Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
719/19.2T9STR.E1
Relator: BEATRIZ BORGES
Descritores: DESPACHO DE PRONÚNCIA
IRRECORRIBILIDADE
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
Data do Acordão: 04/18/2024
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: N
Sumário: I - A decisão instrutória que pronunciar os arguidos pelos factos constantes da acusação pública é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades ou outras questões prévias ou incidentais.
II - Os recursos dos arguidos são, pois, de rejeitar (por decisão sumária), porquanto foram interpostos de “despacho de pronúncia” no qual os arguidos foram pronunciados pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, não tendo existido qualquer "alteração substancial" dos factos descritos em tal acusação (artigos 310º, nºs 1 e 3, e 309º do C. P. Penal).
Decisão Texto Integral:


Nos termos dos artigos 417.º, n.º 6, alínea b) e 420.º, n.ºs 1 alínea a) e 2 do CPP profere-se a seguinte

DECISÃO SUMÁRIA

I. RELATÓRIO

1. Da decisão
No Processo de Instrução n.º 719/19.2T9STR do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo de Instrução Criminal – Juiz 1, relativo aos arguidos C, J e A foi proferida decisão instrutória com o seguinte teor (transcrição):

…………………………………….
”.

2. Dos recursos
Da decisão que pronunciou os arguidos C e J recorreram ambos, representados pela mesma ilustre mandatária, nos moldes a seguir transcritos em 2.1. e 2.2..

