Acórdãos TCAN

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
Processo:00173/13.2BEMDL
Secção:2ª Secção - Contencioso Tributário
Data do Acordão:02/22/2024
Tribunal:TAF de Mirandela
Relator:Irene Isabel Gomes das Neves
Descritores:FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA;
NULIDADE
Sumário:
I. A nulidade da sentença por falta de especificação dos fundamentos de facto, abarca não apenas a falta de discriminação dos factos provados e não provados, a que se refere o artigo 123º, nº 2 do CPPT, mas também a falta de exame crítico das provas, prevista no artigo 659º, nº 3 do CPC.

II. A falta de discriminação da matéria de facto não provada, no domínio do contencioso tributário, é equiparável à falta de indicação da matéria de facto provada, para efeitos da nulidade prevista no artigo 125º, nº1 do CPPT.

III. A exigência de fundamentação da sentença tem naturalmente várias valências, pois que, num primeiro momento, serve para impor ao juiz da causa que pondere e reflita criticamente sobre a decisão, mas também para permitir que as partes, ao recorrerem da sentença, estejam na posse de todos os elementos que determinaram o sentido da decisão e, por último, torna possível ao Tribunal de recurso apreciar o acerto ou desacerto da sentença recorrida.*
* Sumário elaborado pela relatora
(art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil)
Votação:Unanimidade
Decisão:Declarar nula a sentença recorrida.
Aditamento:
Parecer Ministério Publico:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência, os juízes que constituem a Subsecção Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Norte:

1. RELATÓRIO
1.1. [SCom01...], Lda. (Recorrente), notificada da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Mirandela, datada de 14.07.2017, que julgou improcedente a presente Impugnação Judicial por si deduzida contra a liquidação adicional de IVA e respectivos juros compensatórios dos períodos de janeiro a março e outubro a novembro de 2008, no montante global de €18.261,00, inconformada vêm dela interpor o presente recurso jurisdicional.
Alegou, formulando as seguintes conclusões:
«(...)
I. Sem prejuízo de a Recorrente reiterar todo o anteriormente exposto em sede de petição inicial da impugnação judicial em apreço, importa salientar o seguinte:
II. Considerando que (i) a Recorrente admitiu que os desvios de gastos se trataram de um mero lapso de registo, e (ii) que a AT não questionou a materialidade dos gastos, tendo estes se compensado, a AT deveria ter procedido ao correto apuramento da situação tributária da Recorrente nesta matéria;
III. A AT apenas desreconheceu os gastos que foram indevidamente contabilizados para o período de 2008 e que diziam a outras obras e períodos, sem que tenha contabilizado para esse período os gastos que lhe diziam respeito;
IV. Ao não ter procedido assim, violou o princípio da justiça (artigo 266°, n.° 2, da CRP e artigo 55° da LGT), o princípio do inquisitório (artigo 58° da LGT) e o princípio da descoberta da verdade material (artigo 6° do RCIPTA);
V. A Recorrente viu-se prejudicada pelo seu próprio lapso, pois, em sede de IRC, há um gasto que foi desconsiderado de um rendimento e um rendimento que não foi afeto a nenhum gasto, e, em sede de IVA, há uma despesa dedutível que foi desconsiderada por ter sido atribuída a uma operação isenta, mas há uma despesa elegível, a montante, que não foi considerada na operação com direito à dedução;
VI. Consequentemente, a liquidação adicional aqui em apreço acaba por padecer do vício de violação de lei, por desrespeito do princípio da proporcionalidade (artigo 266°, n.° 2, da CRP e artigo 55° da LGT), do princípio da tributação pelo lucro real (artigo 104°, n.° 2, da CRP), do princípio da capacidade contributiva, corolário do princípio da igualdade (artigo 13° da CRP e artigo 4° da LGT) e do princípio da neutralidade (artigo 1°, n.° 2, da Diretiva 2006/112/CE, do Conselho, de 28 de novembro), pois a Recorrente não pode deduzir o imposto suportado a montante relativamente às despesas que efetivamente suportou no período de 2008, dado que a AT apenas corrigiu a parte que lhe era favorável e não investigou quais as despesas efetivamente suportadas nesse período e paras as obras em causa que seriam dedutíveis;
