestava informações e fornecia documentação. Que a última palavra era sempre dos sogros e que estes compreendiam e aceitavam as suas contas, intervindo na referida gestão, tudo numa reunião anual de apresentação de contas e em reuniões necessárias à gestão do património, tudo num trabalho de equipa;
Importa também dizer que a acrescentar às referidas reuniões e documentação entregue, existiam os extratos bancários de contas que eram tituladas por todos, menos pelo Réu, e de fácil acessibilidade;
Tudo típico de uma gestão familiar, que a todos envolve, de que os progenitores e donos do património vão tomando conhecimento em reuniões com o Réu, pelo menos uma vez por ano, e mais se fosse necessário, em que tomavam decisões, e em que a Autora também era envolvida;
Num estilo obviamente informal, própria também da tal gestão familiar e participada, sem as exigências e cuidados próprios das prestações de contas previstas no código de processo civil, adequadas ao tipo de gestão, individual, normalmente levada a cabo por “estranhos” e cuja informação é prestada a final;
Importa ainda sublinhar que quanto à questão de se o Réu prestou contas à sogra, a Autora, como acima se transcreveu, referiu taxativamente que não tinha conhecimento;
Mas ainda que se desse por certo, que seria de aplicar à situação dos autos, o significado rígido e exigente previsto no código de processo civil – o que apenas se admite como mera suposição – ainda assim seria de exigir que o tribunal, pelo menos desse como provado, com base nas declarações de parte do Réu e falta de contraprova da Autora – que “o Réu, pelo menos uma vez por ano, reunia-se com os sogros, a quem prestava esclarecimentos sobre a gestão do património e entregava documentação sobre a mesma”;
Ao invés, o tribunal, salvo o devido respeito, ignorou totalmente e inexplicavelmente as declarações do Réu, pese embora não ter quaisquer outras declarações ou meios de prova que o levassem em sentido contrário;
Assim sendo a matéria explanada na alínea B) da matéria de facto não provada deverá ser dada como provada;
Assim não se entendendo, deverá, então, ser removida a referida alínea B) e acrescentada à matéria de facto provada, um ponto com o seguinte texto: “o Réu, pelo menos uma vez por ano, reunia-se com os sogros, a quem prestava esclarecimentos sobre a gestão do património e entregava documentação sobre a mesma”.
Quanto à alínea C) da matéria de facto não provada refere-se que “E (…) e o marido louvaram e aprovaram tais contas”;
Ora, o Réu reunia-se pelo menos uma vez por ano com os sogros a quem dava informações sobre o que ia ocorrendo, e sempre que fosse necessário;
Nas referidas reuniões entregava documentação aos sogros, sobre orçamentos, receitas e despesas;
Este procedimento durou cerca de oito anos e, conforme resulta do ponto 28 da matéria de facto provada, os sogros “nunca reclamaram da falta de prestação de informações sobre a gestão do réu entre o final de 2010 e a data referida em 10”;
Estão será de concluir que os sogros do Réu, pelo menos, aprovaram as contas;
Entende, assim, o Réu que a matéria vertida na alínea C) da matéria de facto não provada deverá ser levada à matéria de facto provada;
Caso assim não se entenda, deverá a mesma ser removida e incluída na matéria de facto provada um novo ponto com o seguinte texto: “E (…) e o marido aprovaram tais contas”;
O Réu não concorda que se tenha dado como não provado o referido na alínea E) de que “O réu prestou todas as informações que a autora quis relativas à gestão do património de (…) apenas exigindo que tais informações lhe fossem solicitadas por escrito”;
O tribunal não deu este facto provado porque o Réu não fez prova de que tenha respondido às informações solicitadas pela Autora em 2021!?!!!. Isto é, três anos após ter cessado aquela gestão!
Entende o Réu que a matéria referida na alínea E) deverá ser dada como provada, porquanto o que está em causa nos autos é a prestação de informações durante o tempo em que o Réu exerceu a gestão (familiar);
Sendo que, se assim não se entendesse, deveria então, remover-se a referida alínea da matéria de facto não provada e acrescentar à matéria de facto provada um novo ponto com a seguinte redação: “O Réu prestou todas as informações que a Autora quis relativas à gestão do património de (…) durante o tempo em que exerceu aquela gestão, apenas exigindo que tais informações lhe fossem solicitadas por escrito”.
Entende ainda o Réu que o tribunal julgou incorretamente os factos relativos às alíneas G), H) e I) julgados não provados;
Efetivamente, face ao comprovado estado de demência de (…) expresso no Relatório Médico junto aos autos e do teor do depoimento da testemunha (…), e à total ausência da mais pequena prova em sentido contrário por parte da Autora, aqueles factos deveriam ter sido julgados provados;
Quanto ao Direito aplicado, considera o Réu que o direito à prestação de contas não é transmissível aos herdeiros, porquanto, independentemente da respetiva fonte, a administração de bens alheios tem por subjacente uma relação jurídica administrador. Nessa medida, no âmbito da ação para prestação provocada de contas, o respetivo autor terá de ser o titular dos bens e o réu o administrador dos mesmos;
Entendeu o tribunal a quo que a prestação de contas se enquadra numa relação jurídica de natureza patrimonial que não se extingue pela morte do titular, o direito a exigir do réu a prestação de contas transmite-se aos herdeiros de … (artigos 2024.º e 2025.º, n.º 1, do Código Civil), in casu a autora e à chamada (…)”;
Ora, ainda que se conclua que o Réu agiu com poderes de representação – e não de mandato – o certo é que com o falecimento da sogra, extinguiu-se a procuração;
De facto, pese embora no artigo 265.º do Código Civil não se mencionar a morte do outorgante, contudo refere que a procuração se extingue “ante a cessação da relação jurídica que serve de base à procuração”. Ora, a relação subjacente à procuração era a representação da sogra com vista à administração do seu património, cuja titularidade se extinguiu com o óbito da mesma;
Mas ainda que se considerasse estarmos perante uma situação de mandato, o mesmo também se extinguiria, in casu, com o óbito da sogra do Autor por força do disposto no artigo 1174.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil;
Estando em causa atos levados a cabo em vida de sogra, isto é, na vigência dos poderes que lhe foram conferidos até ao óbito da mesma – não pode a herança substituir-se ao então representado e/ou mandante arrogando-se um direito que não lhe pertence;
