Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3006/21.2T8CSC.L1-7
Relator: RUTE LOPES
Descritores: ARRENDAMENTO
CONTRATO
REDUÇÃO A ESCRITO
PROVA
MORTE DO ARRENDATÁRIO
CADUCIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 - De acordo com o disposto no artigo 1069.º n.º 1, do Código Civil, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 13/2019, de 12/2, o contrato de arrendamento deve ser celebrado por escrito.
2 – Quando não seja imputável ao arrendatário a falta de redução a escrito do contrato de arrendamento, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses (n.º 2, do artigo 1069.º).
3 – Cabe ao locatário que pretenda beneficiar do regime previsto no artigo 1069.º, n.º 2, do Código Civil demonstrar que a falta de forma não lhe é imputável.
4 – Sem prejuízo, o locatário pode ainda demonstrar a celebração do contrato por qualquer meio, nos termos do artigo 364.º, n.º 2, do Código Civil, por a formalidade aludida no artigo 1069.º, n.º 2 ser meramente ad probationem.
5 - Estando em causa contrato de arrendamento anterior ao NRAU, aplica-se à transmissão por morte o regime transitório decorrente do artigo 57.º do NRAU, de acordo com o qual o contrato de arrendamento para habitação apenas se transmite – não caducando – por morte do primitivo arrendatário.
6 – Não há lugar a renovação do contrato de arrendamento caducado, nos termos do artigo 1056.º, do Código Civil quando a causa da caducidade seja a morte do locatário, por dois motivos fundamentais: i) porque existe um regime próprio de caducidade, aplicável às situações por morte do arrendatário; ii) porque se o locatário morrer, dando causa à caducidade do arrendamento não pode, naturalmente, manter-se no gozo do locado para efeitos de operar a renovação do contrato, como preceitua o artigo 1056.º, do Código Civil.
7 - E porque o artigo 1056.º do Código Civil apenas se aplica ao arrendatário, não pode o terceiro que permaneça no locado beneficiar da não caducidade por inércia do locador
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: DECISÃO OBJETO DE RECURSO: Sentença do tribunal de primeira instância que julgou  a ação procedente e improcedente o pedido reconvencional, condenando a ré a restituir a fração identificada nos autos aos autores e a pagar-lhes uma indemnização no valor 600 EUR (seiscentos euros) por mês, contabilizada desde a citação até à efetiva restituição/entrega da fração e descontando-se os valores que a mesma já tenha pago, bem como juros de mora à taxa legal civil, desde a data da citação e até à data da efetiva restituição do andar/imóvel.

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
1 Os autores/ora apelados interpuseram a presente ação contra a ré/ora apelante pedindo, que:
a) seja declarado que a fração autónoma identificada no artigo 1.° da petição inicial é propriedade dos autores;
b) seja a ré e quem mais ocupe a fração condenados a restituírem-na imediatamente aos autores livre e devoluta de pessoas e bens;
c) seja a ré condenada a pagar uma indemnização nunca inferior a 600 EUR (seiscentos euros) por mês, contabilizado desde o dia 30 de junho de 2021 (data do termo do regime extraordinário e transitório de proteção dos arrendatários, de acordo com o disposto na alínea b) do n.° 1 do artigo 8.° da Lei n.° 1-A/2020, de 19 de  março) até à efetiva restituição/entrega da fração autónoma identificada no artigo 1.° da petição inicial, livre e devoluta de pessoas e bens;
d) seja a ré condenada a pagar juros de mora, calculados à taxa legal civil, desde a data da citação e até à data efetiva da restituição do andar/imóvel.
2 Alegaram ser proprietários e legítimos possuidores da fração autónoma designada pela letra "C”, correspondente ao primeiro andar direito do prédio urbano sito (…) na freguesia de Carcavelos, Concelho de Cascais, relativamente ao qual foi celebrado, em abril de 1971, contrato de arrendamento com PH...
3 Que na sequência do falecimento de PH, a 21 de abril de 1987, o direito ao arrendamento transmitiu-se a IR.., enquanto cônjuge sobreviva.
4 Que, na sequência do falecimento de IR…, no dia 21 de fevereiro de 2017, o contrato de arrendamento transmitiu-se ao filho do primitivo arrendatário e marido da Ré por com ela conviver e ser portador de incapacidade igual ou superior a 60%.
5 Que JH, marido da Ré faleceu a 16 de maio de 2020, pelo que caducou o contrato de arrendamento, tendo-se a ré, não obstante, recusado a entregar a fração autónoma objeto dos presentes autos.
6 Que tal situação tem vindo a causar grandes incómodos e graves prejuízos aos Autores, que estão impedidos de usufruir e dispor da fração autónoma, identificada no artigo 1.° da presente petição inicial, da qual são proprietários, não obstante a ré  continuar a depositar mensalmente o valor de 210,90 EUR.
7 A ré contestou invocando que na sequência do falecimento de IR foi celebrado novo contrato de arrendamento com o cônjuge da ré, filho dos primitivos arrendatários, o qual não foi reduzido a escrito, razão pela qual, em 16 de maio de 2020, aquando do falecimento do cônjuge da ré não operou a caducidade do contrato de arrendamento com este celebrado em 2017, mas manteve-se o mesmo em vigor, transmitindo-se à cônjuge que continuou a pagar a renda. Pediu, a título reconvencional,  que assim seja reconhecido.
8 Após julgamento, o tribunal de primeira instância proferiu sentença, julgando procedente a ação e improcedente o pedido reconvencional, e condenando a ré nos seguintes termos:
a) Declaro que a fração autónoma identificada no artigo 1.° da petição inicial é propriedade dos Autores MJ e FA;
b) Condeno a Ré MC a restituir imediatamente a fração aos Autores livre e devoluta de pessoas e bens;
c) Condeno a Ré ao pagamento de uma indemnização no valor 600 EUR (seiscentos euros) por mês, contabilizado desde a citação até à efetiva restituição/entrega da fração autónoma identificada no artigo 1.° da petição inicial, livre e devoluta de pessoas e bens descontando-se os valores que a mesma já tenha pago.
d) Condeno ainda a Ré no pagamento de juros de mora, calculados à taxa legal civil, desde a data da citação e até à data da efetiva restituição do andar/imóvel, identificado no artigo 1.° da petição inicial, livre e devoluto de pessoas e bens;
9 A ré/apelante, inconformada com a decisão do tribunal de primeira instância, recorreu. Concluiu as alegações, em suma, da seguinte forma:
CONCLUSÕES DA APELANTE
A- A sentença enferma do vício da nulidade, atento o que decorre do artigo 607.º, n.ºs 3 e 5, em conjugação com o artigo 615.º, n.º 1, al d), porquanto fez uma incorreta apreciação da matéria de facto e, consequentemente, tal interpretação veio a refletir-se na aplicação do direito e na deficiente fundamentação da decisão recorrida.
