Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:03661/23.9T8VFR.S1
Data do Acordão:04/17/2024
Tribunal:CONFLITOS
Relator:NUNO GONÇALVES
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Compete ao tribunal administrativo e fiscal conhecer da causa em que o autor, invocando a graduação em concurso para preenchimento de posto de trabalho em Centro Hospitalar EPE e, com isso, o seu ingresso, em 1.º lugar, na reserva legal de recrutamento, pede que se anule o ato de indeferimento do seu pedido de colocação e, em consequência, seja efetivado o invocado direito legal a ser provido que afirma emergir diretamente daquele procedimento (concurso) de recrutamento levado a cabo pela ré.
Nº Convencional:JSTA000P32206
Nº do Documento:SAC2024041703661
Recorrente:AA
Recorrido 1:CENTRO HOSPITALAR DE VILA NOVA DE GAIA / ESPINHO E.P.E.
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: *

conflito negativo de jurisdição


**

1. Relatório:


AA intentou em 14/11/2022, ação emergente de contrato de trabalho, com processo comum, contra o Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho, E.P.E. que, embora fosse endereçada ao Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo do Trabalho de Vila Nova de Gaia, todavia apresentou-a no Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto,


Onde foi autuada com o n.º 2324/22.7... e distribuída ao Juízo Administrativo Social.


Na sequência de despacho de 17/11/2022 daquele Tribunal o autor juntou nova petição inicial de “impugnação de ato administrativo” (em substituição da anterior), agora dirigida ao Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto – Juízo Administrativo Social, formulando o pedido seguinte:

“(…) por estar em tempo e a decisão consubstanciada pelo indeferimento da pretensão do Autor de ocupação da vaga deixada em aberto por BB, no procedimento concursal de recrutamento de 7 técnicos superiores da área pelos fundamentos expostos na presente petição, seja a mesma anulada e, em consequência, ser o Autor provido no posto de trabalho deixado em aberto para a carreira especial de técnico superior das áreas de diagnóstico e terapêutica, com efeitos a partir de 01 de Janeiro de 2022 e um vencimento base de € 2.153,94, correspondente à posição 33 da Tabela Salarial da Carreira Especial de Técnico Superior de Diagnóstico e Terapêutica, conforme Lei 34/2021 de 08 de Junho.”.

O Tribunal Administrativo e Fiscal do Porto – Juízo Administrativo Social, por sentença de 23/11/2022, admitiu a petição inicial apresentada em substituição da anterior e declarou-se incompetente, em razão do território, para conhecer da ação, determinando a remessa dos autos ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro, após trânsito.


A ré, citada, contestou impugnando os factos.


O Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro – Unidade Orgânica 1, por despacho de 15/05/2023, determinou a notificação da ré para vir aos autos esclarecer qual o tipo de vínculo/contrato a ser celebrado pelo autor em caso de eventual ocupação da vaga em discussão.


A ré, notificada, respondeu o seguinte: “Se o autor na qualidade de candidato que foi, tivesse sido ordenado nos sete primeiros lugares, teria sido promovido à categoria de Técnico Superior nas áreas de diagnóstico e terapêutica especialista, em virtude do procedimento concursal, mantinha o vínculo de relação jurídica de emprego privado, e teria celebrado um contrato individual de trabalho sem termo, tal como os candidatos providos no concurso celebraram, contratos que foram juntos aos autos com a contestação.


O Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro – Unidade Orgânica 1, por despacho de 19/06/2023, ordenou a notificação das partes para, querendo, pronunciarem-se sobre a eventual incompetência material do Tribunal Administrativo para a apreciação do litígio.


O autor, notificado, requereu a remessa dos autos ao Juízo do Trabalho de Santa Maria da Feira, por ser o competente, em razão da matéria e do território.


O Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro – Unidade Orgânica 1, por sentença de 08/08/2023, declarou-se materialmente incompetente para o conhecimento da causa, absolvendo a ré da instância.


