Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3576/18.2T8CBR.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: VÍTOR AMARAL
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
DEVER DE DECLARAÇÃO INICIAL DO RISCO QUE INCUMBE AO SEGURADO
ÓNUS DA PROVA DO INCUMPRIMENTO DE TAL DEVER
PRINCÍPIO DA BOA-FÉ
OMISSÃO DO DEVER DE INFORMAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE DOENÇAS PRÉ-EXISTENTES POR PARTE DO SEGURADO
ANULABILIDADE DO CONTRATO DE SEGURO
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 04/23/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA, COM VOTO DE VENCIDO
Legislação Nacional: ARTIGO 5.º, 3, DO CPC
ARTIGOS 287.º, 2 E 342.º, 1, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 24.º A 26.º DO RJCS
Sumário: 1. - O dever pré-contratual de declaração inicial do risco, a cargo do tomador do seguro ou segurado/aderente – previsto no art.º 24.º do RJCS, aprovado pelo DLei n.º 72/2008, de 16-04 (e anteriormente no art.º 429.º do CCom.) –, incide sobre todas as circunstâncias conhecidas do declarante (e só essas), desde que relevantes para a apreciação do risco.
2. - Cabe ao réu, defendendo-se, por via de exceção, mediante a invocação do incumprimento daquele dever e consequente invalidade (no caso, anulabilidade) do contrato de seguro, demonstrar tal incumprimento, impendendo sobre si o ónus da alegação e prova dos respetivos factos concludentes.

3. - No quadro da declaração inicial do risco, a cargo do tomador do seguro ou segurado (ou pessoa segura/aderente), na fase pré-contratual tendente à celebração do contrato de seguro, assume papel essencial o princípio da boa-fé, desde logo por o contrato de seguro ser tradicionalmente considerado como contrato uberrima bona fides.

4. - O princípio da boa-fé revela determinadas exigências objetivas de comportamento impostas pela ordem jurídica, exigências essas de razoabilidade, probidade e equilíbrio de conduta, num campo normativo onde operam subprincípios, regras e ditames ou limites objetivos, indicando um certo modo de atuação dos sujeitos, considerado conforme à boa-fé.

5. - Se a pessoa segura, em sede de declaração inicial do risco, ao responder ao questionário médico integrante da proposta de adesão ao seguro de grupo, bem sabia que tinha sido submetida a tratamento hospitalar, por lesão de 99% na descendente anterior proximal, com clínica compatível com insuficiência coronária e enfarte do miocárdio, com internamento em serviço de cardiologia, com realização de cateterismo e implantação de stent, e padecia de dislipidemia, mas omitiu qualquer informação a respeito, incorreu, por isso, em atuação dolosa, tendente a enganar a contraparte, quanto a uma circunstância pessoal relevante para apreciação do risco pela seguradora.

6. - Estando provado que tal seguradora, se soubesse da existência desse prévio quadro clínico, de doença cardíaca/cardiovascular, não teria aceitado subscrever o contrato de seguro ou excluiria qualquer tipo de consequência futura relacionada com essa doença, verificada está a existência de omissão dolosa, praticada por aquela pessoa segura/declarante, viciante da vontade de contratar da contraparte (perturbando a sua avaliação sobre a dimensão/intensidade do risco), a justificar a anulação do contrato de seguro ao abrigo do disposto no art.º 25.º do RJCS, preceito que contempla, na sua conjugação com o art.º 253.º, n.º 1, do CCiv., tanto a intenção, como a consciência, de induzir ou manter em erro a contraparte.

7. - Não estando o contrato cumprido – por a seguradora não ter realizado a prestação contratualmente definida a seu cargo –, pode a anulabilidade ser arguida a todo o tempo, designadamente por via de exceção na ação tendente ao cumprimento, sem que tal configure abuso do direito.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:



***

I – Relatório

1.ª - AA e

2.º - BB,

ambos com os sinais dos autos,

intentaram ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra

A..., S. A.”, também com os sinais dos autos,

pedindo que:

a) Seja «declarada a validade dos contratos de seguro de vida celebrados a 28 de Outubro de 2009 (Certificado ...47) e a 17 de Julho de 2015 (Certificado nº ...96), entre AA e marido CC e a Ré»; e

b) Seja «a Ré condenada a proceder ao pagamento do capital seguro no âmbito dos contratos acima identificados».

Para tanto, alegaram, em síntese, que:

- no quadro de relação de crédito bancário à habitação, em que a 1.ª A. e o seu falecido marido, CC (com óbito em ../../2016), eram mutuários, aqueles celebraram/aderiram (a)os contratos de seguro de vida supra referidos (como pessoas seguras, em contratos de seguro de grupo), sendo o 2.º A. filho do casal, pelo que os AA. são os únicos herdeiros do falecido;

- após o óbito referido, os AA. desencadearam junto da R. o processo de pagamento do capital seguro nas apólices, deparando-se, porém, com a recusa de tal R., que invocou a nulidade do contrato de seguro por declarações inexatas, visto não ter sido feita qualquer referência, aquando da subscrição/adesão ao(s) contrato(s) de seguro de vida em análise, a qualquer tipo de doença pré-existente do referido marido da A., CC;

- todavia, aquele CC não violou o dever de declarar com exatidão todas as circunstâncias que conhecesse e razoavelmente devesse ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador;

- ainda que se entendesse que ocorreu violação de tal dever, nunca o incumprimento poderia qualificar-se como doloso, havendo, por outro lado, sido ultrapassado o prazo para a arguição da anulabilidade, para além da ausência do nexo de causalidade entre a doença e a morte.

Contestando, a R. defendeu-se:

- declinando a responsabilidade, por a pessoa segura ter prestado declarações falsas, visto ter omitido voluntariamente doença cardiovascular preexistente grave, que influiu na análise e cobertura do risco e originou a morte, sendo o contrato de seguro/adesão nulo; e

- concluindo pela improcedência da ação e, bem assim, pela a intervenção principal provocada do “Banco 1..., S. A.”, também com os sinais dos autos, por ter interesse igual ao dos AA., dado ser o beneficiário do seguro.

Admitida a intervenção, o banco chamado (Banco 1...) apresentou o seu articulado, pedindo que lhe seja diretamente entregue o montante respeitante à quantia ainda em dívida, por conta dos empréstimos, a liquidar oportunamente.

Teve lugar a audiência prévia e foi proferido saneador-sentença, âmbito em que se decidiu julgar a ação procedente, com condenação da R. em conformidade, do que recorreu a demandada, vindo este Tribunal da Relação a revogar tal impugnada sentença, determinando o prosseguimento dos autos.

Teve lugar nova audiência prévia, com os AA. a responderem às exceções invocadas, a que se seguiu a prolação de despacho saneador, com enunciação do objeto do litígio e dos temas de prova, sem reclamações.

Procedeu-se depois à audiência final, com produção de provas, a que se seguiu a sentença (datada de 16/11/2023), esta com dispositivo absolutório: foi julgada improcedente a ação, com total absolvição da R. do peticionado ([1]).

De tal sentença absolutória vieram os AA., inconformados, interpor o presente recurso, apresentando alegação e formulando as seguintes

Conclusões ([2]):

«a) O segurado, portador de vulnerabilidade fáctica e jurídica na relação contractual com a seguradora, não agiu com dolo causal, especialmente censurável pela sua gravidade; não “urdiu”, nem “maquinou”.

b) Não induziu, por isso, a seguradora em erro essencial, determinante, na formação da declaração de vontade negocial.

Onde está o artifício, enquanto elemento objectivo do dolo?

Onde está, além desse elemento objectivo, o elemento subjectivo da intensão de enganar, isto é, a utilização do artifício para induzir a companhia seguradora a celebrar o contrato, e conhecimento de que esta, de outro modo, não o teria celebrado?

c) A seguradora dispensou o exame médico prévio do segurado e exigiu da parte vulnerável o poder absoluto de controlo das suas declarações, tendo em vista a confirmação ou complemento das informações prestadas, isto é,

d) o “direito a esmiudar” (em clara violação do princípio da equidade contratual, um abuso de posição dominante) tudo o que à saúde do segurado respeitasse, enquanto autorização essencial para a avaliação de risco e possibilidade de celebração do próprio contrato.

e) O segurado de boa-fé concedeu essa autorização, depositando, enquanto consumidor – o que o era –, plena confiança no vínculo contractual.

f) Ao aceitar aquela exigência de autorização, com a vastidão explicitada na prova documental assente junto aos autos, é razoável, face às regras de experiência e à normalidade dos actos da vida, apontar para uma actuação dolosa, especialmente elaborada, por parte do segurado, tendente a induzir em erro a seguradora?

g) Em verdade, as máximas de experiência pertencem à cultura média, ao sentido comum, e este também se serve de estereótipos, para além de generalizações, nos que se definem personagens típicas, das quais nos servimos para interpretar a realidade.

h) Alguém que assina uma declaração como a referida pertence ao estereótipo do homem capcioso, mendaz, falso, urdidor, enganador?