2.1. Das conclusões do arguido C
O arguido extraiu da respetiva motivação recursória as seguintes conclusões (transcrição):
“CONCLUSÕES
A) Deve o despacho que admitiu a prova de extratos bancários ser revogado e substituída por decisão que declare nula essa prova por ter sido obtida sem despacho judicial e sem previa pronúncia da Ordem dos Advogados,
B) Caso assim não se entenda, como estamos perante insuficiência da fundamentação, uma vez que não responde ao requerido quanto à falta de despacho de Juiz de Instrução e falta de pronúncia prévia da Ordem dos Advogados, deve a decisão instrutória ser substituída por outra que repare a irregularidade e declare nula a prova obtida através dos extratos bancários do arguido;
C) O presente recurso versa sobre matéria de direito e de facto, discordando o Recorrente da decisão instrutória proferida de pronúncia pela prática de crime de burla qualificada, pp pelos art.s 217º, 1 e 218º, 1 e 2 a), por referência ao art. 202º b), todos do Código Penal;
D) O Recorrente discorda da matéria de facto dada como indiciada dos pontos 4 a 53;
E) Porque quanto à mesma não foi produzida qualquer prova e porque a mesma se encontra em contradição com a restante prova produzida;
F) A decisão instrutória não se “moveu” dentro dos factos elencados na acusação e requerimento de abertura de instrução, e na resposta do arguido à alteração não substancial dos factos não indicou de entre todos eles quais considera indiciados e não indiciados;
G)A decisão instrutória omite grande parte desses factos, o que não lhe lícito;
H) A decisão instrutória não faz uma análise crítica das provas produzidas que fundamentaram a decisão;
I) Da análise que faz, a decisão comete erros que têm influência na decisão instrutória, nomeadamente, erros cronológicos na ocorrência dos factos;
J) A decisão instrutória não tem em consideração muita da prova produzida, tanto documental, testemunhal, declarações do arguido e assistente;
K) Aliás, nem sequer indica essa prova, muito menos a analisa de forma crítica;
L) E essa prova, tem influência na decisão instrutória, pois o seu sentido teria de ser o da não pronúncia;
M) A decisão instrutória erra na aplicação do direito, desde logo porque fundamenta a decisão com atos posteriores à entrega do bem, neste caso, transferência bancária;
N) Erra na aplicação do direito quanto aos requisitos da burla, como nexo causal, elementos subjetivo e objetivo, enriquecimento do agente ou para terceiros, na exigência de dolo;
O)A decisão instrutória esquece que a atuação do arguido nunca foi dolosa,
P) Que o arguido sempre esteve convicto do cancelamento de transmissão de metade do bem para (…..);
Q)E que dessa forma o bem regressou à titularidade de (…..) e (…..);
R) Assim como esquece que existia a legitima expetativa de ser procedente a impugnação junto do TAF de Leiria, como foi, e em consequência se obter a anulação da venda de metade indivisa transmitida a (…..) e que tinha sido de (…..) e (…..);
S) Não relevou a reclamação apresentada junto do Juízo de Execução do Entroncamento para anulação de venda;
T) A decisão instrutória esquece as diligências realizadas pelo arguido junto do Serviço de Finanças para eventual suspensão de penhora como acordado entre (…..) e a participante;
U) A decisão instrutória esquece a intervenção de (…..) quanto à prestação de garantia em processo executivo que corria termos junto do Serviço de Finanças de Almeirim;
V) Não releva a decisão instrutória a intervenção do solicitador E na apresentação de registo predial e preparação da documentação para efeitos de contrato promessa;
W) Não releva igualmente a intervenção de (…..) que acompanhou o negócio, analisou documentos e se deslocou ao Serviço de Finanças de Almeirim;
X) Interpreta erradamente o despacho do Chefe de Serviço de Finanças de Almeirim;
Y) Aplica erradamente as normas legais tributárias, como seja as dos artigos 169º, 276º, 277º e 278º, todos do CPPT;
Z) Esquece a decisão instrutória que (….) e (….) colocaram ação cível contra a participante para dirimir o litigio entre as partes;
AA) Que a participante reconheceu a validade e eficácia do contrato promessa celebrado;
BB) Omite a decisão instrutória que a participante não cumpriu com o contratado
CC) E por essa razão (….) e (….) entenderam alegar a exceção de não cumprimento;
DD) Que (….), em face do incumprimento por parte da participante deu instruções ao aqui arguido para não realizar mais nenhuma diligência;
EE) O aqui arguido apenas atuou como advogado, representando (….) e (….);
FF) Não analisou o parecer da Ordem dos Advogados;
GG) Omitiu a decisão que o valor transferido apenas foi para uma conta titulada pelo aqui arguido, fundo de clientes, nos termos do 102º do EOA, por vontade da participante e (….).
HH) Não relevou que sempre foi intenção dos arguidos cumprir com o combinado, mas entretanto e após a transferência bancária as circunstâncias se alteraram e poderia ser suspensa a penhora junto do EF em que era executado (…..), que corria termos no SF de Almeirim, através de reclamação nos termos do art. 276º e seguintes do CPPT;
II) Esquece a decisão instrutória que no exercício do mandato o advogado tem obrigação de meio e não de fim;
JJ)Omite a decisão instrutória que de acordo com o art. 102º do EOA, a disposição do fundo de cliente ocorre de acordo com a vontade do cliente e não de terceiros;
KK)Não relava a decisão instrutória que os arguidos diligenciavam para prestar garantia de suspensão de penhora ou processe executivo fiscal através de seguro caução;
LL) Que levantamentos em numerário ocorreram para esse efeito;
MM) Não releva que para além do arguido, todos, participante, departamentos da Câmara Municipal de Santarém, solicitador (….), (….), estavam convictos que (….) e (….) eram proprietários do bem;
NN) Omite a decisão que a minuta do contrato promessa foi remetida atempadamente à participante e está realizou alterações, nomeadamente quanto à titularidade do bem;
OO) Esquece a decisão instrutória que a participante sempre teve conhecimento do estado jurídico do bem prometido transmitir e que todas as informações lhe foram prestadas;
PP) Que está tinha experiência em contratos promessas e leitura de certidões prediais;
QQ) Que em janeiro de 2018 a participante estava disponível para celebrar contrato promessa mesmos com a existência de entraves;
RR) Omite a decisão instrutória que todos, arguidos e assistente, atribuíram a qualidade de sinal à transferência realizada em 23 de maio de 2018;
TERMOS EM QUE, CONCEDENDO-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, DEVERÁ A DOUTA DECISÃO INSTRUTÓRIA ORA RECORRIDA SER REVOGADA, E SUBSTITUIDA POR DECISÃO DE NÃO PRONÚNCIA.”