Para o efeito, e em síntese, entendeu que não estando em causa um litígio emergente de um vínculo de emprego público, mas sim a constituição de uma relação jurídica de emprego privado, mediante a celebração de contrato individual de trabalho de natureza privada, a competência para o seu conhecimento cabe aos tribunais judiciais, nos termos do art. 4.º, n.º 4, al. b), do ETAF.


Recebido o processo no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro foi autuado com o n.º em epigrafe e distribuído ao Juízo do Trabalho de Santa Maria da Feira – Juiz 2.


Esse Tribunal, por sentença de 07/12/2023, declarou-se materialmente incompetente conhecer do presente litígio, absolvendo a ré da instância, atribuindo a competência à jurisdição administrativa, nos termos do art. 4.º, n.º 1, al. e), do ETAF.


Para tanto entendeu, em suma, que o objeto da lide não é o vínculo contratual que une o autor e a ré, mas antes o procedimento (concurso) de recrutamento levado a cabo pela ré para a contratação de pessoal técnico superior nas áreas de diagnóstico e terapêutica para a categoria de técnico especialista do mapa de pessoal do CHVNG/Espinho, em momento prévio à constituição do vínculo laboral.


Acrescenta que o ato administrativo impugnado é a decisão que lhe foi comunicada pela ré em 16/05/2022, que considerou não existir a possibilidade de anulação do procedimento, tendo por base a aplicação da Lei 34/2021, de 08 de junho, não estando em causa qualquer litígio que decorra de um contrato de trabalho celebrado entre as partes.


O Juízo do Trabalho de Santa Maria da Feira – Juiz 2, por despacho de 14/02/2024, determinou a remessa dos autos ao Tribunal dos Conflitos, para resolução do conflito negativo de jurisdição.

2. pronúncia das partes:


O autor, notificado nos termos do art.º 11.º n.º 3 da Lei n.º 91/2019 de 4 de setembro, reconhecendo a existência de um conflito negativo de jurisdição, defende a atribuição da competência material à jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais.


A ré nada disse.

3. parecer do Ministério Público:


O Digno Procurador-geral Adjunto, na vista a que alude a norma citada, pronuncia-se pela atribuição da competência para conhecer da presente ação ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro.

4. saneamento:


Dois tribunais de ordens diferentes, um da jurisdição administrativa e o outro da jurisdição comum, denegam a competência material própria para conhecer da pretensão de justiça que o autor formulou nestes autos.


O Tribunal dos Conflitos é o competente para resolver este conflito


As decisões judiciais conflituantes transitaram em julgado.


O tribunal requerente tem legitimidade para suscitar oficiosamente a resolução do conflito.


O pedido de resolução não é manifestamente infundado.


Não há questões prévias que devam decidir-se.


Apesar de existir jurisprudência recente deste Tribunal sobre a questão, entende-se que o conflito deve ser dirimido através de acórdão.

5. objeto:


O conflito negativo a resolver consiste em definir se a competência em razão da matéria para a apreciação da vertente causa cabe aos tribunais da jurisdição comum ou aos tribunais da jurisdição administrativa.


6. Fundamentação:

a. da competência jurisdicional:

Da arquitetura constitucional e do quadro orgânico, estatutário e adjetivo que a desenvolve, resulta que aos tribunais judiciais comuns está a atribuída a denominada competência residual. Que, na expressão do legislador, se traduz no poder-dever de conhecer das “causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.


Resulta ainda que na ordem dos tribunais judiciais comuns, aos juízos cíveis compete conhecer das causas que não estejam atribuídas a tribunais ou juízos “dotados de competência especializada”.


Assim, não cabendo uma causa na competência legal e especificamente atribuída a outro tribunal, será a mesma da competência residual do tribunal comum.


