Acórdãos T CONFLITOS

Acórdão do Tribunal dos Conflitos
Processo:02587/23.0T8SXL.S1
Data do Acordão:04/17/2024
Tribunal:CONFLITOS
Relator:NUNO GONÇALVES
Descritores:CONFLITO DE JURISDIÇÃO
Sumário:Compete ao tribunal cível da jurisdição comum conhecer de litígio emergente de um contrato de fornecimento de água em que um particular pede a anulação de liquidação de consumos.
Nº Convencional:JSTA000P32205
Nº do Documento:SAC2024041702587
Recorrente:CONSTRUÇÕES NORTE-SUL, LDA
Recorrido 1:AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 2:SEIXAL - MUNICÍPIO
Votação:UNANIMIDADE
Área Temática 1:*
Aditamento:
Texto Integral: *

Conflito negativo de jurisdição


**

1. Relatório:

Construções Norte-Sul, Lda, citada no processo executivo com o n.º ......23 que corre termos no Serviço de Finanças ..., invocando o disposto nos artigos 99.º e 102.º do Código de Procedimento e Processo Tributário/CPPT, apresentou em 10/04/2023, para ser presente ao Tribunal Administrativo e Fiscal/TAF de Almada, impugnação judicial contra a Autoridade Tributária e Aduaneira e o Município do Seixal, peticionando: ----

- a anulação do “ato administrativo que determinou a instauração da presente ação executiva, bem como os juros apurados, com as demais consequências legais” e;

- a restituição à impugnante do valor “de € 1.302,38, que, entretanto, pagou, de forma a evitar a prossecução da instância executiva, mas cujos fundamentos não aceita nos termos acima melhor explanados, acrescido dos juros compensatórios”;

O TAF de Almada – Unidade Orgânica 2, por despacho de 29/05/2023, determinou a notificação da impugnante para vir indicar expressamente qual o ato ou atos impugnados, “devendo apresentar petição inicial aperfeiçoada em conformidade, sob pena de rejeição liminar da ação”.


Notificada, a impugnante apresentou petição aperfeiçoada, indicando que o objeto da impugnação é a liquidação indevida, pela Câmara Municipal do Seixal, de taxas de fornecimento de água, no armazém sito na Rua ..., respeitantes ao período compreendido entre 08/06/2022 e 09/12/2022.


Aquele TAF, por decisão de 10/07/2023, julgou-se materialmente incompetente para conhecer da impugnação, atribuindo a competência à jurisdição comum, rejeitando liminarmente a ação.


Motivando o assim decidido, entendeu que a matéria dos autos, por se tratar de litígio emergente de um contrato de fornecimento de água, está excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, de acordo com a al. e) do n.º 4 do art. 4.º do ETAF.


TAF que, deferindo requerimento da impugnante, por despacho de 04/10/2023, determinou a remessa do processo ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local Cível do Seixal.


Onde foi distribuído ao Juiz 1 que, por decisão de 17/11/2023, julgando-se materialmente incompetente para conhecer da causa e atribuindo a competência à jurisdição administrativa e fiscal, rejeitou liminarmente a ação.


Para tanto entendeu que, de acordo com o objeto delineado na petição, a autora pretende a anulação de um ato que configura como administrativo, de liquidação indevida pela Câmara Municipal do Seixal de uma taxa de fornecimento de água, respeitante ao período de 08/06/2022 a 9/12/2022.


Juízo local cível que, oficiosamente, suscitou a resolução do conflito negativo de jurisdição.


Remetidos os autos ao Tribunal dos Conflitos, o réu Município do Seixal pronunciou-se pela atribuição da competência à jurisdição comum.

2. parecer do Ministério Público:


O Digno Procurador-geral Adjunto, na vista a que alude o art. 11.º, n.º 4, da Lei n.º 91/2019, de 4 de setembro, pronuncia-se no sentido de o conflito se resolver com a atribuição da competência para conhecer desta ação ao Juízo Local Cível do Seixal (J1) do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.

3. conflito a resolver:


No caso, dois tribunais de diferente jurisdição – um da administrativa e fiscal, o outro da ordem dos tribunais comuns – por decisão transitada em julgado, recusaram a competência material própria para conhecer da impugnação judicial apresentada nestes autos pela executada fiscal no processo inicialmente identificado, atribuindo-a ao outro.


A resolução do conflito foi suscitada, legítima e oficiosamente, por um dos tribunais.