2.2. Depois o arguido C apresentou um requerimento ao qual anexou uma errata onde referiu:
“Nesta data tomou conhecimento de alguns erros de escrita no recurso jurisdicional apresentado.
Erros esses que são lapsos de escrita, como se verifica pelo teor dos textos a corrigir e corrigidos e pelo conteúdo dos documentos a fls 453, 454, 455, 456 e 457, nomeadamente, quanto à data destes documentos.
O presente requerimento é apresentado ao terceiro dia de útil após o fim do prazo, pelo que, caso se entenda que o presente requerimento está sujeito a pagamento de multa, deve o arguido ser notificado para os efeitos do nº 6 do art. 139º do CPC, aplicável subsidiariamente….
Pelo exposto, requer-se que seja junto ao recurso jurisdicional a correção de lapsos, errata que se anexa.”.

2.3. Das conclusões do arguido J
O arguido J, por seu turno, extraiu da respetiva motivação recursória as seguintes conclusões (transcrição):
“A) O presente recurso versa sobre matéria de direito e de facto, discordando o Recorrente da decisão instrutória proferida de pronúncia pela prática de crime de burla qualificada, pp pelos art.s 217º, 1 e 218º, 1 e 2 a), por referência ao art. 202º b), todos do Código Penal;
B) O Recorrente discorda da matéria de facto dada como indiciada dos pontos 4 a 53;
C) Porque quanto à mesma não foi produzida qualquer prova e porque a mesma se encontra em contradição com a restante prova produzida;
D) A decisão instrutória não se “moveu” dentro dos factos elencados na acusação e requerimento de abertura de instrução, e na resposta do arguido à alteração não substancial dos factos não indicou de entre todos eles quais considera indiciados e não indiciados;
E) A decisão instrutória omite grande parte desses factos, o que não lhe lícito;
F) A decisão instrutória não faz uma análise crítica das provas produzidas que fundamentaram a decisão;
G)Da análise que faz, a decisão comete erros que têm influência na decisão instrutória, nomeadamente, erros cronológicos na ocorrência dos factos;
H) A decisão instrutória não tem em consideração muita da prova produzida, tanto documental, testemunhal, declarações de arguido e assistente;
I) Aliás, nem sequer indica essa prova, muito menos a analisa de forma crítica;
J) E essa prova, tem influência na decisão instrutória, pois o seu sentido teria de ser o da não pronúncia;
K) A decisão instrutória erra na aplicação do direito, desde logo porque fundamenta a decisão com atos posteriores à entrega do bem, neste caso, transferência bancária, assim como erra na interpretação de normas tributárias, como seja do Código de Procedimento e Processo Tributário;
L) Erra na aplicação do direito quanto aos requisitos da burla, como nexo causal, elementos subjetivo e objetivo, enriquecimento do agente ou para terceiros, na exigência de dolo;
M) A decisão instrutória esquece que a atuação do arguido nunca foi dolosa,
N) Que o arguido sempre esteve convicto do cancelamento de transmissão de metade do bem para (….);
O)E que dessa forma o bem regressou à titularidade de (….) e (….);
P) Assim como esquece que existia a legitima expetativa de ser procedente a impugnação junto do TAF de Leiria, como foi, e em consequência se obter a anulação da venda de metade indivisa transmitida a (….) e que tinha sido de (….) e (….);
Q)Não relevou a decisão instrutória que o arguido aguardava ser citado pra reclamação de créditos, no âmbito do processo nº 595/14. 1 TBALR que corre termos no Juízo de Execução do Entroncamento - J1, com a expetativa de poder adquirir o bem por compra ou adjudicação, bem esse que era a metade indivisa que pertencia a (….) e mulher e que posteriormente apresentou reclamação, após a apresentação de participação criminal por parte da assistente, no momento processual indicado;