Caducado a procuração (ou mandato) com o falecimento do representado (ou do mandante), a herança (e, nessa medida, os respetivos herdeiros) carece de qualquer direito de exigir contas pelo prática de atos (ou exercício de um mandato) relativo a um período em que só o representado (ou o mandante) o poderia fazer;
Não está, por isso, o Réu obrigado a prestar contas nos termos exigidos pela Autor no âmbito dos presentes autos;
Decidindo como o fez, violou o mui douto tribunal recorrido, salvo o devido respeito, o disposto nos artigos 1161.º, alínea d), 265.º, 1174.º, n.º 1, alínea a), 2024.º e 2025.º, nº 1, todos do Código Civil;
Entende, ainda o Recorrente, que o Tribunal aplicou mal as regras do ónus da prova e a legitimidade da Autora para solicitar a prestação de contas ao Réu;
Refere-se na mui douta sentença recorrida que “atentas as regras gerais de distribuição do ónus de alegação e prova, impende sobre o autor o ónus de alegar e provar a qualidade de administrador de bens alheios em que alguém se encontra investido e a titularidade do interesse na obtenção da informação (art.º 342.º, n.º 1 do Código Civil); por seu turno, o réu tem o ónus de alegar e provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito alegado (art.º 342.º, n.º 2 do Código Civil);
Seguindo o seu raciocínio concluiu o mui douto tribunal recorrido que a Autora fez prova nos autos da outorga a favor do Réu de duas procurações em que lhe foram conferidos por Leonor Cruz poderes para determinados atos e o subsequente exercício da administração de bens por parte do Réu. Por sua vez, o Réu não fez prova que prestou contas, logo não logrou fazer prova do facto extintivo do direito da Autora;
Ora, não podemos sufragar tal linha de raciocínio que nos parece incorreta porquanto ao contrário do representado ou do mandante, cujo direito à prestação de contas emana da qualidade em que intervém e cujo direito lhe é conferido por lei enquanto tal – veja-se p.e., que no artigo 1161.º, alínea d) se refere “apenas” o direito do mandante à prestação de contas e não dos seus sucessores – o direito destes últimos, a existir – coisa que não aceitámos – é já um direito indireto, emanado, pelo que já não se justifica que o mesmo apenas tenha de invocar e fazer prova da existência de atos de administração, terá também de fazer prova que as contas não foram prestadas a quem as podia ter exigido e que as mesma foram exigidas;
Concluindo, ainda que se entenda ser transmissível aos herdeiros o direito à prestação de contas – o que já se referiu não se concordar – contudo, dado já não se tratar de um direito próprio mas derivado – caberá a quem pretenda as mesmas e que este as queria;
Ora, pese embora não ter ficado provado que o Réu prestou contas, também não ficou provado que as não prestou, pelo que, segundo as regras de repartição do ónus da prova, que decorrem do artigo 414.º do Código de Processo Civil e a fim de atestar a legitimidade da Autora, será preciso apurar se foi exigida a prestação de contas ao Réu por parte de (…), o que a verificar-se, obriga o Réu a fazer prova de que as tinha prestado, e a não verificar-se, obriga a Autora a fazer prova de que o Réu as não prestou, resolvendo-se, desse modo a contenda, contra a parte a quem o facto aproveita, tal como muito bem se assinalou no douto acórdão da Relação;
Sucede que de acordo com matéria de facto assente não resultou provado que tenha sido exigido ao Réu a prestação de contas;
Pelo que, na dúvida se o Réu prestou contas, não tendo ficado provada que (…) solicitou a prestação de contas ao Réu, cabia à Autora o ónus da prova quanto à não apresentação das contas, uma vez que se pretende aproveitar de tal facto, o que não logrou alcançar
Assim sendo, entende o Recorrente, salvo o devido respeito, que ao exigir ao Réu a prova de que prestou contas, violou o mesmo o disposto nos artigos 1161.º, alínea d), 265.º, 1174.º, n.º 1, alínea a), 2024.º e 2025.º, n.º 1 e 342.º, todos do Código Civil e o artigo 414.º do Código de Processo Civil;
Considera, igualmente, o Recorrente que não está obrigado à prestação de contas à Autora;
O enquadramento em que o Réu praticou os seus atos era a de um ambiente familiar, em que todos se envolviam;
O Réu tinha reuniões periódicas com os sogros a quem ia dando informações sobre a sua gestão, suportada em documentos que entregava; O Réu também punha ao corrente a sua cunhada, aqui Autora de assuntos relativos à herança e dispôs sempre a prestar qualquer esclarecimento que a mesma solicitasse – cfr. email de fls. 37;
Mesmo os financiamentos contraídos para fazer face aos prejuízos que vinham de um período em que o Réu não tinha uma intervenção direta na gestão do património e também necessários para melhorar e rentabilizar o património foram subscritos pela Autora, a irmã e a sogra. E não pelo Réu, pese embora ter poderes para tal;
Isto é, tudo foi feito, envolvendo toda gente, às claras, sendo acessível a todos a informação sobre o que se passava, num ambiente familiar;
Cumprindo, desse modo o dever de informação previsto no artigo 573.º do Código Civil, o qual não estipula qualquer formalismo na sua prestação;
O tribunal a quo não teve em conta as diferenças que resultam das nuances em que a administração se foi desenvolvendo e o longo período (cerca de 8 anos);
É manifesto que a situação dos autos não se ajusta ao previsto no artigo 1161.º, alínea d), do Código Civil e nos artigos 941.º a 945.º do CPC;
O enquadramento em que o Réu praticou os atos em questão e a forma como concretizou os mesmos não são subsumíveis às normas invocadas pelo mui douto tribunal recorrido para fundamentar a sua decisão;
Pelo que, salvo o devido respeito, violou o mui douto tribunal recorrido o disposto nos artigos 573.º e 1161.º, alínea d), do Código Civil e artigos 941.º a 945.º do CPC;
O Tribunal a quo também não andou bem, quando entendeu que o cônjuge de (…), e sogro do Réu, não podia gerir o património daquela, violando assim o disposto no artigo 1681.º, n.º 1 e no artigo 1678.º, n.º 2, do Código Civil que estipula que o cônjuge pode administrar bens próprios do outro cônjuge se este estiver impedido por qualquer razão;
Pelo que, in casu, era perfeitamente admissível e válido que o Réu prestasse contas algumas vezes ao sogro isoladamente, no âmbito da tal administração de bens próprios da falecida e dada a incapacidade momentânea da mesma;
Assim sendo, e salvo o devido respeito, violou igualmente o mui douto tribunal recorrido o disposto nos artigos 1681.º, n.º 1 e 1678.º n.º 2, ambos do Código Civil;
Por último também não se concorda com o julgamento do tribunal recorrido de que in casu não existe Abuso de Direito por parte da Autora;
Dispõe-se no artigo 334.º do Código Civil que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”;