i) Quem dá uma “autorização de devassa” com tal conteúdo e extensão, que conduta ardilosa, dolosa, sugestiva, fraudulenta pratica (acção ou omissão) apta a induzir em erro a seguradora?

j) O silêncio, a omissão, a não declaração, a simples reticência não corporizam o conceito de dolo especialmente grave, determinante e essencial.

k) Toda e qualquer hipotética conduta omissiva, reticente, fraudulenta do segurado só poderia lograr resultados face à negligência grosseira da seguradora, que autoinduziu o erro viciador do consentimento.

l) Ao renunciar ao exame médico prévio do segurado, ao abdicar do ónus da autoinformação esclarecedora, ao negligenciar toda e qualquer conduta zelosa apta a afastar qualquer vício de vontade por erro induzido pelo segurado, ao manter o contrato em vigor, ao receber prémios durante um período alargado, ao celebrar, decorridos mais de 5 anos um novo contrato com aquele, a seguradora gerou confiança e segurança jurídica na relação contratual.

m) Ao conservar a possibilidade de, a qualquer momento, se e quando lhe desse jeito ou julgasse oportuno (vá-se lá saber quando), invocar as omissões e inexactidões iniciais do segurado para exonerar-se de liquidar o sinistro, é conduta contrária à boa fé contratual, é prática abusiva, conduta que ultrapassa a razoabilidade, os limites impostos pela boa fé objectiva, enquanto “standard” de actuação do homem médio, na situação em análise.

É querer o melhor dos dois mundos!...

n) Estribar-se em erro próprio indesculpável, vencível, erro em que não teria caído (ou teria sido evitado), nas circunstâncias concretas do caso, uma qualquer pessoa de mediana diligência, inteligência, experiência e circunspecção ou com exigível bom senso, para deduzir oposição à pretensão dos autores, é litigar de má-fé.

o) Mais, ao omitir-se do exercício do direito, faculdade ou pretensão que a autorização de vasculhamento da situação de saúde do segurado lhe facultou; tendo prescindido do exame médico prévio; tendo, ainda, renunciado ao dever de esclarecer qualquer erro, imprecisão, inexactidão, engano ou mentira do segurado, fazendo uso normal de diligência; com ciência e consciência, do contemplado no art. 190º da LCS e do regime especial de incontestabilidade; ao vincular-se, ainda assim, contratualmente; ao outorgar quase 6 anos depois um outro contrato com o segurado; tudo evidencia a objetiva intolerabilidade da posterior retardada invocação do vício da vontade, e outra coisa não é, a final, senão “atraso desleal”, supressio, que implica ter sido ultrapassado o limite ao exercício do direito que a boa-fé impõe.

p) Um direito subjectivo, uma faculdade ou uma pretensão não pode exercitar-se quando o titular não só não se preocupou durante muito tempo em fazê-los valer, como inclusive deu lugar com sua atitude omissiva a que o adversário da pretensão possa esperar objectivamente que o direito já não se exercitará. Assim decorrendo, com obviedade, a violação do princípio da confiança e também da segurança jurídica, com referência à relação contratual (sobretudo quando esse direito de “esmiudar” é exigido para avaliação inicial de risco e como condição sem a qual o contrato não se formaria).

q) A seguradora só não preveniu, pois, qualquer erro na formação da sua vontade negocial, porque não quis.

r) Estava na sua mão, quer através do exame médico prévio ou do poder exigido de controlar absolutamente o estado de saúde do segurado com o uso de normal de diligência, dar-se conta de qualquer erro viciador da sua vontade e, desse modo, evitar a celebração do contrato ou celebrá-lo em diferentes condições; logo, não foi qualquer actuação exterior do segurado que impediu a livre formação da vontade da seguradora.

Assim, invocar a mentira do segurado como determinante do seu consentimento contractual é, tão só, pretexto para se libertar de um contrato a que se vinculou e que ex post se revelou não vantajoso.

s) Não o fez (nem exame prévio nem exercitou o direito de esmiudar), apesar do pleno domínio da situação, e do carácter grosseiro da sua negligência decorre a assunção do risco.

t) Servir-se de um hipotético erro ou ignorância provocados por negligência própria, que procede de culpa grave, indesculpável, para invocar a anulação de uma relação contratual a que se vinculou, não é conduta honesta, leal, correcta, própria de uma pessoa de bem, logo fundada em boa-fé.

u) Esta decisão não faz, pois, justiça a ninguém.

Princípio geral de direito violado: princípio da boa-fé;

Princípios de direito violados: da confiança e segurança jurídica contratuais.

Normas jurídicas violadas: Art. 615º, 1, d) do CPC; arts. 24º, 1 a 3, 93º, 94º, 188º e 190º da LCS; art. 762º, 2 do CC.

Termos em que deverão Vs. Exªs., revogando a sentença, proferir acórdão que afaste a conduta dolosa especialmente grave, determinante, do segurado (que a ré não alegou nem provou), indutora de um erro essencial da seguradora, com as legais consequências.

Ao não afastá-la, a sentença recorrida faz uma incorrecta eleição e interpretação da regra jurídica aplicável ao caso.

Mais deverão, pelas razões acima aduzidas nas alegações e conclusões, condenar a ré como litigante de má-fé.».

A R. contra-alegou, pugnando pela total improcedência do recurso.


***

O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo então sido ordenada a remessa dos autos a este Tribunal ad quem, onde foi mantido o regime e efeito fixados.

Nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito recursivo

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais, como é consabido, definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([3]) ([4]) –, importa saber, no essencial ([5]):

a) Se é de ter por invocada e está consubstanciada causa de nulidade da sentença – vício de omissão de pronúncia [ante a imputada violação do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv.];

b) Se a exceção da anulabilidade do contrato de seguro deve improceder, por não demonstrada, mormente quanto ao discutido “dolo causal” ou, ao invés, “negligência grosseira” da seguradora, “autoinduz[indo] o erro grosseiro viciador do consentimento” [conclusões a) a k)];

c) Se ocorre abuso do direito, por violação do princípio da boa-fé ou supressio [conclusões o) e segs.].


***

III – Fundamentação

         A) Nulidade da sentença

         Da omissão de pronúncia

         Invocam os Recorrentes, como norma violada, o disposto no art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv., sendo, porém, que não identificam, no seu acervo conclusivo, qual a concreta questão que, devendo ser solucionada, ficou por conhecer na sentença.

         Assim, apenas no seu antecedente corpo de alegação invocaram que ocorre litigância de má-fé da R. (“abusando do direito”), a dever esta, por isso, ser “condenada em multa e indemnização adequada, a fixar a final (…)”, para depois prosseguirem mediante a asserção de que, “sobre esta questão, que está na essência da formação do contrato e contende com o suposto vício na formação da vontade do segurador, o Sr. Juiz, invocando prejudicialidade, não se pronunciou – e deveria tê-la apreciado –, razão pela qual a sentença enferma de nulidade, nos termos do art. 615º nº 1, alin. d) do CPC, que se invoca.”.

         A contraparte, em resposta, pugna pela improcedência, em geral, da argumentação das Apelantes.

O Tribunal a quo, ao admitir o recurso, invocou assim: «O tribunal pronunciou-se sobre a questão suscitada pelos AA. no requerimento que apresentou no decurso da audiência final. Sobre isso afirmou-se na sentença: “Tendo o falecido respondido negativamente às questões colocadas sobre a existência de doenças, não se vislumbra litigância de má-fé da seguradora (artº 542º CPC)”. A juntar ao resto da fundamentação quer de facto quer de direito. Não se vislumbra assim qualquer nulidade da sentença.».

         Vejamos, então.

Nos termos do disposto no art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv., é nula a sentença quando o juiz “deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento” (sublinhado aditado).

E, como é consabido, são as conclusões formuladas pela parte recorrente, com reporte à decisão impugnada, que definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso, devendo, por outro lado, ser respeitada a regra do duplo grau de jurisdição, também em matéria de direito, de molde a não prejudicar o direito ao recurso que assiste às partes, não cabendo ao Tribunal de recurso decidir questões que o Tribunal recorrido não apreciou (criar direito novo), mas sim sindicar a bondade do que haja sido decidido na instância inferior (apreciar o julgado por outro Tribunal).
          Ainda por outro lado, pode ocorrer que as partes, não concordando com o sentido da decisão proferida, venham invocar omissão ou excesso de pronúncia, a falta de decisão devida ou o extravasar para decisão indevida, para obterem um diverso veredito, uma inversão da decisão judicial proferida.
          Em tais casos, porém, o que pode ocorrer é uma divergência face ao sentido decisório adotado, o que se prende já, não com os vícios formais da decisão (nulidades da sentença), mas com o mérito da mesma, com o fundo da questão, o que já encerrará matéria de direito, prendendo-se com um eventual erro de julgamento de direito.
          Acresce ainda que, como vêm entendendo, de forma pacífica, a doutrina e a jurisprudência, somente as questões em sentido técnico, ou seja, os assuntos que integram o thema decidendum, ou que dele se afastam, constituem verdadeiras questões de que o tribunal tem o dever de conhecer para decisão da causa ou o dever de não conhecer, sob pena de incorrer na nulidade prevista no aludido preceito legal.