R) A decisão instrutória esquece as diligências realizadas pelo arguido e por C junto do Serviço de Finanças para eventual suspensão de penhora como acordado entre (…..) e a participante;
S) A decisão instrutória esquece a intervenção de (…..) quanto à prestação de garantia em processo executivo que corria termos junto do Serviço de Finanças de Almeirim;
T) Não releva a decisão instrutória a intervenção do solicitador (…..) na apresentação de registo predial e preparação da documentação para efeitos de contrato promessa, nem no reconhecimento da assinatura de (….), feita por este solicitador em 28 de fevereiro de 2018;
U) Não releva igualmente a intervenção de (….) que acompanhou o negócio, analisou documentos e se deslocou ao Serviço de Finanças de Almeirim;
V) Interpreta erradamente o despacho do Chefe de Serviço de Finanças de Almeirim proferido no âmbito do processo executivo fiscal que corria termos contra (….) e mulher;
W) Aplica erradamente as normas legais tributárias, como seja as dos artigos 169º, 276º, 277º e 278º, todos do CPPT;
X) Esquece a decisão instrutória que (….) e (….) colocaram ação cível contra a participante para dirimir o litígio entre as partes;
Y) Que a participante reconheceu a validade e eficácia do contrato promessa celebrado em audiência prévia na ação cível que se encontra pendente;
Z) Omite a decisão instrutória que a participante não cumpriu com o contratado
AA) E por essa razão (….) e (….) entenderam alegar a exceção de não cumprimento;
BB) Que (….), em face do incumprimento por parte da participante deu instruções ao arguido C para não realizar mais nenhuma diligência;
CC) Não analisou o parecer da Ordem dos Advogados;
DD) Omitiu a decisão que o valor transferido apenas foi para uma conta titulada pelo arguido C, de fundo de clientes, nos termos do 102º do EOA, por vontade da participante e do aqui arguido (….).
EE) Não relevou que sempre foi intenção dos arguidos cumprirem com o combinado, mas entretanto e após a transferência bancária as circunstâncias se alteraram e poderia ser suspensa a penhora junto do processo executivo fiscal em que era executado (….), que corria termos no SF de Almeirim, através de reclamação nos termos do art. 276º e seguintes do CPPT;
FF) Omite a decisão instrutória que de acordo com o art. 102º do EOA, a disposição do fundo de cliente ocorre de acordo com a vontade do cliente e não de terceiros;
GG) Não relava a decisão instrutória que os arguidos diligenciavam para prestar garantia de suspensão de penhora ou processe executivo fiscal através de seguro caução;
HH) Que levantamentos em numerário ocorreram para esse efeito;
II) Não releva que para além do arguido, todos, participante, departamentos da Câmara Municipal de Santarém, solicitador (….), (….), estavam convictos que (….) e (….) eram proprietários do bem;
JJ)Omite a decisão que a minuta do contrato promessa foi remetida atempadamente à participante e está realizou alterações, nomeadamente quanto à titularidade do bem;
KK) Esquece a decisão instrutória que a participante sempre teve conhecimento do estado jurídico do bem prometido transmitir e que todas as informações lhe foram prestadas;
LL) Que está tinha experiência em contratos promessas e leitura de certidões prediais;
MM) Que em janeiro de 2018 a participante estava disponível para celebrar contrato promessa mesmos com a existência de entraves;
NN)Omite a decisão instrutória que todos, arguidos e assistente, atribuíram a qualidade de sinal à transferência realizada em 23 de maio de 2018;
TERMOS EM QUE, CONCEDENDO-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, DEVERÁ A DOUTA DECISÃO INSTRUTÓRIA ORA RECORRIDA SER REVOGADA, E SUBSTITUIDA POR DECISÃO DE NÃO PRONÚNCIA. (…)”.