VII. A AT, na sequência da correção em apreço que realizou, deveria ter investigado quais os gastos suscetíveis de serem reconhecidos em 2008;
VIII. Além de que, as existências em sede de IRC são reconhecidas como gasto com o reconhecimento do rédito, para efeitos de IVA (imposto aqui em causa) as despesas com existências são dedutíveis nos termos do artigo 22° do Código do IVA;
IX. Na realidade, de acordo com o princípio da justiça e o princípio da proporcionalidade (artigo 266°, n.° 2, da CRP, e artigo 55° da LGT), o princípio da tributação pelo lucro real (artigo 104°, n.° 2, da igualdade (artigo 13° da CRP e artigo 4° da LGT) aplicado ao IVA, e o princípio da neutralidade (artigo 1°, n.° 2, da Diretiva 2006111210E do Conselho, de 28 de novembro de 2006), a AT deveria ter diligenciado no sentido de identificar, as despesas efetivamente suportadas, no período de 2008, com as obras e proceder à dedução fiscal dos gastos em sede de IRC de acordo com a normalização contabilística em vigor e os artigos 26° e 36°, ambos do Código do IRC, com a redação em vigor à data dos factos, e em sede de IVA de acordo com os artigos 19° e seguintes do Código do IVA;
X. O Tribunal a quo não valorizou o facto de a Recorrente ter admitido, ainda em resposta ao pedido de elementos e esclarecimentos feito pelos Serviços de Inspeção Tributária (p. 16 da p.i.), que se tratou de um mero lapso de registo;
XI. Acresce que Tribunal a quo deveria ter apreciado o facto de a dedução do IVA ter sido efetuada ao longo do ano de 2008, conforme prova documental apresentada pela Recorrente (Doc. 12 da p.i.), e não aquando do fecho de contas, como os Serviços de Inspeção Tributária concluíram;
XII. Todos os factos acima expostos pela Recorrente são suscetíveis de relevar para a decisão da causa, pelo que não se afigura correta a conclusão sufragada na sentença recorrida de que a AT considerou o apuramento total da situação tributária da Recorrente com a determinação das despesas elegíveis;
XIII. Consequentemente, deve o presente recurso ser julgado procedente e revogada a sentença do Tribunal a quo e, por conseguinte, o pedido subjacente à impugnação judicial em apreço deve ser julgado procedente, com todas as consequências legais.
Pedido:
Nestes termos e nos mais de Direito que Vs. Exas. doutamente não deixarão de suprir, deve o presente recurso ser julgado procedente e revogada a sentença do Tribunal a quo, e, consequentemente, a impugnação judicial apresentada pela Recorrente deve ser julgada procedente, com todas as consequências legais. Pois só assim se fará inteira e sã
JUSTIÇA!».
1.2. A Recorrida (Autoridade Tributária e Aduaneira), notificada da apresentação do presente recurso, não apresentou contra-alegações.
1.3. O Ministério Público junto deste Tribunal emitiu parecer a 554 fls. e ss. do SITAF, em que suscita questão prévia nos seguintes termos que se releva:
Compulsada a douta sentença recorrida, constata-se que a mesma apenas especifica os factos que considera como provados, sendo completamente omissa quanto aos factos não provados (cf., fls. 1 a 3, da sentença, 75 E 76 do processo fiscal).
E sobre a fundamentação da matéria de facto (Motivação), douta sentença é completamente omissa (cf. fls. 3, da sentença, 76, do processo fiscal).
Ora, quando a esta questão, o artigo 123°, n° 2, do CPTT estabelece que "o juiz discriminará também a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões".
(...)
Ora, é incontroverso que o tribunal recorrido não deu cumprimento a este comando legal, visto que nem sequer fez alusão, na douta sentença, a matéria de facto não provada.
É certo que foi especificada a matéria de facto que, de acordo com aquele douto aresto, tem «interesse para a decisão».
Parecendo daí decorrer que a restante não tem interesse, nem para dar como provada nem para dar como não provada.