De acordo com Amâncio Ferreira ([6]), “trata-se de nulidade mais invocada nos tribunais, originada na confusão que se estabelece com frequência entre questões a apreciar e razões ou argumentos aduzidos no decurso da demanda”.

E, segundo Alberto dos Reis ([7]), “são na verdade coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”.

Já Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes ([8]), por sua vez, referem que “a observação da realidade judiciária mostra que é vulgar a arguição da nulidade da decisão”, sendo que “por vezes se torna difícil distinguir o error in judicando – o erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação da norma jurídica aplicável – e o error in procedendo, como é aquele que está na origem da decisão”.

Por seu turno, Antunes Varela ([9]) esclarece,
em termos de delimitação do conceito de nulidade da sentença, que “não se inclui entre as nulidades da sentença o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário (…) e apenas se curou das causas de nulidade da sentença, deixando de lado os casos a que a doutrina tem chamado de inexistência da sentença”.

Na nulidade aludida está em causa o uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de se pretender conhecer de questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não se tratar de questões de que deveria conhecer-se (omissão de pronúncia). São, sempre, vícios que encerram um desvalor que excede o erro de julgamento e que, por isso, inutilizam o julgado na parte afetada.
          No caso dos autos, teria a parte apelante de fazer constar das suas conclusões recursivas a indicação da específica questão em sentido técnico que houvesse ficado por conhecer, para o que não bastava mencionar ali, sem mais, a violação do art.º 615.º, n.º 1, al.ª d), do NCPCiv..
          Ora, das conclusões dos Apelantes não consta uma qualquer alínea em que se mencione qual a questão de que se não tenha conhecido e que, por isso, haja ocasionado a infração àquela norma adjetiva.
          Tal logo determina, por falta de indicação/explanação nas conclusões de recurso, a improcedência da mencionada nulidade da sentença.
          Mas ainda que assim não se entendesse, e se considerasse o anterior acervo alegatório, constando na motivação do recurso a afirmação de que não foi apreciada a matéria de litigância de má-fé da R., âmbito em que se pretendia a respetiva condenação em incidental multa e indemnização, nem por isso poderia acolher-se o pretendido vício de nulidade da sentença.
          É que, muito embora no final da fundamentação jurídica da sentença se aluda a uma situação de “prejudicialidade” quanto à “apreciação de outras questões (…)”, como invocam os Apelantes, certo é também, por outro lado, que ali se refere, expressamente, que «não se vislumbra litigância de má-fé da seguradora (art.º 542.º do CPC», perante o que se concluiu, já no âmbito do dispositivo, pela total improcedência da ação e inerente absolvição da R., também, pois, em matéria incidental de litigância de má-fé.
          Por isso, essa matéria incidental não ficou por conhecer e decidir, o que afasta, desde logo, o vício de omissão de pronúncia, o único que poderia entender-se ter sido invocado ([10]).
          Em suma, improcede a mencionada nulidade da sentença.

B) Matéria de facto

1. - Na 1.ª instância foi julgada – e assim subsiste – como provada a seguinte factualidade ([11]):

«1.º A Autora AA é viúva de CC e o Autor BB é filho de CC [art1pi].

2.º O marido da A., CC, faleceu a 10 de Março de 2016 [art2pi]

3.º Não tendo deixado testamento ou qualquer disposição de última vontade [art3pi]

4.º Pelo que foram declarados como únicos herdeiros o cônjuge AA (cabeça de casal) e o filho do casal, BB [art4pi]

5.º Por escritura pública, celebrada a 11/11/2009, o Banco concedeu à Autora e seu marido, a pedido destes, um empréstimo no montante de €123.250,00, para efeitos de aquisição da sua habitação própria e permanente [art2articuladobanco].

6.º Na sequência das propostas de adesão subscritas pelos segurados em 28/10/2009 e 17/07/2015, a Ré aceitou e emitiu os seguintes contratos de seguro de vida associados aos créditos à habitação contraído pelos segurados junto do Banco 1..., S.A. (doravante Banco 1...) [art1contestaçãoseguradora]:


7.º O certificado individual de seguro n.º ...47 diz respeito ao seguro de grupo com a apólice n.º ...90 em que o tomador de seguro e beneficiário irrevogável do referido certificado individual/seguro é o Banco 1... [art2contestaçãoseguradora].

8.º O certificado individual de seguro n.º ...96 diz respeito ao seguro de grupo com a apólice n.º ...20 em que o tomador de seguro e beneficiário irrevogável do referido certificado individual/seguro é o Banco 1... [art3contestaçãoseguradora].

9.º Os certificados de seguro vindos de referir (n.ºs ...47 e ...96) garantiam, nos termos dos contratos de seguro (condições particulares, gerais e especiais), a cobertura de morte ou invalidez total e permanente, no caso do certificado n.º ...47) e a cobertura de morte e de Invalidez Total e Permanente por Acidente (ITPA), ou Invalidez Absoluta e

Definitiva (IAD) (no caso do certificado n.º ...96) [art4contestaçãoseguradora].

10.º A emissão do contrato de seguro titulado pelo certificado n.º ...47 teve por base as declarações prestadas pelos Proponentes na Proposta de Adesão subscrita em 28.10.2009 [art5contestaçãoseguradora].

11.º O Certificado Individual foi emitido sem que tenha havido qualquer agravamento ou exclusão [art6contestaçãoseguradora].

12.º O capital seguro inicial referente ao certificado individual n.º ...47 ascendia à quantia de €123.250,00, sendo que na data da morte do segurado BB o capital seguro era de €107.585,79 [art7contestaçãoseguradora].

13.º A emissão do contrato de seguro titulado pelo certificado n.º ...96 teve por base as declarações prestadas pelos Proponentes na Proposta de Adesão subscrita em 17.07.2015 [art8contestaçãoseguradora].

14.º O Certificado em apreço foi emitido com as coberturas de Morte ou Invalidez Total e Permanente por Acidente (ITPA), ou Invalidez Absoluta e Definitiva (IAD), sem que tenha havido qualquer agravamento ou exclusão [art9contestaçãoseguradora].

15.º O seguro contratado é um seguro de vida temporário a prémio único (no valor de €1.744,84, pago para a totalidade do prazo contratado), para o capital máximo seguro de 16.444,83€ [art10contestaçãoseguradora].

16.º Este contrato de seguro está associado a um contrato de Crédito Pessoal e o seu propósito é garantir o pagamento do capital seguro ao beneficiário irrevogável do mesmo (Banco 1...), no momento em que se verifique, em relação à pessoa segura, um dos riscos cobertos pelo contrato [art11contestaçãoseguradora].

17.º O capital seguro corresponde, em cada momento, à importância em dívida ao Tomador do Seguro, calculada de acordo com o respetivo Contrato de Crédito [art12contestaçãoseguradora].

18.º Os Certificados Individuais foram enviados para a morada constante de ambas as propostas de adesão [art13contestaçãoseguradora].

19.º A aceitação destes contratos foi efetuada no pressuposto de que as declarações e informações prestadas pelos Proponentes nas Propostas de Adesão, assinadas em 28.10.2009 e 17.07.2015, respetivamente, não padeciam de incorreções ou omissões que, no futuro, pudessem originar a resolução dos contratos ou cessação das garantias conferidas [art15contestaçãoseguradora].

20.º Foi com base nestas PROPOSTAS DE ADESÃO que a Ré pôde avaliar e aceitar os riscos garantidos ao abrigo dos contratos de seguro de vida celebrados [art16contestaçãoseguradora].

21.º Após o falecimento de CC, os AA. desencadearam junto da Ré o processo de pagamento do capital seguro nas apólices de seguro subscritas por aquele [art6pi]

22.º Tendo recebido carta da Ré, datada de 07-07-2016 (Doc. 4), nos seguintes termos [art7pi]:

“ (…)

Certificado ...47 – Da apreciação efetuada pelo nosso Departamento Clínico à informação médica disponibilizada, concluímos que a Pessoa Segura não fez qualquer referência no ato de subscrição do Contrato de Seguro de Vida em análise a qualquer tipo de doença pré-existente, tendo pelo contrário respondido em sentido negativo a todas as questões relacionadas com a existência de eventuais problemas de saúde.

Assim aquando do preenchimento da referida Proposta de Adesão e respectivo Questionário Médico, em 28 de Outubro de 2009 (cópia em anexo) não foi mencionada a patologia pré-existente, conforme atestado no Relatório Resumo de Episódio de Urgência emitido pelo Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra EPE, em 10 de Março de 2016.

Nestas condições verificámos que existia um quadro clínico pré-existente que se tivesse sido declarado teria condicionado a aceitação do risco. (…)

As declarações inexatas, reticentes ou que omitam qualquer facto, designadamente, relativas a alguma doença pré-existente, isto é, que tenha ocorrido antes da entrada em vigor do Contrato de Seguro e que por isso se encontram excluídas do âmbito da cobertura de riscos, tornam nulo o pedido de adesão ao Contrato de Seguro de Vida em causa.