B- Apesar da prova produzida quanto ao pagamento da renda pela Ré, e aceitação desta pelos autores, tal facto é vertido de modo pouco claro e como tal deve ser alterado (Facto 22.), reapreciada a prova produzida em julgamento, pelo que deve, como resultado da audição dos excertos dos depoimentos transcritos, ser modificada a decisão sobre a matéria de facto dada como provada e não provada, alterando-se o Facto 22. dos factos provados que deve passar a ter a seguinte redação: "22. A Ré continua a depositar mensalmente o valor de 210,90 EUR (duzentos e dez euros e noventa cêntimos), por transferência bancária para a conta indicada pelos autores, pagamentos que faz a título de renda e que nunca lhe foram recusados pelos autores."
C - Em relação aos factos não provados, destes deve constar o facto 25. dos factos provados, pois como decorre do depoimento da testemunha LF, que não foi feita prova bastante quanto ao mesmo, devendo pois ser acrescentado no elenco dos factos não provados e suprimido dos factos provados.
D- A Ré, considerando que se encontrava dentro dos requisitos previstos no artigo 1106.º do Código Civil, cumpriu, dentro dos prazos previstos legalmente, com a comunicação do óbito do arrendatário aos autores, bem como os informou da sua pretensão de manter o arrendamento, por transmissão, como decorre do artigo 1106.º do Código Civil, por considerar tratar-se de um contrato celebrado após a vigência do NRAU.
D - Não se aplicam in casu as normas invocadas pelos autores, que estabelecem o regime transitório a aplicar a contratos celebrados antes da vigência da Lei 6/2006, de 27 de fevereiro na sua versão em vigor (NRAU), considerando que a oposição dos autores à transmissão do contrato de arrendamento para a ré não lhe é oponível, por aplicação do que dispõe o artigo 1106.º, n.º 1, al. b) do Código Civil.
E - Tendo a ré procedido ao pagamento pontual das rendas, na conta bancária indicada pelos senhorios, aqui autores, os quais nunca recusaram tal recebimento até à presente data, entendemos que o ato de receber a renda da ré, reiteradamente, desde a data do óbito de seu marido até à presente, faz improceder a ação de reivindicação no que respeita à restituição do imóvel.
F - Os autores, ao aceitarem e não recusarem os pagamentos da ré, que sempre foram efetuados a título de renda pela fração reivindicada, tacitamente reconheceram o direito da ré a ver transmitido o direito ao arrendamento, nos mesmos termos em que vigorava com o anterior arrendatário, o seu cônjuge.
G - Pelo que a ação devia ter sido julgada improcedente, concluindo pela procedência do pedido reconvencional da ré, reconhecendo à ré o direito de transmissão do arrendamento por morte de seu marido.
H – Os autores não provaram a ocupação abusiva por parte da ré do imóvel,  pois que não recusaram receber o valor das rendas, valor que aceitaram e fizeram seu.
I - Quanto ao pedido de indemnização/compensação, e considerando o acima expendido em relação à posse da ré, que não pode considerar-se abusiva, merece censura a douta sentença recorrida, pois, não tendo os autores concretizado e provado a existência de danos pela alegada ocupação indevida da ré, e segundo um critério de equidade, tanto mais que ficou provada a fragilidade económica da ré, o quantum a fixar a título de indemnização deveria ser o valor da renda mensal e não outro, atento o que dispõe o artigo 566.º, n.º 3 do Código Civil.
J -  Não se apuraram prejuízos concretos decorrentes da atuação da ré, pelo que deveria ser este o critério a aplicar, sem conceder quanto as razões que esta entende que lhe assistem na manutenção do seu direito ao arrendamento.
K - A Mma. Juiz do tribunal a quo, ao fixar o valor de 600 EUR mensais, como montante indemnizatório a pagar pela ré, violou a norma contida no artigo 566.º, n.º 3, Código Civil, pelo que tal decisão merece censura e deve ser revogada.
10 Os apelados responderam ao recurso, pugnando pela manutenção da sentença.
OBJETO DO RECURSO
11 O objeto do recurso é delimitado pelo requerimento recursivo, podendo ser restringido, expressa ou tacitamente pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC). O tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC).
12 À luz do exposto, o objeto deste recurso consubstancia-se em analisar e decidir o seguinte:
1) Nulidade – artigo 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil.
2) Impugnação da matéria de facto;
3) Erro de julgamento quanto à caducidade do contrato de arrendamento – com reflexo no pedido reconvencional;
4) Erro de julgamento quanto à obrigação de indemnizar.
FUNDAMENTOS DE FACTO
13 Com interesse para a decisão importa considerar o que resulta descrito no relatório que antecede, a que acrescem os seguintes factos, que o tribunal decidiu julgar provados.
FACTOS JULGADOS PROVADOS PELO TRIBUNAL A QUO
1. Os Autores são proprietários e legítimos possuidores da fração autónoma designada pela letra "C" (…), sita na freguesia de Carcavelos, concelho de Cascais, descrito na 2.â Conservatória do Registo Predial de Cascais.
2. A aquisição a favor dos Autores, encontra-se inscrita, mediante a Apresentação n.º…
3. Em de 1 de abril de 1971, o Sr. LC, na qualidade de proprietário, celebrou com o Sr. PH, falecido sogro da Ré, enquanto arrendatário, o contrato de arrendamento da fração autónoma devidamente identificada no artigo primeiro da presente petição inicial, para habitação própria e permanente, pelo prazo seis meses, com início em 1 de abril de 1971 e termo a 30 de setembro de 1971, sucessivamente renovado por iguais períodos de tempo, junto como Doc. n.° 3 com a PI.
