Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5604/19.5T9LSB.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: DESPACHO DE ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO
REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
INADMISSIBILIDADE
INTERVENÇÃO HIERÁRQUICA
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 04/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. No modelo processual penal português o Ministério Público é o titular da acção penal, e o controlo da decisão de arquivamento pelo juiz de instrução, por iniciativa do assistente, tem de ser processualmente compatível com a estrutura acusatória do processo e a separação de poderes e de funções.

II. Notificadas do arquivamento do Ministério Público, as assistentes optaram por requerer a abertura da instrução em detrimento do mecanismo previsto no art. 278.º do CPP, quando, tendo em conta o âmbito, a finalidade e os limites da fase de instrução não podiam pretender que o juiz da instrução substituísse o inquérito do Ministério Público por um outro, que apurasse a actuação da denunciada e determinasse a sua responsabilidade.

III. Perante as tão graves insuficiências do inquérito, que as próprias afirmam no seu requerimento de abertura de instrução, a via de reacção processual das assistentes só poderia ter sido a de requerer a intervenção hierárquica do imediato superior do magistrado do Ministério Público que, declarando encerrado o inquérito, determinou o arquivamento.

IV. E não podiam pretender uma instrução em que visavam que o juiz de instrução se substituísse ao Ministério Público, praticando a actividade probatória omissa, ou seja, actos que objectivamente extravasariam os seus poderes funcionais enquanto titular da instrução, em violação da estrutura acusatória do processo e em infracção ao disposto nos arts. 286.º, n.º 1 e 298.º, do CPP.

V. Daí que se mostre correcta a conclusão retirada no despacho recorrido, de que os requerimentos de abertura de instrução deduzidos pelas assistentes terão de ser rejeitados por inadmissibilidade legal, nos termos do n.º 3 do art. 287.º do CPP.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


1. Relatório

1.1. No processo de inquérito n.º 5604/19.5T9LSB que corre termos no Supremo Tribunal de Justiça, foi proferido despacho de rejeição, por inadmissibilidade legal, do requerimento de abertura de instrução apresentado por Ordem dos Enfermeiros e AA contra BB, juíza conselheira do Supremo Tribunal de Justiça.

A Ordem dos Enfermeiros e a bastonária AA haviam apresentado queixa-crime contra, entre outros, BB, imputando-lhe a prática de crimes de introdução em lugar vedado ao público (art. 191.º do CP), coacção agravada (arts. 154.º e 155.º, n.º 1, al. d), do CP), dano (art. 212.º do CP), sequestro qualificado (art. 158.º, n.ºs 1 e 2, al. g), do CP), furto qualificado (arts. 203.º e 204.º, n.º 1, al. f), do CP), abuso de poder (art. 382.º do CP), difamação agravada (arts. 180.º e 183.º, n.º 1, al. a), do CP), ofensa a pessoa colectiva agravada (arts. 187.º e 183.º, n.º 1, al. a), do CP) e acesso ilegítimo a dados informáticos (art. 6.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro - Lei do Cibercrime).

O inquérito foi arquivado em relação à aqui denunciada, com fundamento na prescrição do procedimento criminal dos crimes de introdução em lugar vedado ao público, de difamação agravada e de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva agravada e por se ter considerado que a queixa não continha factos que sugerissem que tivesse comparticipado, de alguma forma, nos crimes de coação agravada, dano, sequestro qualificado, furto qualificado, abuso de poder e acesso ilegítimo a dados informáticos.

As queixosas, constituídas assistentes, requereram a abertura de instrução, arguindo a nulidade insanável do art. 119.º, al. d), do CPP (falta de inquérito), a nulidade dependente de arguição do art. 120.º, n.º 2, al. d), do CPP (insuficiência do inquérito por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios), e peticionando a pronúncia da denunciada pelos crimes de coação agravada (como instigadora), dano (como instigadora), sequestro qualificado (como instigadora), furto qualificado (como instigadora), abuso de poder (como instigadora), difamação agravada (como autora material), ofensa a pessoa coletiva agravada (como autora material) e acesso ilegítimo a dados informáticos (como instigadora).

Inconformadas com a decisão do juiz conselheiro de instrução, que julgou improcedentes as nulidades arguidas e rejeitou o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal (art. 287.º, n.º 3, do CPP), interpuseram as assistentes recurso, concluindo:

“1.a É essencial ter-se presente na apreciação do presente recurso que as Assistentes, em face do despacho de arquivamento, não suscitaram apenas uma questão jurídica requerimento de abertura de instrução, mas sim duas questões jurídicas, como bem se reconhece a págs. 20 do douto despacho recorrido: primeiro arguição das nulidades de falta ou de insuficiência do inquérito e segundo requerimento de abertura de instrução.

2.a. Depois de uma parte I, de introdução genérica, a peça processual apresentada em 20.02.2023 tem uma parte II de arguição de nulidades do inquérito, que termina com o pedido correspondente (na pág. 15).

3.a. E só depois começa o requerimento de abertura de instrução propriamente dito, que está dividido em 3 partes: fundamentos factuais e jurídicos da discordância quanto ao arquivamento (parte III); acusação em sentido material (parte IV); requerimento de diligências a realizar na fase de instrução (parte V).

4.a. No requerimento de abertura de instrução, propriamente dito, (ou seja, nas 3 partes que respeitam materialmente à pretensão de que haja fase de instrução que termine com a pronúncia da arguida), não se pede mais investigação!

5.a. No RAI propriamente dito imputaram-se factos e crimes concretos a pessoa determinada, esses factos concretos foram afirmativamente — e não de forma dubitativa — narrados e indicou-se até, como parte da acusação, prova a produzir em julgamento (para além da prova a produzir em instrução).

6.a. Há ainda que referir que os factos e respetivas provas constam dos autos de inquérito desde o início, uma vez que tudo foi logo trazido ao processo com a Queixa/denúncia inicial e com os documentos que se apresentaram, pelo que é viável a prolação de despacho de pronúncia.

7.a. E é ainda essencial aduzir que toda a factualidade e meios de prova, em causa nestes autos, constam de um outro processo pendente processo no 971/19.3..., que corre no Juiz I I do Tribunal Criminal Local de ... — (que é o reverso deste e em que a aqui Assistente é arguida, com três outros responsáveis da OE), que passou por todas as fases processuais (inquérito, instrução e julgamento) e só se encontra a aguardar sentença.

8.a. E constam também do processo no 816/23.0..., que correu no DIAP de ..., ... Secção, em que foi proferido despacho de arquivamento e relativamente ao qual está a ser ultimado requerimento de abertura de instrução, e em que são arguidas as pessoas da IGAS e da PSP que, segundo as Assistentes, foram comparticipantes da Exma. Senhora Conselheira Dra. BB, então ... das Atividades em Saúde.

9.a. Ora, decorre dos 3 processos que versam este mesmíssimo assunto, que o que essencialmente é controvertido neste caso não são questões factuais, pois, com mais ou menos detalhes, não há grandes dúvidas sobre o que aconteceu.