Nestas circunstâncias lamentamos informar V. Exas. que, nos termos do estabelecido nas Condições Gerais da Apólice, de que juntamos cópia, declinamos qualquer responsabilidade pelo pagamento do Capital Seguro na Apólice, procedendo, nesta data, à exclusão da Pessoa Segura no Contrato de Seguro (…).

Certificado nº ...96 - Da apreciação efetuada pelo nosso Departamento Clínico à informação médica disponibilizada, concluímos que à data de subscrição do Contrato, 17 de Julho de 2015, não foram mencionados os antecedentes clínicos da Pessoa Segura, conforme consta no relatório Resumo de Episódio de Urgência emitido pelo Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra EPE, em 10 de Março de 2016, pelo que não estavam reunidas as condições de subscrição da Declaração de Saúde inserida na respectiva proposta de seguro (cópia em anexo), para efeito de Aceitação Automática.

Nestas condições verificámos que existia um quadro clínico decorrente da referida patologia que justificou acompanhamento médico, o qual se tivesse sido declarado teria condicionado a aceitação do risco. (…)

As declarações inexatas, reticentes ou que omitam qualquer facto, designadamente, relativas a alguma doença pré-existente, isto é, que tenha ocorrido antes da entrada em vigor do Contrato de Seguro e que por isso se encontram excluídas do âmbito da cobertura de riscos, tornam nulo o pedido de adesão ao Contrato de Seguro de Vida em causa.

Nestas circunstâncias lamentamos informar V. Exas. que, nos termos do estabelecido nas Condições Gerais da Apólice, de que juntamos cópia, declinamos qualquer responsabilidade pelo pagamento do capital seguro, procedendo nesta data à anulação do contrato. (…)”

23.º A 23-12-2016, a Ré remeteu nova comunicação aos AA. (Doc. 5) nos seguintes termos [art13pi]:

“(…) Assim, cumpre-nos informar que, o Sr. CC, padecia de doença que era do seu conhecimento à data da subscrição das Propostas de Seguro de Vida, em 28 de Outubro de 2009 e 17 de Julho de 2015, tal como se conclui pela informação médica prestada no relatório Resumo de Episódio de Urgência emitido pelo Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra EPE, em 10 de Março de 2016. Tal circunstância não lhe permitia pois subscrever as referidas Propostas de Seguro, declarando que se encontrava de boa saúde, não sujeito a controlo médico regular por doença, uma vez que essa informação não correspondia à verdade.

A A... de boa-fé aceitou como válida a declaração relativa ao estado de saúde do proponente, sendo certo que, se tivesse

Face ao exposto, lamentamos informar (…) que mantemos a nossa posição (…) pelo que declinamos o pagamento da indemnização em causa. (…)”.

24.º A 25/12/1998, CC, com 32 anos de idade, recorreu aos serviços de urgência dos HUC, por precordialgia em repouso, tendo tido no mesmo dia, após observação, alta para o domicílio [art18pi e 20 contestação seguradora].

25.º Em 27/12/1998 foi admitido no serviço de urgência dos CHUC, revelou lesão de 99% na descendente anterior proximal, com clínica compatível com insuficiência coronária e enfarte do miocárdio, internamento em serviço de cardiologia, com realização de cateterismo e implantação de stent [art19pi e art20-21contestação seguradora].

26.º O referido procedimento, com colocação de stent, foi efetuado a 30/12/1998, tendo o marido da A. tido alta para o domicílio no dia seguinte [art20pi e art20contestação seguradora].

27.º Tendo efetuado, a 30/03/1999 e a 30/08/1999, provas de esforço, ambas negativas para isquemia de miocárdio [art21pi]

28.º Exercendo a sua atividade profissional (mecânico de automóveis) [art24pi].

29.º CC morreu de causa desconhecida, não tendo sido realizada autópsia; [art61pi e art20contestação seguradora].

30º Padecia de dislipidemia referida pela primeira vez em 25/08/1999 [art20contestação seguradora]

31.º Doenças estas das quais o Segurado e a Autora tinham total conhecimento anteriormente à adesão das propostas relativas aos contratos de seguro em apreço [art49contestação seguradora]

32.º No caso do certificado n.º ...47, o Segurado respondeu negativamente a todas as questões do Questionário Médico, nomeadamente à questão [art24contestação seguradora]:

“(…)

Já o aconselharam a consultar um médico, a ser hospitalizado, a submeter-se a algum tratamento ou intervenção cirúrgica?”

33.º Já no caso do certificado n.º ...96, o Segurado respondeu negativamente à seguinte questão [art25contestação seguradora]:

“(…)

Declaro que até à presente data não me foi atribuído qualquer grau de incapacidade funcional, que estou de boa saúde e que no último ano não estive sujeito a qualquer tratamento médico regular nem fui aconselhado a ser hospitalizado para me submeter a uma intervenção cirúrgica ou a tratamento médico”.

34.º A Ré não aceitaria celebrar estes contratos de seguro ou sempre excluiria qualquer tipo de consequência futura relacionada com a doença em questão [art44contestação seguradora].».

2. - E foi julgado como não provado:

Da petição inicial:

21º… o marido da A. teve alta na Consulta de Cardiologia,

22.º Não tendo qualquer sequela da referida lesão.

23.º Manteve uma vida absolutamente normal, sem qualquer limitação funcional, física ou mental,

24º…sem qualquer restrição

25.º E praticando desporto regularmente.

30.º Episódio esse que por apenas ter provocado ao marido da A. dores ligeiras,

31.º Ter sido tratado com brevidade, através de procedimento não cirúrgico,

32.º Não ter deixado qualquer sequela visível,

33.º E não ter obrigado o marido da A. a alterar as suas rotinas e hábitos de vida diários, quer do ponto de vista profissional, quer do ponto de vista pessoal,

34.º Foi completamente desvalorizado e esquecido pelo marido da A...

36.º CC não sofreu qualquer enfarte agudo do miocárdio…

38. A colocação do stent diminuiu significativamente o risco de CC vir a desenvolver patologia coronária.

40.º O Autor encontrava-se – e sentia-se como tal – saudável, ou seja, num “estado de completo bem-estar físico, mental e social” quando celebrou o contrato de seguro de vida com a Ré.

44.º …não fumava e bebia apenas ocasionalmente, sem distúrbios do humor ou ansiedade,

46.º CC não declarou o facto de ter sofrido de doença coronária dez anos antes da celebração do contrato de seguro de vida, por nem sequer dela se ter recordado, face a todo o circunstancialismo acima descrito.

Da contestação da seguradora:

20º …com terapêutica à base de Sinvastatina 20 mg, desde 14.11.2007.


***

C) Substância jurídica do recurso

1. - Da (in)validade do contrato

Esgrimem, como visto, os AA./Apelantes dever improceder a exceção da invalidade/anulabilidade do contrato de seguro ([12]), matéria de qualificação jurídica em cujo âmbito o Tribunal goza, como é consabido, de liberdade (art.º 5.º, n.º 3, do NCPCiv.), faltando, desde logo, na ótica dos Recorrentes, a demonstração do “dolo causal” – por não haver “intenção de enganar” –, com a consequência de haver de entender-se que não houve indução da seguradora em erro essencial, determinante na formação da declaração de vontade negocial (a de vinculação, como garante, no contrato de seguro).

Assim não entendeu, quanto ao desfecho da ação, o Tribunal a quo, o qual enfatizou que:

«A pessoa segura morreu a 10.03.2016.

Em 27/12/1998 foi admitido no serviço de urgência dos CHUC, revelou lesão de 99% na descendente anterior proximal, com clínica compatível com insuficiência coronária e enfarte do miocárdio, internamento em serviço de cardiologia, com realização de cateterismo e implantação de stent.

Padecia de dislipidemia referida pela primeira vez em 25/08/1999.

O Segurado e a Autora tinham total conhecimento destas doenças anteriormente à adesão das propostas relativas aos contratos de seguro em apreço.

Morreu de causa desconhecida, não tendo sido realizada autópsia.

(…) os contratos de seguro padecem de declaração inexatas e reticentes, já que foi omitida por parte do segurado qualquer menção às doenças de que sofria e ao respetivo tratamento, as quais eram do seu conhecimento e de que não podia deixar de ter perfeita noção, como aliás se provou.

Deparamo-nos com uma omissão na declaração que induziu em erro o segurador que não celebraria o contrato, pelo menos nos termos segurados, caso tivesse conhecimento prévio das referidas patologias.

(…)

Em sede de declaração inicial do risco, ao responder ao questionário médico integrante das propostas de adesão, bem sabia o segurado que padecia das referidas patologias, tal como sabia que tinha de responder de forma exata e completa quanto a essa matéria, declarando, ao invés, estar em bom estado de saúde, nem ter sido sujeito a qualquer tratamento médico regular, omitindo as doenças e respetivos tratamentos a que se sujeitava.