Sendo que na ordem dos tribunais administrativos e fiscais, a competência residual para dirimir “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” recai nos tribunais administrativos


Estabelece a Constituição da República - art. 212.º, n.º 3 – e regulamenta a Lei de Organização do Setor Judiciário/LOSJ – art. 144.º, n.º 1 que aos tribunais administrativos e fiscais compete “dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.


Nos termos do art. 38.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, “A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei” (no mesmo sentido veja-se o art.º 5.º do ETAF).


Dispõe, por seu turno, o art. 1.º, n.º 1, do ETAF (na redação introduzida pela Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro), que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”.


A competência, em razão da matéria, dos Tribunais Administrativos e Fiscais encontra-se, assim, prevista no art. 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).


Na parte que aqui releva, dispõe o art. 4.º, n.º 1, al. e), do ETAF, que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a “Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes”.


Por sua vez, a al. b) do n.º 4 daquele art. 4.º, excluiu do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, “A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público”.


*


É jurisprudência sólida e uniformemente do Tribunal dos Conflitos, reiterado entre outros, também no Acórdão de 08/11/2018, tirado no processo n.º 020/18 que “a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…)


A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável - ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].1.

b. apreciação:

No caso dos autos, o autor insurge-se contra o despacho de indeferimento do seu pedido de preenchimento do posto de trabalho de técnico superior das áreas de diagnóstico e terapêutica especialista na sequência de vaga de um dos 7 concorrentes que ficaram graduados à sua frente no correspondente procedimento concursal para esse efeito.


Alega, em síntese que:

- Celebrou com a ré, em 23/08/2016, um contrato de trabalho por tempo indeterminado, nos termos do qual se obrigou a prestar-lhe funções inerentes à categoria profissional de técnico de 2.ª classe de radiologia, cujo início ocorreu em 08/07/2016;

- Por despacho n.º 9656/2020, de Outubro de 2020, dos Gabinetes do Ministro de Estado e das Finanças e do Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, foi autorizada a promoção de 826 profissionais para a categoria de técnico superior das áreas de diagnóstico e terapêutica especialista e de 80 profissionais para a categoria de técnico superior das áreas de diagnóstico e terapêutica especialista principal, das carreiras de técnico superior das áreas de diagnóstico e terapêutica e especial de técnico superior das áreas de diagnóstico e terapêutica;

- De acordo com o Anexo I do referido despacho, o concurso em causa abrangeu 29 postos de trabalho para a aqui ré e para a categoria de técnico superior das áreas de diagnóstico e terapêutica especialista;

- Por aviso n.º 19851-E/2020, de 04/12/2020, foi declarado aberto o procedimento concursal comum tendente ao preenchimento dos mencionados postos de trabalho, tendo sido previstos 7 para o serviço onde se encontra integrado o ora autor;

- foi um dos candidatos admitidos no referido concurso, tendo ficado ordenado na 8.ª posição, com uma classificação final de 15 valores, por aplicação da al. b) do ponto 2, do artigo 28.º da Portaria n.º 154/2020, de 23 de junho;

- Nessa decorrência, ficou no 1.º lugar após o preenchimento dos 7 postos de trabalho a que o procedimento concursal se destinava;

- Com a publicação da lista de ordenação final, homologada pelo Conselho de Administração da ré em 29/04/2021, e de acordo com o art. 31.º, n.º 3, da Portaria n.º 154/2020, constituiu-se uma reserva de recrutamento interna para a categoria de técnico superior das áreas de diagnóstico e terapêutica especialista — Radiologia, integrada por 19 candidatos aprovados excedentes em relação ao número de postos de trabalho a preencher através do procedimento concursal em causa;

- Por aplicação da Lei n.º 34/2021, de 8 de junho, o Técnico Superior de Diagnóstico e Terapêutica, BB, transitou para a categoria de técnico superior das áreas de diagnóstico e terapêutica especialista, ope legis, tendo deixado em aberto a vaga que ocupava no supracitado procedimento concursal;