10.a. A grande questão segundo a qual os factos em causa constituem, ou não, crime é uma pura questão de Direito e é a seguinte: era ou não necessário ter sido emitido um mandado judicial para que a atuação da IGAS nas instalações da OE e contra a vontade dos órgãos da OE fosse lícita, sendo certo que inexistiu tal mandado?

O douto despacho que julgou legalmente inadmissível o RAI apresentado pelas Assistentes é ilegal porque rejeitou o RAI por fundamento de que ele não padece.

12.a. As razões aduzidas pelo Mmo. Conselheiro JIC só são exatas relativamente ao que se escreveu a propósito da arguição das nulidades de falta ou insuficiência do inquérito, deduzidas pelas Assistentes previamente ao seu RAI propriamente dito (que, como já referido, consta de uma pequena parte —a parte II da peça processual que apresentaram em 20.02.2023).

13.a. Mas o que é escrito pelo Mmo. Conselheiro JIC, quanto às Assistentes pretensamente quererem é a continuação da investigação na fase de instrução, não é nada exato em face do que quanto ao que afirmativa e detalhadamente se escreveu nas partes III, IV e V que consubstanciam o RAI propriamente dito (e ocupam mais de 130 páginas da peça processual apresentada em 20.02.2023).

14.a. Contrariamente ao mencionado no douto despacho de que se recorre, as Assistentes, no seu RAI, não visaram "tão só o complemento da investigação " e não se limitaram a "atacar a não realização de diligências que tinham por essenciais".

15.a. O douto despacho recorrido cita breves trechos sempre da pequena parte da peça processual apresentada em 20.02.2023 relativa à arguição de nulidades do inquérito deduzida pelas Assistentes antes do RAI propriamente dito.

16.a. E é desconsiderado tudo o que se escreveu em 134 páginas do RAI propriamente dito.

17.a. De uma leitura cuidada da peça apresentado pelas Assistentes — uma peça processual com 155 páginas, resulta que apenas se dedicou uma pequena parte (o capítulo II) às "Nulidades do Inquérito", parte essa que tem aliás apenas 5 páginas (!).

18.a. Ora, o despacho recorrido só se estriba para considerar que o RAI é legalmente inadmissível no que se diz nessas 5 páginas — a propósito de arguição de nulidades de falta ou insuficiência do inquérito — e desconsiderou o que afirmativamente se escreveu nas subsequentes mais de 130 páginas do RAI propriamente dito, em que muito contrariamente a terem-se limitado a pedir mais investigação em fase de instrução (como inexatamente se refere no douto despacho recorrido de rejeição do RAI), as Assistentes fizeram o seguinte:

19.a. Primeiro, as Assistentes discordaram fundadamente, ao longo do capítulo III do RAI, das razões de facto e de Direito que estiveram na base da decisão de arquivamento do MP, relativamente à prática, pela Exma. Senhora Conselheira Dra. BB, então ... das Atividades em Saúde, dos crimes de coação agravada (artigos 154.0 e 155.0, n.0 1, alínea d), do CP), dano (artigo 212. 0 do CP), sequestro qualificado (artigo 158. 0, n.0s I e 2, alínea g), do CP), furto qualificado (artigos 203.0 e 204. 0, n.0 1, alínea f), do CP), abuso de poder (artigo 382. 0 do CP), difamação agravada (artigos 180. 0 e 183.0, n. 0 1, alínea a), do CP), ofensa a pessoa coletiva agravada (artigos 187. 0 e 183.0, n. 0 1, alínea a), do CP) e acesso ilegítimo a dados informáticos [artigo 60 da Lei n.0 109/2009, de 15 de setembro (Lei do Cibercrime)].

20.a. Segundo, as Assistentes formularam no seu RAI uma "Acusação em sentido material" (capítulo IV), onde imputaram explicitamente à Arguida Exma. Conselheira Dra. BB, com base nos indícios factuais concretos trazidos ao inquérito (pois as Assistentes com a sua denúncia/queixa criminal dele os fizeram constar) e com base na referida questão fundamental de Direito logo aduzida na queixa/denúncia (de saber se tinha que haver mandado judicial para os elementos da IGAS e da PSP entrarem na OE contra a vontade de quem de direito), a prática dos crimes supra referidos e que, do seu ponto de vista, justificam que a Arguida devesse ter sido acusada e que em instrução seja pronunciada.

21.a. Terceiro, as Assistentes requereram a produção de prova na fase de instrução, com indicação dos factos que pretendiam provar.

22.a. O douto despacho recorrido ignorou, portanto, toda a argumentação de veemente discordância do despacho de arquivamento constante da Parte III da peça processual apresentada em 20.02.2023, toda a categórica e afirmativa narração dos factos da acusação em sentido material com o inequívoco pedido de pronúncia de pessoas concreta por crimes determinados constante da Parte IV e ainda o requerimento de diligências probatórias a realizar em instrução, constante da Parte

23.a. E atentou apenas no que se escreveu na arguição de nulidade que previamente se deduzira na Parte II, o que, com o devido respeito, não está correto.

24.a. O facto de se arguirem as nulidades de falta ou insuficiência do inquérito não implica que a forma correta de reagir ao despacho de arquivamento do MP não possa ser requerer a abertura de instrução.

25.a. A doutrina tem definido o que pode ser causa de inadmissibilidade legal da instrução.

26.a. As situações em que o RAI do assistente contém factos que não constituem crime (aplicando, por identidade de razão, o artigo 311.º , n.º 3, al. d) do CPP.

27.a. Também tem entendido que quando o RAI do assistente seja omisso na narração dos factos essenciais que integram os elementos constitutivos dos crimes que se pretendem imputar, existirá uma condição de inadmissibilidade legal da instrução, em razão da nulidade prevista no art. 1 19.º, al. d), do CPP, por conter factos que não foram objecto do inquérito.

28.a. E também esse o entendimento perfilhado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (V. em especial os Acórdãos acima citados de 21.06.2017 e 19.06.2019, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).

29a. O que é crucial é que no RAI (ilegalmente rejeitado), que foi apresentado pelas Assistentes, se imputou à Arguida Exma. Conselheira Dra. BB factos que integram toda a factualidade objetiva e subjetiva dos tipos penais de coação agravada, dano, sequestro qualificado, furto qualificado, abuso de poder, difamação agravada, ofensa a pessoa coletiva agravada e acesso ilegítimo a dados informáticos e que cumpriu os requisitos ínsitos no artigo 283 0, no 3, alíneas b) e c) do CPP, aplicável ex vi artigo 2870, no 2 in fine do CPP, pelo que o RAI apresentado pelas Assistentes não devia ter sido rejeitado com base em "inadmissibilidade legal".

30.a. Assim, o RAI apresentado pelas Assistentes não devia, de acordo com a doutrina e a jurisprudência, ter sido rejeitado com base em "inadmissibilidade legal".

31.a. Com efeito, de uma leitura cuidada do RAI apresentado pelas Assistentes resulta que o RAI apresentado obedece estritamente aos requisitos previstos no artigo 287.º, no 2 e 283.º, n.º 3, als. b) e d), aplicável ex vi art. 287.º, n.º 2 in fine, todos do CPP.