Mas em tal não se poderia conceder, atendendo ao teor dos artigos 12° a 28°, todos da douta petição inicial e cujo interesse para a impugnação dos factos-índice mencionados no relatório de inspecção tributária não pode ser liminarmente afastado, considerando todas as soluções plausíveis da questão de direito que deva considerar-se controvertida.
Não temos dúvidas em concluir que estão contidos naqueles artigos alguns factos relevantes para a decisão que, tendo sido alegados, devem ser considerados no julgamento de facto, dando-os como provados ou não provados.
Nesta conformidade, estando nesse articulado alegados factos relevantes para a decisão, considerando todas as soluções plausíveis da questão de direito, e devendo os mesmos ser tidos em conta na decisão,
A falta de referenciação dos mesmos nos factos provados ou não provados integra a nulidade prevista nos artigos 125.°, n.° 1, do CPTT.
(...) Nesta conformidade, deve, pelos fundamentos acima expostos, ser concedido provimento ao recurso e, consequentemente, anulada a douta sentença recorrida.”
1.4. Com dispensa dos vistos legais dos Exmos. Desembargadores Adjuntos (cf. artigo 657º, n.º 4 do Código de Processo Civil (CPC), submete-se desde já à conferência o julgamento do presente recurso.
Questões a decidir:
Cumpre apreciar e decidir as questões colocadas pela Recorrente, estando o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, sendo que importa a resolução das seguintes questões: (i) erro julgamento da matéria de facto por errada valoração da prova e, também, (ii) erro de julgamento da matéria de direito por violação dos princípios da justiça, inquisitório e da verdade material, consagrados, respectivamente, nos artigos 266°, da CRP, 55° e 56°, da LGT e 6°, do RCIPTA e, bem assim, (iii) em sede de questão prévia suscitada pelo Ministério Público saber se a sentença recorrida é nula por falta de especificação dos fundamentos de facto da decisão, nomeadamente por falta de motivação e de fixação de factos não provados.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. De facto
2.1.1. Matéria de facto dada como provada na 1ª instância e respectiva fundamentação:
«(...) Factos provados:
1. Em 30/9/1996 a Impugnante deu início à actividade correspondente ao CAE 41200 – Construção de edifícios (residenciais e não residenciais) – cfr. fl. 2 do Relatório de Inspecção ínsito no PA, não impugnado pela Impugnante;
2. A contabilidade da Impugnante foi objecto de inspecção tributária que incidiu no exercício de 2008, 2009 e 2010, e cuja factualidade, que aqui se reproduz, ínsita no Relatório, se dá por assente, uma vez que a Impugnante com ela se conformou ( cfr. Relatório ínsito no PA):
[Imagem que aqui se dá por reproduzida][Imagem que aqui se dá por reproduzida][Imagem que aqui se dá por reproduzida][Imagem que aqui se dá por reproduzida]
(…)”
3. Nessa sequência a Impugnante foi notificada da liquidação adicional em sede de IVA respeitante ao período de Janeiro, Fevereiro, Março, Outubro e Novembro de 2008, e para pagar o valor de 18.261,00 € - doc 1 a 10 da PI;
4. A Impugnante que foi igualmente objecto de um procedimento inspectivo aos exercícios dos anos de 2006 e 2007, do qual resultaram várias correcções, nomeadamente quanto ao valor das existências finais;
5. Naquele âmbito apurou-se que a Impugnante havia registado na contabilidade os gastos que considerou ter suportado nos exercícios de 2006 e 2007, tendo os serviços de inspecção efectuado as correcções que entenderam devidas, nomeadamente no tocante às existências finais de 2007;
6. No procedimento de inspecção donde advieram as correcções que estão em litígio no âmbito da impugnação judicial n.º 2024/13.9BEPRT (IRC de 2008), os serviços da AT consideraram os gastos dos exercícios anteriores que foram imputados às obras, valores esses que estão considerados no valor das existências iniciais de 2008; Cfr. o referido Processo;»
2.2. De direito
Impõe-se, antes do mais, conhecer da questão prévia alegada da falta de especificação dos fundamentos de facto não provados e, bem assim da falta de motivação do julgamento de facto da decisão, suscitada pelo Exmo. Procurador Geral no seu parecer, o que, a verificar-se, corresponde à nulidade da sentença prevista no artigo 125º, nº1 do CPPT.