2.4. Das contra-alegações do Ministério Público
2.4.1. Respondeu o Ministério Público primeiro em resposta à errata apresentada pelo arguido C sinteticamente pela seguinte forma (transcrição):
A fls. 1434 a 1442, em requerimento avulso (Referência n.º 9472452), o recorrente C apresentou uma errata do recurso por si apresentado, constituído por seis páginas, onde refere ter tomado conhecimento de alguns erros de escrita no recurso jurisdicional apresentado, que careciam de ser corrigidos.
(…) o MP nada opõe ao que resulta da errata devendo, por isso, a passar a constar como parte integrante do recurso a que se responde.”.

2.4.2. Depois o MP conclui em relação ao recurso interposto pelo do arguido C nos seguintes termos (transcrição):
“1.ª Pretende o recorrente convencer da veracidade dos factos que alega, a fim de tentar levar a questão de fundo para a jurisdição cível, a tratar nesse foro como incumprimento de contrato promessa.
2.ª Porém, não o consegue pela simples razão de que tal não se mostra possível, quer do ponto de vista lógico, quer cronologicamente.
3.ª O ora recorrente tem pautado a sua actuação processual pela magnitude da sua capacidade reivindicativa, a qual é legítima à luz da protecção do Estado de Direito Democrático mas que, com todo o respeito, não pode convencer, pela simples razão de que o contrato promessa foi cumprido pela participante (como lhe chama o arguido no seu recurso).
4.ª Quem não cumpriu o contrato prometido foram os arguidos c, em primeira linha, em conluio com o arguido J.
5.ª Porém, ambos o fizeram com a intenção de defraudar a assistente, através de erro ou engano astuciosamente provocados, com falsas informações sobre a alegada evolução para correcção de um erro existente, não se sabe bem se na matriz, no registo ou em qualquer outra parte do processo de legalização do imóvel em causa,
6.ª Como profusamente demonstram os autos através da prova neles existente.
7.ª Outra das questões que importa tratar, pese embora tal já tenha sido levado a cabo pelo Tribunal “a quo”, é a da alegada e indevida recolha de prova documental relativa à transferência do valor do sinal para uma conta do ora recorrente sem a pronúncia da Ordem dos Advogados, uma vez que se tratava, segundo o mesmo, de recolha ilegal de prova e que, por isso, não devia ser considerada.
8.ª Na verdade, mesmo “dando de barato” que assim seja, o que, como já foi invocado supra, o que se passou foi que a quantia transferida pela assistente para a conta pertencente ao ora recorrente, tendo este dado destinos a tal verba que não se dirigiram ao pagamento da caução, daí a não suspensão da penhora no processo de execução a que se destinava, uma vez que, pela alegação supra a este respeito e, ainda, pelo “status quo” que ainda se mantém, representa a execução do erro ou engano astuciosamente provocado na assistente pelo ora recorrente para a obtenção de tal verba por parte do mesmo.
9.ª Daí a irrelevância da questão levantada pelo arguido C quer quanto à alegada natureza cível da questão de fundo quer, por outro lado, mostrando-se verdadeiramente demonstrada a existência do sobredito elemento objectivo do crime de burla qualificada (pelo valor), elemento esse que faz a diferença entre a aplicação do foro penal em detrimento do foro cível, ao caso em apreço.
10.ª Já quanto aos alegados erros, omissões ou erradas interpretações da prova (aproveitável) junta aos autos pelo ora recorrente, nota-se, por tudo quanto constitui a contra motivação supra efectuada, praticamente relativa, alínea por alínea das conclusões de recurso, verificamos a existência de confusão quanto às acções executivas em presença, com omissão de todos os dados relativamente ao desfecho de, pelo menos uma delas e a quem o mesmo não se refere neste aspecto.
11.ª Finalmente, se nos debruçarmos sobre a ausência de fundamentação e tratamento de várias questões a que, alegadamente, o Tribunal “a quo” não se referiu ou não tratou criticamente, conviria atender aos factos considerados indiciados, na Decisão Instrutória, 4 a 53, de fls. 1022 a 1028, por um lado sendo que, por outro lado, a motivação de facto de fls. 1028 (quatro últimos parágrafos) a fls. 1033 dos autos, onde se afere, exemplarmente, diga-se e se soluciona a realidade carente de reposição do tecido social danificado.
12.ª Por todas estas razões, é de concluir que a decisão ora impugnada não violou qualquer norma legal, devendo ser mantida nos seus precisos termos. (…)”.

2.4.3. Concluiu, depois, o MP, em relação ao recurso do arguido J, nos seguintes termos (transcrição):
“1.ª À semelhança do arguido C, a resposta oferecida pelo arguido J não concretiza quais as direcções (baseadas em prova produzida) que deveriam ter sido evidenciadas para colmatar os alegados erros da decisão ora em crise.
2.ª Já quanto às invocadas omissões na mesma decisão, nada se concretiza sobre a matéria probatória existente nos autos que impunha a sua alegada inexistência e, sobretudo, qual o prejuízo para a decisão.
3.ª As contradições mantêm-se quando, como vimos, uma conclusão contradiz outra ou outras, próximas ou afastadas entre si, assim como nunca explica o silêncio de ambos os arguidos pronunciados exerceram na reunião camarária em que estiveram presentes, reunião essa relativa ao sector urbanístico, tendo em conta o prédio de que se trata.
4.ª Evidencia-se a chamada à colação de várias complicações e confusões que de “a latere”, nada têm a ver com a solução do caso, tratando-o com uma espécie de tentativa de “cortina de fumo”, mas incapaz de ofuscar a verdade.
5.ª Nenhum dos arguidos ora pronunciados explicou ainda a existência nos autos, a fls. 967 e seguintes, de uma cópia de acto jurisdicional do TAF de Leiria em que nem a parte ali impugnante é identificada.
6.ª Este é um exemplo de alguma confusão presente nos autos, em documentos juntos pelos arguidos, o que só aumenta a nebulosidade existente sobre a sua posição, em nada contribuindo para o verdadeiro esclarecimento dos factos em apreço.
7.ª Finalmente afirma-se que a decisão sob recurso não violou qualquer norma legal, pelo que deverá ser mantida nos seus precisos termos.”.