Incorreu, por isso, em atuação dolosa, tendente a enganar a contraparte, quanto a uma circunstância pessoal relevante para apreciação do risco pela seguradora.

(…) verificada está a existência de omissão dolosa, praticada por aquela pessoa segura/declarante, viciante da vontade de contratar da contraparte (perturbando a sua avaliação sobre a dimensão/intensidade do risco), a justificar a anulação do contrato de seguro ao abrigo do disposto no art.º 25.º do RJCS.

Imprescindível à declaração desta anulabilidade é tão somente a existência de uma declaração inexata ou reticente que seja suscetível de influenciar a seguradora na sua decisão de contratar, irrelevando, por isso, que exista, ou não, nexo causal entre a doença omitida nas declarações prestadas pelo segurado na proposta de seguro e a que efetivamente se revelou letal (…).» (destaques aditados).

Passando, então, à matéria/questão da (im)procedência da exceção da anulabilidade do contrato de seguro – aqui um contrato de seguro de grupo contributivo, um seguro de vida temporário a prémio único (cfr. facto 15.º), em que é seguradora a R., tomador e beneficiário do seguro o banco mutuante (Banco 1...) e aderentes/pessoas seguras a A. e marido (mutuários na relação contratual de mútuo, a que ficou funcionalizado o vínculo assumido de seguro, em benefício daquele mutuante) –, cabe começar por um breve enquadramento jurídico, desde logo quanto à declaração inicial do risco (a qual impendia, em matéria de prestação informativa à contraparte, aos ditos aderentes, quanto a factos da sua esfera pessoal),  que permita perspetivar os contornos mais relevantes para a solução do caso.

Ora, é sabido que a declaração inicial do risco, a cargo do tomador do seguro ou segurado (ou, como no caso, pessoa segura/aderente), na fase pré-contratual tendente à celebração do contrato de seguro em geral, está detalhadamente regulada nos art.ºs 24.º e segs. do dito RJCS, prescrevendo os art.ºs 25.º e 26.º, respetivamente, quanto a omissões ou inexatidões dolosas ou negligentes, nesse âmbito, daquele tomador do seguro ([13]), tratando-se, pois, de um campo onde assume papel essencial o princípio da boa-fé, desde logo por o contrato de seguro ser tradicionalmente considerado como contrato uberrima bona fides ([14]).

O princípio da boa-fé revela determinadas exigências objetivas de comportamento impostas pela ordem jurídica, exigências essas de razoabili­dade, probidade e equilíbrio de conduta, num campo normativo onde operam subprincípios, regras e ditames ou limites objetivos, indicando um certo modo de atuação dos sujeitos, considerado conforme à boa-fé, que pode o próprio legislador plasmar nos preceitos da lei positiva.

Um exemplo deste tipo de concretização da boa-fé por via legis­lativa é atualmente constituído pela disciplina legal atinente à fase pré-contratual em matéria de contrato de seguro, salientando-se agora, para além de deveres do segurador, os deveres do tomador do seguro ou segu­rado, deveres estes, de proteção, de lealdade e informação, de cujo encadea­mento decorre que são estabelecidos com base no princípio da boa-fé, estando pressupostas exigências de transparência e de justiça contratual, bem como de proteção da confiança das partes, ou uma linha de rumo baseada na dita regra de conduta a fixar padrões ou critérios de razoabilidade, probidade e equilíbrio de atuação, no sentido do comportamento correto, honesto e leal, a dever ser adotado pelas partes, no âmbito das suas negociações, em termos de reciprocidade, o que é tanto mais expressivo quanto é certo que tal complexo de deveres recíprocos é imposto numa fase em que nem sequer há contrato algum ([15]).

Ora, não existindo ainda um vínculo contratual – pode nem resultar das negociações qualquer contrato –, torna-se notório que aqueles deveres pré-contratuais recíprocos assentam no princípio da boa-fé, o qual lhes confere a necessária legitimação e sustentação.

E, em alguma assimetria com o tradicional enfatizar da declaração inicial do risco (dever do tomador do seguro ou segurado) como o aspeto caraterizador do contrato de seguro como uberrima fides, o legislador vem perspetivando na atualidade – atento também ao fenómeno da contratação em massa, com recurso a contratos de adesão – como essenciais os deveres do segurador ([16]).

No caso dos autos, não sendo invocado qualquer incumprimento de deveres pré-contratuais do segurador, nem qualquer ambiguidade ou obscuridade do questionário médico integrante da proposta de adesão ao seguro, nada há a conhecer nessa matéria, pressupondo-se tais deveres como observados.

A questão coloca-se quanto aos deveres pré-contratuais do outro lado da relação, sabido estabelecer a lei um exigente dever de informação para com o segurador, concernente à declaração inicial do risco, cujo incumprimento estará sujeito, tendo em conta a gravidade dos casos, às consequências invalidantes previstas nas normas já aludidas do RJCS.

Ocorrendo aqui um dever pré-contratual de apresentação da informação relevante, o de dar a conhecer, prestando as necessárias informações, ao segurador todos os factos relevantes para a sua delimitação e apreciação do risco, é líquido que, in casu, os obrigados a tal informação bem sabiam que CC tinha sido submetido a internamento em serviço de cardiologia, com realização de cateterismo e implantação de stent (facto 25), facto de que, logicamente, a pessoa visada não se esquece (pelo melindre/gravidade da situação, em termos de risco para a saúde).

Na verdade, apurou-se que, em finais de 1998, foi admitido no serviço de urgência dos CHUC, revelando lesão de 99% na descendente anterior proximal, com clínica compatível com insuficiência coronária e enfarte do miocárdio (dito facto 25).

Mas CC padecia ainda de dislipidemia, referida pela primeira vez em 25/08/1999 (facto 30), doenças mencionadas de que o mesmo (e a A., do mesmo modo) tinha total conhecimento, anteriormente à adesão aos contratos de seguro em apreço (facto 31).

Assim, conhecendo tal quadro clínico próprio, por força de patologia que lhe deu causa, também como sabia(m) que tinha(m) de responder de forma exata e completa quanto a essa matéria, o que, porém, CC não fez, posto ter declarado estar em bom estado de saúde, omitindo as doenças mencionadas e os tratamentos hospitalares a que se submetera.

Aliás, como provado, «No caso do certificado n.º ...47, o Segurado respondeu negativamente a todas as questões do Questionário Médico, nomeadamente à questão: “Já o aconselharam a consultar um médico, a ser hospitalizado, a submeter-se a algum tratamento ou intervenção cirúrgica?”» (facto 32, com destaques aditados).

Omitiu, pois, uma circunstância muito relevante para a apreciação do risco pela seguradora ([17]) ([18]), circunstância que, à partida, sempre conduziria a um agravamento do risco e que poderia levar a contraparte a recusar vincular-se no contrato.

Com efeito, vem mesmo provado – de forma eloquente – que, se tivesse sido informada dessa circunstância omitida, a R. não aceitaria subscrever estes contratos de seguro/adesão «ou sempre excluiria qualquer tipo de consequência futura relacionada com a doença em questão» (facto 34).

A atuação da pessoa em causa (CC) deve ter-se por intencional – com intencionalidade enganadora, de molde a induzir em erro, como referido na sentença –, posto tratar-se de factos pessoais da mesma, que, por isso, não poderia ignorar, e que optou por omitir, de forma dolosa, já que lhe eram desfavoráveis no confronto com a contraparte no âmbito específico do contrato de seguro em causa. E, ainda que se entendesse afastar tal específica intencionalidade (vontade deliberada), sempre restaria, por se tratar de factos pessoais e melindrosos, a consciência de induzir em erro a contraparte, de molde a integrar, ainda aqui, o incumprimento doloso a que alude o art.º 25.º do RJCS ([19]).

Para tais casos dispõe aquele art.º 25.º do RJCS que «o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro» (n.º 1), não estando o segurador «obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso (…), seguindo-se o regime geral da anulabilidade» (n.º 3), tendo o segurador «direito ao prémio devido» (n.º 4).

Donde que nada haja a censurar, salvo o devido respeito por diverso entendimento, ao decidido na sentença quanto à existência deste vício de invalidade (anulabilidade).

Assim, é patente, à luz do alegado pela R. e provado nos autos, que esta não se vincularia contratualmente, quanto à pessoa segura aludida, se soubesse, ao tempo da celebração do contrato, que essa pessoa tinha sido portadora daquele quadro de doença e, por isso, sujeita aos aludidos tratamentos, factualismo que não lhe foi comunicado/declarado – antes tendo sido ocultado – pelo respetivo proponente.

É nesse âmbito que a R./Apelante pugna pela invalidade do aludido contrato de seguro face ao disposto no dito RJCS, o aqui aplicável, como acertadamente se refere na sentença recorrida – vista a data de celebração do contrato em discussão (propostas de adesão de 28/10/2009 e 17/07/2015), sendo aquele RJCS que então se encontrava já em vigor (início de vigência em 01 de janeiro de 2009), por ter substituído o disposto nos art.ºs 425.º e segs., mormente 429.º, do CCom. –, onde deverá ser procurada a solução para a questão da invocada (in)validade do contrato.