Vejamos.
Como vimos, a sentença recorrida fixou os seis factos que se deixaram transcritos: do primeiro ao terceiro a dar nota da actividade da impugnante, da realização de inspecção à contabilidade da mesma um primeiro, do relatório de inspecção e da notificação das liquidações de IVA impugnada e seu valor; os factos quatro a sexto dá nota da extensão da inspecção a outros anos e das correcções operadas em 2006 e 2007 e da existência de um outro processo de impugnação respeitante ao IRC de 2008.
Para além destes factos, nenhuns outros foram dados como provados, nem como não provados.
Ora, da consulta aos autos resulta que, a Impugnante alega que a AT deveria ter procedido ao apuramento total e completo da situação tributária de 2008, e ter determinado as despesas elegíveis, afecta às operações com direito à dedução ao não tê-lo feito incorreu num vicio de procedimento, por violação do principio do inquisitório do principio da justiça, inquisitório e da verdade material, consagrados, respectivamente, nos artigos 266°, da CRP, 55° e 56°, da LGT e 6°, do RCIPTA.
Sucede, porém, que na decisão recorrida não se faz qualquer referência ao documento junto com a petição sob o n.º 12, nem ocorrências relevantes em sede de inspecção e/ou em sede de direito de audição e sua resposta, nem sequer se explicou a razão pela qual tal matéria não foram considerados para efeitos da análise jurídica da pretensão formulada pela Impugnante, sendo certo que, como em sede de recurso jurisdicional se percebe, a Recorrente ataca a sentença invocando erro de julgamento de facto e errada valoração da prova (conclusões X. e XI. das alegações) pretendendo daí retirar efeitos jurídicos, em favor da posição que defende.
Para mais, ao que volveremos, na sentença recorrida, na parte reservada à aplicação do direito aos factos inexiste por completo qualquer subsunção jurídica dos mesmos u fundamentação que permitam alcançar a motivação que lhe subjaz.
No que toca à falta de especificação dos fundamentos de facto da sentença, tem-se entendido que esta nulidade envolve não apenas a falta de discriminação dos factos provados e não provados, a que se refere o artigo 123º, nº 2 do CPPT, mas também a falta de exame crítico das provas, previsto no artigo 607º, nº 4 do CPC.
Efectivamente quanto às sentenças a proferir rege o art. 607º do CPC sobre a “Elaboração da sentença” que “(...) 2 - A sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre solucionar.
3 - Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.

4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
(...)”
Como aponta Jorge Lopes de Sousa quanto à falta de especificação dos fundamentos de facto da sentença, Vide, Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentado, vol. II, 6ª edição, 2011, Áreas Editora, pág. 358
“(...) esta falta não poderá deixar de reportar-se à fundamentação de facto exigida por este Código (leia-se, CPPT) e nele, ao contrário do que sucede no CPC (art.º 659º, nº3), exige-se não só a indicação dos factos provados, mas também dos não provados. Trata-se de uma exigência suplementar de fundamento de facto, não prevista no processo civil, que é a discriminação da matéria de facto não provada, cumulativamente com a provada. Na previsão desta norma, a indicação da matéria de facto não provada deve ser feita indissociavelmente da indicação da matéria de facto provada, como se depreende da expressão “o juiz discriminará também a matéria de facto provada da não provada”, o que pressupõe que essa discriminação seja feita concomitantemente. Sendo assim, a falta de discriminação da matéria de facto não provada, no domínio do contencioso tributário, será equiparável à falta de indicação da matéria de facto provada, para efeitos da nulidade prevista no art.º 125º, nº1 do CPPT”.
Como é evidente, a exigência de tal discriminação dos factos provados e dos não provados só se justifica relativamente aos factos que se mostrem relevantes segundo as várias soluções plausíveis de direito [artigo 508º-A, nº1, al. e), 511º e 659º do CPC]. Daí que, como refere o autor citado Vide, Jorge Lopes de Sousa, obra e volume citados, pág. 358., “só existirá nulidade de sentença por falta de indicação dos factos não provados relativamente a factos alegados que não tenham sido dados como provados e que possam relevar para a decisão da causa”.