2.5. Do Parecer do MP em 2.ª instância
Na Relação o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido de serem julgados improcedentes e não providos os dois recursos interpostos.

2.6. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP, cumprindo apreciar e decidir sumariamente os recursos interpostos pelos arguidos C e J.


II. FUNDAMENTAÇÃO

De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.
Na situação em apreciação suscita-se precisamente uma questão prévia de conhecimento oficioso, ou seja, saber se os arguidos podiam ter lançado mão do recurso para reagir contra o Despacho Judicial de Pronúncia dos arguidos, que de acordo com o artigo 310.º do CP é, por regra, irrecorrível.
O artigo 310.º do CPP estabelece, efetivamente, sob a epígrafe “Recursos” que:
“1 - A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
2 - O disposto no número anterior não prejudica a competência do tribunal de julgamento para excluir provas proibidas.
3 - É recorrível o despacho que indeferir a arguição da nulidade cominada no artigo anterior.”[1].
É verdade que o Tribunal recorrido, quando admitiu os recursos interpostos pelos dois arguidos, referiu:
“Por ser legal, tempestivo e interposto por quem tem legitimidade, admito o recurso interposto pelo arguido (admissível face à alteração não substancial dos factos da acusação)[2], que tem subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo do processo (…).”
Como se depreende da leitura entendeu o Tribunal a quo ser de admitir o recurso, na sequência de, durante a instrução, ter sido proferida decisão que provocou uma alteração não substancial dos factos constantes da acusação.
Não se compreende bem o alcance do decidido em 1.ª instância quanto à admissibilidade do recurso, pois quando o n.º 3 do acima transcrito artigo 310.º do CPP prevê uma exceção à regra da irrecorribilidade remete expressamente para a previsão do artigo 309.º do CPP e nele apenas se faz referência ao casos de alteração substancial dos factos indiciados e não à alteração não substancial.
Só poderá ser compreensível a admissão do recurso nos moldes em que o foi se o Tribunal recorrido tivesse procedido a uma alteração substancial dos factos constantes da acusação.
Comecemos, então, por apreciar o que foi decidido a este propósito pelo Tribunal a quo e que consta da ata do dia 16.11.2022 com a ref. 91693778 (transcrição parcial):
Do teor da prova produzida no inquérito e na instrução resultam indiciados alguns factos relevantes para a decisão que não constam expressamente do despacho de acusação, ainda que deles se possam intuir, que são relevantes para a decisão, nomeadamente que:
a) L depositou na conta referida no ponto 29. da acusação a quantia aí referida porque estava convicta de que esta verba seria utilizada para pagar ou caucionar a dívida exequenda no PEF: 1945201301032372 e, deste modo, lograr o levantamento da penhora aí realizada, para viabilizar a futura transmissão registral do prédio para a assistente.
b) Os arguidos C e J agiram querendo convencer os legais representantes da assistente de que iriam utilizar o montante por esta entregue para liquidar ou caucionar a dívida exequenda no PEF: 1945201301032372 e, deste modo, lograr o levantamento da penhora aí realizada, para viabilizar a futura transmissão registral do prédio para a assistente.
Estes factos não alteram nem o tipo de crime imputado aos arguidos, nem a moldura abstracta das sanções a que se sujeitam, pelo que esta alteração de factos deve ser havida como não substancial – artigo 1º, al. f) a contrario do CPP. (…)
Pelo exposto, determino:
a) A reabertura do debate instrutório; e
b) A comunicação aos sujeitos processuais da presente alteração não substancial dos factos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 303º, n.º 1, do CPP.”
Depois consta da mesma apontada ata que:
Logo, todos os presentes foram devidamente notificados, tendo a ilustre mandatária dos arguidos requerido prazo não inferior a oito dias para defesa, tendo em conta a alteração não substancial dos factos ora comunicada. (…)
Em face da posição assumida pela ilustre defensora dos arguidos, designo para continuação do debate instrutório, o próximo dia 25 de novembro, pelas 10:00 horas.
Nessa sequência os arguidos opuseram-se à alteração dos factos classificando-a como substancial (em 24.11.2022 ref. 9210387) e posteriormente recorreram do despacho de pronúncia tendo, como já atrás assinalado, o JIC admitido esse recurso precisamente com base na circunstância de ter procedido à alteração não substancial dos factos.