32.a. Na parte III da peça processual apresentada em 20.02.2023, as Assistentes expuseram as razões de facto e de Direito de discordância relativamente ao despacho de arquivamento proferido pelo MP, nos termos do artigo 287.º, n.º 2 do CPP.

33.a. Seguidamente, na parte IV dessa peça processual, as Assistentes narraram os factos objetivos e subjetivos que fundamentam a aplicação à Arguida de uma pena, tendo incluído o lugar, o tempo, a motivação da sua prática, o grau de participação que a Arguida teve nos factos e demais circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deveria ser aplicada, nos termos do artigo 283.º, n.º 3, al. b) do CPP e indicaram as disposições legais aplicáveis aos factos em apreço, como é exigido pelo art. 283.º, n.º 3, al. d), do CPP, assim formulando uma Acusação em sentido material.

34.a. Deve pois concluir-se que do RAI apresentado pelas Assistentes consta o que dele tinha que constar para se considerar que não devia ter sido rejeitado por inadmissibilidade legal da instrução, pois contém a narração alegação dos factos (de modo afirmativo e não dubitativo) que integram todos os elementos objetivos e subjetivos dos tipos de ilícitos imputados (coação agravada, dano, sequestro qualificado, furto qualificado, abuso de poder, difamação agravada, ofensa a pessoa coletiva agravada e acesso ilegítimo a dados informáticos), pelos quais as Assistentes pretendem a pronúncia da Arguida (pessoa singular contra quem já fora apresentada a Queixa/denúncia).

35.a. Impunha-se legalmente que, em vez de despacho de rejeição, tivesse antes sido proferido despacho de abertura de instrução, nos termos do artigo 287.º, n.º 5, do CPP, permitindo que as Assistentes (ora, Recorrentes) mais não seja pudessem discutir perante o Mmo. Juiz de Instrução, por forma oral e contraditória, se, do decurso do inquérito e da instrução, resultaram, ou não, indícios suficientes de factos, que conjugados com a referida questão fundamental de Direito (de ser necessário mandado judicial para os elementos da IGAS, contra a vontade de quem de direito, poderem entrar na OE e aí poderem licitamente praticar atos coercivos), justifiquem a submissão da Arguida a julgamento (artigo 298.º do CPP).

36.a. Como bem se clarifica na Doutrina e na Jurisprudência o Assistente deve requerer intervenção hierárquica quando não tem elementos suficientes para formular uma acusação em sentido material contra alguém.

37.a. Não é de todo esse o caso dos autos!

38.a. Como já se referiu supra, o que é decisivo neste caso é a questão de Direito de saber se os elementos da IGAS (incluindo a Exma. Senhora Conselheira Dra. BB, então ... das Atividades em Saúde) deviam ter obtido previamente um mandado judicial para poderem, contra a vontade de quem de direito, praticar licitamente atos coercivos nas instalações da Ordem dos Enfermeiros como as Assistentes entendem que devia — e, não o tendo feito a menos que tivessem agido em erro (maxime erro sobre a ilicitude previsto no art. 170.º do CP) indiciariamente cometeram os crimes denunciados.

39.a. Por último, diga-se que não resultando a invocada inadmissibilidade legal do teor concreto do RAI propriamente dito, constante de págs. 15 a 155 da peça processual apresentada em 20.02.2023, tal ideia só poderia resultar de um entendimento absurdo segundo o qual, independentemente do que se escrevesse no concreto RAI, sempre que se invocassem nulidades por falta ou insuficiência de inquérito, nunca seria admissível requerer-se abertura de instrução e só seria possível requerer-se a intervenção hierárquica.

40.a. Porém, nenhuma destas implicações lógicas tem apoio na Lei. Pelo contrário, a Lei dispõe expressamente que a nulidade de insuficiência de inquérito deve ser arguida até ao encerramento do debate instrutório (cfr. art. 120.º n.º 3 al. c) do CPP). O que pressupõe necessariamente que possa ter havido instrução!

41.a. Para os efeitos previstos no artigo 412.º, no 2, al. a) do CPP, refere-se que se considera que o Tribunal a quo violou as seguintes normas jurídicas: 287.º n.º 2 e n.º 3 do CPP.

42.a. Para os efeitos previstos no art. 412.º, n.º 2, al. b) do CPP, refere-se que se considera que o Tribunal a quo aplicou erroneamente a norma do art. 287.º, n.º 3 do CPP (em articulação com o artigo 287.º n.º 2 do CPP) ou porque desconsiderou os termos do concreto RAI apresentado, ou porque, segundo uma interpretação errónea dessa norma, terá considerado que constituía "inadmissibilidade legal" a circunstância de simultaneamente apresentar-se RAI e ter-se deduzido arguição de nulidades por falta ou insuficiência de inquérito.

43.a. Para os efeitos previstos no artigo 412.º, n.º 2, al. b) do CPP, refere-se que se considera que o Tribunal a quo devia ter interpretado a norma do artigo 287.º, n.º 3 do CPP (em articulação com os artigos 287.º n.º 2 e 283.º, n.º 2, als. b) e d), do CPP) no sentido de que só podem constituir o fundamento de rejeição de RAI, por inadmissibilidade legal da instrução, os casos de omissão de alegação de factos que integrem todos os elementos objetivos e subjetivos dos tipos penais em causa.

44.a. Mas não sendo esse o caso dos autos, pois neste RAI do assistente alegaram-se (afirmativamente e não de forma dubitativa) factos concretos subsumíveis em todos os elementos objetivos e subjetivos dos tipos penais em causa e imputou-se inequivocamente a prática desses crimes à Arguida, o RAI apresentado não devia ter sido rejeitado.

Nestes termos, e nos mais do Direito aplicável, deverão V. Exas. revogar o douto despacho que rejeitou o RAI apresentado pelas Assistentes, com fundamento em inadmissibilidade legal da instrução, e substituí-lo por outro, que o admita e que determine a abertura da instrução requerida pelas Assistentes, assim se aplicando o Direito e fazendo.”

O Ministério Público no Supremo respondeu ao recurso no sentido da improcedência, citando abundante jurisprudência e doutrina, em apoio da tese prosseguida no despacho recorrido e concluindo:

“No requerimento de abertura de instrução as assistentes dirigem as seguintes críticas ao inquérito:

«É clamorosa a falta ou, pelo menos, a insuficiência do inquérito» (pág. 3)

«Ao longo de 3 anos e 6 meses foram realizadas apenas 5 (cinco) diligências de inqué-rito, a saber:

a) Solicitação à IGAS de cópia do processo de sindicância (…);

b) Solicitação ao Tribunal Administrativo de Círculo de ..., de certidão da Sen-tença/decisão final proferida no âmbito da providência cautelar n.º 777/19.0... (…);

c) A inquirição de AA (…);

d) Solicitação ao DIAP, ... secção, Proc. 971/19.3..., de cópia da participação/de-núncia que originou o inquérito e estado actual do mesmo (…);

e) Solicitação de certidão do Proc. n.º 274/19.7...» (pág. 10)