Tratando-se, assim, de ação com essencial vertente condenatória, destinada à efetivação da prestação pecuniária, prevista no contrato, a cargo da seguradora em caso de ocorrência do evento morte de uma das pessoas seguras (tudo como contratualmente estipulado), é patente que aos AA./Apelantes competia, na economia desta ação, alegar e provar um conjunto de factos geradores desse dever de prestar, traduzidos, designadamente, no facto/sinistro e na operância e valor da respetiva cobertura, decorrente esta do contrato de seguro celebrado/adesão, pois que se trata aqui de elementos constitutivos do direito pretendido (cfr. art.º 342.º, n.º 1, do CCiv.), enquanto à contraparte (a R./Apelada), que se defendeu por via de exceção, invocando, enquanto seguradora, a invalidade do contrato de seguro/adesão, cabia o ónus de alegar e provar a factualidade necessária a demonstrar essa matéria de exceção, como já explicitado.

Na sentença recorrida considerou-se haver conduta dolosa do mencionado marido da A., posto que este bem sabia «que padecia das referidas patologias, tal como sabia que tinha de responder de forma exata e completa quanto a essa matéria», concluindo-se pela demonstração da invocada causa de anulabilidade dos contratos/adesão, sendo, então, estes vistos como inválidos, com o que não se conformam os demandantes.

Argumentam estes que não se demonstrou a intenção de enganar.

Porém, não pode concordar-se com a sua argumentação a respeito, tendo em conta que se tratava de factos pessoais do declarante, que este não podia ignorar e a que teve de responder, perante concreto questionário médico, apresentado nesse âmbito, que sabia – só podia saber, como qualquer pessoa normalmente diligente e cuidadosa, no campo da celebração de contratos – ser, obviamente, relevante para determinação do risco a cobrir/transferir, tanto mais que as patologias aludidas não eram negligenciáveis, mas, ao invés, importantes, pelo (elevado) potencial de dano (para a saúde e para a vida) comummente ligado às doenças cardíacas/cardiovasculares.

Daí que, respondendo negativamente, como respondeu, ou omitindo o que sabia ser verdadeiro, privando, assim, a contraparte da informação relevante, de que só o mesmo era detentor na esfera da negociação, demonstrado está, de acordo com as regras da lógica e do comum acontecer, o elemento subjetivo da intenção de enganar, um exercício da declaração inicial do risco mediante sugestão ou artifício com a intenção – ou, ao menos, a consciência – de induzir ou manter em erro a contraparte. Assim, o artifício está na elaboração das respostas, nitidamente omissivas, quanto a factos pessoais e manifestamente relevantes, tal como oferecidas ao questionário médico, bastando, em acréscimo, a dita consciência de induzir ou manter em erro (com dispensa da intenção de prejudicar ou dolus malus).

É certo que a seguradora dispensou o exame médico prévio, ao qual, todavia, não estava obrigada e com o que, mediante a apresentação de questionário médico – num horizonte onde prevalece, como dito, o princípio da máxima boa-fé na declaração inicial do risco –, evitou o respetivo custo económico, que, em última instância, a ter sido realizado, se repercutiria na esfera patrimonial dos aderentes em contrato de seguro de grupo contributivo (o custo acabaria por ser repercutido sobre estes, encarecendo a prestação económica a seu cargo).

Inexiste, com todo o respeito devido, qualquer invocado “abuso de posição dominante”: embora seja certo que a A. e marido, enquanto aderentes, se encontravam, na negociação, em posição de desvantagem – vista a superioridade económica, técnica e contratual/jurídica da contraparte, até pelo seu melhor apetrechamento e recurso a clausulado contratual geral –, essa desvantagem e decorrente assimetria era compensada pela disciplina decorrente da legislação reguladora das cláusulas contratuais gerais e da defesa do consumidor, âmbito – protetivo dos aderentes/consumidores – em que nada foi invocado que pudesse constituir atropelo a essa legislação e decorrentes direitos da parte tipicamente débil.

E nem se pode falar, obviamente, em boa-fé do segurado, no caso, a pessoa segura/aderente, por “depósito de plena confiança no vínculo contratual”, quando é sabido que foi omitida, deliberadamente ou, no mínimo, conscientemente, informação muito relevante, por essa pessoa, no momento crucial da declaração inicial do risco, com a consequência de deixar perturbada a avaliação do risco pela parte seguradora, em prejuízo desta e na sua ignorância a respeito, o que não poderia ser ignorado.

Por outro lado – reitera-se –, a atuação dolosa não tem, como visto, de ser “especialmente elaborada”, bastando que haja a intenção ou consciência de enganar outrem (induzindo ou mantendo em erro), tanto mais que, in casu, tal ocorre no âmbito das respostas ao questionário médico, peça com óbvia relevância e seriedade quanto às negociações e decorrente contratação. Era, pois, nítida a gravidade de que se revestia a matéria questionada, não colhendo a invocação de distrações e faltas de memória num tal âmbito.

Inexiste, que se veja, “negligência grosseira da seguradora”, não podendo defender-se que foi esta que se “autoinduziu em erro viciador do consentimento”: o princípio da máxima boa-fé impunha ao declarante inicial do risco que fosse transparente para com a contraparte, num âmbito em que era esta que se encontrava em deficit de informação e decorrente inferioridade no plano das negociações para celebração do contrato.

Assim, cabia aos aderentes prestarem informação completa e verdadeira sobre as matérias referentes à sua saúde, do que somente eles detinham informação (pessoal), a qual teriam de facultar à contraparte, para adequada avaliação por esta quanto ao risco a cobrir.

Se observassem esse seu dever de completa e verdadeira informação, em que confiava a contraparte, nenhuma necessidade haveria de realização de exames médicos prévios. Poderia haver é – isso sim – necessidade de exames médicos posteriores, caso ficasse instalada a dúvida sobre a saúde cardíaca/cardiovascular do aludido marido da A., se este aludisse às suas patologias e tratamentos antecedentes (o que não fez).

Ou seja, se o aderente declara, nas respostas ao questionário médico, onde se lhe exige que responda com total verdade e boa-fé, que não sofre(u) de qualquer doença, para quê submetê-lo a exames médicos? E a que exames médicos?

Assim, não foi a seguradora – designadamente ao receber qualquer prestação pecuniária por força do contrato/adesão – que “gerou confiança e segurança jurídica na relação contratual” e que depois a defraudou. Quem gerou confiança de forma a provocar engano – no mínimo, conscientemente, mesmo que não tivesse uma intenção formada/deliberada de prejudicar – foi o aludido aderente ao omitir o seu histórico de doença nas respostas ao questionário médico em sede de declaração inicial do risco, perturbando, como dito (intencionalmente ou, pelo menos, de forma consciente), em moldes significativos e graves, a avaliação do risco pelo segurador ([20]).

Inexiste, pois, violação do princípio do boa-fé pela R. seguradora, ou qualquer “erro próprio indesculpável, vencível” desta, o mesmo não se podendo dizer do aludido aderente, pelas razões já expostas, cuja conduta é manifestamente violadora da boa-fé objetiva, ao postular esta um padrão de conduta pautado pela honestidade, correção e lealdade.

Resta o invocado abuso do direito.

2. - Do abuso do direito

Esgrimem os Recorrentes que a invocação da invalidade do contrato, nos moldes em que suscitada, configura abuso do direito, seja por violação do princípio da boa-fé (afastamento da devida conduta honesta, correta e leal), seja por supressio, com desconformidade ao “princípio da confiança e também da segurança jurídica” [cfr. conclusões o) e p)].

Quanto àquele imperativo de adoção no relacionamento negocial/pré-contratual e contratual de uma conduta honesta, correta e leal, dir-se-á – repetindo-nos – que quem se afastou da esfera da uberrima bona fides, que prevalece em matéria de contrato de seguro ([21]), foi, quanto à declaração inicial do risco, a parte aderente.

Já no âmbito da execução do programa contratual, não se vê onde tenha a aludida R./seguradora divergido do imperativo da máxima boa-fé, seja na obtenção, em tempo de vigência contratual – e quando se desconhecia a existência de omissões em sede de declaração inicial do risco –, da prestação que lhe era devida, seja por qualquer “devassa” desproporcionada, seja por qualquer conduta imbuída de negligência grosseira e autoindução de erro, seja por renúncia à obtenção de informação ao seu alcance, seja por oportunismo na prevalência de um erro da contraparte.

Com efeito, só quando se apercebeu, ocorrido o óbito do marido da A., que houvera omissão relevante em sede de declaração inicial do risco, com decorrente perturbação da avaliação do risco, em desfavor da seguradora, é que esta podia e “devia” procurar, por si própria, a informação que lhe havia sido subtraída. Até esse momento cabia-lhe cumprir o contrato com normalidade, como se mostra ter feito.