O Réu entende que este é um caso claro e inequívoco de Abuso de Direito na modalidade de venire contra factum proprium;
De facto, como resulta do referido nas suas alegações, o comportamento da Autora ao longo de 11 anos (8 + 3) é mais que idóneo para criar a convicção no Réu de que os actos que o mesmo praticou no âmbito da administração do património de (…), estavam aprovados e que nenhuma documentação seria futuramente exigida;
Criando qualquer desnecessidade de manter todos os registos documentais de tal atuação;
Pelo que, que vir em 2021 tentar submeter o Réu à obrigação de fazer uma retrospetiva de cerca de 8 anos, prestando todas as informações, descrevendo todos os atos e juntado todos os documentos que justificam os mesmos, é, por um lado, atuar em sentido contrário ao que induziu e, por outro, face a todas as circunstâncias em que se desenrolou a atuação do Réu, sujeitá-lo a um enorme sacrifício e inusitado esforço, totalmente desadequado à forma peculiar como o mesmo geriu património da sogra;
Além disso, ao contrário do assinalado na mui douta sentença recorrida, é totalmente desproporcionado a dimensão do esforço que se pretende exigir ao Réu, face à facilidade que a Autora sempre teve de acesso à informação e documentação sobre a gestão do património da mãe, quer diretamente, quer através da disponibilidade do Réu para prestar informações ou documentos que a mesma não tivesse acesso. Isto é, existe uma grave desproporção entre o benefício que a Autora reclama e o sacrifício que pretende impor-se ao Réu;
Assim sendo, ao não considerar ter a Autora agido em abuso de direito, violou o mui douto tribunal recorrido, o disposto no artigo 334.º do Código Civil;
Concluindo, entende o ora Recorrente, e salvo o devido respeito, que o mui douto tribunal recorrido os disposto nos artigos 265.º, 334.º, 342.º, 573.º, 1161.º, alínea d), 1174.º, n.º 1, alínea a), 1678.º, n.º 2, 1681.º, n.º 1, 2024.º e 2025.º, n.º 1, todos do Código Civil e o disposto nos artigos 941.º a 945.º e 414.º do Código do Processo Civil.»
A Recorrida apresentou contra-alegações sustentando que o recurso deverá ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.

Cumpre conhecer das seguintes questões:
i) da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
ii) do direito da Autora à prestação de contas pelo Réu;
iii) do abuso do direito pela Autora.

III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1. (…) faleceu em 17 de Junho de 2018, no estado de casada sob o regime da separação de bens com (…).
2. Para além do cônjuge, (…) deixou como herdeiras duas filhas: a autora, divorciada, e a sua irmã (…), casada com o réu sob o regime da separação de bens.
3. (…) faleceu no estado de viúvo em 04 de Julho de 2018, sem qualquer testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, e deixou a suceder-lhe as mesmas duas filhas referidas em 2.
4. A autora é a cabeça-de-casal da herança aberta por óbito da mãe (…).
5. Em 29 de Dezembro de 2010, no Cartório Notarial de (…), (…) outorgou a favor do réu uma procuração com poderes bastantes para:
i. Celebrar, alterar, prorrogar, renovar, denunciar ou rescindir todo o tipo de contratos civis e / ou administrativos, nomeadamente, de prestação de serviços, fornecimento de bens, empreitada, arrendamento, trespasse, transporte e seguros;
ii. Representá-la perante inquilinos, podendo para o efeito receber rendas, assinar recibos, celebrar, renovar, alterar, prorrogar ou rescindir os respetivos contratos, pelos prazos, rendas e condições que entender convenientes;
iii. Usar ou desistir do direito de preferência que lhe assista em qualquer ato ou contrato;
iv. Reger e gerir quaisquer bens móveis e imóveis de que a mandante seja proprietária, co-proprietária ou co-herdeira, podendo prometer arrendar ou arrendar, pelas condições que entender convenientes e bem assim assinar contratos de promessa e contratos e/ou escrituras de arrendamento, passar recibos e dar quitações;
v. Receber importâncias em dinheiro, valores ou rendimentos, certos ou eventuais, vencidos ou vincendos, que lhe pertençam ou lhe venham a pertencer por qualquer via ou título, passando recibos e dando quitações, efetuando ou levantando o respetivo depósito, inclusive em cofres;
vi. Movimentar a débito e a crédito as contas bancárias, à ordem ou a prazo, abertas em seu nome, bem como qualquer tipo de aplicações financeiras, nomeadamente através de cheques, transferências ou por qualquer outro meio e / ou ordem de pagamento para o efeito requerendo, levantando, sacando e endossando cheques, requerendo cartões de débito e cancelamento dos mesmos e cadernetas solicitado extratos e consultas de saldos, procedendo a depósitos e/ou levantamentos em dinheiro e valores, podendo encerrar as mencionadas contas;
vii. Junto de quaisquer instituições de crédito, nomeadamente, (…), representá-la em todos os assuntos que lhe digam respeito;
viii. Junto de quaisquer entidades públicas ou privadas, nomeadamente, “(…) – Sociedade (…) de Serviços de Apoio e Assistência a Idosos, S.A.”, Segurança Social, Câmaras Municipais, IGESPAR e EPAL, representá-la em todos os assuntos que lhe digam respeito;
ix. Promover todos e quaisquer atos de registo predial, comercial e automóvel, definitivos ou provisórios, cancelamentos e averbamentos, inclusive averbamentos à descrição, fazendo declarações complementares se necessário for;
x. Levantar das agências, delegações e balcões de correios (CTT), toda a correspondência, ainda que registada, encomendas e tudo o mais que lhe for dirigido, certificados de aforro, reembolsos, vales postais, valores declarados, telegramas, abrir, responder e assinar correspondência;
xi. Junto de Repartições de Finanças, liquidar impostos ou contribuições, apresentar mapas de inquilinos, solicitar licenças e pedir vistorias, reclamar de liquidações, dos indevidos ou excessivos, receber títulos de anulação e as suas correspondentes importâncias;
xii. Junto de Companhias de Seguros, fazer seguros, alterá-los, cancelá-los e mudar de companhias, assinando as respetivas apólices e atas adicionais; xiii. Celebrar contratos de prestação de serviços ou de fornecimento de bens ou equipamentos, incluindo os respeitantes ao fornecimento de energia elétrica, gás, água, Tv Cabo e telefone, bem como tratar de quaisquer assuntos relacionados com estes serviços junto das entidades fornecedoras dos mesmos, podendo inclusive celebrar acordos e contratos, bem como rescindi-los;
xiv. Representá-la em juízo, usando para esse efeito, de todos os poderes forenses em direito permitidos os quais deverá substabelecer em advogado, sempre que necessário.