«Ao longo de 3 anos e 6 meses não foram constituídos arguidos nem interrogados nessa qualidade, nem inquiridos, qualquer um dos participados denunciados ou agentes que participaram na execução dos factos denunciados» (pág. 10)

«(…) não foi inquirida nenhuma das 10 (dez) testemunhas identificadas a final da queixa/participação apresentada» (pág. 10)

«(…) com excepção da inquirição da assistente AA e da solicitação dos documentos acima referidos, não foi efetuada qualquer outra diligência no sentido de apurar todos os responsáveis pelos factos denunciados» (pág. 11)

«A recolha da prova indicada a final da queixa/participação sobre a factualidade nesta descrita revelava-se essencial para formular um juízo sobre a verificação, ou não, da prática dos ilícitos ali imputados» (pág. 12)

«uma só constatação e conclusão se pode fazer e retirar: a manifesta falta, ou pelo menos, a insuficiência do inquérito e a manifesta omissão de diligências de prova indispensáveis (…)» (pág. 13)

«É de facto manifesto que (…) as diligências omitidas, mormente, a inquirição e eventual constituição como arguidos dos denunciados (…) bem como a inquirição das testemunhas arroladas, se revelavam absolutamente adequadas e essenciais ao apuramento dos factos participados (…)» (pág. 13)

«O Ministério Público não podia ter concluído no sentido ali expresso sem realizar essas diligências de prova tendentes ao apuramento dos factos (…)» (pág. 13)

«O Ministério Público deveria ter determinado a realização de tais diligências necessá-rias e adequadas ao cabal esclarecimento dos factos e respetivos responsáveis» (pág. 14)

«Ao omitir a realização das diligências essenciais em sede de inquérito para o apuramento dos factos e a descoberta da verdade material, nomeadamente a constituição como arguidos dos denunciados e o seu interrogatório nessa qualidade, a inquirição e eventual constituição como arguidos e interrogatório nessa qualidade dos inspetores da IGAS e dos Agentes da PSP, bem como a inquirição das testemunhas indicadas no final da queixa/participação, o MP deixou de efetuar diligências obrigatórias e diligências essenciais para descoberta da verdade (…)» (pág. 14).

Na decorrência do que antecede, no subcapítulo III.2. do requerimento de abertura de instrução dedicado à exposição dos indícios probatórios dos crimes, as recorrentes socorreram-se das transcrições das declarações e depoimentos prestados pela assistente AA, por CC, por DD e por EE (enquanto arguidos) e pelos funcionários e membros da Ordem dos Enfermeiros FF, GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO e PP (enquanto testemunhas) num outro processo (págs. 19 e seguintes).

E, naturalmente, como tais declarações e testemunhos não foram produzidos nestes autos, solicitaram ao Sr. juiz conselheiro de instrução que procedesse à audição da assistente AA e do representante que a Ordem dos Enfermeiros viesse a designar (subcapítulo IV.2.), e das testemunhas EE (IV.3.2.), CC (IV.3.3.), DD (IV.3.4.), FF (IV.3.5.), GG (IV.3.6.), HH (IV.3.7.), LL (IV.3.8.), KK (IV.3.10.), II (IV.3.11.), MM (IV.3.12.), OO (IV.3.13.), JJ (IV.3.14.), NN (IV.3.15.) e PP (IV.3.16), bem como de quatro outras testemunhas [Prof. QQ (IV.3.1.), RR (IV.3.9.), SS (IV.3.17.) e Dr. TT (IV.3.18.)].

Ou seja, as assistentes, apesar de relatarem os factos que, na sua conformação, consubstanciam os ilícitos imputados à Sr.ª juíza conselheira denunciada (capítulo III do requerimento de abertura de instrução), assentam a narrativa em fontes probatórias ainda não constituídas, pedindo ao Sr. juiz conselheiro de instrução que as ouça e que, em suma, investigue aqueles mesmos factos.

Conforme previamente referido, a fase processual de instrução constitui uma instância de controlo (de comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito como diz o art. 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal) e não de investigação (cometida essa, por imposição do art. 262.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, à fase de inquérito, o qual, nos termos do art. 263.º seguinte, é dirigido pelo Ministério Público).

Entendendo as assistentes que a investigação foi deficitária, deviam ter sindicado o arquivamento do inquérito através do mecanismo da intervenção hierárquica.

Como bem se refere no despacho sob recurso:

«À intervenção hierárquica caberia dar, ou não, provimento àpretensão das Requerentes e, no eventual provimento, ultrapassar as invocadas falhas ou deficiências da investigação.»

Aqui chegados só nos resta, por isso, concluir que ao Sr. juiz conselheiro de instrução não restava outra decisão que não fosse a de rejeitar o requerimento de abertura de instrução nos termos do art. 287.º, n.º 3, parte final, do Código de Processo Penal, por inadmissibilidade legal, hipótese que abrange «situações não tipificadas», nomeadamente aquelas em que «os factos constantes do requerimento não foram investigados no inquérito» (MAIACOSTA, obra citada, pág. 974).

E daí que deva ser negado provimento ao recurso.”

O mesmo Sr. Procurador-Geral Adjunto não emitiu parecer, remetendo para a resposta ao recurso.

O processo foi aos vistos e teve lugar a conferência.

1.2. O despacho recorrido é o seguinte:

“I - RELATÓRIO

I.1. Despacho de arquivamento

Por despacho de 23/01/2023 o MºPº, pela pena do Sr PGA neste Supremo Tribunal de Justiça, após inquérito, proferiu, relativamente à participada BB e quanto aos participados crimes de introdução em lugar vedado ao público, coação agravada, dano, sequestro qualificado, furto qualificado, abuso de poder, difamação agravada, ofensa a pessoa coletiva agravada e acesso ilegítimo a dados informáticos, o seguinte despacho de arquivamento:

“1. A Ordem dos Enfermeiros e a respetiva bastonária, AA, apresentaram queixa no Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa contra «todos os responsáveis pela efetiva execução a partir de 8.05.2019, e em especial nesse dia e no dia 13.05.2019, do despacho da Senhora Ministra da Saúde que, em 16.04.2019, determinou uma sindicância à Ordem dos Enfermeiros», nomeadamente, contra UU, VV e WW, inspetores da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS), contra os três agentes da PSP que nos dias 8 e 13 de maio de 2019 acompanharam aqueles inspetores às instalações da Ordem dos Enfermeiros e contra a Dr.ª BB, ... da IGAS.

As queixosas imputam aos denunciados a prática de crimes de introdução em lugar vedado ao público (artigo 191.º do CP), coação agravada (artigos 154.º e 155.º, n.º 1, alínea d), do CP), dano (artigo 212.º do CP), sequestro qualificado (artigo 158.º, n.ºs 1 e 2, alínea g), do CP), furto qualificado (artigos 203.º e 204.º, n.º 1, alínea f), do CP), abuso de poder (artigo 382.º do CP), difamação agravada (artigos 180.º e 183.º, n.º 1, alínea a), do CP), ofensa a pessoa coletiva agravada (artigos 187.º e 183.º, n.º 1, alínea a), do CP) e acesso ilegítimo a dados informáticos [artigo 6.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro (Lei do Cibercrime)].