Este Tribunal é o competente para a resolução de conflitos de jurisdição entre tribunais daquelas duas ordens.


Não há questões prévias que devam conhecer-se.


*


Cumpre, assim, em julgamento, definir se a competência em razão da matéria para a apreciação desta causa caberá aos tribunais da jurisdição administrativa ou aos tribunais da jurisdição comum.

4. Fundamentação:

a. da jurisdição:


Da arquitetura constitucional e do quadro orgânico, estatutário e adjetivo que a desenvolve, resulta que aos tribunais judiciais comuns está a atribuída a denominada competência residual. Que, na expressão do legislador, se traduz no poder-dever de conhecer das “causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.


Resulta ainda que na ordem dos tribunais judiciais comuns, aos juízos cíveis compete conhecer das causas que não estejam atribuídas a tribunais ou juízos “dotados de competência especializada”.


E que na ordem dos tribunais administrativos e fiscais, a competência residual para dirimir “litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais” recai nos tribunais administrativos


Segundo José Carlos Vieira de Andrade1na falta de uma clarificação legislativa, parece-nos que será porventura mais prudente partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica administrativa” no sentido estrito tradicional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a administração. (…)


A determinação do domínio material da justiça administrativa continua, assim, a passar pela distinção material entre o direito público e o direito privado, uma das questões cruciais que se põem à ciência jurídica.


(…) se têm de considerar relações jurídicas públicas (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.


Para Diogo Freitas do Amaral2, a relação jurídica de direito administrativo “é aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração”.

b. da competência:


Dispõe o art. 1.º, n.º 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais/ETAF (na redação introduzida pela Lei n.º 114/2019, de 12 de setembro) que, “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”.


A Lei n.º 114/2019 de 12 de setembro, aditou uma alínea, a e), ao n.º 4 do art. 4º do ETAF, através da qual veio excluir do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal “A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”.


Na Exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 167/XIII3, da qual veio a resultar a referida Lei n.º 114/2019, justificou-se que “A necessidade de clarificar determinados regimes, que originaram inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclareça-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.


Nos termos do art. 38.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, “A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei” (no mesmo sentido veja-se o art.º 5.º do ETAF).


Tanto pela data dos consumos de água que a impugnante questiona como pela data da apresentação da impugnação, é-lhe aplicável o estabelecido no art. 4.º, n.º 4, al. e), do ETAF, na redação decorrente da Lei n.º 114/2019.

c. apreciação:


É entendimento sedimentado e tem sido sustentado por este Tribunal, como foi no Acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 08/11/2018, proferido no processo n.º 020/18 - que “a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…)


A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável - ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].4.


No caso dos autos, ainda que peticione a anulação de “ato administrativo”, a impugnante insurge-se, verdadeiramente, contra o que alega ser uma cobrança por valores indevidos realizada pela Câmara Municipal do Seixal (com quem celebrou um contrato de fornecimento de água) a título de consumos de água.


Na verdade, apesar de convocar legislação referente às bocas de incêndio, em causa está apenas a liquidação indevida de consumos de água que a impugnante alega não ter realizado, referentes ao período compreendido entre 08/06/2022 e 09/12/2022.


Está assente na jurisprudência deste Tribunal dos Conflitos que compete aos tribunais da ordem judiciária comum conhecer das causas em que tenham por objeto questões de fornecimento de água.


Assim, no Acórdão de 18/01/2022, prolatado no processo n.º 02941/21.2T8ALM.S15, versando sobre questão idêntica à que aqui está em discussão, expendeu-se: “I - A presente oposição, enquanto se dirige contra a cobrança coerciva de fornecimento de água, respeita à prestação de serviços essenciais, na acepção da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho.


II - Não obstante tratar-se do fornecimento por uma entidade pública, no exercício das atribuições que legalmente lhe são deferidas, e estar em causa uma taxa unilateralmente fixada como contrapartida do serviço, a competência para conhecer a oposição encontra-se subtraída à jurisdição administrativa e fiscal pela al. e) do n.º 4.º do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que foi acrescentada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, lei posterior ao n.º 1 do artigo 151.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário.


III - Compete, portanto, aos Tribunais Judiciais a correspondente apreciação, tendo em conta a respectiva competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei n.º 62/2013).