6. Em 2011/2012, no exercício dos poderes que lhe foram conferidos, o réu procedeu à abertura de conta e negociou com o Banco (…), S.A. a celebração de empréstimos a favor de (…), de valor não concretamente apurado, nos quais foram outorgantes as suas filhas, aqui Autora e Interveniente principal, que eram co-titulares da conta.
7. Em 25 de Fevereiro de 2013, no Cartório Notarial de (…), (…) outorgou a favor do réu outra procuração, esta com poderes para:
i. Proceder à divisão, permuta, compra ou atribuição à mandante do prédio situado em Lisboa, na Rua (…), n.º 22, inscrito sob o artigo (…) da matriz predial urbana da freguesia do (…), o qual se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º (…), da freguesia de (…), com inscrição a favor da mandante e da sua irmã (…), casada com (…), no regime da separação de bens, natural da freguesia de (…), concelho de Lisboa, e
ii. Proceder à partilha do prédio situado em Lisboa na Rua (…), n.º 24, inscrito sob o artigo (…) na matriz predial urbana da freguesia de (…) e descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º (…), da freguesia de (…), deixado por de sua mãe (…), falecida em vinte e quatro de dezembro de mil novecentos e oitenta e nove, no estado de viúva, com última residência habitual no Porto, Avenida (…), n.º 340, de quem é herdeira em conjunto com a irmã acima identificada.
iii. Em ambos os atos o mandatário fica autorizado a celebrar negócio consigo mesmo, em qualquer caso adjudicando a totalidade dos indicados prédios à mandante, estando as respetivas contrapartidas já integralmente pagas.
iv. Movimentar a débito e a crédito as contas bancárias à ordem ou a prazo, abertas em seu nome, bem como qualquer tipo de aplicações financeiras, incluindo seguros, que poderá subscrever, resgatar, comprar ou vender, designadamente fundos ou obrigações, certificados de aforro, dívida pública ou outra, nos termos que considerar adequados, podendo movimentar as contas através de cheques, transferências ou por qualquer outro meio e/ou ordem de pagamento.
v. Junto de instituições bancárias, em seu nome contrair empréstimos até ao montante global de setenta e cinco mil euros, negociando o regime que entender, sujeito aos juros legalmente estabelecidos para o efeito, receber a quantia mutuada e dela se confessar devedora, e em segurança no mesmo empréstimo, constituir a favor das referidas instituições bancárias hipoteca sobre bens imóveis de que seja proprietária, outorgando e assinando as respetivas escrituras.
vi. Promover todos e quaisquer atos de registo civil e de registo predial, definitivos ou provisórios, cancelamentos e averbamentos, declarações complementares se necessário for.
vii. Representá-la junto de quaisquer entidades públicas ou privadas e nomeadamente Serviços de Finanças e Câmaras Municipais, podendo aí pedir certidões e quaisquer outros documentos que se mostrem convenientes.
viii. Levantar das agências, delegações e balcões de correios (CTT), toda a correspondência, ainda que registada, encomendas e tudo o mais que lhe for dirigido, certificados, reembolsos, vales postais, e telegramas, podendo abrir, responder e assinar a correspondência.
ix. Representá-la em juízo ou fora dele, usando para o efeito, de todos os poderes forenses em Direito permitidos, incluindo os especiais para confessar, desistir do pedido ou da instância, transigir, receber custas de parte, os quais deverá substabelecer em advogado, sempre que necessário, podendo apresentar queixas e denúncias por quaisquer crimes em que seja ofendida e prestar declarações junto de quaisquer entidades policiais ou judiciais.
8. No período que mediou entre a data referida em 5 e 15, o réu administrou os bens de (…), incluindo um prédio sito na Rua (…) e dois prédios sitos na Rua (…), em Lisboa, designadamente celebrando contratos de arrendamento,
9. recebendo rendas e dando a respetiva quitação,
10. pagando despesas prediais e outras,
11. contratando a realização de obras,
12. liquidando e pagando taxas e impostos e
13. movimentando a crédito e a débito as contas bancárias de (…).
14. Por instrumento notarial outorgado em 2 de Março de 2018 no Cartório Notarial de (…), (…) declarou revogar todas as procurações até então outorgadas a favor do réu.
15. Por carta datada de 5 de Março de 2018 e subscrita por (…), foi comunicada ao réu a revogação das procurações emitidas por aquela.
16. Foi enviada pelo Sr. Dr. (…) para a morada do réu a carta datada de 18 de Abril de 2018, comunicando-lhe a revogação das procurações.
17. Por carta datada de 5 de Julho de 2021, recebida em 21 do mesmo mês, foi solicitado ao réu que, no prazo de 30 dias, procedesse ao envio das contas referentes aos mandatos conferidos desde 29 de Dezembro de 2010 até à data da revogação, em forma de conta-corrente, nelas se especificando a proveniência das receitas e a aplicação das despesas, bem como o respetivo saldo.
18. (…) foi uma pessoa doente desde os 18 anos e no final de 2012 sofria de sintomas depressivos e psicóticos, o que já se manifestava há muitos anos e vinha a agravar-se com a idade, obrigando a internamentos temporários em casas de saúde mental.
19. Devido à doença de que padecia estava muitas vezes desorientada no tempo e no espaço e não sabia onde estava, nem qual o dia ou época do ano.
20. Dado o seu estado de saúde, residia com carácter de permanência na (…), na (…), desde 2007, juntamente com o seu marido, e assim permaneceu até ao dia em que faleceu.
21. (…) não era capaz de gerir o seu património imobiliário, dependendo da família próxima, a quem passava procurações, para o efeito.
22. Quem, de facto, tomava a maior parte das decisões relativas ao património de (…) era o marido desta que incumbira o marido da autora (…) de gerir o referido património desde data não apurada até 2010.