- Por carta registada com aviso de receção, o ora autor reclamou para si aquela vaga;

- Apesar de aquele lugar dever ser ocupado por si, a ré, por email datado de 16/05/2022, indeferiu a pretensão do autor, o que fez em violação do princípio da legalidade subjacente ao procedimento concursal de recrutamento contido nos arts. 3.º do CPA e 266.º, n.º 2, da CRP, e do disposto no art. 31.º, n.ºs 3, 4 e 5, da Portaria n.º 154/2020, ao dar como finalizado o procedimento concursal em maio de 2021, quando, na verdade, por aplicação das disposições ora citadas, apenas se considerará findo em 13/11/2022.

O Decreto-Lei n.º 50-A/20072, de 28 de fevereiro, criou o Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, E. P. E., com natureza de entidade pública empresarial.


Em 07/12/2020, foi publicado o Aviso (extrato) 19851-E/20203, para recrutamento de pessoal técnico superior das áreas de diagnóstico e terapêutica para a categoria de técnico especialista, ali constando, além do mais, o seguinte:


Nos termos do Despacho 9656/2020, publicado no Diário da República n.º 195/2020, Série II de 2020-10-07, proferido por Suas Excelências o Ministro de Estado e das Finanças e o Secretário de Estado Adjunto e da Saúde, torna-se público que, por deliberação do Conselho de Administração do Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho, E. P. E., de 30 de novembro de 2020, se encontra aberto, pelo prazo de 10 dias úteis a contar da data da publicação do extrato no Diário da República, procedimento concursal comum conducente ao preenchimento dos postos de trabalho abaixo indicados, para a categoria de Técnico superior das áreas de diagnóstico e terapêutica especialista, do mapa de pessoal do Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho, E. P. E. para a constituição de relação jurídica de emprego público, mediante celebração de contrato de trabalho em funções públicas por tempo indeterminado, ou para a constituição de relação jurídica de emprego privado, mediante celebração de contrato individual de trabalho por tempo indeterminado, ao abrigo do Código do Trabalho:


(…)


2 - Local de trabalho - O trabalho será prestado no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, E. P. E., podendo ser desenvolvido em qualquer uma das Unidades que integram o Centro Hospitalar, bem como em outras Instituições com as quais o mesmo tenha ou venha a ter acordos ou protocolos de colaboração.


3 - Condições de candidatura: O recrutamento para a categoria de técnico superior das áreas de diagnóstico especialista, faz-se de entre técnicos superiores das áreas de diagnóstico e terapêutica da respetiva área profissional a concurso que detenham, no mínimo, seis anos de experiência efetiva de funções na categoria e com avaliação que consubstancie desempenho positivo, nos termos da legislação aplicável.


4 - Caracterização do posto de trabalho: O conteúdo funcional do lugar a prover é o constante artigo 10.º do Decreto-Lei 111/2017 e no art. 9.º do Decreto-Lei 110/2017, ambos de 31 de agosto.”.


A Portaria n.º 154/20204, de 23 de junho, regulamenta os requisitos e a tramitação do procedimento concursal de recrutamento para os postos de trabalho no âmbito da carreira especial de técnico superior das áreas de diagnóstico e terapêutica.


O Aviso n.º 10016/20215, de 27 de maio, tornou pública a lista unitária de ordenação final do procedimento concursal comum para preenchimento de sete postos de trabalho na categoria técnico superior das áreas de diagnóstico e terapêutica especialista da carreira especial técnico superior das áreas de diagnóstico e terapêutica ou carreira técnico superior das áreas de diagnóstico e terapêutica - Radiologia, aberto pelo Aviso (extrato) n.º 19851-E/2020, devidamente homologada por Deliberação do Conselho de Administração do CHVNG, E. P. E., em 29/04/2021.