A Sr.ª magistrada coordenadora do Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa, em despacho de 5 de setembro de 2019, ao constatar que um dos denunciados (a Dr.ª BB) era (então) magistrada do Ministério Público e tinha a categoria de procuradora-geral-adjunta, determinou a remessa dos autos ao Ministério Público no Supremo Tribunal de Justiça [artigo 113.º, n.º 1, da Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto (Estatuto do Ministério Público)].

2. Cremos que, pelo menos em relação à Dr.ª BB, atualmente juíza conselheira no Supremo Tribunal de Justiça (v. deliberação n.º 349/2022 do Plenário Ordinário do Conselho Superior da Magistratura, publicado no Diário da República, 2.ª série, Parte D, n.º 56, de 21 de março de 2022), podemos desde já determinar o arquivamento do inquérito.

2.1. Começando pelas questões que prejudicam o conhecimento da queixa (artigo 368.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, aplicável, ad similia, ao despacho de encerramento do inquérito).

À Dr.ª BB é imputada a prática dos crimes de introdução em lugar vedado ao público, difamação agravada e ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva agravada.

O crime de introdução em lugar vedado ao público é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias (artigo 191.º do CP).

Os crimes agravados de difamação e de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva são punidos com pena de prisão até 8 meses ou com pena de multa até 320 dias (artigos 180.º, n.º 1, 187.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), e 183.º, n.º 1, alínea a), do CP).

Face à moldura penal abstrata destes ilícitos, o procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a respetiva prática tiverem decorrido dois anos (artigo 118.º, n.º 1, alínea d), do CP).

O prazo corre desde o dia em que os factos se tiverem consumado (artigo 119.º, n.º 1, do CP).

De acordo com a queixa, os crimes consumaram-se em 13 de maio de 2019.

Não ocorre nenhuma das causas de suspensão ou de interrupção previstas nos artigos 120.º e 121.º do CP, importando aqui sublinhar que a suspensão dos prazos de prescrição estabelecida na Lei n.º 1-A/2020, de 19 de maio, na Lei n.º 16/2020, de 25 de maio, na Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, e na Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, com a duração total de 5 meses e 10 dias [de 9 de março de 2020 a 3 de junho de 2020 (artigos 7.º, n.º 3, e 10.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, 37.º da Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, e 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio) e de 22 de janeiro de 2021 a 6 de abril de 2021 (artigos 6.º-B, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, introduzido pela Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, 4.º da Lei n.º 1-B/2021, de 1 de fevereiro, e 6.º e 7.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril)], não se aplica aos crimes consumados antes da sua entrada em vigor por força do artigo 2.º, n.º 4, do CP (sobre a questão v. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do CP à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 4.ª edição, páginas 91-92, com abundante apontamento de jurisprudência e de doutrina).

O procedimento criminal pelos mencionados crimes de introdução em lugar vedado ao público, de difamação agravada e de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva pessoa coletiva agravada prescreveu, assim, em 13 de maio de 2021 (ou, se se entendesse que o período de suspensão previsto na Lei n.º 1-A/2020, de 19 de maio, na Lei n.º 16/2020, de 25 de maio, na Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, e na Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, se aplica aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, em 23 de outubro de 2021).

Extinto o procedimento criminal, fica prejudicada a notificação da assistente Ordem dos Enfermeiros nos termos e para os efeitos do artigo 285.º, n.º 1, do Código de Processo Penal relativamente aos crimes particulares posto que, como assinala PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, e com o mesmo concordamos, o Ministério Público só procede à notificação do artigo 285.º, n.º 1 do Código de Processo Penal «depois de conhecer da verificação dos pressupostos processuais (...) e de proibições de prova e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa (...). Com efeito, verificando-se algumas destas questões processuais, ela deve ser decidida pelo MP, pois só ele tem competência para o efeito» (Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2007, páginas 734-735).

2.2. Quanto aos crimes de coação agravada, sequestro qualificado, furto qualificado, abuso de poder e acesso ilegítimo a dados informáticos.

De acordo com a queixa, os factos que, na perspetiva das queixosas, cabem na descrição típica desses crimes foram praticados por VV e UU, inspetores da IGAS, e pelos dois agentes da PSP que os acompanhavam (tentativa de “coação” exercida sobre II em 8 de maio de 2019), por VV e WW, inspetores da IGAS, e pelos três agentes da PSP que os acompanhavam (tentativa de “coação” exercida sobre EE em 13 de maio de 2019), por VV e WW (“dano” consubstanciado no rompimento das portas de um armário em 13 de maio de 2019), por VV e WW e pelos três agentes da PSP que os acompanhavam (“sequestro” de XX em 13 de maio de 2019), por UU, VV e WW (“furto” de documentos cometido em 13 de maio de 2019), por UU, VV e WW e pelos agentes da PSP que os acompanharam nos dias 8 e 13 de maio de 2019 (abuso de poder na execução da sindicância à Ordem dos Enfermeiros), e por UU e WW (acesso ilegítimo a dados informáticos materializado com a introdução de uma pen num computador da Ordem dos Enfermeiros em 13 de maio de 2019).

Dizem as queixosas que a Sr.ª ... da IGAS, a Sr.ª juíza conselheira, Dr.ª BB, de acordo com as regras da «experiência comum», instigou a prática de todos estes crimes.

Instigador é aquele que dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução (artigo 26.º, parte final, do CP).

Determinar significa provocar a resolução criminosa no agente imediato, «criar em outra pessoa a decisão firme de querer praticar uma infração» (MANUEL LEAL HENRIQUES e MANUEL SIMAS SANTOS, CP anotado, 1.º volume, 1995, Editora Rei dos Livros, página 257).

«Instigador no sentido do art. 26.º é unicamente quem produz ou cria de forma cabal (…) no executor a decisão de atentar contra um certo bem jurídico-penal através de um concreto ilícito típico; se necessário inculcando-lhe a ideia, revelando-lhe a sua possibilidade, as suas vantagens ou o seu interesse, ou aproveitando a sua plena disponibilidade e acompanhando de perto e ao pormenor a tomada de decisão definitiva pelo executor. (…) O instigador surge assim (mas só então) como verdadeiro senhor, dono ou dominador se não do ilícito-típico como tal, ao menos e seguramente da decisão do instigado de o cometer, determinação que desta maneira integra, por antecipação, a totalidade dos elementos constitutivos do ilícito típico e, por isso também, do conteúdo material do ilícito. De um ilícito, acrescente-se, que sendo embora obra pessoal do homem-da-frente, faz aparecer o acontecimento (também ou sobretudo) como obra do instigador e dá o seu contributo para o facto o carácter de corealização de um ilícito e não de mera “participação (externa ou ‘estrangeira’) no ilícito de outrem”. Só esta é, no entendimento da nossa lei, a instigação-determinação e por conseguinte a instigação que é autoria» (JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, Coimbra Editora, páginas 799-800).

Ao nível subjetivo, a instigação deve ser dolosa. O dolo do instigador «deve por um lado referir-se à determinação do instigado, por outro ao facto por este cometido, ao menos em início de execução. Quanto a este segundo aspeto do dolo (…) pertence à essência da instigação a determinação de outrem a um concreto facto punível. Por isso ao dolo do instigador pertence também a representação dos concretos elementos e circunstâncias do ilícito-típico respetivo; não bastando em caso algum a representação abstrata de que o comportamento do instigado constituirá um qualquer facto punível: o dolo do instigador tem de se dirigir àquele mesmo facto que o instigado praticar» (JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, obra citada, páginas 810-811).

Pois bem, de acordo com a queixa e os documentos que a instruem, a Dr.ª BB, enquanto ... da IGAS, na sequência de um pedido da Chefe de Gabinete da Ministra da Saúde, Dr.ª YY, recebido na IGAS em 22 de março de 2019, no sentido de ser «determinada a realização (…) de uma ação de sindicância» à Ordem dos Enfermeiros, ordenou, em 26 de março de 2019, que o mesmo fosse apresentado ao «Chefe da Equipa Multidisciplinar para mandar informar sobre eventual intervenção da IGAS». Elaborada a «informação/parecer» pelo Sr. inspetor, Dr. ZZ, no sentido de que se consideravam «verificados os pressupostos para a realização de uma sindicância, a ser determinada por Despacho da Ministra da Saúde, tendo por objeto a verificação da legalidade dos atos de gestão praticados pelos seus órgãos», a Dr.ª BB, em 12 de abril de 2019, estribada nos artigos 4.º, n.º 1, alínea e), do Decreto-Lei n.º 33/2012, de 13 de fevereiro, 229.º, n.º 2, da Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, 45.º, n.ºs 2 e 8, da Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, e 3.º, n.ºs 1 e 3, alínea c), e 6.º, n.º 2, da Lei 27/96, de 1 de agosto, propôs à Sr.ª Ministra da Saúde «que determine a realização de uma acção inspetiva, do tipo sindicância, à Ordem dos Enfermeiros» e que fossem «nomeados como sindicantes os inspetores ZZ, responsável, e os inspetores em mobilidade, WW e UU, sem prejuízo da indicação de outros elementos que venham a tornar-se necessários». Perante a proposta, a Sr.ª Ministra da Saúde, em 16 de abril de 2019, determinou que se procedesse à sindicância proposta «com urgência, conforme orientação deste Gabinete de 21 de março de 2019». Em 18 de abril seguinte, a Dr.ª BB comunicou à Sr.ª bastonária da Ordem dos Enfermeiros que por determinação da Sr.ª Ministra da Saúde foi instaurado «o processo de sindicância à Ordem dos Enfermeiros, o qual será instruído pelos inspetores ZZ, WW e UU», que os mesmos se deslocariam à sede da Ordem «no dia 29 de abril de 2019, às 10h00» e solicitou «a disponibilização de um gabinete de trabalho, equipado com computador, acesso à rede de internet e impressora». Em 29 de abril de 2019 a Sr.ª bastonária da Ordem dos Enfermeiros requereu a notificação do conteúdo do despacho que ordenou a sindicância e dos elementos de prova em que se fundamentou, pedido que a Dr.ª BB despachou favoravelmente na mesma data.

A isto se resumiu a intervenção da Dr.ª BB: (mandar) indagar se estavam reunidas as condições legais de intervenção da IGAS, propor a realização da sindicância à Ordem dos Enfermeiros à Sr.ª Ministra da Saúde e nomear os respetivos inspetores.

Pretender ver nesta atuação, que se reconduz ao exercício das competências do inspetor-geral da IGAS, indícios de determinação dos Srs. inspetores (e dos agentes da PSP que colaboraram na execução da sindicância) a abusarem dos poderes, sequestrando, coagindo ou tentando coagir, danificando, furtando ou acedendo ilegitimamente a dados informáticos, nos concretos moldes descritos na queixa, com todo o respeito, não faz qualquer sentido, nem mesmo por apelo, como as queixosas fazem, às regras da experiência comum, ou seja, às «regras de comportamento que exprimem aquilo que sucede na maior parte das vezes», às regras que se extraem «dos casos semelhantes» (JOSÉ MOURAZ LOPES, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, Almedina, página 79). A ser assim, qualquer ilícito criminal cometido, por exemplo, na execução de uma busca domiciliária, seria sempre instigado pelo juiz de instrução criminal que a ordenou, pelo magistrado do Ministério Público que a promoveu, ou pelo comandante da esquadra/posto que destacou os elementos do órgão de polícia criminal que nela intervieram.

3. Aqui chegados, no que respeita à Sr.ª juíza conselheira, ex-... da IGAS, Dr.ª BB, determina-se:

a) O arquivamento dos autos relativamente aos crimes de introdução em lugar vedado ao público, de difamação agravada e de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva pessoa coletiva agravada, em razão da prescrição do procedimento criminal (artigo 277.º, n.º 1, do Código de Processo Penal);

b) O arquivamento dos autos relativamente aos demais crimes denunciados dos em virtude de não se extraírem da queixa quaisquer factos que sugiram que tenha instigado à sua prática (artigo 277.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).

3.1. Notifique as assistentes e respetivo mandatário.

3.2. Muito embora não tenha sido constituída arguida, dê conhecimento do despacho à Sr.ª juíza conselheira, Dr.ª BB.

3.3. Para os efeitos da Circular 8/2008, de 23 de maio, da Procuradoria-Geral da República, indica-se como prazo de prescrição o dia 13 de maio de 2029.

3.4. Uma vez que os demais denunciados não gozam de foro próprio, extraia certidão integral do processado e remeta-a ao Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa.

3.5. Envie cópia deste despacho Polícia Judiciária.”

I.2. Requerimento para abertura da instrução (RAI)

I.2.1. Sobre tal despacho vêm as assistentes, a Ordem dos Enfermeiros e a sua Bastonária AA, ao abrigo do artigo 287º, nº 1, al. b), do CPP, relativamente à participada BB e quanto aos participados crimes de introdução em lugar vedado ao público, coação agravada, dano, sequestro qualificado, furto qualificado, abuso de poder, difamação agravada, ofensa a pessoa coletiva agravada e acesso ilegítimo a dados informáticos, apresentar RAI.

Sendo assistentes têm legitimidade para o pedido - artigo 287º, nº 1, al. b), do CPP.

Estão em tempo. Mostram-se pagas as taxas de justiça devidas.

Sendo visada juíza conselheira do STJ cabe a competência para a instrução a um juiz conselheiro sorteado do STJ – arts 1º1, nºs 4, al. a), e 7 do CPP e 55º, als b) e h) da L. 62/2013, de 26/08 (LOSJ).

Infra se apreciará da admissibilidade ou não do Requerimento para Abertura da Instrução (RAI).