A questão está, pois, em saber, se afinal o despacho consubstanciou uma alteração substancial dos factos, pois nesse caso poderíamos estar perante um caso de admissibilidade do recurso ao abrigo do n.º 3 do artigo 310.º do CPP em conjugação com o artigo 309.º do CPP.
Na situação em apreciação os arguidos foram pronunciados pelos mesmos factos que constavam da acusação pública, à exceção de dois deles, a saber:
“30. L depositou na conta referida no ponto 29. da acusação a quantia aí referida porque estava convicta de que esta verba seria utilizada para pagar ou caucionar a dívida exequenda no PEF: 1945201301032372 e, deste modo, lograr o levantamento da penhora aí realizada, para viabilizar a futura transmissão registral do prédio para a assistente.”
“44. Os arguidos C e J agiram querendo convencer os legais representantes da assistente de que iriam utilizar o montante por esta entregue para liquidar ou caucionar a dívida exequenda no PEF: 1945201301032372 e, deste modo, lograr o levantamento da penhora aí realizada, para viabilizar a futura transmissão registral do prédio para a assistente.”
A materialidade assinalada constante dos atuais pontos 30. e 44. embora não constasse expressamente da acusação deixava-se advinhar do teor desta, como aí assinalado pelo JIC.
Tendo sido cumprido o artigo 303.º do CPP[3], concedendo-se prazo aos arguidos para se pronunciarem sobre a alteração não substancial dos factos indiciados (ouvindo-se inclusive o arguido C sobre os mesmos), o Tribunal inseriu no despacho de pronúncia o aditamento aos factos constantes da acusação, ou seja, os indiciados sob os pontos 30. e 44..
Essa modificação, todavia, como foi assinalado pelo JIC não alterou o tipo de crime imputado aos arguidos ou a moldura penal abstrata devendo por isso ser considerada como não substancial, como resulta a contrario do artigo 1.º, alínea f) do CPP, quando sob a epígrafe “Definições legais” nele se dispõe que:
“Para efeitos do disposto no presente Código considera-se: (…)
f) «Alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis;”.
Considerando que a decisão instrutória é cindível em duas partes, uma de forma (questões prévias e incidental) e outra de substância (decisão de fundo sobre os factos indiciados), no caso o despacho proferido é irrecorrível quanto à sua parte substancial, atento o disposto no artigo 309.º, n.º 1, do CPP, a contrario, pois apesar de ter incorporado nos factos indiciados matéria não constante da acusação, ou seja, os pontos 30. e 44. estes não consubstanciam alteração substancial dos factos constantes daquela peça processual. Por outro lado, o despacho instrutório de pronúncia é irrecorrível quanto à forma (segmento relativo à apreciação de nulidades ou irregularidades), pois atualmente o n.º 1 do artigo 310.º do CPP (com a redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto) expressamente exclui a recorribilidade nesses casos, não tendo aplicação o estabelecido no Assento do STJ n.º 6/2000 e no AUJ n.º 7/2004[4], porquanto proferidos ao abrigo de legislação distinta.
Na atual redação do Código Processo Penal (artigos 310.º e 309.º) a única situação que provoca a nulidade da decisão instrutória de pronúncia e pode ser suscitada em sede de recurso, conquanto o seja no prazo legal (artigo 309.º, n.º 2 do CPP), é a da alteração substancial dos factos constantes da acusação e, na situação em apreciação, esta não ocorreu (artigo 310.º, n.º 3 do CPP por referência ao artigo 309.º, n.º 1 do CPP)[5].
Ainda por outras palavras:
Na instrução, o princípio geral quanto ao recurso da decisão instrutória que pronuncia o arguido é o da irrecorribilidade[6].
Daí, tanto o segmento do despacho de pronúncia no qual é indeferida uma nulidade/irregularidade/questão prévia suscitada na instrução (parte formal), como a fixação dos factos indiciados, motivação e respetiva fundamentação de facto (parte substantiva), não são recorríveis.
O princípio especial da irrecorribilidade do artigo 310.º, n.º 1 do CPP afasta o princípio geral da recorribilidade previsto no artigo 399.º do CPP, ao estabelecer que a decisão instrutória de pronúncia do arguido não é recorrível, mesmo na parte na qual aprecie nulidades e outras questões prévias ou incidentais, caso pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, apenas comportando a exceção estabelecida pelo n.º 2 desse normativo, ou seja, se “…pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução”.
No presente caso, não tendo havido qualquer alteração substancial dos factos descritos na acusação do Ministério Público, a decisão instrutória é irrecorrível, bem como aquela que indeferiu a arguição da sua nulidade/irregularidade.
Daí serem de rejeitar os recursos interpostos do despacho de pronúncia dos dois arguidos por inadmissíveis, face ao disposto no artigo 310.º, n.º 1 do CPP.