4. Foi convencionada a renda de 1.750$00 (mil setecentos e cinquenta escudos), correspondente a 8,73 EUR  (oito euros e setenta e cinco cêntimos), a qual devia ser paga adiantadamente em casa do senhorio ou seu representante, no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que a renda dissesse respeito, ultimamente a ser paga por depósito e/ou transferência bancária.
5. Essa renda inicial, mercê das atualizações legais que foi sofrendo ao longo dos anos, cifrava-se no mês de maio do ano de 2020, no montante de 210,90 EUR (duzentos e dez euros e noventa cêntimos).
6. O local arrendado foi a casa de morada de família do Sr. PH e de sua mulher, IR, até à data do óbito daquele que ocorreu a 21 de abril de 1987 (Doc. n.° 4 junto com a PI).
7. O local arrendado foi também a casa de morada de família do filho destes, JH e de sua esposa, a ora Ré, e onde viveu com o seu agregado familiar.
8. Aquando do óbito do Sr. PH, em 21 de abril de 1987, já Ré e o seu marido residiam no locado.
9. Situação que se manteve ao longo dos anos em que a Sra. D. IR sobreviveu ao seu cônjuge, isto é, desde abril de 1987 até fevereiro de 2017, data em que veio a falecer.
10. Em consequência do óbito do primitivo arrendatário, nos termos do disposto no artigo 1111.° do Código Civil, na redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.° 328/81, de 4 de fevereiro, e em vigor no ano de 1987, o direito ao arrendamento transmitiu-se à Sra. D. IR, enquanto cônjuge sobreviva, com residência no local arrendado.
11. Por sua vez, a cônjuge do primitivo arrendatário, Sra. D. IR, vem a falecer no dia 21 de fevereiro de 2017 (Doc. n.° 5 junto com a PI).
12. Na sequência do óbito da cônjuge do primitivo arrendatário, Sra. D. IR, e de acordo com o disposto na alínea e) do n.° 1 do artigo 57.° da Lei n.° 6/2006 de 27 de fevereiro, na redação dada pelas Leis n.° 31/2012 de 14 de agosto e n.° 79/2014 de 19 de dezembro, o contrato de arrendamento, mencionado nos artigos antecedentes, transmitiu-se ao filho do primitivo arrendatário e marido da Ré, Sr. JH, por residir com sua Mãe cônjuge do primitivo arrendatário, no locado conjuntamente com o seu agregado familiar, há mais de um ano e ser portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade permanente global de 60% (definitivo), conforme atestado médico de incapacidade multiuso, emitido em 22 de junho de 2017, junto com a PI como Doc. n.° 6.
13. O arrendatário subsequente/transmissário, Sr. JH, marido da Ré, vem a falecer a 16 de maio de 2020 (Doc. n.° 7 junto com a PI).
14. O óbito do arrendatário subsequente/transmissário, Sr. JH, foi comunicado aos Autores, através de email datado de 3 de junho de 2020, enviado pelo filho daquele e da Ré, Sr. PA.H junto com a PI como Doc. n.° 8.
15. Em resposta à comunicação do óbito do filho do primitivo arrendatário e marido da Ré, a mandatária dos Autores e signatária da petição inicial, através de carta registada com aviso de receção, datada de 18 de junho de 2020, informou a Ré, que o contrato de arrendamento, mencionado em 3., caducou para todos os efeitos legais, conforme teor que se reproduz:
Exma. Senhora D. MC
Registada com aviso de receção
Assunto: Comunicação do óbito do arrendatário subsequente / transmissário, Sr. JH, da fração autónoma designada pela letra “C", em Carcavelos.
M/Constituinte - Sra. D. MC
Exma. Senhora, Serve a presente para, em representação da minha Constituinte, Sra. D. MC, acusar a receção do pdf do Assento de Óbito do Sr. JH, ocorrido a 16 de Maio de 2020, enviado por mail a 3 de Junho de 2020.
Acontece que, o Sr. JH já era arrendatário subsequente/ transmissário, pelo que de acordo com a conjugação do disposto nos artigos 26.° n.° 2, 28.° e 57.° do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.° 6/2006 de 27 de Fevereiro, com a redação atual, a transmissão por morte dos primitivos arrendatários só se pode verificar uma única vez, e não sucessivamente.
No regime transitório acima referido, não existe a possibilidade da transmissão do arrendamento a favor de V. Exa., na qualidade de nora do arrendatário primitivo.
Desta forma, o contrato caducou por morte do Sr. JH, arrendatário subsequente/transmissário.
Assim, e de acordo com o disposto na d) do artigo 1051.° e do artigo 1053.°, ambos do Código Civil, o arrendamento em causa caducou por morte do arrendatário subsequente/ transmissário, Sr. JH, e em consequência a fração autónoma deverá ser entregue/restituída, livre e devoluta de pessoas e bens, até ao dia 15 de Novembro de 2020, ou seja, no prazo de seis meses da verificação do facto que determinou a caducidade do contrato de arrendamento.
Fico a aguardar contacto, para se agendar a entrega/restituição da fração autónoma e das respetivas chaves.
Sem outro assunto de momento, subscrevo-me.
(...) (Does. n.es 9,10 e 11 juntos com a PI).
16. A Ré, através da sua mandatária, enviou email à I. mandatária dos Autores em 14 de setembro de 2020, cujo conteúdo aqui se reproduz:
Exma. Colega,
Venho junto de V. Exa. solicitar a v. melhor atenção no sentido de esclarecer a situação da m. constituinte.
Pretende a Sra. D. MC manter o contrato de arrendamento, assumindo a posição contratual do seu cônjuge no contrato em apreço.
Para tal apresentou atempadamente a certidão do óbito de seu marido, o Sr. JH, titular do arrendamento - o qual sofreu alterações e se considera celebrado no âmbito do NRAU.
Nesta conformidade, e contrariamente ao referido por V. Exa. na comunicação em resposta à carta onde foi comunicado o óbito do Sr. JH, entendemos que o contrato em apreço se transmite à sua cônjuge, a m. constituinte, até porque, como decorre dos recibos de renda, se trata de arrendamentos distintos, como decorre dos recibos de renda. (Cfr. n°s do contrato) Não se aceita, por isso, que tenha operado a caducidade do contrato de arrendamento pelo que sou a comunicar a posição da m. constituinte: A Sra. D. MC pretende fazer valer os direitos que entende assistirem-lhe no caso presente.