Recuperando o caso concreto, e como já havíamos deixado apontado, a sentença recorrida não discriminou a factualidade não provada a par da total ausência de motivação.
Note-se que esta nulidade - falta de especificação dos fundamentos de facto da sentença – corresponde, a montante, à exigência de fundamentação da sentença, no que respeita à fixação da matéria de facto, tal como prevê o artigo 123º, nº2 do CPPT - “O juiz discriminará também a matéria provada da não provada, fundamentando as suas decisões”.
Tal fundamentação consiste, como se percebe, na indicação dos meios de prova que foram considerados para formar a convicção do juiz e na sua apreciação crítica, por forma a serem exteriorizadas as razões pelas quais se decidiu num certo sentido e não noutro qualquer.
A exigência de fundamentação da sentença tem naturalmente várias valências, pois que, num primeiro momento, serve para impor ao juiz da causa que pondere e reflicta criticamente sobre a decisão, mas também para permitir que as partes, ao recorrerem da sentença, estejam na posse de todos os elementos que determinaram o sentido da decisão e, por último, torna possível ao Tribunal de recurso apreciar o acerto ou desacerto da sentença recorrida.
Assim sendo, “a fundamentação de facto não deve limitar-se à mera indicação dos meios de prova em que assentou o juízo probatório sobre cada facto, devendo revelar o itinerário cognoscitivo e valorativo seguido pelo juiz ao decidir como decidiu sobre todos os pontos da matéria de facto.
Nos casos em que os elementos probatórios tenham um valor objectivo (como sucede, na maior parte dos casos, com a prova documental), a revelação das razões por que se decidiu dar como provados determinados factos poderá ser atingida com a mera indicação dos respectivos meios de prova, sem prejuízo da necessidade de fazer uma apreciação crítica, quando for questionável o valor probatório de algum ou alguns documentos (…).
Mas, quando se tratar de meios de prova susceptíveis de avaliação subjectiva (como sucede com a prova testemunhal) será indispensável, para atingir tal objectivo de revelação das razões da decisão, que seja efectuada uma apreciação crítica da prova, traduzida na indicação das razões por que se deu ou não valor probatório a determinados elementos de prova ou se deu preferência probatória a determinados elementos em prejuízo de outros, relativamente a cada um dos factos relativamente aos quais essa apreciação seja necessária”. Vide, Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentado, vol. II, 6ª edição, 2011, Áreas Editora, pág. 321 e 322.
Como ensina M. Teixeira de Sousa “… o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente …” Vide, Estudos sobre o novo Processo Civil, Lex, Lx 1997, pág. 348.
Mais cumpre atentar, tendo presente os vícios assacados às liquidações de IVA impugnadas, da fundamentação que se dedica à decisão da causa, a qual de tão parca e obscura aqui se transcreve de imediato na integra:
«Diz-nos o n.º 2 do artigo 18.º do CIRC, na redacção em vigor à data dos factos tributários em apreço, que as componentes positivas ou negativas consideradas como respeitando a períodos anteriores só são imputáveis ao período de tributação quando na data de encerramento das contas daquele a que deviam ser imputadas eram imprevisíveis ou manifestamente desconhecidas. Deste princípio da especialização e independência entre exercícios decorre que o cálculo do rendimento tributável de cada exercício tem natureza definitiva, e não provisória, a qual não consente correcções posteriores por efeito de erros verificáveis em relação a outros exercícios
Assim, os serviços de inspecção ao ponderaram, no procedimento relativo ao exercício de 2008, o valor das existências iniciais com os valores corrigidos em procedimento anterior [que resultou da correcção ao valor das existências finais], efectuaram uma correcção a favor da Impugnante.