I.2.2. Fundamentaram o RAI no seguinte, em síntese:

- clamorosa falta, ou, pelo menos, insuficiência de inquérito o que gera a nulidade prevista no artigo 119.º, al. d), ou subsidiariamente no artigo 120.º, n.º 1, al. d).; com o que, declarando-se a nulidade, para os efeitos do artigo 122.º, o inquérito, incluindo a parte devolvida ao DIAP, no que toca aos demais arguidos, deve ser devolvido ao MP para efetivação dos actos de inquérito omitidos, seja, as “diligências instrutórias que se têm por necessárias” requeridas em “V” (in I.1 e II do RAI)

- os procedimentos criminais relativos ao crimes de difamação agravada p. e p. nos artigos 180, nº 1, e 183, nº 1, al. a), do CP, com pena de prisão até 8 meses ou com pena de multa até 320 dias, e de ofensa a organismo, serviço ou pessoas coletivas não estão prescritos. Em relação ao primeiro porque não se pode desconsiderar, como o MºPº o desconsiderou, o disposto nos artigos 183º, nº 2, e 184º, do CP, com o que o prazo de prescrição só ocorre em 13/05/2024, por força do disposto no artigo 118º, nº 1, al. c), do CP. Em relação ao segundo, porque não desconsiderando o disposto nos artigos 183º, nº 2, 184º e 132º, nº 2, al. l), do CP, o prazo de prescrição é, na mesma, de cinco anos (III.1). Além que tais crimes têm natureza semipública, 188º, nº 1, als a) e b), respetivamente.

- desconsideração como prova documental dos autos de declarações das diversas testemunhas inquiridas no processo nº 917/19.3... do DIAP de ... e desconsideração dos demais elementos recolhidos. “Os actos em causa acima referidos e que aqui se dão como reproduzidos, praticados pela Sra Dra BB são pois inequivocamente de criação de vontade nos inspetores da IGAS ZZ, WW, VV e UU de terem atuado – como atuaram (nos termos já descritos, contantes da queixa/denúncia e da Acusação que se segue) – nas instalações da OE, para com a própria OE e os seus dirigentes, funcionários e colaboradores e para com a sua Bastonária, a Assistente AA.” (III.2.)

I.2.3. Deduzem depois, em III, a “acusação (em sentido material) contra BB”, onde se relatam factos passíveis de integrar a prática por BB dos seguintes tipos penais:

“i) Coacção agravada, como instigadora, p. e p. nos artigos 154.° e 155.°, n.° 1, alínea d) e 26.°, 4.a proposição, do CP;

ii) Dano, como instigadora, p. e p. pelo artigo 212.° e 26.°, 4.a proposição, do CP;

iii) Sequestro qualificado, como instigadora, p. e p. no artigo 158.°, n.° 1 e n.° 2, alínea g) e 26.°, 4.a proposição, do CP;

iv) Furto qualificado, como instigadora, p. e p. nos artigos 203.° e 204.°, n. °1, alínea f) e 26.°, 4.a proposição, do CP;

v) Abuso de poder, como instigadora, p. e p. no artigo 382.° e 26.°, 4.a proposição, do CP;

vi) Difamação agravada, como autora, p. e p. no artigo 180.° e 183.°, n.°s 1, alínea a) e 2, 184.° e e 26.°, 4.a proposição, do CP; vii) Ofensa a pessoa coletiva agravada, como autora, p. e p. no artigo 187.° e 183.°, n.°s 1, alínea a) e 2,184.° e 26.°, 4.a proposição, do CP;

vii) Acesso ilegítimo a dados informáticos, como instigadora, p. e p. no artigo 6.° e 26.°, 4.a proposição, da Lei do Cibercrime (Lei n° 109/2009, de 15 de setembro.”

E indicam as seguintes provas “(para julgamento)” relativa a tal “acusação material”:

“I. Prova Documental:

Documentos juntos aos autos a fls. 83 a 129, 130, 131, 132, 133 a 134. 135 a 136,137, 138, 139, 140, 141,142 e 143 dos autos e a fls. 26 a 116 do Apenso e ainda Docs. 1 a 20, ora juntos.

II. Prova por Declarações:

Requer-se sejam tomadas declarações à Assistentes:

1. AA

2. Representante Legal da Ordem dos Enfermeiros, a designar.

III. Prova Testemunhal:

1. ... QQ, ... e ..., com domicílio profissional na Faculdade de Direito da Universidade de .... ... ..., sobre a matéria do que foi aconselhado à OE sobre a necessidade de a IGAS ter de obter previamente um mandado judicial para poder praticar atos coercivos na OE, sem consentimento presente requerimento de abertura de instrução;

2. EE - ... na área da contratação pública, residente na Rua de ..., ... ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio de 2019, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros;

3. CC - Chefe de ... da OE, com domicílio profissional na Avenida ..., ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros;

4. DD, ..., com domicílio profissional na Avenida ..., ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril e 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros;

5. FF, ... da OE, com domicílio profissional na Ordem dos Enfermeiros, Avenida ..., em ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros;

6. GG, ... da OE, com domicílio profissional na Ordem dos Enfermeiros, Avenida ..., em ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros;

7. HH, Secretária ... da OE, com domicílio profissional na Avenida ...,... ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros;

8. LL, ... e ...da OE, com domicílio profissional na Ordem dos Enfermeiros, Avenida ..., em ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros;

9. RR, ..., a apresentar, sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros;

10. KK, ..., com domicílio profissional na Ordem dos Enfermeiros, Avenida ..., em ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros;

11.AAA, ... da OE, com domicílio profissional na Ordem dos Enfermeiros, Avenida ..., ... ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros;

12.II, ... da OE, com domicílio profissional na Ordem dos Enfermeiros, Avenida ..., em ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros;

13.MM, ... , com domicílio em Praceta ..., ... ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros;

14.OO, ... da OE, com domicílio profissional na Ordem dos Enfermeiros, Avenida ..., em ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros;

15. JJ, ... da OE, com domicílio profissional na Ordem dos Enfermeiros, Avenida ..., em ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros;

16. NN, Presidente do Conselho ..., com domicílio profissional na Ordem dos Enfermeiros, Rua ...., ... ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros;

17. PP, ... da OE, com domicílio profissional na Ordem dos Enfermeiros, Avenida ..., em ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros;

18. SS, residente na Rua ...., ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros;

19. Dr. TT, ..., com escritório na Av. ..., ... ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros.”

I.2.4. A seguir em “IV”, indicam as “Diligências Instrutórias que se requerem na fase de instrução”. São elas as seguintes:

“IV.1. Prova documental: toda a constante nos autos, nomeadamente de fls. 83 a 129, 130, 131, 132, 133 a 134. 135 a 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142 e 143 dos autos e de fls. 26 a 116 do Apenso e ainda os Docs. 1 a 20 juntos com este requerimento de abertura de instrução.

IV.2. As Assistentes requerem prestar declarações como vítimas, ao abrigo do disposto no art. 292° n° 2 do CPP, AA por si mesma e a Ordem dos Enfermeiros através de representante a designar.