Certa da v. melhor atenção e da compreensão da v. constituinte, venho solicitar o contacto no sentido de encontrarmos, em conjunto, uma solução que acautele os interesses de ambas as partes.
Para melhor identificação do assunto envio: Procuração; cópia da V. comunicação; cópia dos recibos da renda.
Subscrevo-me com os meus melhores cumprimentos,
A colega atenta e ao dispor
17. A Ré recusou-se a proceder à entrega da fração autónoma objeto dos presentes autos.
18. A mandatária dos Autores informou a Advogada da Ré, em 4 de novembro de 2020, que atendendo à situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, a fração autónoma objeto dos presentes autos, deveria ser entregue até 31 de dezembro de 2020, conforme dispõe a alínea b) do n.° 1 do artigo 8.° da Lei n.° 1-A/2020, de 19 de março, com a sua redação àquela data, que definiu o regime extraordinário e transitório de proteção dos arrendatários.
19. A 18 de janeiro de 2021, a mandatária dos Autores envia novo email a informar a Distinta a Advogada da Ré, que atento teor da Lei n.° 75-A/2020, de 30 de dezembro, que altera o regime extraordinário e transitório de proteção dos arrendatários - alínea b) do n.° 1 do artigo 8.° da Lei n.° 1-A/2020, de 19 de março - o prazo de entrega dos imóveis, por caducidade do contrato de arrendamento, fica suspensa até 30 de junho de 2021, sendo que por essa razão e para evitar ação de reivindicação de propriedade, solicitou que a Ré, iniciasse diligências para conseguir uma alternativa habitacional até essa data.
20. No seguimento do mencionado email de 18 de janeiro de 2021, no dia 5 de julho de 2021, a mandatária dos Autores, volta ao contacto, via email, com a Distinta Advogada da Ré, a informar que terminou no dia 30 de junho de 2021 o regime de suspensão estabelecido na alínea b) do n.° 1 do artigo 8.° da Lei n.° 1-A/2020, de 19 de março, de acordo com o qual de encontrava suspensa a caducidade dos contratos de arrendamento habitacionais, e para evitar a instauração da ação de reivindicação de propriedade, solicita que a Ré, inicie diligências para conseguir uma alternativa habitacional até ao final do mês de julho de 2021.
21. Através de emails, datados de 13 de julho e de 4 de agosto de 2021, a Distinta Advogada da Ré, informa a mandatária dos Autores que a sua Constituinte vai aguardar o desfecho da ação de reivindicação mantendo-se a habitar o locado.
22. A Ré continua a depositar mensalmente o valor de 210,90 EUR (duzentos e dez euros e noventa cêntimos) pela utilização da fração autónoma objeto dos presentes autos.
23. A Ré, apesar de interpelada pelos Autores, para proceder à restituição/entrega da fração autónoma, identificada em 1. até ao dia 31 de julho de 2021, não o fez o que se mantém até à presente data.
24. Os Autores estão impedidos de usufruir e dispor da fração autónoma, identificada em 1. da qual são proprietários.
25. O valor locativo da fração cifra-se atualmente num valor não inferior a 600 EUR.
FACTOS JULGADOS NÃO PROVADOS PELO TRIBUNAL A QUO
a) Aquando do óbito da Sra. D. IR, foi feito um novo contrato de arrendamento com o marido da R.
b) A Ré encontra-se a habitar o locado a coberto do contrato de arrendamento em vigor, celebrado com o seu marido em 2017, que não foi reduzido a escrito, mas que foi negociado entre as partes.
CONHECIMENTO DO OBJETO DO RECURSO
Enquadramento legal
Artigo 615.º, do Código de Processo Civil
1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
Artigo 640.º, do Código de Processo Civil
«1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil
3 – se não puder ser averiguado o valore exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.
Artigo 1051.º, do Código Civil
O contrato de locação caduca:
a) Findo o prazo estipulado ou estabelecido por lei;
b) Verificando-se a condição a que as partes o subordinaram ou tornando-se certo que não pode verificar-se, conforme a condição seja resolutiva ou suspensiva;
c) Quando cesse o direito ou findem os poderes legais de administração com base nos quais o contrato foi celebrado;
d) Por morte do locatário ou, tratando-se de pessoa coletiva, pela extinção desta, salvo convenção escrita em contrário;
e) Pela perda da coisa locada;
f) Pela expropriação por utilidade pública, salvo quando a expropriação se compadeça com a subsistência do contrato;
g) Pela cessação dos serviços que determinaram a entrega da coisa locada.
Artigo 1056.º, do Código Civil
Se, não obstante a caducidade do arrendamento, o locatário se mantiver no gozo da coisa pelo lapso de um ano, sem oposição do locador, o contrato considera-se igualmente renovado nas condições do artigo 1054º.
Artigo 1068.º, do Código Civil
O direito do arrendatário comunica-se ao seu cônjuge, nos termos gerais e de acordo com o regime de bens vigente
Artigo 1069.º do Código Civil (redação dada pelo Decreto-Lei n.º 13/2019, de 12/2
1. O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito.
2. Na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses.

Artigo 1106.º, n.º 1, do Código Civil
1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de um ano;
c) Pessoa que com ele vivesse em economia comum há mais de um ano.
Artigo 57.º do NRAU
1 - O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário quando lhe sobreviva:
a) Cônjuge com residência no locado;
b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano;
c) Ascendente em 1.º grau que com ele convivesse há mais de um ano;
d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de 1 ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;
e) Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60%.
f) Filho ou enteado que com ele convivesse há mais de cinco anos, com idade igual ou superior a 65 anos, desde que o RABC do agregado seja inferior a 5 RMNA.
2 - Nos casos do número anterior, a posição do arrendatário transmite-se, pela ordem das respetivas alíneas, às pessoas nele referidas, preferindo, em igualdade de condições, sucessivamente, o ascendente, filho ou enteado mais velho.
3 - O direito à transmissão previsto nos números anteriores não se verifica se, à data da morte do arrendatário, o titular desse direito tiver outra casa, própria ou arrendada, na área dos concelhos de Lisboa ou do Porto e seus limítrofes ou no respetivo concelho quanto ao resto do País.
4 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, quando ao arrendatário sobreviva mais de um ascendente, há transmissão por morte entre eles.
5 - Quando a posição do arrendatário se transmita para ascendente com idade inferior a 65 anos à data da morte do arrendatário, o contrato fica submetido ao NRAU, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos.
6 - Salvo no caso previsto na alínea e) do n.º 1, quando a posição do arrendatário se transmita para filho ou enteado nos termos da alínea d) do mesmo número, o contrato fica submetido ao NRAU na data em que aquele adquirir a maioridade ou, caso frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou cursos de ensino pós-secundário não superior ou de ensino superior, na data em que perfizer 26 anos, aplicando-se, na falta de acordo entre as partes, o disposto para os contratos com prazo certo, pelo período de 2 anos.
Artigo 59.º do NRAU
1 - O NRAU aplica-se aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias.
2 - A aplicação da alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º do Código Civil não determina a perda do direito de preferência por parte de arrendatário que dele seja titular aquando da entrada em vigor da presente lei.
3 - As normas supletivas contidas no NRAU só se aplicam aos contratos celebrados antes da entrada em vigor da presente lei quando não sejam em sentido oposto ao de norma supletiva vigente aquando da celebração, caso em que é essa a norma aplicável.

Artigo 60.º do NRAU
1 - É revogado o RAU, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, com todas as alterações subsequentes, salvo nas matérias a que se referem os artigos 26.º e 28.º da presente lei.
2- As remissões legais ou contratuais para o RAU consideram-se feitas para os lugares equivalentes do NRAU, com as adaptações necessárias
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Artigo 527º, nº 1 do Código de Processo Civil
A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.
1. Nulidade – artigo 615.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Civil
14 A apelante invoca nas conclusões que a sentença enferma do vício da nulidade, atento o que decorre do artigo 607.º, n.ºs 3 e 5, em conjugação com o artigo 615.º, n.º 1, al d), porquanto faz uma incorreta apreciação da matéria de facto e, consequentemente, tal interpretação veio a refletir-se na aplicação do direito e na deficiente fundamentação da decisão recorrida.
15 A leitura da alegação da apelante é suficiente per se para afastar a invocada nulidade e reconduzir a questão suscitada a erro de julgamento.
16 O artigo 615.º, nº1, alínea d) do Código de Processo Civil, comina com a nulidade a sentença (ou uma decisão – artigo 613.º, n.º 3, do Código de Processo Civil) proferida sem que o juiz se pronuncie sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença. Isto é, ocorre quando na decisão é desrespeitada uma norma que impõe um determinado  um sentido de atuação processual, do que se distingue do error in judicando, em que o juiz não integra de forma juridicamente correta os factos no direito. Não aplica o direito da forma certa.
17 Neste caso, não se vê que exista questão que devesse ter sido decidida, e não o foi, ou que o tenha sido, sem que o devesse ser.
18 O que a apelante imputa à sentença é ter realizado uma incorreta apreciação da matéria de facto, com reflexo na aplicação do direito. A escolha pela apelante do adjetivo “incorreta” para qualificar a apreciação que o tribunal de primeira instância fez, é sintomática de que o erro que imputa é, na verdade, de julgamento e não de atividade.
19 Improcede, pois, sem necessidade de mais considerações, a nulidade suscitada.
2. Impugnação da matéria de facto
20 Pretendendo a parte impugnar a decisão do tribunal de primeira instância quanto à matéria de facto, nos termos do artigo 640.º, n.º 1, impõe-se-lhe o ónus de:
1) indicar (motivando) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (sintetizando ainda nas conclusões) – alínea a);
2) especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada (indicando as concretas passagens relevantes – n.º 2, alíneas a) e b)), que impunham decisão diversa quanto a cada um daqueles factos – n.º 1, al. b);
3) propor a decisão alternativa quanto a cada dos pontos de discordância – n.º 1, alínea c).
21 É entendimento pacífico da Doutrina e da Jurisprudência que é aqui consagrado um ónus de fundamentação da discordância quanto à decisão de facto proferida, devendo ser justificados os pontos da divergência, o que implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância.
22 Neste caso, mostra-se cumprido o ónus legal, cumprindo apreciar a impugnação da matéria de facto.
facto 22
23 O facto provado sob o n.º 22 tem a seguinte redação:
A Ré continua a depositar mensalmente o valor de 210,90 EUR (duzentos e dez euros e noventa cêntimos) pela utilização da fração autónoma objeto dos presentes autos.
24 E pretende a apelante que passe a ter se seguinte redação:
A Ré continua a depositar mensalmente o valor de 210,90 EUR (duzentos e dez euros e noventa cêntimos), por transferência bancária para a conta indicada pelos autores, pagamentos que faz a título de renda e que nunca lhe foram recusados pelos autores.
25 Não assiste razão à apelante.
26 A formulação pretendida que, aliás, encerra um juízo quanto à não recusa pelos autores, não tem suporte na prova produzida ou é inútil, não havendo, por isso, que a considerar.
27 A apelante pretende com a sua formulação trazer à matéria de facto um juízo acerca da posição dos apelados quanto ao arrendamento (de uma aceitação tácita), que não é compatível com a ação intentada. Ora, se os apelados interpuseram a presente ação, não obstante esses depósitos contínuos da apelante, é precisamente por não concordarem que a apelante tem direito a permanecer no imóvel de que são donos, sendo nessa sede irrelevante o depósito que a apelante decide fazer na conta bancária dos apelados.
28 E nada ficou demonstrado que leve a considerar que alguma vez terão aceite que a apelante permaneça no locado.
29 A prova indicada pela apelante é, mesmo, contrária à solução factual que pretende ver provada.
30 A testemunha PD, que tratava dos aspetos respeitantes ao arrendamento, afirmou que já aquando do falecimento de IR, recebeu indicações para não receber rendas, mas que depois os arrendatários foram depositar as rendas à Caixa Geral de Depósitos. Que os autores apenas acabaram por levantar as rendas e receber as subsequentes, depois da prova de incapacidade do marido da ré.
31 A testemunha foi também adiantando que após o falecimento do marido da ré, os autores deixaram de receber as rendas e assim o transmitiram à ré. Só que a diferença, disse a testemunha “é que agora eles já tinham, portanto, o conhecimento da conta da D. Maria e certamente continuaram, continuaram mesmo, a fazer a transferência, o depósito do montante correspondente ao valor da renda.”
32 A prova que a apelante invoca não suporta, pois, a sua versão. Pelo contrário. Aponta no sentido de uma posição dos autores de não aceitação do pagamento das rendas e que a ré, conhecendo a conta dos autores, fazia o depósito na mesma, à revelia da vontade daqueles.
33 À luz da prova produzida, deve, pois, manter-se o facto provado, nos termos em que o tribunal de primeira instância o considerou.
facto 25
O facto provado sob o n.º 25 tem a seguinte redação:
O valor locativo da fração cifra-se atualmente num valor não inferior a 600 EUR
34 E pretende a apelante que passe a ter-se esta matéria por não provada, invocando que a testemunha que respondeu sobre esta matéria não conhece o interior do imóvel, nem avaliou o seu valor.
35 Não lhe assiste razão.
36 O tribunal fundou a sua convicção no depoimento da testemunha Luís Miguel Fatal, consultor imobiliário, que confirmou que o valor locativo é entre 850 EUR a 1.000 EUR e conjugou tal depoimento com o documento junto com o requerimento referência 44683806, que é precisamente um relatório de avaliação que foi junto pelos autores.
37 O valor locativo de um imóvel é aferido pelo valor de mercado, atenta uma metodologia de avaliação objetiva que, neste caso, e de acordo com o relatório de avaliação junto, considerou as características do imóvel de acordo com a sua descrição predial, a sua localização geográfica, as acessibilidades, o enquadramento urbano e paisagístico, a necessidade de obras de reabilitação, os índices de confiança de consumidor, a oferta e a procura do mercado locativo.
38 O facto provado mostra-se assim devida e fortemente suportado pela prova de natureza documental e testemunhal produzidas, não assistindo razão à apelante.
3. Erro de julgamento – caducidade do arrendamento
3.1. Enquadramento a considerar
39 Importa ter em consideração o seguinte enquadramento factual e cronológico relativamente ao imóvel em causa nos autos:
- Em 1 de abril de 1971, foi celebrado um contrato de arrendamento com PH.
- PH faleceu em 21/4/1987, no estado de casado com IR, com quem vivia.
- IR faleceu em fevereiro de 2017.
- JH e a ré residiam no imóvel arrendado pelos menos à data do falecimento de PH.
- JH era portador de deficiência com grau de incapacidade permanente global de 60% (definitivo).
- JH faleceu no dia 16 de maio de 2020, no estado de casado com a ré, com a qual vivia.
40 Do enquadramento cronológico descrito, é inquestionável concluir que PH, falecido em 21/4/1987, é o primitivo arrendatário do contrato de arrendamento em causa. Não o é também a sua cônjuge, IR, por não ter esta outorgado o contrato, nem à data da celebração do contrato ser comunicável a posição de arrendatário ao cônjuge deste (cf. artigo 1068.º, do Código Civil, com a versão atual que consagra a comunicabilidade do contrato de arrendamento e que apenas entrou em vigor com o NRAU, pela Lei 6/2006, de 27/2, após a data de falecimento do primitivo arrendatário).
41 Na sequência do falecimento de PH, primitivo arrendatário, o direito ao arrendamento transmitiu-se a IR, enquanto cônjuge sobreviva, com residência no local arrendado, por força do disposto no artigo 1111.°, n.º 1, do Código Civil, na redação que lhe foi dada pela Lei 46/85, de 20/9, e em vigor no ano de 1987.
42 De acordo com esta cronologia de acontecimentos, o tribunal de primeira instância condenou a ré/apelante a restituir imediatamente a fração livre e devoluta de pessoas e bens, com fundamento na caducidade do contrato de arrendamento, justificando que o direito ao arrendamento não se transmitiu “à ré, nora do primitivo arrendatário, por não ser admitida a transmissão em segundo grau da posição de arrendatário, uma vez que esta não configura a situação excecional espelhada no direito transitório do artigo 57.° do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei n.° 6/2006 de 27 de fevereiro, com a redação atual”.
43 Consequentemente, julgou improcedente o pedido reconvencional.
3.2. Recusa de entrega do imóvel pela apelante
44 A apelante recusa-se a entregar o imóvel objeto da ação de reivindicação, invocando que entre o seu falecido marido, JH, e os apelados foi celebrado um novo contrato de arrendamento, pelo que, na sequência do falecimento de JH, esse novo contrato transmitiu-se para a apelante, nos termos do artigo 1106.º, do Código Civil.
3.2.1. Celebração de novo contrato de arrendamento com JH
45 IR faleceu em 2017 e, entende a apelante, que após o falecimento daquela, foi celebrado com o seu marido, JH, um novo contrato de arrendamento, que foi negociado entre as partes e ao qual é aplicável o regime do NRAU.
46 A apelante não tem razão. Radicando o seu argumento na celebração de contrato de arrendamento ex novo com o seu falecido marido, falhou em fazer essa demonstração.
47 É pacífico que inexiste contrato escrito.
48 À data do falecimento de JH estava em vigor o artigo 1069.º, do Código Civil, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 31/2012, de 14/8, de acordo com o qual “o contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito”.
49 A redação então em vigor foi substituída pela atual, por força do Decreto-Lei n.º 13/2019, de 12/2 que, pela introdução do n.º 2, determinou que a falta de forma que não seja imputável ao arrendatário pode por ele ser demonstrada por qualquer meio, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses.
50 O artigo 1069.º, com a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 13/2019, de 12/2 é aplicável aos arrendamentos existentes à data de entrada em vigor da mesma – cf. artigo 14 n.º 2 desse mesmo Decreto-Lei.
51 Decorre pois deste regime que a falta de forma que não seja imputável ao arrendatário não o impede de demonstrar por qualquer outro meio a celebração de novo contrato de arrendamento, designadamente, se demonstrar a utilização do locado, sem oposição do senhorio e o pagamento da renda por um período de seis meses.
52 Assim, de forma a beneficiar do regime do artigo 1069.º, o arrendatário deve demonstrar que a falta de forma não lhe é imputável, por um lado, e que ocorreu a utilização do locado, sem oposição do senhorio e o pagamento da renda por um período de seis meses, por outro.
53 O que não aconteceu neste caso. Pese embora a ré tenha alegado a celebração de contrato de arrendamento não escrito, não alegou qualquer factualidade capaz de afastar a sua responsabilidade ou do seu falecido marido, pela não observância da forma prevista na lei. Não pode por esse motivo beneficiar da facilidade probatória prevista no novo n.º 2, do artigo 1069.º do Código Civil – neste sentido Ac. STJ, de 12/1/2022, CURA MARIANO, processo 9715/19.9T8LRS.L1.S1.
54 Sem prejuízo, atenta a formulação do artigo 1069.º, n.º 2, que aponta para que a exigência da forma escrita para os contratos de arrendamento é meramente ad probationem, podia a apelante demonstrar a celebração do contrato por qualquer meio, nos termos do artigo 364.º, n.º 2, do Código Civil – cf. Ac. STJ citado.
55 Também não logrou fazê-lo, pelo que se deve ter por afastada a celebração de novo contrato de arrendamento entre o marido da apelante e os autores.
3.2.2. Transmissão do contrato de arrendamento para apelante ao abrigo do NRAU
56 O artigo 1106.º, do Código Civil, com a atual redação, foi aditado pelo NRAU – artigo 3.º da Lei 6/2006, de 27/02 - e determina que o contrato de arrendamento não caduca, por morte do arrendatário, se sobreviver cônjuge com residência no locado ou pessoa que com ele vivesse em união de facto ou economia comum há mais de um ano.
57 Este regime aplica-se apenas aos contratos celebrados no âmbito do NRAU – 59.º, da Lei 6/2006, de 27/2 que aprovou o NRAU (cf. artigo 1.º da Lei).
58 Não tendo sido celebrado novo contrato de arrendamento nos termos do NRAU, com o falecido marido da apelante, não tem aplicação o invocado artigo 1106.º, do Código Civil, invocado pela apelante.
59 A apelante entende que a circunstância dos autores não terem recusado os pagamentos da Ré, que sempre foram efetuados a título de renda, deve levar a concluir que tacitamente reconheceram o direito da Ré a ver transmitido o direito ao arrendamento, nos mesmos termos em que vigorava com o anterior arrendatário, o seu cônjuge.
60 Não é assim.
61 Desde logo, porque, como já vimos, não foi celebrado novo contrato com o falecido marido da apelante.
62 Além disso, na sequência da comunicação do óbito de JH aos apelados, estes responderam, pedindo a restituição da fração e chaves, insistindo, mesmo depois da ré se recusar entregar o imóvel e continuado a depositar na conta dos apelados o valor mensal de 210,90 EUR, por sua exclusiva iniciativa.
63 O contexto fáctico afasta, pois, em absoluto, a inferência conclusiva que a apelante pretende retirar do facto de ter depositado o valor correspondente à renda.
64 Dessa forma, não se verificou a transmissão do arrendamento nos termos do artigo 1106.º, do Código Civil.
3.2.3.  Transmissão do contrato de arrendamento ao abrigo do Regime decorrente do artigo 57.º, do NRAU
65 Não tendo sido celebrado novo contrato, resta analisar se o contrato de arrendamento celebrado em 1971, se transmitiu ao abrigo do regime transitório fixado pelo NRAU.
66 Estando em causa contrato de arrendamento anterior ao NRAU, tem aplicação o regime transitório decorrente do artigo 57.º, do NRAU, aprovado pela Lei n.° 6/2006 de 27 de fevereiro, com a redação dada pelas Leis n.° 31/2012 de 14 de agosto e n.° 79/2014 de 19 de dezembro, em vigor à data do falecimento de JH, marido da apelante – cf. artigos 26.º a 28.º, do NRAU
67 Pese embora o regime respeitante à transmissão por morte no NRAU visar reduzir a condição vinculativa associada ao regime de arrendamento anterior, é ainda admitida a transferência da situação jurídica do locatário em certas circunstâncias.
68 Assim, de acordo com este regime, o contrato de arrendamento para habitação apenas se transmite – não caducando o contrato – por morte do primitivo arrendatário, quando lhe sobrevivam as pessoas elencadas nas als. a) a f), do n.º 1 do artigo 57.º. Só a morte do primitivo arrendatário garante a não caducidade do contrato.
69 Neste caso, o contrato de arrendamento foi celebrado em 1971 com PH, tendo este a posição de primitivo arrendatário.
70 Resulta assim evidente que apenas pelo decesso de PH poderia operar a transmissão do contrato de arrendamento à luz do artigo 57,º, do NRAU.
71 Em conclusão, o falecimento de JH, em 2020, não permite acionar o regime decorrente do artigo 57.º, do NRAU, pelo que o contrato se deve ter por caducado.
3.2.4. Renovação do contrato nos termos do artigo 1056.º, do Código Civil
72 Também não é aplicável, neste caso, a renovação do contrato de arrendamento nos termos do artigo 1056.º, do Código Civil.
73 O artigo 1056.º prevê a possibilidade do contrato de arrendamento se renovar, nos termos do artigo 1051.º, do Código Civil se o locatário, não obstante a caducidade do contrato, se mantiver no gozo da coisa pelo lapso de um ano, sem oposição do locador.
74 Nestas circunstâncias, o contrato considera-se igualmente renovado nas condições do artigo 1054º do Código Civil.
75 Mas, pese embora entre as causas de caducidade do artigo 1051.º, do Código Civil, figure a morte do locatário, o artigo 1056.º não pode naturalmente aplicar-se a essa causa de caducidade. Por dois motivos fundamentais:
– em primeiro lugar, porque existe um regime próprio de caducidade aplicável às situações de morte do locatário – os já analisados artigos 1106.º, do Código Civil ou, para contratos anteriores ao NRAU, 57.º, do NRAU;
- em segundo lugar, porque se o locatário morrer, dando causa à caducidade do arrendamento, não pode manter-se no gozo do locado para efeitos de operar a renovação do contrato, como este preceito determina.
76 E porque o artigo 1056.º do Código Civil apenas se aplica ao arrendatário, não pode o terceiro que permaneça no locado beneficiar da não caducidade por inércia do locador. O terceiro pode apenas beneficiar da não caducidade por morte, nos termos do regime próprio – esta interpretação é defendida Ac. STJ de 4/3/1982 Pr. nº 069789, cujo sumário pode ser acedido, via Internet, no sítio www.dgsi.pt.
77 Pelo que a não oposição dos autores à permanência no locado, ainda que tivesse ocorrido, não renovaria o contrato de arrendamento com o fundamento de permanência no locado.
78 Em conclusão, inexiste qualquer título válido para que a apelante ocupe o imóvel dos apelados, razão pela qual a sua pretensão tem que improceder, devendo o imóvel ser restituído.
4. Indemnização
79 A apelante considera que a sentença recorrida errou ao condená-la no pagamento de uma indemnização aos apelados.
80 Diz que a sua conduta não pode considerar-se abusiva, porque tem título para ocupar o imóvel e que os autores não concretizaram nem provaram a existência de danos pela alegada ocupação indevida, sendo, além do mais, que ficou provada a fragilidade económica da ré, razão pela qual o quantum a fixar a título de indemnização deveria ser o valor da renda mensal e não outro, atento o que dispõe o artigo 566.º, n.º 3 do Código Civil.
81 O tribunal de primeira instância considerou verificados os pressupostos de responsabilidade civil e decidiu que os apelados devem ser recompensados pela limitação ao seu direito de propriedade imposta pela conduta da apelante.
82 A questão da ocupação sem título, culposa, já se mostra resolvida em sentido contrário ao propugnado pela apelante, pelo que se conclui que a sua conduta é ilícita, tendo violado o direito de propriedade dos apelados, que ficaram impedidos de usufruir do seu imóvel.
83 Resta saber se a circunstância dos apelados terem ficado privados desse uso configura um dano indemnizável e, sendo-o, em que termos.
84 Duas são as principais posições jurisprudências em matéria de ressarcibilidade de danos resultantes da privação de uso.
85 Sendo genericamente aceite que a privação do uso, só por si, é um dano autónomo e patrimonial, existem divergências quanto à forma que deve revestir para que seja indemnizável.
86 Por um lado, uma tese que exige a alegação e prova, pelo lesado, das utilidades/vantagens concretas extraídas do bem de cujo uso se viu privado; e outra, que aceita que a privação do uso de um bem constitui uma desvantagem suscetível de avaliação pecuniária, consubstanciando, só por si, um dano patrimonial, sendo desnecessário demonstrar em que medida se traduziu o dano em concreto. (seguindo o primeiro entendimento, Acs. STJ de 3/10/2013, Pr. 1261/07.0TBOLHE.E1.S1, de 18/09/2018 no Pr. 108/13.2TBPNH.C1.S1, de 28/1/2021, no Pr. 14232/17.9T8LSB.L1.S1; seguindo o segundo, Acs. STJ, de 17/11/2021,  Pr. 6686/18.2T8GMR.G1.S1, de 25/09/2018, processo 2172/14.8TBBRG.G1.S1 (privação de uso de veículo); de 29/10/2020, processo 515/04.1TBGDM.P1.S1 (privação de uso de veículo); deste Tribunal e Secção, de 22/11/2022, processo 4486/18.9T8FNC.L1-7, e Ac. TRP, de 2/2/2022, Pr. 2619/19.7T8GDM.P1; todos disponíveis em www.dgsi.pt).
87 Seguimos, com a maioria, a posição que entende que são ressarcíveis os danos  decorrentes da privação de um bem que o lesado tinha, sem que a este seja imposto demonstrar mais do que se verificou a supressão da disponibilidade material do bem e, consequentemente, a frustração do aproveitamento das utilidades económicas do mesmo por parte do lesado. Que a privação do uso exprime o próprio evento danoso, na medida em que o mero uso constitui uma vantagem suscetível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano, uma vez que tem um impacto negativo na esfera do titular do direito
88 Nessa medida, decidiu acertadamente o tribunal de primeira instância.
89 Relativamente ao montante que o tribunal decidiu arbitrar, entende a apelante que o quantum a fixar a título de indemnização deveria ser o valor da renda mensal e não outro, atento o que dispõe o artigo 566.º, n.º 3 do Código Civil.
90 Que, não se apurando prejuízos concretos decorrentes da atuação da Ré, deveria ser este o critério a aplicar.
91 De acordo com o artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil, com vista ao ressarcimento do lesado, não sendo possível recorrer ao critério vertido no artigo 566.º, n.º 2 (critério da diferença), deve recorrer-se à equidade, alcançando-se desta forma a justiça no caso concreto, à luz das circunstâncias apuradas. 
92 Foi este o critério legal utilizado pelo tribunal de primeira instância, considerando que, quanto à privação de uso, apenas se apurou o valor locativo do imóvel, de montante não inferior a 600 EUR.
93 Efetivamente, à luz da interpretação adotada respeitante à ressarcibilidade da privação de uso e não se tendo demonstrado mais do que o valor locativo do imóvel, é adequado considerar que o critério mais direto ou rigoroso de fixação de indemnização por privação de uma coisa que é o seu valor locativo ou valor do uso – cf. Ac. STJ de 1/6/1999, no Pr. 99A379, disponível em www.dgsi.pt.
94 A decisão do tribunal está pois dentro dos limites do que foi provado, e afigura-se adequada, devendo, pois, manter-se.
5. Custas
95 Nos termos do artigo 527.º, do Código de Processo Civil, a recorrente deverá suportar as custas, porque vencida.
96 Na verdade, face à total improcedência da presente apelação, é inegável que decaiu, devendo por isso suportar as custas do presente recurso (na modalidade de custas de parte).

DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o presente recurso, confirmando a decisão impugnada.
Custas pela apelante.
O presente acórdão mostra-se assinado e certificado eletronicamente.

Lisboa, 7 de maio de 2024
Rute Lopes     
Paulo Ramos de Faria
Cristina Maximiano