Ou seja, no procedimento inspectivo referente a exercícios anteriores, o valor das existências finais corrigida para mais (com reflexo num aumento de proveitos), aumento que se espelhou no exercício de 2008, a AT considerou os gastos dos exercícios anteriores que foram imputados às obras executadas pela Impugnante, valores esses que estão considerados no valor das existências iniciais de 2008.
Assim, contrariamente ao que a Impugnante defende, a AT considerou apuramento total da situação tributária da Impugnante com a determinação das despesas elegíveis.»
Cremos por isso que a sentença recorrida carece de fundamentação de facto.
Mas, e também entendemos que a mesma não contém fundamentação de Direito, na medida em que não indica uma única disposição legal, ou qualquer fundamento jurídico, que justifique a decisão perante o objecto do litigio.
Temos por claro que a nulidade da sentença por falta de fundamentação constitui uma figura de muito difícil verificação, na medida em que a doutrina e a jurisprudência têm salientado com insistência que tal vício só se verifica em situações de falta absoluta ou total ininteligibilidade de indicação das razões de facto e de Direito que justificam a decisão e não também quando tais razões constem da sentença, mas de tal forma que pela sua insuficiência, laconismo ou mediocridade, se deve considerar a fundamentação deficiente.
Com efeito, já Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, V Volume, 3ª Ed., Coimbra Editora, p. 140, ensinava que «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.
Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.»
Por outro lado, como bem salientou Tomé Gomes, in “Da sentença cível”, in “O novo processo civil”, caderno V, e-book publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, jan. 2014, p. 39, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos, «(…) a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adotada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. / A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão.»
Tendo presente estas considerações, estamos convictos que as mesmas em nada beliscam a conclusão de que, no caso em análise se verifica efetivamente uma das raras ocasiões em que importa considerar verificado o vício da nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto e de direito, na medida em que como expusemos, a sentença recorrida não permite o escrutínio das razões que conduziram à decisão proferida a final, sendo incongruente com o objecto as razões de direito em que estriba.
Feito este parêntesis em que assenta a nossa indignação, pois não alcança este Tribunal ad quem o percurso cognitivo ou outro conducente à improcedência da acção, volvemos à nulidade tout court, tal e qual nos é suscitada pelo Ministério Público, com ênfase na ausência de matéria de facto dada como não provada.
Com o seu recurso, pretende a Recorrente que este Tribunal decida pela procedência do pedido que formulou, mas, para isso, é essencial que da mesma decisão recorrida constem as razões pelas quais se entendeu não dar como provado ou não provado o alegado, nomeadamente artigo 28º da petição inicial, sendo aí referido proa documental junta.
Portanto, face ao exposto, há que, acompanhando a pronúncia do Exmo. Procurador, reconhecer que a sentença recorrida padece da nulidade consubstanciada na não especificação dos fundamentos de facto da decisão (artigo 125º, nº1 do CPPT), pois não discrimina os factos provados dos não provados, omitindo ainda um qualquer exame crítico da prova constante dos autos, a saber motivação.
Vimos já que, com o presente recurso, a Recorrente pretende que o Tribunal, além do mais, aprecie e decida os eventuais erros de julgamento da matéria de facto por errada valoração da prova e, também, erro de julgamento da matéria de direito por violação dos princípios da justiça, inquisitório e da verdade material, consagrados, respectivamente, nos artigos 266°, da CRP, 55° e 56°, da LGT e 6°, do RCIPTA.
Porém, no caso, tal não se afigura possível. Como se disse em acórdão deste TCAN, de 18.01.12, proferido no âmbito do processo n.º 191/04, “A fundamentação da matéria de facto provada e não provada em primeira instância, a explicação crítica por parte do julgador de tal matéria, é essencial para que o Tribunal de recurso se possa pronunciar sobre a mesma, caso venha a ser posta em causa em sede de recurso. Inexistindo nesta decisão recorrida tais razões, fica, de modo inexorável, este Tribunal de recurso coarctado e impedido de exercer plenamente os seus poderes, não podendo decidir, de facto e de direito, como lhe compete”.
Para mais, aditamos nós, inexiste qualquer silogismo entre a parca e não motivada matéria de facto, que permita estabelecer ou percecionar tais razões na sentença recorrida, na parte reservada à aplicação do direito aos factos.