Em apertada síntese, o autor, alegando que daquele concurso resultava uma reserva de recrutamento pelo prazo de 18 meses contados da partir de 20/04/2021, data em que foi homologada a lista da respetiva graduação final, publicada no DR em 14/05/2021, tem direito e reclamou para si a vaga que, naquele período, foi aberta por um dos concorrentes, impugnando o ato administrativo de indeferimento daquele seu pedido que lhe foi comunicado em 16 de maio de 2022.


A causa de pedir nesta ação, consiste na graduação do autor no aludido concurso e, com isso, o seu ingresso, em 1.º lugar, na reserva legal de recrutamento – nos termos do art. 31.º n.ºs 3 e 4 da Portaria n.º 154/2020 de 23 de julho -, para o preenchimento do posto de trabalho de técnico superior de áreas de diagnóstico e terapêutica especialista ao serviço do réu. Pelo que, tendo ocorrido vaga no período de vigência daquela reserva de recrutamento e tendo-lhe o réu negado o direito à vaga, pede ao tribunal que anule essa decisão administrativa de indeferimento e que o autor seja provido na vaga aberta.


O Tribunal dos Conflitos, na fundamentação do acórdão do de 11/01/2017, proferido no processo n.º 020/146, expendeu: “Seguramente que não estamos perante um litígio emergente de uma relação contratual existente, hipótese para a qual a al. d) do n.º 3 do art.º 4.º do ETAF forneceria resposta imediata, mas perante um litígio respeitante ao seu procedimento de formação.


(…)


É na natureza deste procedimento que reside a divergência.


Adianta-se que se afiguram evidentes as notas de administratividade neste procedimento pré-contratual. Na verdade, a exigência de um procedimento formalizado previamente à contratação, ainda que mediante contrato de direito privado, e os princípios que o legislador manda observar nesse procedimento concursal (lato sensu) são impostos pela natureza pública do empregador. Na verdade, a Administração Pública, ainda quando autorizada a agir na obtenção dos ditos “recursos humanos” por meios jurídicos de direito privado, não tem o grau de autonomia dos restantes empregadores na selecção e recrutamento. Mesmo para estabelecer relações regidas pelo direito laboral comum, a lei estabelece com frequência um procedimento destinado a tornar efectivo o conjunto de regras de direito público a que deve obedecer. Com efeito, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, aplicam-se ao estabelecimento de relações de trabalho na Administração Pública, independentemente da natureza pública ou privada da vinculação, as regras do art.º 47.º, n.º 2, da Constituição, que impõe a igualdade de condições no acesso ao emprego, a publicitação da oferta de emprego e a garantia de imparcialidade na apreciação dos candidatos, assegurada pela fundamentação da decisão de contratar (cfr. ac. do TC n.º 61/2004 e jurisprudência nele citada). É para garantia do respeito por esta vinculação fundamental da Administração no acesso ao emprego público e não como instrumento de mera salvaguarda do direito geral dos trabalhadores à igualdade no acesso ao mercado do trabalho (cfr. Art.º 24.º do Cod. do Trabalho) que o legislador torna obrigatório o procedimento de recrutamento e selecção em causa.


Assim, o litígio a que a acção respeita insere-se na relação jurídica de direito administrativo que no âmbito deste procedimento concursal (lato sensu) se estabelece entre o ente público obrigado à abertura do procedimento em razão dessa qualidade e os candidatos que se apresentem (uma relação potencialmente poligonal) e não na relação contratual de direito privado entre cada trabalhador médico e o estabelecimento público em que serve.


Tanto basta para concluir que a resolução dos litígios respeitantes aos procedimentos de seleção para contratação de pessoal médico em regime de contrato individual de trabalho cabem no âmbito da jurisdição administrativa ao abrigo das als. a) e e) do n.º 1, não sendo dela excluídos pela al. d) do n.º 3, do art.º 4.º do ETAF (red. então vigente, actualmente al. d) do n.º 4 do art.º 4).