23. Em 2010, o marido de (…) incompatibilizou-se com o referido genro, a quem acusou de má gestão, e passou ele a assumir a gestão do referido património em representação da sua mulher até à data referida em 5.
24. O réu foi executando anualmente as funções que lhe foram cometidas através das procurações supra, sem qualquer oposição de (…) e do seu marido.
25. E aqueles nunca reclamaram da falta de prestação de informações sobre a gestão do réu entre o final de 2010 e a data referida em 15.
26. A autora acompanhou alguns atos de gestão do património feita pelo réu, nomeadamente referentes aos empréstimos contraídos e ao pagamento de dívidas.
27. A partir de Abril de 2018, foi a autora quem passou a gerir o património de (…), já tendo sido ela a apresentar a declaração de IRS daquela relativa ao ano de 2017.
28. E, pelo menos desde essa data, a autora passou a ter acesso às declarações de rendimentos de (…) dos anos em que o réu exerceu a gestão do património.
29. Antes da instauração da presente ação, a irmã da autora, esposa do réu, impugnou o testamento em que esta resulta beneficiada com base na incapacidade de (…) na data da revogação da procuração e da carta.
30. Por acórdão proferido em 22/06/2021, a ora autora foi condenada a indemnizar a sua irmã, esposa do réu, no montante de € 88.375,00, acrescido de juros e outras quantias, pela gestão que fez de um património de ambas.
31. A autora intentou a presente ação depois de ter conhecimento do referido em 29 e 30.
(factos aditados na sequência da decisão do Tribunal Superior):
32. Em Março de 2018, na data de revogação das procurações emitidas a favor do réu, (…) era totalmente incapaz de cuidar de si, sendo assistida para comer, vestir e fazer a higiene.
33. Não era capaz de elaborar ou compreender um raciocínio mais complexo.
34. Tinha perda de memória e era altamente influenciável devido à sua debilidade física e mental.
35. A carta que a Autora juntou como doc. 5 na p.i., elaborada através de processador de texto, não foi elaborada por (…).
36. Foi elaborado pela autora e apresentada a (…) para assinar.
Mais importa consignar que:
- do documento referido no n.º 15 consta, designadamente, o seguinte:
«Caso tenha praticado algum ou alguns ato(s) ao abrigo de qualquer Procuração agora revogada, solicito-lhe que me dê contas do(s) mesmos, como é devido por qualquer procurador.»

B – As questões do Recurso
i) Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
O Recorrente considera que o Tribunal de 1.ª Instância incorreu em erro na apreciação da factualidade inserta nas alíneas B, C, E, G, H e I dos factos não provados.
Relativamente à alínea B, o Recorrente sustenta que deve dar-se como provado o respetivo teor (a saber: a partir da data em que passou a gerir o património de …, o réu sempre foi prestando contas da sua gestão àquela e ao seu marido) ou, assim não se entendendo, que deve dar-se como provado que: o R, pelo menos uma vez por ano, reunia-se com os sogros, a quem prestava esclarecimentos sobre a gestão do património e entregava documentação sobre a mesma.
A prestação de contas que aqui está em causa consiste no conceito jurídico atinente à discriminação de recebimentos e de pagamentos monetários, em forma de conta-corrente, sujeitando-as a apreciação de quem tem o direito a exigi-las. “A prestação extrajudicial (prévia) de contas pressupõe que o réu discrimine recebimentos e pagamento globais e totais, em forma de conta-corrente, e que as mesmas foram aprovadas por quem tinha direito de as exigir.”[1]
É que o que pode valer ao Réu a pretendida absolvição do pedido é a alegação e prova de que já prestou as contas a que estava vinculado, resultando desonerado de tal obrigação. Por isso, nada releva o que afirmou em sede de audiência final: pelo menos uma vez por ano, explicava o que se passava, explicava as obras, apresentava mapas de gastos gerais, preparava papéis que deixava com o sogro, prestava informações regulares aos sogros sobre a gestão que fazia do património, etc..
Inexiste prova (nem o Réu, na verdade, alegou) de que as contas tenham sido prestadas em moldes que o desonerem da obrigação de prestar contas.
Donde, não merece reparo o julgamento realizado em 1.ª Instância relativamente ao teor da alínea B) dos factos não provados.
Por inútil e irrelevante, não tem cabimento reconduzir ao rol dos factos provados que o Réu, pelo menos uma vez por ano, se reunia com os sogros, a quem prestava esclarecimentos sobre a gestão do património e entregava documentação sobre a mesma.
A alínea C), que o Recorrente pretende se dê como provado, reporta-se ao seguinte: (…) e o marido louvaram e aprovaram tais contas.
Uma vez que não está afirmado ter o Réu prestado contas a (…) e marido, resulta prejudicada a referida pretensão do Recorrente.
Da alínea E) dos factos não provados consta o seguinte: o Réu prestou todas as informações que a Autora quis relativas à gestão do património de (…) apenas exigindo que tais informações lhe fossem solicitadas por escrito.
Pretende o Recorrente que tal factualidade seja dada como provada ou, assim não se entendendo, pelo menos que o Réu prestou todas as informações que a Autora quis relativas à gestão do património de (…) durante o tempo em que exerceu aquela gestão, apenas exigindo que tais informações lhe fossem solicitadas por escrito.
Por se tratar de factualidade inócua em face do objeto do processo (a questão de saber se o Réu está obrigado a prestar contas ou se disso está desonerado por já as ter prestado extrajudicialmente), não tem cabimento a recondução daquela factualidade ao rol dos factos provados.
Sob as alíneas G) a I) dos factos não provados consta o seguinte:
G) … não era capaz de elaborar ou compreender os raciocínios mais complexos referidos em 34 por força da demência permanente de que padecia.
H) Os documentos referidos de 14 a 17 foram concebidos, elaborados e concretizados pela Autora, sem capacidade de entendimento e de vontade por parte de (…).
I) A autora procedeu conforme referido em 36 aproveitando-se da incapacidade de (…).
Factualidade que o Recorrente pretende seja julgada provada. Para tanto, descaracteriza a fundamentação exarada pelo Tribunal de 1.ª Instância e alude ao relatório médico de fls. 44 bem como ao depoimento de (…), diretora da residência onde permanecia (…).