III. DECISÃO

Nestes termos e com os fundamentos expostos:
1. Decide-se rejeitar os recursos interpostos pelos arguidos por o despacho de pronúncia se tratar de decisão irrecorrível.
2. Condenam-se cada um dos recorrentes no pagamento de 3 UC, nos termos constantes do n.º 3 do artigo 420.º do CPP. Évora,

18 de abril de 2024 (estudo do processo).

Beatriz Marques Borges
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[1] Sublinhado e negrito nosso.
[2] Sublinhado e negrito nosso.
[3] O Artigo 303.º do CPP sob a epígrafe “Alteração dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução” estabelece que «1 - Se dos actos de instrução ou do debate instrutório resultar alteração não substancial dos factos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao defensor, interroga o arguido sobre ela sempre que possível e concede-lhe, a requerimento, um prazo para preparação da defesa não superior a oito dias, com o consequente adiamento do debate, se necessário. 2 - Não tem aplicação o disposto no número anterior se a alteração verificada determinar a incompetência do juiz de instrução. 3 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em curso, nem implica a extinção da instância. 4 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo. 5 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o juiz alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou no requerimento para a abertura da instrução.».
[4] Face à anterior redação era considerado admissível o recurso nessas situações, conforme resultava do Assento do STJ nº 6/2000 , DR, I Série-A de 7-03-2000 e do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 7/2004.
[5] Mesmo ao abrigo da anterior redação do artigo 310.º do CPP já a jurisprudência se pronunciara sobre a irrecorribilidade do despach0 de pronúncia quando ocorrera alteração não substancial dos factos cf. neste sentido Ac. RE de 13-04-201º proferido no P. 457/08.1TALLE-A.E1, relatado por ALBERTO JOÃO BORGES em cujo sumário foi assinalado que «Está abrangida pela irrecorribilidade prevista no artigo 310.º n.º 1 do Código de Processo Penal, a decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes da acusação deduzida pelo Ministério Público, ainda que o Tribunal proceda a uma alteração não substancial dos factos que daquela constam.»
[6] Na anterior redação do artigo 310.º do CPP sob a epígrafe (Recurso da decisão instrutória) estabelecia-se que: «A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento. 2 - É recorrível o despacho que indeferir a arguição da nulidade cominada no artigo anterior.» Tendo o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 7/2004 proferido no Recurso n.º 3668/2003 que decidiu «Sobe imediatamente o recurso da parte da decisão instrutória respeitante às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais, mesmo que o arguido seja pronunciado pelos factos constantes da acusação do Ministério Público» na linha do Assento do STJ nº 6/2000 , DR, I Série-A de 7-03-2000 que fixou jurisprudência no sentido que «A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é recorrível na parte respeitante à matéria relativa às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais».