Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
99/23.1PFSTB.E1
Relator: FÁTIMA BERNARDES
Descritores: TÍTULO DE CONDUÇÃO
CARTEIRA NACIONAL DE CONDUÇÃO BRASILEIRA
CARTA CADUCADA
Data do Acordão: 05/07/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: A conduta da arguida, ao conduzir um veículo automóvel, em Portugal, em 21-03-2023, na via pública, sendo titular de Carteira Nacional de Condução, emitida pela República Federativa do Brasil, Estado de São Paulo, em 21-09-2018, e cujo prazo de validade expirou em 30-03-2022, não integra a prática do crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 3º, nºs 1 e 2, do D.L. n.º 2/98, de 03 de janeiro, mas sim a contraordenação prevista no artigo 130º, nº 7, do Código da Estrada.
Decisão Texto Integral:


Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. RELATÓRIO
1.1. Neste processo abreviado n.º 99/23.1PFSTB.E1, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal – Juízo Local Criminal de Setúbal – Juiz 1, foi submetida a julgamento a arguida B, nascida a (…..), melhor identificada nos autos, estando acusada pela prática, em autoria material, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de janeiro, por referência aos artigos 121º, n.º 4, 123º, n.º 1 e 125º, n.º 5, todos do Código da Estrada.
1.2. Realizado o julgamento, foi proferida sentença, em 27/10/2023 – depositada nessa mesma data –, com o seguinte dispositivo:
«(...) julgo a acusação parcialmente procedente e, consequentemente, decido:
a) Absolver a arguida B da prática de 1 (um) crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 e n.º 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, de que vinha acusada;
b) Determinar o arquivamento do processo, no que respeita ao ilícito contraordenacional imputado à arguida B, previsto e punido pelos artigos 130.º, n.º 1, al. a) e n.º 7 do Código da Estrada, em face do pagamento voluntário da coima pelo mínimo, nos termos do artigo 172.º, n.ºs 1, 2 e 4 do Código da Estrada;
Sem custas.
(...).»

1.3. Inconformado com o assim decidido recorreu o Ministério Público para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação de recurso apresentada, as seguintes conclusões:
«1º - Por sentença proferida a 27/10/2023 (sob a referência CITIUS 9821 1257), o Tribunal a quo absolveu a arguida da prática do crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro, de que vinha acusada, entendendo, outrossim, que a factualidade considerada provada na douta sentença recorrida é integradora da contraordenação prevista e punida pelo artigo 130.º, n.º 1, al. a), e 7, do Código da Estrada, atento o preenchimento dos elementos quer objectivos, quer subjectivos, do respectivo tipo.
2º - Uma vez que a arguida, após notificação, procedeu ao pagamento da coima pelo mínimo, em conformidade com a faculdade legal prevista no artigo 172.º, n.ºs l, 2 e 4, do Código da Estrada e no prazo concedido para o efeito, o Tribunal a quo determinou o arquivamento do processo, no que respeita à matéria contraordenacional.
Salvo o devido respeito, que é muito, o Ministério Público não se conforma com a douta sentença recorrida, que não merece a nossa concordância.
Vejamos porquê.
3.º - Tomando em devida linha de consideração o preceituado no artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03/01, impõe-se aferir se, no caso concreto, a arguida estava ou não habilitada para conduzir veículos automóveis na via pública, tendo-se, para este efeito, por assente que a mesma era, à data do cometimento da factualidade em apreço nestes autos, titular de carta de condução emitida pela autoridade brasileira competente, embora caducada.
4.º - A este respeito, regem os artigos 121.º, n.º 1, e 125.º, n.º 1, alíneas c), d) e e), do Código da Estrada; bem como o artigo 41.º, n.º 2, da Convenção de Viena de 1968 Sobre Circulação Rodoviária, que prevê que as Partes Contratantes — para aquilo que ora nos interessa, Portugal e Brasil reconhecerão os títulos de condução que tenham sido emitidos por outra Parte Contratante, desde que os mesmos se encontrem válidos, vigorando, assim, o princípio do reconhecimento recíproco dos títulos de condução brasileiros e portugueses, desde que válidos; e, ainda, o Despacho n.º 10942/2000, proferido pela DGV, publicado no dia 27/05/2000, 2ª série do Diário da República, que determina que «as carteiras nacionais de habilitação brasileiras (CNH) que se apresentem dentro do seu prazo de validade habilitam à condução de veículos em território nacional, ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do artigo 125.º do Código da Estrada».
5.º - Assim, ponto assente para que vigore o princípio do reconhecimento recíproco dos títulos de condução brasileiros e portugueses é a validade dos referidos títulos.
6.º - As carteiras nacionais de habilitação brasileiras são reconhecidas em Portugal para a condução das categorias de veículos a que habilitam e são documentos habilitantes para a condução de veículos a motor em Portugal desde que se encontrem válidas.
7.º - No caso dos autos, em que a arguida é titular de título de condução brasileiro que não se encontra válido, não vigora o princípio do reconhecimento recíproco dos títulos de condução brasileiros e portugueses.
8.º - Tal significa que as carteiras nacionais de habilitação brasileiras caducadas não são títulos habilitantes para a condução, em via pública, de veículos a motor em Portugal, integrando e densificando, assim, o conceito de «falta de habilitação legal» ou o de «sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada».
9.º - Tal interpretação encontra respaldo nos n.ºs 5 e 8 do artigo 125.º do Código da Estrada, que reforçam a asserção supra expendida de que só os títulos de condução estrangeiros válidos são títulos de condução habilitantes para a condução de veículos a motor, em via pública, em território nacional, isto é, só os títulos de condução estrangeiros válidos são reconhecidos em Portugal.
10.º - É, pois, dos artigos 121.º e 125.º do Código da Estrada que emerge a definição do conceito de «falta de habilitação legal» e não, naturalmente, do artigo 130.º do mesmo diploma legal.
11.º - Destarte, e no que concerne ao caso dos autos, a arguida não se encontrava habilitada, nas circunstâncias de tempo indicadas, para a condução de quaisquer veículos a motor, na via pública, em Portugal.
12.º - E porque assim é, e neste enquadramento, não vislumbramos outra conclusão lógica possível senão a de que o regime de caducidade dos títulos de condução previsto nos n.ºs 1 a 6 do artigo 130.º do Código da Estrada só se aplica aos títulos de condução emitidos pelo Estado Português, pelo que a coima cominada no n.º 7 do citado normativo legal é também privativa de tal categoria de títulos de condução.
13.º - E tal não é, diga-se, atentatório do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13 da Constituição da República Portuguesa, de acordo com o qual se deve dar tratamento igual que for essencialmente igual e tratamento diferenciado ao que for essencialmente diferente.
14.º - E são essencialmente diferentes os títulos de condução emitidos pela autoridade nacional competente para o efeito, de acordo com a legislação nacional vigente, e aqueles que são emitidos por Estados estrangeiros, que só são reconhecidos em Portugal e habilitantes para a condução quando válidos.
15.º - O Estado Português reconhece os títulos de condução emitidos por alguns Estados estrangeiros, sendo tal reconhecimento mais aprofundado relativamente a determinados Estados histórica, cultural e linguisticamente mais próximos do Estado Português,
No entanto, tal não implica, por si só, uma equiparação absoluta entre os títulos de condução emitidos pela autoridade nacional competente, de acordo com a legislação nacional, e aqueles que provêm de Estados estrangeiros, relativamente aos quais um maior ou menor grau de aproximação permanece, de um modo geral, na margem de livre apreciação do legislador ordinário.
16.º - Neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 08/11/2022, relatado pelo Venerando Desembargador Edgar Valente, no âmbito do processo n.º 1821/20.3GBABF.E1, acessível em www.dgsi.pt.
17.º - Nesta confluência, ao absolver a arguida da prática do crime de condução sem habilitação legal de que vinha acusada, o Tribunal a quo interpretou erradamente o normativo legal ínsito no artigo 130.º, n.º 1, alínea a), e n.º 7, do Código da Estrada e violou o disposto nos artigos 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei 2/98, de 03/01, 121.º, n.ºs l, 4 e 9, 125.º, n.º 1, als. c), d) e e), e 130.º, todos do Código da Estrada, 41.º, n.º 2, da Convenção de Viena Relativa ao Tráfego Rodoviário, e o Despacho n.º 10942/2000, publicado em Diário da República, 2.ª Série, de 27/05/2000.
18.º - Destarte, a sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que condene a arguida pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei 2/98, de 03/01, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à razão diária de €6,00 (seis euros), o que perfaz o montante global de €540,00 (quinhentos e quarenta euros), por se considerar que tal pena acautela de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Nestes termos, deve ser concedido provimento ao recurso ora interposto e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida e substituída por outra que condene a arguida pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei 2/98, de 03/01, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à razão diária de 66,00 (seis euros), o que perfaz o montante global de €540,00 (quinhentos e quarenta euros), pena que acautelará, in casu, de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
V. Exas., porém, com mais elevada prudência, decidirão conforme for de Direito e Justiça!!»

1.4. O recurso foi regularmente admitido.
1.5. A arguida não apresentou resposta ao recurso.
1.6. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora–Geral Adjunta não emitiu parecer alegando a impossibilidade de o fazer, em virtude de não existir suporte físico nos autos da motivação de recurso.
1.7. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.


2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objeto do recurso
Em matéria de recursos, que ora nos ocupa, importa ter presente as seguintes linhas gerais:
O Tribunal da Relação tem poderes de cognição de facto e de direito – cf. artigo 428º do CPP.
As conclusões da motivação do recurso balizam ou delimitam o respetivo objeto – cf. artigos 402º, 403º e 412º, todos do CPP.
Tal não preclude o conhecimento, também oficioso, dos vícios enumerados nas alíneas a), b) e c), do nº. 2 do artigo 410º do CPP, mas tão somente quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida por si só ou em sua conjugação com as regras da experiência comum (cf. Ac. do STJ nº. 7/95 – in DR I-Série, de 28/12/1995, ainda hoje atual), bem como das nulidades principais, como tal tipificadas por lei.
No caso vertente, em face das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação de recurso apresentada, a única questão suscitada é a da incorreta subsunção dos factos ao direito.


2.2. A sentença recorrida, nos segmentos que relevam para a apreciação da questão suscitada, é do seguinte teor:
«(…)
I. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
2.1.1. Efectuado o julgamento, provaram-se os seguintes factos:
1. No dia 21-03-2023, pelas 19h00m, na Praça da Independência, em Setúbal, a arguida B conduziu um veículo automóvel, com a matrícula (…..).
2. Em tais circunstâncias, a Arguida era titular da Carteira Nacional de Habilitação brasileira, para a referida categoria de veículos (categoria B), emitida pelo estado de São Paulo, que ostentava como prazo de validade o dia 30-03-2022, tendo sido emitida em 21-09-2018.
3. A Arguida sabia que se encontrava a conduzir na via pública, conhecia as características do veículo e da obrigatoriedade de possuir documento que a habilitasse à condução do mesmo e, não obstante, quis conduzir nas circunstâncias descritas.
4. Agiu sempre consciente e voluntariamente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.

*
2.1.2. Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos relevantes para a decisão da causa.
*
2.1.3. Motivação
O Tribunal formou a sua convicção do conjunto da prova produzida, nomeadamente:
a) Quanto à materialidade dada como provada, quer na vertente objectiva, quer subjectiva, nas declarações da própria Arguida, a qual admitiu a prática dos factos, nomeadamente a condução nas circunstâncias espácio-temporais descritas na acusação.
A Arguida alegou, contudo, ser possuidora de Carteira Nacional de Habilitação, com data de validade aposta de 30 de Março de 2022, nos termos do documento que apresentou em audiência e cuja junção se determinou aos autos por cópia. Em face da alegação de tais factos não nos encontramos perante uma confissão integral e sem reservas, ainda que a factualidade julgada provada vá integralmente ao encontro da versão da Arguida. A Arguida assumiu, igualmente, que tinha conhecimento que tal título não lhe permitia a condução, por se encontrar expirado, o que consequentemente foi julgado provado, em termos subjectivos.
Assim, a factualidade constante dos pontos 1. a 4. resulta das declarações da própria Arguida, as quais são corroboradas pela demais prova produzida em audiência (designadamente por R, agente da PSP que efectuou a operação de fiscalização).
b) Atento o sentido da decisão torna-se despicienda a referência às condições socioeconómicas da Arguida ou aos seus antecedentes criminais, nos termos dos artigos 368.º a 371.º do Código de Processo.
c) Não se respondeu a matéria anódina, redundante, conclusiva ou de direito. Com efeito, a questão de saber se o título de condução de que a Arguida era possuidora a habilitava ao exercício da condução automóvel no território nacional é matéria conclusiva e de direito, que deve ser alvo de resposta na fundamentação de Direito. Se não sendo a Arguida possuidor de qualquer título de condução pode ser “não tinha carta de condução ou outro documento que legalmente a habilitasse a conduzir aquele veículo”, a verdade é que, a partir do momento em que a Arguida apresenta algum título, essa matéria passa a constituir questão de Direito, constituindo mesmo o cerne do processo, não devendo ser alvo de resposta na matéria de facto.
*
2.2. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
2.2.1. DO ILÍCITO TÍPICO
Encontra-se a Arguida acusada da prática, na forma consumada, de um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei 2/98 de 3 de Janeiro.
Importa averiguar, face ao manancial fáctico apurado, se a conduta da Arguida é susceptível de integrar a prática do referido ilícito.
Estatui o aludido artigo 3.º, no seu n.º 1 que, quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, prevendo o n.º 2 que se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.
Com tal incriminação visa o Estado, por intermédio do seu poder punitivo, acautelar a segurança rodoviária.
O ilícito em causa surge configurado como um crime perigo abstracto, no qual o perigo é presumido por lei, independentemente da sua comprovação material.
No que diz respeito ao tipo objectivo, o n.º 1 consiste na condução de veículo a motor, em via pública ou equiparada, sem para tal estar habilitado. O n.º 2 encontra-se construído em termos semelhantes, com a agravação correspondente à maior perigosidade dos veículos automóveis ou motociclos aí referidos.
No que respeita ao tipo subjectivo é exigível uma conduta dolosa, nos termos do artigo 14.º, por força do artigo 8.º, ambos do Código Penal.
No caso vertente, resultou provado que, no dia 21-03-2023, pelas 19h00m, na Praça da Independência, em Setúbal, a arguida B conduziu um veículo automóvel, com a matrícula (…..).
O veículo que a Arguida conduzia é qualificado pela lei como veículo automóvel (cfr. artigo 105.º do Código da Estrada), pelo que, para que a mesma o pudesse conduzir numa via de comunicação terrestre afectada ao trânsito público (cfr. artigo 1.º, al. v), do Código da Estrada), seria necessário que possuísse a respectiva carta de condução (artigos 121.º, n.º 1 e 123.º, todos do Código da Estrada).
A Arguida era, contudo, titular de Carteira Nacional de Habilitação (carta de condução brasileira), para a referida categoria de veículos, que ostentava como prazo de validade o dia 30 de Março de 2022.
O punctum saliens do presente caso consiste em saber se a Arguida era possuidora de título de condução válido e, em caso de reposta negativa, quais as consequências dessa invalidade.
Em termos de regime geral, o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) estabelece que é permitido dirigir por até 30 dias com a CNH vencida. Com efeito, apenas se encontra prevista como infracção a condução de veículo, com validade da Carteira Nacional de Habilitação vencida há mais de trinta dias, a qual é considerada infracção gravíssima, punida com multa e perda de sete pontos, nos termos do artigo 162.º, V e 259.º, n.º 1 do CTB.
O legislador brasileiro estabeleceu a aludida tolerância de 30 dias para permitir que os condutores tivessem a possibilidade de observar todos os trâmites necessários para renovar a CNH, após a data de vencimento aposta no título, uma vez que uma grande parte dos condutores não cuidava atempadamente da renovação, apenas iniciando os procedimentos necessários depois de este expirar.
Não obstante a data de validade aposta no título de condução e o aludido período de sobrevivência, a verdade é que vigoram regimes excepcionais, respeitantes às validades dos títulos de condução brasileiros. Com efeito, por força da situação pandémica motivada pela doença COVID-19, os prazos de validade dos títulos de condução Brasileiros foram sucessivamente alargados.
Assim, primeiramente entrou em vigor Resolução CONTRAN n.º 782, de 18 de Junho de 2020, a qual entrou em vigor na República Federativa do Brasil no dia 1 de Julho de 2020 e que dispôs sobre a suspensão e a interrupção de prazos de processos e de procedimentos afectos aos órgãos e entidades do Sistema Nacional de Trânsito e às entidades públicas e privadas prestadoras de serviços relacionados ao trânsito, a qual para fins de fiscalização, suspendeu o prazo previsto no inciso V do artigo 162 do CTB, para Carteira Nacional de Habilitação (CNH) com validade vencida desde 19 de Fevereiro de 2020 (prazo que permite a condução por mais 30 dias, após a data de vencimento aposta no título).
Tal resolução foi revogada pela Resolução CONTRAN n.º 805, de 16 de Novembro de 2020, a qual entrou em vigor na República Federativa do Brasil no dia 1 de Dezembro de 2020, e que estabeleceu novos prazos para a regularização das carteiras nacionais de habilitação brasileiras vencidas no ano de 2020, alargando sucessivamente a validade de tais títulos por mais um ano (publicada no dia 24 de Novembro de 2020, no Diário Oficial da União, Edição: 224-A, Seção: 1 - Extra A, Página: 1 - Órgão: Ministério da Infraestrutura/Conselho Nacional de Trânsito).
Pode ler-se no artigo 10.º de tal diploma que para fins de fiscalização, consideram-se válidas as CNH vencidas de 1 de Janeiro de 2020 a 31 de Dezembro de 2020 até à nova data correspondente para a renovação definida no cronograma constante do anexo II.
O aludido cronograma, sob a epígrafe «Cronograma para renovação das CNH e ACC vencidas de 1.º de Janeiro de 2020 a 31 de Dezembro de 2020» é do seguinte teor:

Data de vencimento
Período para renovação
De 1 a 31 de Janeiro de 2020De 1 a 31 de Janeiro de 2021
De 1 a 29 de Fevereiro de 2020De 1 a 28 de Fevereiro de 2021
De 1 a 31 de Março de 2020De 1 a 31 de Março de 2021
De 1 a 30 de Abril de 2020De 1 a 30 de Abril de 2021
De 1 a 31 de Maio de 2020De 1 a 31 de Maio de 2021
De 1 a 30 de Junho de 2020De 1 a 30 de Junho de 2021
De 1 a 31 de Julho de 2020De 1 a 31 de Julho de 2021
De 1 a 31 de Agosto de 2020De 1 a 31 de Agosto de 2021
De 1 a 30 de Setembro de 2020De 1 a 30 de Setembro de 2021
De 1 a 31 de Outubro de 2020De 1 a 31 de Outubro de 2021
De 1 a 30 de Novembro de 2020De 1 a 30 de Novembro de 2021
De 1 a 31 de Dezembro de 2020De 1 a 31 de Dezembro de 2021
Alguns Estados Federados da República do Brasil prorrogaram unilateralmente a validade dos títulos, quer no aludido período, quer no período posterior.
Assim, no que respeita ao Estado de São Paulo, em causa nos presentes autos, vigorou ainda a Resolução Contran n.º 828, de 8 de Abril de 2021, que, nos termos do artigo 2.º/V prazo de validade das ACC, Permissão Para Dirigir (PPD) e CNH vencidas desde 1º de março de 2020 e com vencimento a partir da data de publicação desta Resolução, para fins de fiscalização no acto de revogação, será definido novo calendário para restabelecimento dos prazos prorrogados nos termos do artigo 2.º. Publicada no Diário Oficial da União, em 12/04/2021 | Edição: 67 | Seção: 1 | Página: 82.
A revogação da aludida Resolução ocorreu por meio da Deliberação Contran n.º 243, de 8 de Novembro de 2021, a qual estabeleceu novos prazos para a regularização das carteiras nacionais de habilitação brasileiras vencidas entre Março de 2020 e Dezembro de 2022, alargando sucessivamente a validade de tais títulos Publicada no Diário Oficial da União, em 09/11/2021 | Edição: 210 | Seção: 1 | Página: 101.
O artigo 4.º do referido diploma estabelece que para fins de fiscalização, para fins de fiscalização, consideram-se válidas as CNH e ACC vencidas desde 1.º de Março de 2020 e com vencimento até 31 de Dezembro de 2022, até a nova data correspondente para renovação definida no cronograma constante no Anexo.
O aludido cronograma, sob a epígrafe «Cronograma para renovação das CNH e ACC» é do seguinte teor:

Data de vencimento Período para renovação
Março e Abril de 2020 até 30 de Dezembro de 2021
Maio e Junho de 2020 até 31 de Janeiro de 2022
Julho e Agosto de 2020 até 28 de Fevereiro de 2022
Setembro e Outubro de 2020 até 31 de Março de 2022
Novembro e Dezembro de 2020 até 30 de Abril de 2022
Janeiro e Fevereiro de 2021 até 31 de Maio de 2022
Março e Abril de 2021 até 30 de Junho de 2022
Maio e Junho de 2021 até 31 de Julho de 2022
Julho e Agosto de 2021 até 31 de Agosto de 2022
Setembro e Outubro de 2021 até 30 de Setembro de 2022
Novembro e Dezembro de 2021 até 31 de Outubro de 2022
Janeiro e Fevereiro de 2022 até 30 de Novembro de 2022
Março e Abril de 2022 até 31 de Dezembro de 2022
Maio de 2022 até 31 de Janeiro de 2023
Junho de 2022 até 28 de Fevereiro de 2023
Julho de 2022 até 31 de Março de 2023
Agosto de 2022 até 30 de Abril de 2023
Setembro de 2022 até 31 de Maio de 2023
Outubro de 2022 até 30 de Junho de 2023
Novembro de 2022 até 31 de Julho de 2023
Dezembro de 2022 até 31 de Agosto de 2023

Também Portugal adoptou medidas semelhantes. Com efeito, por força do disposto no n.º 1 do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, as autoridades e os serviços e organismos da Administração Pública ficaram obrigados a aceitar, para todos os efeitos legais, a exibição de documentos susceptíveis de renovação cujo prazo de validade havia expirado após 24 Fevereiro de 2020 até 30 de Outubro de 2020. Posteriormente, ao abrigo do Decreto-Lei n.º 87-A/2020, de 15 de Outubro, foi aprovado o alargamento do prazo de admissibilidade de documentos expirados até 31 de Março de 2021.
Face ao panorama enfrentado no último ano, no passado dia 17 de Março, o Conselho de Ministros aprovou um novo alargamento deste prazo, previsto no Decreto-Lei n.º 22-A/2021, de 17 de Março. Em conclusão, os documentos cujo prazo de validade tenha expirado a partir de 24 de Fevereiro, nomeadamente, o cartão do cidadão, certidões e certificados emitidos pelos serviços de registos e da identificação civil, carta de condução, documentos e vistos relativos à permanência em território nacional, licenças e autorizações, bem como cartões de beneficiário familiar de ADSE continuaram válidos, nos mesmos termos, até 31 de Dezembro de 2021.
Voltando ao caso vertente, analisado o aludido regime legal, devemos concluir que a Carteira Nacional de Habilitação de que a Arguida era titular, com data de vencimento aposta de 30 de Março de 2022, foi válida, até 31 de Dezembro de 2022, pelo que, na data da prática dos factos, a 21 de Março de 2023, apesar das prorrogações, a Arguida não era possuidora de título de condução válido que lhe permitisse a condução do veículo em questão, na via pública.
Nesta matéria, deve ainda ser notado que a República Federativa do Brasil e a República Portuguesa subscreveram a Convenção de Viena de 1968 sobre Circulação Rodoviária (eram igualmente subscritores da anterior Convenção de Genebra sobre Trânsito Rodoviário de 1949).
Em 22 de Abril de 2000 foi assinado o Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil. Este instrumento bilateral foi aprovado pela Resolução da Assembleia da República n.º 83/2000, de 14 de Dezembro e ratificado pelo Decreto do Presidente da República n.º 79/2000, de 14 de Dezembro.
O Despacho da DGV n.º 10 942/2000, publicado no dia 27/05/2000, DR 2ª série, determina que “As carteiras nacionais de habilitação brasileiras (CNH) que se apresentem dentro do seu prazo de validade habilitam à condução de veículos em território nacional, ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do artigo 125.º do Código da Estrada”.
A simples circunstância de Portugal e Brasil serem subscritores de tais Convenções vincula – no caso concreto – o Estado português a aceitar o título de condução brasileiro em moldes idênticos aos títulos portugueses. O mesmo ocorre com os títulos de qualquer outro país subscritor da Convenção, desde que os mesmos estejam ou voltem a estar dentro do prazo de validade.
Vigora, assim, o princípio do reconhecimento recíproco dos títulos de condução brasileiros e portugueses, desde que válidos.
Não obstante, foi ainda proferido o redundante Despacho da DGV n.º 10 942/2000, publicado no dia 27/05/2000, DR 2ª série, determina que “as carteiras nacionais de habilitação brasileiras (CNH) que se apresentem dentro do seu prazo de validade habilitam à condução de veículos em território nacional, ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do artigo 125.º do Código da Estrada.”
De igual modo, mais recentemente, o Decreto-Lei n.º 46/2022, de 12 de Julho veio alterar o referido artigo 125.º, passando a ser reconhecidos e aceites, em determinadas circunstâncias, os títulos de condução dos países da OCDE e CPLP, para efeitos de circulação em território nacional, ainda que os condutores sejam residentes.
Assim, nos termos do artigo 125.º, n.º 1, al. c), os títulos de condução emitidos por outros Estados-Membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) ou da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), desde que verificadas as seguintes condições cumulativas:
i) O Estado emissor seja subscritor de uma das convenções referidas na alínea seguinte ou de um acordo bilateral com o Estado Português;
ii) Não tenham decorrido mais de 15 anos desde a emissão ou última renovação do título;
iii) O titular tenha menos de 60 anos de idade.
No caso vertente, a República Federativa do Brasil é membro da CPLP, sendo que, nos termos já referidos, Brasil e Portugal subscreveram a Convenção de Viena de 1968 sobre Circulação Rodoviária (eram igualmente subscritores da anterior Convenção de Genebra sobre Trânsito Rodoviário de 1949).
Se está assente e não é controvertido que os títulos de condução emitidos pela República Federativa do Brasil permitem a condução em Portugal, desde que válidos, a questão que importa apreciar é qual a consequência da condução de veículo automóvel em Portugal com título de condução Brasileiro que apresente a data de validade expirada.
Ao abrigo dos anteriores regimes legais a jurisprudência encontrava-se dividida, considerando uma parte, que julgamos maioritária, que a detenção pelo agente, aquando da prática dos factos por que responde, de um título de condução estrangeiro, caducado, ainda que há menos de cinco anos, era inócua para o efeito de afastar a tipicidade do artigo 3.º do DL n.º 2/98, de 3 de Janeiro e considerando, outra, que o regime de caducidade, designadamente, sancionado previsto no n.º 1 do artigo 130.º do Código da Estrada e sancionado pelo n.º 7 do mesmo artigo era extensível aos títulos emitidos pelos países membros da União Europeia, por Estado estrangeiro subscritor de qualquer das Convenções sobre circulação rodoviária (Genebra e Viena) e por Estado estrangeiro que tenha com Portugal acordo de reciprocidade ou ao qual seja reconhecido um regime de reciprocidade, pugnando pela punição da conduta meramente a título contra-ordenacional no primeiro sentido cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20 de Outubro de 2020, relatado por Artur VARGUES, 872/18.2SILSB.L1-5 e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 22 de Outubro de 2019, relatado por SÉRGIO CORVACHO, proc. 126/18.4GBPTM.E1, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07 de Janeiro de 2016, relatado igualmente por SÉRGIO CORVACHO, proc. 651/13.3PAPTM.E1, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11 de Maio de 2021, relatado por RENATO BARROSO, proc. 249/20.0PAVRS.E1 e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26 de Outubro de 2021, relatado por EDGAR VALENTE, proc. 613/20.4GBABF.E1; em sentido contrário cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25 de Maio de 2021, relatado por GOMES DE SOUSA, proc. 135/20.3GCABF.E1, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de Maio de 2013, relatado por BELMIRO ANDRADE, proc. 50/11.1GTGRD.C1; todos os acórdãos se encontram disponíveis para consulta in dgsi.pt.
Todavia, a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 46/2022, no artigo 125.º, já referida supra, que equiparou ainda mais os títulos estrangeiros aí referidos aos Portugueses, deixando de ser necessário requerer a troca de carta de condução estrangeira por portuguesa, alterou profundamente a questão.
De facto, toda a jurisprudência publicada que aprecia a questão em face das novas alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 46/2022 afasta a tipicidade penal da conduta em análise, pugnando pela punição da conduta meramente a título contra-ordenacional – neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07 de Fevereiro de 2023, relatado por JORGE ANTUNES, proc. 962/22.7GLSNT.L1-5, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 15 de Dezembro de 2022, relatado por MARGARIDA BACELAR, proc. 1718/21.0GBABF.E1, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12 de Setembro de 2023, relatado por ANA BACELAR, proc. 1184/19.0GBABF.E1 e Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07 de Fevereiro de 2023, relatado por LAURA GOULART MAURÍCIO, proc. 350/22.5GABNV.E1, todos disponíveis para consulta in dgsi.pt.
Se já antes não abundavam argumentos para justificar a diferença de tratamento entre os possuidores de título de condução português e os possuidores de títulos de condução estrangeiros autorizados a conduzir em Portugal, actualmente face às alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 46/2022, afigura-se ser difícil continuar a justificar a dualidade de critérios, sendo de aplicar o regime de caducidade aos cidadãos estrangeiros (abrangidos pela redacção do artigo 125.º, n.º 1 do Código da Estada), não podendo continuar a considerar-se o mesmo privativo de cidadãos nacionais.
Todavia, a aparente unanimidade no afastamento da tipicidade penal deu origem a nova divisão jurisprudencial, designadamente na definição do tipo contra-ordenacional verificado.
Pugnando pela recondução da conduta em análise à previsão do n.º 8 do artigo 125.º do Código da Estrada, vide os já referidos Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 07 de Fevereiro de 2023, do Tribunal da Relação de Évora de 15 de Dezembro de 2022, do Tribunal da Relação de Évora de 12 de Setembro de 2023, sendo que, ao invés, pugnando pela subsunção ao artigo 130.º, n.º 7 do Código da Estrada, cfr. o também já supra citado Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07 de Fevereiro de 2023.
O artigo 125.º, n.º 8 do Código da Estrada estabelece que quem infringir o disposto nos n.ºs 3 a 5, sendo titular de licença válida, é sancionado com coima de (euro) 300 a (euro) 1500.
Por seu lado, o aludido preceito estabelece nos seus n.ºs 3 a 5 que:
3 - Os titulares das licenças referidas nas alíneas d), e) e g) do n.º 1 estão autorizados a conduzir veículos a motor em Portugal durante os primeiros 185 dias subsequentes à sua entrada no País, desde que não sejam residentes.
4 - Após fixação da residência em Portugal, o titular das licenças referidas no número anterior deve proceder à troca do título de condução, no prazo de 90 dias.
5 - Os títulos referidos no n.º 1 só permitem conduzir em território nacional se os seus titulares tiverem a idade mínima exigida pela lei portuguesa para a respectiva habilitação, encontrando-se válidos e não apreendidos, suspensos, caducados ou cassados por força de disposição legal, decisão administrativa ou sentença judicial aplicadas ao seu titular em Portugal ou no Estado emissor.
Para tomar posição na aludida questão devemos ter presente que no artigo 125.º, n.º 8 não se punem todas as infracções do disposto nos n.ºs 3 a 5. Isto é, não há uma perfeita congruência entre o regime sancionatório consagrado no n.º 8 e os normativos que estabelecem as regras de autorização de condução do agente portador de título de condução estrangeiro estabelecidas nos n.ºs 3 a 5.
Com efeito, no n.º 8 apenas se encontra prevista a punição de quem infringir o disposto nos n.ºs 3 a 5 «sendo titular de licença válida».
Assim, obtém punição pelo aludido preceito: (1) quem, sendo titular de alguma das licenças referidas nas alíneas d), e) e g) do n.º 1, desde que válida, conduzir veículos a motor em Portugal após os primeiros 185 dias subsequentes à sua entrada no País, desde que não seja residente; (2) quem, após fixação da residência em Portugal, sendo titular de alguma das licenças referidas no número anterior, desde que válida, conduzir após o prazo de 90 dias, sem ter procedido à troca do título de condução; (3) e quem, sendo titular de licença de condução referida no n.º 1, válida, não tenha idade mínima exigida pela lei portuguesa para a respectiva habilitação.
Mas já não obtém punição pelo referido normativo quem, em infracção do disposto no n.º 5, conduzir com «títulos apreendidos, suspensos, caducados ou cassados por força de disposição legal, decisão administrativa ou sentença judicial aplicadas ao seu titular em Portugal ou no Estado emissor».
Nestes casos os títulos não se encontram válidos, como exige expressamente o n.º 8 do artigo 125.º, devendo a punição ocorrer pelas normas respectivas que sancionam cada uma das diversas situações ali referidas, de gravidade, aliás, bastante distinta.
Assim, e a título meramente exemplificativo, quem conduzir:
i) Com título «apreendido» por decisão administrativa, designadamente na sequência de aplicação de sanção acessória, é punido por crime de desobediência qualificada, nos termos do n.º 2 do artigo 348.º do Código Penal, conforme previsto no artigo 138.º, n.º 3 do Código da Estrada;
ii) Com título «apreendido» por sentença judicial, designadamente na sequência de aplicação de sanção acessória por prática de contra-ordenação rodoviária, é punido por crime de violação de imposições, proibições ou interdições, nos termos do artigo 353.º do Código Penal, conforme previsto no artigo 138.º, n.º 2 do Código da Estrada;
iii) Com título «apreendido» por sentença judicial, designadamente na sequência de aplicação de sanção acessória por crime sancionado pelo artigo 69.º do Código Penal, é punido por crime de violação de imposições, proibições ou interdições, nos termos do artigo 353.º do Código Penal;
iv) Com título «caducado» (não definitivamente) nos termos do artigo 130.º, n.º 1 do Código da Estrada, é punido nos termos do artigo 130.º, n.º 7 do Código da Estrada;
v) Com título «caducado» (definitivamente) nos termos do artigo 130.º, n.º 3 do Código da Estrada, é punido pela prática de crime de condução sem habilitação legal, nos termos do artigo 130.º, n.º 5 do Código da Estrada e artigo 3.º, n.ºs 1 e/ou 2, do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro;
vi) Com título «cassado», nos termos do artigo 130.º, n.º 1, al. d), é punido pelo artigo 130.º, n.º 7 do Código da Estrada, para quem entenda que a punição se encontra aí prevista, ou pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e/ou 2, do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro, de acordo com a jurisprudência maioritária.
No caso, uma vez que a Arguida conduziu com título cuja validade se encontrava expirada, portanto título inválido, não pode a sua conduta ser punida pelo artigo 125.º, n.º 8 do Código da Estrada, sendo que, estando perante um caso de caducidade (não definitiva), deve a punição ocorrer nos termos sobreditos, pelo artigo 130.º, n.º 7 do Código da Estrada – em sentido semelhante cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07 de Fevereiro de 2023, relatado por LAURA GOULART MAURÍCIO, proc. 350/22.5GABNV.E1; já assim, ao abrigo do anterior regime legal, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25 de Maio de 2021, relatado por GOMES DE SOUSA, proc. 135/20.3GCABF.E1, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15 de Maio de 2013, relatado por BELMIRO ANDRADE, proc. 50/11.1GTGRD.C1; todos os acórdãos já citados e disponíveis para consulta in dgsi.pt.
Deste modo, a Arguida deve ser absolvida do crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro, de que vinha acusada, devendo, todavia, ser apreciada a sua responsabilidade contra-ordenacional, pela prática da contra-ordenação prevista e punida pelo artigo 130.º, n.º 1 al. a) e n.º 7 do Código da Estrada, atento o preenchimento dos elementos quer objectivos, quer subjectivos do tipo.
Com efeito, quanto ao tipo subjectivo, resultou provado que a Arguida sabia que se encontrava a conduzir na via pública, conhecia as características do veículo e da obrigatoriedade de possuir documento que a habilitasse à condução do mesmo e, não obstante, quis conduzir nas circunstâncias descritas, tendo agido sempre consciente e voluntariamente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação, tendo actuado com dolo directo.
De facto, neste caso, o artigo 77.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (doravante apenas RGCO), estabelece que o tribunal poderá apreciar como contra-ordenação uma infracção que foi acusada como crime.
Assim, apesar da sua absolvição da prática do ilícito criminal, poderia a Arguida ser responsabilizada pela prática do ilícito contra-ordenacional.
(...).».


2.3. Apreciação do mérito do recurso
Tal como referimos supra, a questão suscitada no recurso em apreço é a da incorreta subsunção dos factos ao direito, defendendo o recorrente/Ministério Público que a matéria factual provada integra o crime de condução de veículo sem habilitação legal p.p. pelo artigo 3º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de janeiro.
Vejamos:
Nos termos do disposto no artigo 3º do Decreto-Lei n.º 2/98 de 3 de janeiro, comete o crime de condução sem habilitação legal, quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada, sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada.
Como se refere no Acórdão desta Relação de Évora, de 11/05/2021[1], resulta da enunciada disposição legal, que os elementos objetivos do tipo, «ou seja, a definição da ausência de habilitação para a atividade de condução será sempre definida pelo Código da Estrada e não, por qualquer diploma complementar, designadamente, o Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir (RHLC), que mais não faz do que definir os procedimentos administrativos com vista à obtenção, renovação ou substituição da carta de condução.»
Assim:
Dispõe o artigo 121º do Código da Estrada que “só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito”.
O documento que titula a habilitação para conduzir é a carta de condução, a qual é emitida pela entidade competente e válida para as categorias de veículos e períodos de tempo nela averbados (cf. artigo 123º do Código da Estrada e artigo 3º do Regulamento da habilitação legal para conduzir, a aprovado pelo Decreto-Lei n.º 138/2012, de 05 de julho).
São ainda títulos legais que habilitam a condução de veículos a motor os identificados no artigo 125º do Código da Estrada.
Precisamente, sob a epígrafe “Outros títulos”, dispõe o artigo 125.º do Código da Estrada, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 102-B/2020, de 09 de dezembro e pelo Decreto-Lei n.º 46/2022, de 12 de julho e na parte que ao caso dos autos importa, que:
«1 - Além da carta de condução são títulos habilitantes para a condução de veículos a motor os seguintes:
(...)
c) Títulos de condução emitidos por outros Estados-Membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) ou da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), desde que verificadas as seguintes condições cumulativas:
i) O Estado emissor seja subscritor de uma das convenções referidas na alínea seguinte ou de um acordo bilateral com o Estado Português;
ii) Não tenham decorrido mais de 15 anos desde a emissão ou última renovação do título;
iii) O titular tenha menos de 60 anos de idade;
d) Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro em conformidade com o anexo n.º 9 da Convenção Internacional de Genebra, de 19 de setembro de 1949, sobre circulação rodoviária, ou com o anexo n.º 6 da Convenção Internacional de Viena, de 8 de novembro de 1968, sobre circulação rodoviária;
e) Títulos de condução emitidos por Estado estrangeiro, desde que em condições de reciprocidade;
(...)
2 - A emissão das licenças e das autorizações especiais de condução bem como as condições em que os títulos estrangeiros habilitam a conduzir em território nacional são fixadas no RHLC.
3 - Os titulares das licenças referidas nas alíneas d), e) e g) do n.º 1 estão autorizados a conduzir veículos a motor em Portugal durante os primeiros 185 dias subsequentes à sua entrada no País, desde que não sejam residentes.
4 - Após fixação da residência em Portugal, o titular das licenças referidas no número anterior deve proceder à troca do título de condução, no prazo de 90 dias.
5 - Os títulos referidos no n.º 1 só permitem conduzir em território nacional se os seus titulares tiverem a idade mínima exigida pela lei portuguesa para a respetiva habilitação, encontrando-se válidos e não apreendidos, suspensos, caducados ou cassados por força de disposição legal, decisão administrativa ou sentença judicial aplicadas ao seu titular em Portugal ou no Estado emissor.
6 - [Revogado.]
7 - [Revogado.]
8 - Quem infringir o disposto nos n.ºs 3 a 5, sendo titular de licença válida, é sancionado com coima de (euro) 300 a (euro) 1500.»
Como resulta expressamente do artigo 1º do Decreto-Lei n.º 46/2022, de 12 de julho, este diploma habilita a condução de veículos a motor pelos titulares de títulos de condução emitidos por Estados-Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, procedendo à alteração ao Código da Estrada (concretamente dos artigos 125º e 128º).
Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 46/2022, que ocorreu em 01 de agosto de 2022 (cf. artigo 3º do referenciado diploma legal), tendo sido alterada a redação do artigo 125º, n.ºs 1, al. c), 3 e 5, do Código da Estrada, formou-se uma corrente jurisprudencial, ao que se crê, atualmente maioritária, no sentido de entender que, em face dessa alteração, condutas que antes integravam o crime de condução sem habilitação legal previsto no artigo 3º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, deixaram de constituir crime e passaram a ser puníveis como contraordenação.
Entre essas condutas e, no que ao presente caso importa, está o exercício da condução de veículo, por quem, detenha título de condução emitido por outro Estado-Membro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, que se encontre caducado, mas sendo suscetível de renovação.
A divergência entre os defensores desta corrente jurisprudencial está em saber qual o ilícito contraordenacional que aquela conduta integra, se o previsto no n.º 8 do artigo 125º ou antes o previsto no n.º 7 do artigo 130º, ambos do Código da Estrada[2].
Na sentença recorrida esta problemática foi tratada de forma aprofundada, merecendo-nos inteira concordância o entendimento perfilhado e a solução adotada.
Com efeito, salvo o devido respeito pela posição contrária, propugnada pelo recorrente/Ministério Público, sufragamos o entendimento acolhido na sentença recorrida, de que a conduta da arguida, nascida em (……), ao conduzir, um veículo automóvel, em Portugal, em 21/03/2023, na via pública, sendo titular de Carteira Nacional de Condução, emitida pela República Federativa do Brasil, Estado de São Paulo, em 21/09/2018 e cujo prazo de validade expirou em 30/03/2022, não integra a prática do crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 3º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de janeiro, mas sim a contraordenação prevista no artigo 130º, n.º 7, do Código da Estrada.
Melhor explicitando:
É ponto assente que à data da prática dos factos, a Carteira Nacional de Condução, emitida pela República Federativa do Brasil, de que a arguida é titular, estava caducada, há 11 meses e 21 dias.