Ora, o documento de fls. 44 consiste em relatório médico subscrito por (…), médica psiquiatra, com data de 20 de novembro de 2013 – ano em que foi outorgada procuração em favor do Réu. De tal relatório alcança-se que (…) padecia então de perturbação obsessivo-compulsiva com início da sintomatologia aos 18 anos de idade. Para além de outros, são elencados como antecedentes médicos relevantes a demência medicada com Ebixa e Prometax, doença de Parkinson medicada com Sinemet. É feita menção de que a doente beneficiou com o internamento na casa de saúde psiquiátrica, tendo havido uma remissão parcial dos sintomas psicóticos e uma clara remissão dos sintomas depressivos, tendo tido alta com medicação adequada e em doses úteis.
A Diretora da residência onde permanecia (…) afirmou que esta tinha um problema demencial, não interagia, tinha demência avançada.
Ponderados os elementos de prova a que alude o Recorrente, e bem assim o juízo lavrado em 1.ª Instância, afigura-se ser de julgar provado, por se fundar em convicção firme e segura, o que consta já do n.º 33 dos factos provados, ou seja, que (…) não era capaz de elaborar ou compreender raciocínios complexos por força da demência de que padecia.
Quanto ao mais, inexistem elementos de prova bastantes que sustentam a respetiva afirmação. Do estado de demência que é atribuído a (…), que se verificava já no ano em que atribuiu poderes representativos ao Recorrente, não resulta necessariamente que não tivesse entendimento quanto aos atos em causa nas alíneas H) e I) e que a prática dos mesmos tenha ocorrido desgarrada da sua vontade.

ii) Do direito da Autora à prestação de contas pelo Réu
O Recorrente sustenta que a Autora, que se apresentou no processo na qualidade de cabeça-de-casal e herdeira de (…), não tem direito a exigir prestação de contas. Alinhou, para tanto, os seguintes argumentos:
- a mãe da Autora é que era titular do direito a exigir a prestação de contas;
- no âmbito da ação para prestação provocada de contas, o respetivo autor terá de ser o titular dos bens;
- com o falecimento de (…), extinguiu-se a procuração;
- apenas o seu titular poderia exigir a prestação de contas, por si, ou através de representante legal;
- estão em causa atos levados a cabo em vida de (…), isto é, na vigência dos poderes que lhe foram conferidos até ao óbito da mesma, pelo que não pode a herança substituir-se ao então representado e/ou mandante arrogando-se um direito que não lhe pertence;
- caducada a procuração (ou mandato) com o falecimento do representado (ou do mandante), a herança (e, nessa medida, os respetivos herdeiros) carece de qualquer direito de exigir contas pelo prática de atos (ou exercício de um mandato) relativo a um período em que só o representado (ou o mandante) o poderia fazer;
- com o óbito de (…), cessou o direito a exigir a prestação de contas.
A tese em que o Recorrente alicerça a sua pretensão encontra-se enunciada, designadamente, no Ac. do TRL de 28/04/2015[2], secundada no Ac. do TRL de 04/06/2020.[3]
Naquele acórdão foi exarado que:
«o Réu, ao administrar essas contas, geria bens alheios (…), não há dúvida de que, relativamente a essa administração, apenas o seu titular poderia exigir a prestação de contas; por si, ou através de representante legal. Verificando-se que estão em causa as movimentações levadas a cabo em vida (…), isto é, durante a vigência da relação de mandato, não pode a herança substituir-se ao então mandante arrogando-se de um direito que não lhe pertence. Na verdade e na sequência do referido, a atuação do Réu relativamente ao património (…), no que respeita à movimentação das suas contas bancárias (independentemente de ter sido motivada pela relação de amizade e confiança), assume subsunção na figura do mandato.
Nos termos do artigo 1161.º, d), do Código Civil, o mandatário é obrigado a prestar contas, findo o mandato ou quando o mandante as exigir. Caducado o mandato com o falecimento do mandante, a herança (e, nessa medida, os respetivos herdeiros) carece de qualquer direito de exigir contas pelo exercício de um mandato relativo a um período em que só o mandante o poderia fazer.»
Já no segundo dos mencionados acórdãos consta o seguinte:
«Estando em causa movimentações de bens levadas a cabo em vida da mãe da autora, durante a vigência da relação de mandato, caducado com o falecimento da mandante, não pode a autora em nome da herança substituir-se ao então mandante, sua mãe, arrogando-se de um direito que não lhe pertence.
(…)
Uma coisa é, de facto, o conteúdo patrimonial da prestação de contas e, outra, diversa, o direito de relativamente a um contrato de mandato, entretanto caducado, exigir a prestação de contas quanto a período temporal em que apenas o mandante o poderia fazer.
(…)
Para que se considerasse que a herança foi integrada com o direito de obter a prestação de contas sobre período anterior ao do falecimento da mãe da autora era necessário demonstrar que o réu, em vida da autora da herança, se tinha ilicitamente apropriado dela ou que lhe tivesse causado prejuízos (cfr. artigo 1175.º do CC) e que, nesta medida, o mandato não havia caducado.»
Não podemos acompanhar tal entendimento, do qual resultaria o representante / mandatário desonerado de prestar contas da administração dos bens alheios sempre que ocorresse o falecimento do representado/mandante na pendência dos poderes conferidos.
Então o procurador/mandatário por mais ninguém poderia ser interpelado para dar conta das receitas recebidas e dos pagamentos efetuados no exercício dos poderes que lhe foram atribuídos? O saldo positivo reverteria a seu favor? O saldo negativo seria por si suportado? Por mais ninguém poderia ser interpelado para entregar a documentação que recebeu em execução do mandato ou no exercício deste?
O que, manifestamente, consubstanciaria num desfecho inadmissível por afrontar a unidade do sistema jurídico e o sentido de justiça inerente à aplicação do direito às circunstâncias da vida.
Em sentido diverso ao propugnado pelo Recorrente, importa notar que não está em causa a afirmação de que a extinção da relação de mandato por morte do mandante, que acarreta a cessação dos efeitos jurídicos inerentes ao exercício do mandato, deixando de existir fundamento para a prática de atos jurídicos em nome do mandante; extinguindo-se por morte de qualquer um dos respetivos titulares, a relação de mandato está excluída do objeto da sucessão, não se transmitindo aos herdeiros do falecido mandante, nos termos do artigo 2025.º do CC. Questão diversa é aquela que respeita à liquidação dessa relação jurídica extinta, passando o mandatário a ficar obrigado a prestar contas e a entregar o que recebeu em execução do mandato ou no exercício deste (cfr. alíneas d) e e) do artigo 1161.º do CC), com direito a obter a retribuição que ao caso competir e o reembolso de eventuais despesas (cfr. artigo 1167.º, alíneas b) e c). Deveres e direitos que, por força da morte do mandante, terão de ser exercidos junto dos respetivos herdeiros.