Por ouro lado, e recuperando análise sobre a fundamentação de direito da sentença sob recurso, temos que ao Tribunal de recurso não compete julgar ex novo mas tão só reapreciar o julgamento que recaiu sobre as questões que o tribunal a quo decidiu, e que no caso concreto como vimos não recaiu, fala-se ali de IRC, quando a contenda se prende com a dedução de IVA e nenhuma alusão aos princípios alegadamente violados e sobre os quais agora se aclama a nossa apreciação.
Assim in casu, estamos perante uma ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão incompreensível, por inacessível ao intelecto, mercê da existência dum vício insanável no chamado “silogismo judiciário”. (…), impedindo a compreensão da decisão judicial, situação em que os destinatários da sentença ficarão sem saber ao certo o que efectivamente foi decidido ou se quis decidir e com que fundamentos.
Com efeito, a jurisprudência tem vindo a afirmar que é obscuro o que não é claro, aquilo que não se entende, sendo que, nas palavras do acórdão de 31/03/2022 (proc. n.º 812/06.1TBAMT.P1.S1), “não é qualquer ambiguidade ou obscuridade que provoca a nulidade da sentença, mas apenas aquela que torna a decisão ininteligível.”, sendo que “a ininteligibilidade relevante para efeito do art. 615º do CPC é a da decisão da causa e não a mera ininteligibilidade de um argumento utilizado no percurso decisório”.
Por outro lado, “
a ambiguidade ou a obscuridade prevista na al. c) do n.º 1 do art. 615.º só releva quando torne a parte decisória ininteligível e só torna a parte decisória ininteligível quando um declaratário normal, nos termos dos arts. 236.º, n.º 1, e 238.º, n.º 1, do CC, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar” (acórdão do STJ de 20/05/2021, proc. n.º 69/11.2TBPPS.C1.S1 e acórdãos do STJ de 09/12/2021 (proc. n.º 7129/18.7T8BRG.G1.S1), de 19/10/2021 (proc. n.º 63/13.9TBMDR.G2.S1), de 02/03/2021 (proc. n.º 330/12.9TBCMN-L.G1.S1) e de 26/01/2021 (proc. n.º 2350/17.8T8PRT.P1.S2).

Assim sendo, limitar-nos-emos a declarar a nulidade da sentença recorrida, cabendo ao Tribunal a quo determinar os termos adequados ao reatamento da tramitação da causa, seja proferindo nova sentença que obedeça ao disposto no artigo 607º do CPC, nomeadamente quanto à sua fundamentação de facto e de direito, seja determinando as diligências tidas por convenientes com vista a aquilatar das questões de facto e de direito invocadas pela Impugnante.


2.3. Conclusões
I. A nulidade da sentença por falta de especificação dos fundamentos de facto, abarca não apenas a falta de discriminação dos factos provados e não provados, a que se refere o artigo 123º, nº 2 do CPPT, mas também a falta de exame crítico das provas, prevista no artigo 659º, nº 3 do CPC.
II. A falta de discriminação da matéria de facto não provada, no domínio do contencioso tributário, é equiparável à falta de indicação da matéria de facto provada, para efeitos da nulidade prevista no artigo 125º, nº1 do CPPT.
III. A exigência de fundamentação da sentença tem naturalmente várias valências, pois que, num primeiro momento, serve para impor ao juiz da causa que pondere e reflita criticamente sobre a decisão, mas também para permitir que as partes, ao recorrerem da sentença, estejam na posse de todos os elementos que determinaram o sentido da decisão e, por último, torna possível ao Tribunal de recurso apreciar o acerto ou desacerto da sentença recorrida.

3. DECISÃO
Em face do exposto, acordam, em conferência, os juízes da Subsecção Comum da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Norte em declarar nula a sentença recorrida por absoluta falta de fundamentação de facto e de Direito – artigo 615º, nº 1, al. b) do CPC.
Custas pela parte vencida a final (artigo 527º n.º 1 do CPC).
Porto, 22 de fevereiro de 2024

Irene Isabel das Neves
Ana Paula Santos
Cristina Nova