Jurisprudência reafirmada no acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 01/03/2023, tirado no processo n.º 01301/22.2T8SRE.S16, justificada nos termos seguintes: “7. Este Tribunal dos Conflitos também já teve a oportunidade de afirmar que está em causa, nestas situações, “A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais”, condição necessária à sua inclusão na versão actual da al. e) do n.º 4 do artigo 4.º.


Assim, no acórdão de 13 de Setembro de 2021, www.dgsi.pt, escreveu-se:


“(…) a Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, consagra as regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à proteção do utente. Entre os serviços públicos abrangidos encontra-se o serviço de fornecimento de água (n.º 2, alínea a), do mesmo diploma). Coloca-se então a questão de saber se deve entender-se que, nesta acção, está ou não em causa um litígio correspondente à prestação de serviços públicos essenciais, na acepção da Lei n.º 23/96. Ora, no acórdão de 17 de Fevereiro de 2021 do Supremo Tribunal Administrativo, disponível em www.dgsi.pt, proc. n.º 01685/18.7BEBRG, entendeu-se que «a ligação à rede pública de saneamento, como acto prévio ao serviço a prestar, não assume a qualificação de serviço público essencial, daí não lhe ser aplicável a Lei n.º 23/96, de 26 de Julho» e que «uma coisa é a ligação ao sistema público de saneamento, facturada uma única vez ao utilizador, ocorrida antes do início da utilização, outra, a prestação do serviço de recolha de águas residuais que são facturadas aos utilizadores, de forma periódica (artigo 67.º do Dec. Lei n.º 194/2009, de 20 de Agosto – que estabelece o regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos) (…)”.


8. Conclui-se, portanto, que a presente oposição, enquanto se dirige contra a cobrança coerciva de fornecimento de água, saneamento de águas residuais e gestão de resíduos urbanos respeita à prestação de serviços essenciais, na acepção da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho. Não obstante tratar-se do fornecimento por uma entidade pública, no exercício das atribuições que legalmente lhe são deferidas, e estar em causa uma taxa unilateralmente fixada como contrapartida do serviço, a competência para conhecer a oposição encontra-se subtraída à jurisdição administrativa e fiscal pela citada al. e) do n.º 4.º do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, que foi acrescentada pela Lei n.º 114/2019, de 12 de Setembro, lei posterior ao n.º 1 do artigo 151.º do Código do Procedimento e do Processo Tributário.


Compete, portanto, aos Tribunais Judiciais a correspondente apreciação, tendo em conta a respectiva competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição e n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013).”.


Jurisprudência cujos fundamentos aqui se reiteram.


Em consequência do que, aplicada ao caso, se conclui que competente para conhecer da ação que está em causa é o tribunal cível da ordem judiciária dos tribunais judiciais comuns.

5. dispositivo:


Pelo exposto, o Tribunal de Conflitos acorda em, resolvendo o vertente conflito negativo, atribuir à jurisdição dos tribunais judiciais comuns, nos termos do art. 4.º, n.º 4, alínea e) do ETAF,– concretamente ao Juízo local cível do Seixal -Juiz 1, do Tribunal judicial da comarca de Lisboa - a competência material para conhecer da impugnação/ação intentada por Construções Norte-Sul Lda., contra o Município do Seixal (e a Autoridade Tributária e Aduaneira).


Não são devidas custas – art. 5.º n.º 2, da Lei n.º 91/2019, de 04 de setembro.


Lisboa, 17 de abril de 2024. - Nuno António Gonçalves (relator) - Teresa Maria Sena Ferreira de Sousa.

1. “A Justiça Administrativa” 17.ª Edição, Almedina, 2019, pág. 49.

2. “Direito Administrativo”, volume III, Lisboa, 1989, pág. 439.

3. https://app.parlamento.pt/webutils/docs/doc.pdf?path=6148523063446f764c324679626d56304c334e706447567a4c31684a53556c4d5a5763765247396a6457316c626e527663306c7561574e7059585270646d45764d474d304f474578597a55744d574d314e6930304d5759794c57493359574d744e47453459544a6b4f575a6d4f545a6c4c6d527659773d3d&fich=0c48a1c5-1c56-41f2-b7ac-4a8a2d9ff96e.doc&Inline=true

4. http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/00026a026bf60a4e802583440035ed00

5. https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/180d09d454a747bc802587f40054dd9b

6. https://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/9547590f6776a44a8025896c006faf1c