Neste sentido, cfr. Ac. do TRG de 23/04/2020[4]:
«(…) apesar de o mandato ter natureza pessoal (daí a especificidade de caducar por morte, tanto do mandante, como do mandatário [artigo 1174.º, alínea a), do CC] e estar, por isso, excluído do objeto da sucessão, não se transmitindo aos herdeiros do falecido mandante ou mandatário (artigo 2025.º, n.º 1, do CC) – tal cariz pessoal (intuitus personae) não se estende à obrigação de prestar contas que, por força do artigo 1161.º, alínea d), vincula o mandatário.
Assim, esta prestação de contas enquadra-se numa relação jurídica de natureza patrimonial, a qual pode ser objeto de sucessão, transmitindo-se, enquanto obrigação, aos herdeiros do mandatário, e, enquanto direito, aos herdeiros do falecido mandante – artigo 2024.º do CC.»
E ainda Ac. do TRP de 02/12/2021[5]:
«(…) não obstante a indiscutível natureza pessoal do contrato de mandato, a qual, ademais, resulta na exclusão da relação de mandato do objeto da sucessão, não se transmitindo o mandato, de facto, aos herdeiros do falecido mandante ou mandatário (cfr. artigo 2025.º, n.º 1, do Código Civil), a obrigação de prestar contas reveste natureza patrimonial, sendo, por isso, transmissível pela via sucessória. Com efeito, uma coisa é a intransmissibilidade do contrato de mandato, e outra diferente é a própria obrigação de prestar contas por parte de quem administra ou administrou património alheio.»
No caso em apreço, (…) outorgou a favor do R. duas procurações conferindo poderes para praticar determinados atos e o subsequente exercício da administração de bens seus.
A relação jurídica daí decorrente enquadra-se na representação voluntária (cfr. artigos 262.º e seguintes do CC) e não já no mandato (cfr. artigos 1157.º do CC), na medida em que não resultou o Réu adstrito a praticar os atos jurídicos enunciados nas procurações por conta de (…). Na verdade, “No confronto entre procuração e mandato, a procuração inclui sempre e apenas poderes de representativos, ao passo que o mandato, ligado à ideia de agir por conta doutrem, pode ou não os envolver. A procuração é um negócio jurídico formal e unilateral, que outorga poderes de representação (artigo 262.º do Código Civil). Devido a esta diferença conceptual e juridicamente regulada (artigos 262.º e 1157.º do Código Civil) temos que, da procuração, em si mesma, não resulta nenhuma obrigação de prestar contas, tal como não decorre, nenhuma obrigação de praticar os atos para os quais foram concedidos poderes ao procurador.”[6]
O Réu, por ter sido instituído procurador de (…) e por ter, nessa qualidade, administrado bens da representada entre 29 de dezembro de 2010 e 5 de março de 2018, constituiu-se na obrigação de prestar contas desse exercício, especificando o montante das receitas cobradas e das despesas efetuadas, de modo a evidenciar o saldo daí decorrente e a situação de crédito ou de débito verificada.
Nestes termos, não assiste razão ao Recorrente quando sustenta tratar-se de relação jurídica de mandato que cessou com o óbito de (…). Trata-se, antes, da constituição de representação voluntária que cessou mediante revogação pelo representado (cfr. artigo 265.º/2, do CC).
Aquando da comunicação da revogação das procurações, (…) exigiu ao R. prestação de contas decorrentes dos atos praticados ao abrigo dessas procurações.
À Autora, na qualidade de cabeça-de-casal e herdeira de (…), assiste o direito de exigir judicialmente ao Réu a prestação de contas referente à administração dos bens entre 29 de dezembro de 2010 e 5 de março de 2018.
Não tendo o Réu logrado demonstrar ter cumprido já o dever de prestar tais contas, assim como não logrou demonstrar ter sido prescindido o direito à prestação de contas pela respetiva titular ou seu representante ou pelo cônjuge administrador (cfr. artigo 1678.º/2, alínea f), do CC), ou inda que as contas tenham sido dadas como prestadas e aprovadas, resulta adstrito a fazê-lo no âmbito do presente processo.
Contra este enquadramento jurídico, o Recorrente invoca que o direito a exigir contas apenas é conferido ao titular dos bens administrados, o que se afere desde logo pela circunstância do artigo 1161.º, alínea d), do CC referir o direito do mandante a exigir contas e não referir o direito dos seus sucessores a exigir contas.
Tal argumento não nos suscita outros considerandos que não seja a afirmação de que os direitos são conferidos e definidos por referência o respetivo titular (o direito do contratante a obter o cumprimento do contrato – artigo 406.º/1, do CC; o direito do contratante à resolução do contrato – artigo 432.º e segs. do CC; o direito do empobrecido a obter a restituição daquilo com que o enriquecido se locupletou – artigo 473.º/1, do CC; o direito do lesado a indemnização por factos ilícitos – artigo 483.º do CC; o direito do vendedor a obter o pagamento do preço – artigo 874.º do CC; o direito do empreiteiro a obter o pagamento do preço da obra – artigo 1207.º do CC; o direito do dono da obra à entrega da obra – artigo 1207.º do CC,…), sendo que, em caso de morte do respetivo titular, ocorre a sucessão mediante o chamamento de uma ou mais pessoas à titularidade das relações jurídicas patrimoniais da pessoa falecida (cfr. artigo 2024.º do CC). O direito a exigir contas pela administração dos respetivos bens não consubstancia relação jurídica que resulte extinta por morte do seu titular, não constitui direito de caráter não patrimonial que não seja objeto da sucessão hereditária (cfr. artigo 2025.º/1, do CC).
Termos em que se conclui que:
- o direito a exigir a prestação de contas pela administração dos bens assiste ao titular dos bens e/ou direitos administrados, integrando o objeto de sucessão em caso de morte do titular;
- aos respetivos sucessores compete efetivar tal direito contra aquele que tem o dever de prestar contas, quer o titular tenha ou não exercido, ou manifestado a intenção de exercer, em vida, aquele direito;
- por ser facto extintivo do direito a exigir contas (cfr. artigo 342.º/2, do CC), é sobre o administrador que recai o ónus de alegar e demonstrar que as contas foram prestadas, que o respetivo titular prescindiu do direito a exigi-las ou que as deu como prestadas e aprovadas.