Mas, a partir daí, cabia-lhe extrair as conclusões devidas da sua situação de desvantagem decorrente de uma vinculação contratual assente sobre um deficit informativo originado por conduta omissiva do aderente, quanto a factos pessoais deste, que o mesmo optou por não revelar, em prejuízo da seguradora.

Perante um tal desequilíbrio de posições contratuais, decorrente de inobservância do princípio da máxima boa-fé por parte do aderente, restava à seguradora, ao abrigo da lei, obter, no exercício do seu direito de defesa em ação contra si intentada, declaração judicial no sentido da invalidade do contrato/adesão, de molde a evitar a sua condenação fundada na validade do vínculo contratual.

Ao assim agir, não incorre a R./Apelada em abuso do direito de defesa e de invocação da invalidade contratual.

Quanto, por fim, à invocada supressio, afirmam os Apelantes ter ocorrido “retardada invocação do vício”, um verdadeiro “atraso desleal”, seja por “renúncia ao dever de esclarecer qualquer erro, imprecisão, inexatidão, engano ou mentira do segurado”, seja por “outorgar quase 6 anos depois um outro contrato com o segurado”, tudo traduzindo longo tempo de letargia, sem fazer valer o direito invalidante, permitindo a expetativa de não exercício no futuro.

Ora, desde logo, não pode dizer-se que tenha decorrido apreciável lapso temporal até à invocação da invalidade contratual, posto a R./Recorrente se ter defendido por exceção (a de tal invalidade) perante ação contra si deduzida para obtenção da prestação contratual a seu cargo.

E, antes disso, a R. teve de responder, no tempo próprio, após o falecimento de CC, aos aqui AA., por estes terem desencadeado o processo de pagamento do capital seguro (factos 21 e segs.).

Previamente a tal falecimento e pedido de pagamento, não havia, logicamente, razões ou fundamento para invocar a invalidade do contrato, que se encontrava a ser normalmente cumprido, ou para recusar a celebração de um outro contrato de seguro.

Nenhuma conduta, pois, se vê que tenha sido adotada no sentido de criar a expetativa de não exercício futuro do direito de anulação.

É sabido que a figura do abuso do direito, na parte em que assenta no princípio da boa-fé, convoca um exercício de tal modo abusivo de direitos ou, em geral, de posições jurídicas, que, de forma clamorosa (manifesta e excessiva), atente contra os ditames da boa-fé objetiva, que postula, por seu lado, a adoção nas relações intersubjetivas (contratuais ou outras, de que nasçam deveres entre as partes/sujeitos) de uma conduta honesta, correta e leal, bem como razoável, equilibrada e transparente, sempre reportada «ao correto agir, ao viver honesto», à atuação «como pessoa de bem» ([22]).

É também líquido que o exercício do direito invalidante pressupõe a decisão/ponderação quanto à existência de fundamento para tal, o que a aqui R./Apelada somente poderia fazer quando se apercebeu que a sua avaliação do risco tinha sido perturbada por conduta omissiva da contraparte/aderente.

E foi isso que, ocorrido o óbito da pessoa segura/aderente e reclamados direitos à luz do contrato de seguro, aquela R./Apelada fez, no tempo e na sede próprios, termos em que não deu azo, salvo o devido respeito, a qualquer expetativa fundada de não exercício do direito.

Por isso, nesse quadro de representações/perceções e omissão de informação, parece não poder formular-se um juízo de censura – por abuso e contraditoriedade à boa-fé objetiva – sobre a R. pelo exercício de posição invalidante depois daquele óbito e reclamação de pagamento do capital seguro ([23]).

Isto é, o invocado decurso do tempo, de per se, não permite censurar, no quadro das exigências do princípio da boa-fé, a conduta em análise (da R.), pelo que a parte Recorrente apenas de si própria se pode queixar, ao não ter carreado para os autos os necessários factos de suporte que ilustrassem a sua afirmação de existência de abuso do direito ([24]).

E, em qualquer caso, parece claro que o negócio não estava cumprido – desde logo, por a R. não ter efetuado a prestação contratualmente prevista a seu cargo (aquela que os AA. peticionam na ação) –, pelo que, à luz do disposto no n.º 2 do art.º 287.º do CCiv., podia a anulabilidade ser arguida sem dependência de prazo, por via de ação ou de exceção.

A invocação/arguição da anulabilidade ocorreu no âmbito dos autos, em sede de contestação – assim levada aquela ao conhecimento da contraparte, como já o houvera sido antes, em resposta ao pedido extrajudicial de pagamento do capital seguro –, sendo ainda tempestiva, desde logo por, como visto, não ter então ocorrido cessação do vício, nem estar, por outro lado, o negócio ainda cumprido.

Também nenhum motivo haverá, visto tudo o anteriormente exposto, para condenar a R./Recorrida, que obtém ganho de causa – em 1.ª e em 2.ª instância –, como litigante de má-fé.

Em suma, indemonstrada violação de lei ou de princípios jurídicos, improcede a apelação, sendo de manter, inalterada, a decisão recorrida, com custas do recurso a cargo da parte vencida (os AA./Recorrentes).


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(…)

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V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, manter a decisão recorrida.

Custas da apelação pelos AA./Recorrentes, ante o seu decaimento (cfr. art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).

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Coimbra, 23/04/2024

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Vítor Amaral (relator)

Fernando Monteiro

Carlos Moreira (com voto de vencido)

Vencido.

A questão nuclear consiste em saber se a omissão do autor sobre os factos atinentes à sua pretérita situação de saúde foi, ou não, dolosa, ou seja, intencional, maliciosa e, em última análise, com o fito de obter algum ganho.

Na verdade, o seguro só é anulável se o tomador ou o segurado incumprir «dolosamente» o seu dever de declarar as circunstâncias que conheça e «razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador» - artºs 24º e 25º do DL 72/2008 de 16.04.

A prova destes requisitos excetivos compete à seguradora, ao menos para além da dúvida razoável - 342º nº2 do CC.

Ora considerando os factos provados 25 a 29, deve concluir-se que a insuficiência coronária não foi grave, pois que: i) ela se resolveu com uma intervenção cirurgica simples e rápida, já que o autor teve alta no dia seguinte - ponto 26 -; ii) tendo autor realizado, nos meses seguintes, duas provas de esforço para isquemia do miocárdio, ambas deram resultados negativos para a doença - ponto 27. iii) o autor continuou a exercer a sua atividade profissional de mecânico de automóveis, que não é leve e exige alguns esforços, sem que se tenha provado que, nela, algumas dificuldades resultaram das doenças, maxime da anterior intervenção médica.

Falta de gravidade outrossim encerra a dislipidemia - facto do ponto 30º - , pois que nem sequer se provou que ele tomasse medicamentos , vg à base de sinvastatina - facto não provado 20º da contestação.

Ademais: i) O autor morreu de causa desconhecida; ii) desde a data da intervenção cirúrgica e até à celebração dos seguros decorreu um largo lapso temporal: cerca de 10 e 16 anos.

Por tudo isto, e numa exegese que tenho por mais adequada, considero que não é razoavelmente exigivel ao autor, como impõe a lei, que ele, nas respostas ao questionário dos seguros, tivesse interiorizado que tais eventos remotos fossem relevantes e significativos , caso em que estaria obrigado a comunicá-los.

Antes me parecendo que o autor nem sequer se lembrou deles aquando do preenchimento do questionário - porque parece que não deixaram sequelas - ou, se se lembrou, honestamente os desvalorizou, e, assim, sem intenção dolosa de esconder algo para ele significativo e grave, os não comunicou.

No máximo, e concedendo, existe uma dúvida insanável quanto à existência de conduta dolosa do autor na omissão de comunicação das vicissitudes sobre a sua saúde nos idos de 1998, a qual, naturalmente, se resolve contra a ré.

Destarte, não tendo a ré provado a conduta dolosa do autor, a ação deveria proceder.

Carlos António Moreira.


([1]) Tendo ainda sido entendido não se verificar litigância de má-fé da R./seguradora.
([2]) Que se deixam transcritas, com destaques retirados.
([3]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([4]) Cfr. art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, e 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.), o aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26-06.
([5]) Segue-se uma ordem lógica e jurídico-sistemática de conhecimento das questões relevantes, independentemente da ordem por que suscitadas pelos Recorrentes, assim se começando pelos vícios formais da sentença (nulidade da mesma), para depois se passar, na falta de impugnação da decisão de facto, à matéria de direito substantivo (questões relativas à fundamentação jurídica da decisão sob impugnação).
([6]) Cfr. Manual dos Recursos em Processo Civil, 9.ª ed., p. 57.
([7]) Vide Código de Processo Civil, Anotado, vol. V, p. 143.
([8]) In Dos Recursos, Quid Júris, p. 117.