Não podia, por isso, a arguida conduzir, em território nacional, veículos automóveis, na via pública, uma vez que o título que, para tanto, a habilita, embora suscetível de revalidação, estava caducado.
A arguida, não era, por isso, à data da prática dos factos, titular de licença de condução válida, posto que o respetivo prazo de validade já havia expirado. E, nessa situação, entendemos ser de afastar a subsunção da apurada conduta da arguida à previsão do artigo 125º, n.º 8, do Código da Estrada.
Relativamente à caducidade dos títulos de condução, dispõe o artigo 130º do Código da Estrada, na redação do Decreto-Lei n.º 102-B/2020, de 09 de janeiro, que:
«1 - O título de condução caduca se:
a) Não for revalidado, nos termos fixados no RHLC, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respetivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período;
(...)
2 - A revalidação de título de condução caducado fica sujeita à aprovação do seu titular em exame especial de condução, cujo conteúdo e características são fixados no RHLC, sempre que:
a) A causa de caducidade prevista na alínea a) do número anterior tenha ocorrido há mais de dois anos e há menos de cinco anos, com exceção da revalidação dos títulos das categorias AM, A1, A2, A, B1, B e BE cujos titulares não tenham completado 50 anos;
(...)
3 - O título de condução caducado não pode ser renovado quando:
a) [Revogada.]
b) [Revogada.]
c) O titular reprove, pela segunda vez, em qualquer das provas do exame especial de condução a que for submetido;
d) Tenham decorrido mais de dez anos sobre a data em que deveria ter sido renovado.
(...)
5 - Os titulares de título de condução caducado consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido, sendo-lhes aplicável o regime probatório previsto no artigo 122.º caso venham a obter novo título de condução.
(...)
7 - Quem conduzir veículo com título caducado, nos termos previstos no n.º 1, é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600.»
A questão que se coloca é a de saber se o artigo 130º do Código da Estrada se aplica, apenas aos títulos de condução emitidos pelo Estado Português, ou também, aos títulos de condução emitidos por autoridades estrangeiras que sejam reconhecidos por Portugal, como é o caso do Brasil.
Sufragamos o entendimento que foi também acolhido na sentença recorrida, no sentido de o artigo 130º do Código da Estrada ser também aplicável aos títulos de condução previstos no artigo 125º, abrangendo as licenças de condução emitidas por países estrangeiros que sejam reconhecidas pelo Estado Português no âmbito de convenção ou tratado internacional celebrado.
Embora se reporte a momento anterior à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 46/2022, que ocorreu em 01 de agosto de 2022, consideramos ser plenamente válida, em sustentação da posição que perfilhamos, surgindo até reforçada ante a alteração do artigo 125º, n.º 1, al. c), do Código da Estrada introduzida por aquele Decreto-Lei, a argumentação expedida no Acórdão desta Relação de Évora, de 02/07/2019[3], que, por isso, aqui se reproduz:
O comando do n.º 7 do artigo 130º do Código da Estrada – estatuindo que: Quem conduzir veículo com título caducado, nos termos previstos no n.º 1, é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600. – «não faz qualquer distinção entre títulos emitidos em Portugal e em país estranho à União Europeia, sendo certo que umas das regras basilares da interpretação das normas é aquela que diz que o interprete não deve proceder a distinções onde o legislador as não fez.
Nomeadamente, como é caso, se tais distinções podem ser atentatórias do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado (Art.º 13 da CRP), sem que, para tanto, se vislumbrassem razões suficientes para as mesmas.
Dispondo o arguido de um título de condução emitido pela República Federativa do Brasil e reconhecido pela legislação portuguesa, mas caducado há menos de cinco anos, não se vê razões para que a tal situação não se aplique o nº 7 do Art.º 130 do C. da Estrada (...) .
Não se desconhece alguma incoerência do sistema – quando, nesta tese, se prevê uma coima de € 120 a € 600 para quem conduzir um veículo em território português munido de um título de condução brasileiro caducado há menos de cinco anos e uma coima de € 300 a € 1.500 para quem não tenha providenciado pela substituição dessa licença por um título nacional no prazo de 185 dias nos quais poderia conduzir com aquela licença – mas a mesma, com o devido respeito, sendo relevante para a harmonização da normas, não contende com um princípio superior e que se relaciona com a exigência constitucional de não discriminar, negativamente, as cartas de condução emitidas por países com os quais Portugal tem convenção ou tratado internacional, devendo ser retiradas, desse reconhecimento, todas as consequências, nomeadamente, ao nível de um tratamento criminalmente mais favorável aos arguidos.
Sendo seguro que nenhuma dúvida se colocaria sobre a subsunção da situação ao nº 7 do C. da Estrada, se o título em causa, caducado, fosse emitido pela República Portuguesa ou outro país da União Europeia, não existem motivos válidos para assim não se considerar apenas pela circunstância de a licença em causa ser proveniente do Brasil, até porque daí não decorre qualquer impedimento que a mesma seja revalidada no país de origem (...).»
Em face do exposto, concluímos que bem andou o Tribunal a quo, ao decidir pela absolvição da arguida da prática do crime de condução de veículo sem habilitação legal p. e p. pelo artigo 3º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/08, de 03 de janeiro e ao condená-la pelo cometimento de uma contraordenação p. e p. pelo artigo 130º, n.º 7, do Código da Estrada.
O recurso é, pois, improcedente.

3. DECISÃO

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Sem tributação.

Notifique.

Évora, 07 de maio de 2024

Fátima Bernardes

Fernando Pina

Renato Barroso

__________________________________________________
[1] Proferido no proc. n.º 249/20.0PAVRS.E1, acessível in www.dgsi, sendo relator o Desembargador Renato Barroso, ora 2º adjunto e no qual a aqui relatora foi adjunta.
[2] Cf., num e noutro dos sentidos, os acórdãos citados na sentença recorrida e, ainda, mais recentemente, no sentido de integrar a contraordenação prevista no artigo 125º, n.º 8, do Código da Estrada, Ac. da RP de 19/12/2023, proc. n.º 390/23.7GDVFR.P1; Ac. RE de 09/01/2024, proc. n.º 977/23.8GBABF.E1; Ac. da RL de 01/01/2024, proc. n.º 485/23.7PHOER.L1-5, de 23/01/2024, proc. n.º 1356/21.7GCALM.L1-5 e Ac. da RC de 06/03/2024, proc. n.º 395/23.8GDCBR.C1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[3] Proferido no proc. n.º 1484/17.3GBABF.E1, sendo relator o Desembargador Renato Barroso, ora 2º Adjunto e no qual a aqui relatora foi adjunta.