E não convence a objecção de que também os contratos privados podem ser precedidos de concurso ou de um procedimento mais ou menos formalizado de escolha do contraente. Isso é exacto, mas nesses casos a opção pelo procedimento concursal resulta juridicamente de uma manifestação da autonomia privada do contraente, segundo a avaliação que faça do que lhe é mais vantajoso, e não de uma imposição legal cuja observância é imposta ao ente público nessa qualidade de empregador público e para salvaguarda de um interesse diferenciado do interesse imediato de provisão com “recursos humanos” (os princípios fundamentais do emprego público).


No mesmo sentido, no Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 13/10/2021, proferido no processo n.º 02140/21.3T8PRT.S17 expende-se: “O pedido de anulação formulado nesta acção tem como causas de pedir vícios que o autor atribui ao procedimento de concurso (…); o pedido de condenação à prática de acto administrativo devido assenta nessa anulação.


Não se trata, portanto, de um litígio entre o autor e a ré que decorra de um contrato de trabalho, não valendo assim a exclusão da jurisdição administrativa e fiscal constante da al. b) do n.º 4 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.”.


Ainda no mesmo sentido, atente-se no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 19/04/2022, processo n.º 03880/21.2T8VFR.S18:


Ensinava Diogo Freitas do Amaral9 que a relação jurídica de direito administrativo “é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração”.


Ora, conforme se sintetizou, o objeto da lide não é a constituição, validade ou manutenção do vínculo contratual que une o autor e a ré, mas antes a pretendida efetivação de um direito legal que afirma emergir diretamente do procedimento (concurso) de recrutamento levado a cabo pela ré para a contratação de pessoal técnico superior nas áreas de diagnóstico e terapêutica para a categoria de técnico especialista do mapa de pessoal do CHVNG/Espinho. O direito que, amparando-o no invocada ingresso, ope legis, em 1.º lugar em lista de reserva de recrutamento, lhe permite preencher a vaga entretanto ocorrida.


E, note-se que o autor vem expressamente impugnar o que designa de “ato administrativo”, apontando ao indeferimento do seu pedido, além do mais, o vício de violação do princípio da legalidade subjacente ao procedimento concursal de recrutamento contido nos arts. 3.º do CPA e 266.º, n.º 2, da CRP.


Conclui-se assim que a questão a dirimir, tal como vem configurada na petição inicial, emerge de uma relação jurídico-administrativa e visa a anulação de um ato administrativo de um EPE. Pelo que, nos termos do art.º 4.º n.º 1 al.ª a) do ETAF, é aos tribunais da jurisdição administrativa que compete conhecer da pretensão de justiça perseguida pelo autor com a ação em causa.

7. Dispositivo:


Pelo exposto, o Tribunal de Conflitos decide resolver o vertente conflito negativo atribuindo aos Tribunais da Jurisdição Administrativa e Fiscal, - concretamente ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Aveiro – Unidade Orgânica 1, - a competência material para conhecer da ação intentada nestes autos pelo autor AA contra o CHVNG/Espinho, E.P.E.


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Não são devidas custas – art. 5.º n.º 2, da Lei n.º 91/2019, de 04 de setembro.


Lisboa, 17 de abril de 2024. - Nuno António Gonçalves (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.

1. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/00026a026bf60a4e802583440035ed00

2. https://dre.tretas.org/dre/207273/decreto-lei-50-A-2007-de-28-de-fevereiro

3. https://dre.tretas.org/dre/4341265/aviso-extrato-19851-E-2020-de-7-de-dezembro

4. https://dre.tretas.org/dre/4150134/portaria-154-2020-de-23-de-junho

5. https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/aviso/10016-2021-164166294

6. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/-/C8A840895BFDFC1E802580AD003BEEE5

7. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/2d2ee51d6766c0e48025877e00246c84

8. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/0258d7e118693f868025883800375932

9. “Direito Administrativo”, volume III, Lisboa, 1989, pág. 439.