([9]) Cfr. Manual de Processo Civil, p. 686.
([10]) Questão diversa é a de saber se uma tal decisão incidental não padece de eventual falta de fundamentação, vício que, porém, não foi invocado, nem, por isso, está sujeito ao conhecimento da Relação.
([11]) Destaques subtraídos.
([12]) O legislador de pretérito, no art.º 429.º do CCom., reportava-se à «nulidade» do contrato de seguro, embora a jurisprudência largamente maioritária entendesse, já então, que se tratava de uma mera anulabilidade, solução esta que viria a ser adotada no art.º 25.º do RJCS (Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DLei n.º 72/2008, de 16-04, com entrada em vigor em 01/01/2009), o qual se reporta explicitamente à anulabilidade – cfr., sobre o tema, do aqui relator, Contrato de Seguro, Responsabilidade Automóvel e Boa-fé, Almedina, Coimbra, 2017, p. 152 e seg..
([13]) Estava antes prevista, quanto a “inexactidões” ou “reticências”, no art.º 429.º do CCom..
([14]) Cfr. Contrato de Seguro, Responsabilidade Automóvel e Boa-fé, cit., ps. 45 e segs. e, por outro lado, ps. 175 e segs., já quanto aos deveres pré-contratuais das partes na negociação, estabelecendo o legislador um «exaustivo dever de informação para com o segurador, concernente à declaração inicial do risco, cujo incumprimento está sujeito, consoante a gravidade dos casos, às consequências previstas nos arts. 25.º (inadimplemento doloso) e 26.º (inadimplemento negligente) do mesmo RJCS», sendo ainda certo que ocorre «aqui um “dever pré-contratual qualificado de apresentação da informação relevante”, o de dar a conhecer, prestando as necessárias informações, ao segurador todos os factos relevantes para a sua delimitação e apreciação do risco – a lei alude a declarar, com exatidão, “todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco” (art. 24.º, n.º 1, do RJCS)». Daí a conclusão no sentido de «a conduta do obrigado à declaração informativa estar sujeita a diversos parâmetros, num encadeamento de deveres de completude, de verdade e de razoabilidade e proporcionalidade, do que o próprio segurador (um especialista) deve, por sua vez, prestar esclarecimento prévio ao tomador do seguro ou segurado (tipicamente um não especialista)», tudo, obviamente, «sem perder de vista, por outro lado, o questionário facultado para o efeito por tal segurador». Sendo ainda de notar, quanto ao dever de completude, que «devem ser declaradas ao segurador todas as circunstâncias conhecidas do tomador do seguro declarante que devam (por este) ser tidas por significativas para a delimitação e apreciação do risco, tenham ou não menção no questionário» (p. 176). Já quanto ao dever de verdade, «determina a lei que a obrigação de declaração seja cumprida com exatidão, pelo que as informações prestadas terão de ser exatas, verdadeiras, conformes com a realidade dos factos», posto que, «faltando o declarante ao dever de verdade, configura-se uma inexatidão da informação prestada, que, se reportada a factos relevantes, por significativos para a delimitação do risco, consubstanciará, por isso, incumprimento do dever de informação, o qual pode, como dito, ser doloso ou negligente» (p. 182).

([15]) Cfr. os art.ºs 18.º a 23.º, quanto aos deveres do segurador, e 24.º a 26.º, quanto aos deveres do tomador do seguro ou segu­rado, todos do aludido RJCS.

([16]) Tal prioridade aos deveres de informação e esclarecimento pré-contra­tuais do segurador (cfr. art.ºs citados do RJCS) visa a proteção da parte considerada débil, no intuito de conferir o equilíbrio mínimo imprescindível a uma adequada rela­ção negocial, à partida desigual, por forma a que resultem criadas as condi­ções negociais que permitam uma justa composição, em moldes substanciais, dos interesses das partes, em caso de celebração do contrato, não só, pois, em termos de consciente e esclarecida celebração do mesmo (exigências de transparência no relacionamento negocial), como ainda de permitir alcançar o fim contratual visado por ambas as partes.
([17]) É sabido que: «A doença coronária, consequência do processo de aterosclerose (na grande maioria dos doentes), engloba os doentes com angina de peito ou com antecedentes de enfarte do miocárdio. (…) // A doença coronária consiste na insuficiência das artérias coronárias, os vasos sanguíneos encarregues de irrigar o coração, de proporcionarem ao músculo cardíaco, o miocárdio, os nutrientes e o oxigénio de que este necessita para manter a sua atividade. (…) // A doença coronária pode manifestar-se por uma dor torácica passageira, denominada de angina de peito, que resulta de um défice transitório na irrigação do miocárdio, ou por uma situação mais grave, o enfarte de miocárdio, em que o défice de irrigação é mais prologando, resultando daí a necrose ou morte de células musculares cardíacas da região afetada. Por vezes, as lesões provocadas são de tal maneira graves que delas resulta a morte súbita. // Assiste-se a grandes avanços na terapêutica da doença coronária, mas a morbilidade e mortalidade mantêm-se elevada, por isso, a mensagem principal deve ser “mais vale prevenir que remediar” (…).» – cfr. site da Fundação Portuguesa de Cardiologia, A doença coronária, Carlos Catarino, em https://www.fpcardiologia.pt/a-doenca-coronaria/.
Pode, então, dizer-se que a «Doença arterial coronária (…) é um grupo de doenças que inclui angina estável, angina instável, enfarte do miocárdio e paragem cardiorrespiratória. Este grupo faz parte de um grupo maior de doenças, denominado doenças cardiovasculares, do qual é o tipo mais comum», sendo que «Em 2015, as doenças arteriais coronárias afetavam 110 milhões de pessoas em todo o mundo, tendo resultado em 8,9 milhões de mortes, um aumento em relação às 5,74 milhões de mortes em 1990» – cfr. Wikipédia, https://pt.wikipedia.org/wiki/Doen%C3%A7a_arterial_coronariana.
([18]) Por sua vez, “Dislipidemia é um termo usado para designar todas as anomalias quantitativas ou qualitativas dos lípidos (gorduras) no sangue”, sendo «um dos mais importantes factores de risco da aterosclerose, a principal causa de morte dos países desenvolvidos, incluindo Portugal. Qualquer tipo de dislipidemia representa, pois, um importante factor de risco cardiovascular, uma vez que a gordura acumulada nas paredes das artérias pode levar à obstrução parcial ou total do fluxo sanguíneo que chega ao coração e ao cérebro.» – cfr. ainda o site da Fundação Portuguesa de Cardiologia, em https://www.fpcardiologia.pt/saude-do-coracao/factores-de-risco/dislipidemia/.
([19]) V. Contrato de Seguro, Responsabilidade Automóvel e Boa-fé, cit., ps. 184-185.
([20]) De reforçar, ainda, que, tratando-se de um seguro de grupo, em que os contactos são essencialmente entre o banco/mutuante e os mutuários/pessoas seguras/aderentes, no quadro do mútuo bancário, o que importa é, sobretudo, o relacionamento negocial (pré-contratual) de seguro, em que se insere a declaração inicial do risco. E, nesse específico âmbito, a parte débil (por carecida da informação relevante) é a seguradora, que necessita de estabelecer o nível de risco (com base em informação referente a factos pessoais, de saúde/doença, das pessoas seguras). Por isso, importa somente saber, no caso, se a efetiva omissão de informação relevante foi intencional ou consciente, ou não: bastaria que tivesse havido essa omissão/privação de informação de forma consciente (mesmo que sem uma específica intenção de prejudicar, mas sempre num plano que transcende a simples falta de cuidado/negligência), sendo decisivo, in casu, tratar-se de factos pessoais – sobre que o declarante não pode, por isso, invocar ignorância (doença sofrida e tratamentos respetivos, a que foi sujeito) –, tal como o tipo de doença(s) pré-existente(s) e o seu elevado potencial de danosidade para a vida (risco associado às doenças cardíacas/cardiovasculares). Deve, nestes termos, dizer-se que a declaração completa e verdadeira, pessoal, é responsabilidade do declarante (pessoa segura/aderente, sujeita ao questionário médico), enquanto a falta de causa da morte não beneficia nenhuma das partes, tornando-se irrelevante para o vício originário do negócio.
([21]) Cfr. Contrato de Seguro, Responsabilidade Automóvel e Boa-fé, cit., p. 45 e seg., bem como 169 e segs. e 187 e segs..
([22]) Cfr., por todos, P. Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Almedina, Coimbra, 1995, p. 398.
([23]) Não se apura qualquer inércia culposa da seguradora, condicionada como estava pelo quadro informativo que lhe havia sido disponibilizado e em que devia acreditar, no âmbito da declaração inicial do risco.
([24]) Quanto à supressio, decorrente da criação de uma situação objetiva de confiança, na parte contrária, de que não seria exercido determinado direito, violando o princípio da boa-fé (e da confiança da contraparte), haverá de considerar-se que “não basta que o exercício do direito pelo seu titular, cause prejuízo a alguém – a atribuição de um direito traduz deliberadamente a supremacia de certos interesses sobre outros interesses com aqueles confluantes, sendo necessário, sim, que o titular dele manifestamente exceda os limites que lhe cumpre observar, impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do próprio direito exercido” – cfr. Ac. TRC de 08/03/2022, Proc. 291/18.0T8GRD-C1 (Rel. Cristina Neves), em www.dgsi.pt.