Inexiste fundamento jurídico que permita acolher a pretensão do Recorrente no sentido de que a relação familiar e de confiança existente entre si e a titular dos bens e, bem assim, a falta de oposição ao modo como era exercida a administração e de interpelação para prestar informações da gestão, excluem o dever de prestar contas e repelem o formalismo inerente ao procedimento previsto nos artigos 941.º e seguintes do CPC.

iii) Do abuso do direito pela A
O Recorrente considera ser abusiva a conduta processual da Autora, sob a modalidade de venire contra factum proprium, já que ao longo dos 8 anos em que durou a administração dos bens de (…) foi criada a expectativa de que estavam aprovados os seus atos e de que nenhuma documentação seria futuramente exigida, o que se registou também nos subsequentes 3 anos. Invoca que acionar o Réu em 2021, tentando submetê-lo à obrigação de fazer uma retrospetiva de cerca de 8 anos, prestando todas as informações, descrevendo todos os atos e juntado todos os documentos que justificam os mesmos, é, por um lado, atuar em sentido contrário ao que induziu e, por outro, face a todas as circunstâncias em que se desenrolou a atuação do Réu, sujeitá-lo a um enorme sacrifício e inusitado esforço, totalmente desadequado à forma peculiar como o mesmo geriu património da sogra.
O instituto do abuso do direito está consagrado no artigo 334.º do CC. Nos termos daquele preceito, é ilegítimo o exercício do direito quando exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Por via deste regime, “a lei procura obter um controlo ou uma moderação do poder, fazendo com que o exercício do direito subjetivo por parte do seu titular se efetue dentro do quadro resultante do fim para o qual foi atribuído. O instituto do abuso do direito representa o controlo institucional da ordem jurídica quanto ao exercício dos direitos subjetivos privados, garantindo a autenticidade das suas funções.”[7]
Estão em causa “os direitos exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça, (…) as hipóteses em que a invocação e aplicação de um preceito da lei resultaria no caso concreto intoleravelmente ofensiva do nosso sentido ético-jurídico embora lealmente se aceitando como boa e valiosa para o comum dos casos a sua estatuição.”[8] “Há abuso de direito, segundo a conceção objetiva aceite no artigo 334.º, sempre que o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito. Não basta que o exercício do direito cause prejuízos a outrem. (…) Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar. Se, para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes, há que atender de modo especial às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade, a consideração do fim económico ou social do direito apela de preferência para os juízos de valor positivamente consagrados na própria lei. Não pode em qualquer dos casos afirmar-se a exclusão dos fatores subjetivos nem o afastamento da intenção com que o titular tenha agido, visto este poder interessar, quer à boa fé ou aos bons costumes, quer ao próprio fim do direito.”[9]
A toda a conduta é inerente a responsabilidade e a expectativa de que cada um atue com retidão e autenticidade. Por conseguinte, o princípio da boa-fé ou, até mesmo, o princípio da confiança, é um princípio ético-jurídico fundamental que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar e preservar. Como manifestação da teoria do abuso do direito, no segmento conexo com os limites impostos pela boa-fé, tem-se desenvolvido o princípio da proibição do venire contra factum proprium, princípio que tutela em primeira linha a confiança interpessoal, bem como a expectativa que se tem relativamente ao comportamento alheio devido à convicção que, de algum modo, foi criada pelo sujeito do mesmo comportamento no sentido de não pretender exercer o direito. A proibição da conduta contraditória em face da convicção criada implica que o exercício do direito seja abusivo por ilegítimo. Nas palavras de Vaz Serra[10], o princípio da proibição do venire contra factum proprium impede “que alguém exerça o seu direito em contradição com a sua conduta anterior em que a outra parte tenha confiado”. É a consagração da responsabilidade pela confiança.
Na jurisprudência deste Tribunal, “Existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinando direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apodicticamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objetiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra qual é invocado.”[11]
Compulsada a factualidade provada nos autos, nenhum elemento se descortina no sentido de afirmar ter a titular do direito a exigir contas, ou quem a representasse, atuado no sentido de levar à criação da convicção, por parte do Recorrente, de que não seriam exigidas contas. Do facto de não ter havido oposição ao modo como era levada a cabo a administração e de não ter havido reclamação por falta de informações não resulta que não iriam ser pedidas contas, designadamente no termo da administração. Aliás, a debilidade/demência que afetava (…), assim como a acusação de má gestão que foi dirigida ao outro genro, constituem circunstâncias que fariam um administrador diligente precaver-se de elementos bastantes para prestar contas da respetiva atividade.
Por outro lado, não se alcança atuação por parte da Autora, designadamente após a morte de (…), que evidenciasse estar fora de cogitação exigir prestação de contas pela administração dos bens durante 8 anos.
Acresce que nenhuma repulsa ou ofensa suscitaria no sentimento jurídico dominante a exigência de prestação de contas decorridos 3 anos sobre o termo da administração.
Sem embargo de se admitir poder a prestação de contas implicar tarefa complexa e sacrificante para o R., nomeadamente a compilação de elementos documentais para o efeito, certo é que tal circunstância não constitui causa impeditiva do direito que aqui vem exercido.

Improcedem as conclusões da alegação do presente recurso, inexistindo fundamento para revogação da decisão recorrida.

As custas recaem sobre o Recorrente – artigo 527.º, n.º 1, do CPC.

Sumário: (…)


IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida.

Custas pelo Recorrente.

*


Évora, 23 de abril de 2024
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Cristina Dá Mesquita
Francisco Matos

__________________________________________________
[1] Abrantes Geraldes e outros, CPC Anotado, Vol. II, pág. 391.
[2] Relatado por Graça Amaral.
[3] Relatado por Carlos Castelo Branco.
[4] Relatado por António Sobrinho.
[5] Relatado por António Paulo Vasconcelos.
[6] Ac. STJ de 10/09/2019, relatado por Assunção Raimundo.
[7] Heinrich Ewald Horster, A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 281.
[8] Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, pág. 63.
[9] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, págs. 436 a 438.
[10] RLJ ano 105.º, pág. 28.
[11] Ac. do TRE de 05/11/2020 (Tomé de Carvalho).