IV.3. Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 287°, n° 2 e 128° n° 1 do CPP, requer-se a V. Exa. a inquirição, em sede de instrução, das seguintes testemunhas, atenta a razão de ciência que sinteticamente se refere, e relativamente à factualidade que também se indica, sendo que nenhuma foi inquirida no inquérito:

1. ... QQ, ... e ..., com domicílio profissional na Faculdade de Direito da Universidade de ..., .... ... ..., responde à matéria do que foi aconselhado à OE sobre a necessidade de a IGAS ter de obter previamente um mandado judicial para poder praticar atos coercivos na OE, sem consentimento presente requerimento de abertura de instrução;

2. EE - ... na área da contratação pública, residente na Rua de ..., ... ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros;

3. CC - Chefe de Gabinete ... da OE, com domicílio profissional na Avenida ..., ... ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros;

4. DD, ..., com domicílio profissional na Avenida ..., ... ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril e 8 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros;

5. FF, ... da OE, com domicílio profissional na Ordem dos Enfermeiros, ..., em ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros.

6. GG, ... da OE, com domicílio profissional na Ordem dos Enfermeiros, Avenida ..., em ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros.

7. HH,... da OE, com domicílio profissional na Avenida ...,... ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros.

8. LL, ... e ... da OE, com domicílio profissional na Ordem dos Enfermeiros, Avenida ..., em ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros.

9. RR, ..., a apresentar, sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros.

10.KK, ..., com domicílio profissional na Ordem dos Enfermeiros, Avenida ..., em ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros.

11.II, ... da OE, com domicílio profissional na Ordem dos Enfermeiros, Avenida ..., em ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros.

12.MM, ... certificada, com domicílio em Praceta ..., ... ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros.

13.OO, ... da OE, com domicílio profissional na Ordem dos Enfermeiros, Avenida ..., em ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros.

14.JJ, ... da OE, com domicílio profissional na Ordem dos Enfermeiros, Avenida ..., em ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros.

15. NN, Presidente do Conselho ..., com domicílio profissional na Ordem dos Enfermeiros, ...., ... ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros.

16. PP, ... da OE, com domicílio profissional na Ordem dos Enfermeiros, Avenida ..., em ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros.

17. SS, residente na Rua ...., ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros.

18. Dr. TT, ..., com escritório na Av. ..., ... ..., sobre os factos de que tem conhecimento direto relacionados com a sindicância e as diligências efetuadas pelos Senhores Inspetores nos dias 29 de abril, 8 e 13 de Maio, nas instalações da Ordem dos Enfermeiros.”

I.2.5. A final da queixa em termos de “Requerimentos probatórios”, tinham apresentado pedidos de ofícios à IGAS e ao Comando Territorial ou Distrital da PSP para informarem da identificação completa de todos os inspetores da IGAS presentes nos atos de sindicância que se relatavam e a identificação completa de todos os agentes da PSP igualmente presentes nos atos de sindicância que se relatavam e que ocorreram em 8 e 15 de maio de 2019 na sede da Ordem dos Enfermeiros. Juntaram 17 documentos e pediram as inquirições de dez testemunhas, todas elas com ligação profissional ou funcional à OE.

I.3. O MºPº, em sede de inquérito, realizou as seguintes diligencias:

(i) Solicitação à IGAS de cópia do processo de sindicância que por apenso consta;

(ii) Solicitação ao Tribunal Administrativo de Círculo de ..., de certidão da Sentença/decisão final proferida no âmbito da providência cautelar n.° 777/19.0...;

(iii) Inquirição da queixosa e bastonária da OE AA, em 05/06/2020;

(iv) Solicitação ao DIAP, 4.a Secção, Proc. 971/19.3..., de cópia da participação/denúncia que originou o inquérito e estado coevo do mesmo;

(v) Solicitação de certidão do Proc. n.° 274/19.7...

I.6. E decidiu o arquivamento nos termos do despacho cuja transcrição supra ficou.

Em resumo, (i) considerou que, quanto aos crimes de introdução em lugar vedado ao público, difamação agravada e ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva agravada os respetivos procedimentos criminais prescreveram em 13 de maio de 2021 (ou, se se entendesse que o período de suspensão previsto na Lei n.º 1-A/2020, de 19 de maio, na Lei n.º 16/2020, de 25 de maio, na Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, e na Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, se aplica aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, em 23 de outubro de 2021); (ii) quanto aos crimes de coação agravada, sequestro qualificado, furto qualificado, abuso de poder e acesso ilegítimo a dados informáticos a intervenção da Dr.ª BB limitou-se a “(mandar) indagar se estavam reunidas as condições legais de intervenção da IGAS, propor a realização da sindicância à Ordem dos Enfermeiros à Sr.ª Ministra da Saúde e nomear os respetivos inspetores.” No exercício das suas competências, sem que se configure qualquer acto de instigação, disse.

E decidiu:

“a) O arquivamento dos autos relativamente aos crimes de introdução em lugar vedado ao público, de difamação agravada e de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva pessoa coletiva agravada, em razão da prescrição do procedimento criminal (artigo 277.º, n.º 1, do Código de Processo Penal);

b) O arquivamento dos autos relativamente aos demais crimes denunciados em virtude de não se extraírem da queixa quaisquer factos que sugiram que tenha instigado à sua prática (artigo 277.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).”

E também: “Uma vez que os demais denunciados não gozam de foro próprio, extraia certidão integral do processado e remeta-a ao Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa.”

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. O RAI apresentado objetiva e impõe a resolução de duas questões

(i) pretendida declaração de nulidade do inquérito por omissão de inquérito, nos termos do artigo 119º, al. d), do CPP ou, subsidiariamente, pretendida declaração de nulidade do inquérito por insuficiência do mesmo, ao abrigo do artigo 120º, nº 2, al. d), do CPP;

(ii) (ii) admissibilidade, ou não, do pedido de abertura da instrução.

II.1.2. Invocada nulidade por omissão ou insuficiência do inquérito

As requerentes invocam, primeiro, a nulidade insanável prevista no artigo 119º, al. d), por omissão do inquérito.

Todavia cumpre desde já assinalar que tal nulidade de “falta de inquérito” só se verifica se o inquérito não existir, casos de omissão total do inquérito. É ainda equiparável á omissão total do inquérito a ausência material de inquérito. Ora, aqui o inquérito existiu e materializou-se até em várias diligências. (cfr António Gama et alii, em nota ao artigo 119, in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, I, Almedina, Reimpressão 2021; e Pinto de Albuquerque in nota ao artigo 119º, “Comentário do Código de Processo penal”, I, 5ª Edição, UCE).

Com o que não procede tal invocação.

Depois invocam a nulidade sanável de insuficiência do inquérito nos termos do artigo 120º, nº 2, al. d), por “omitir a realização das diligências essenciais em sede de inquérito para o apuramento dos factos e a descoberta da verdade material, nomeadamente a constituição como arguidos dos denunciados e o seu interrogatório nessa qualidade, a inquirição e eventual constituição como arguidos e interrogatório nessa qualidade dos Inspetores da IGAS e dos Agentes da PSP, bem como a inquirição das testemunhas indicadas no final da queixa/participação,”, com o que “o MP deixou de efetuar diligências obrigatórias e diligências essenciais para a descoberta da verdade e fez uma errada interpretação do disposto nos artigos 262.° e 267º, ambos do Código de Processo Penal.”

O artigo 120º, nº 2, al. d), prevê como nulidade sanável, dependente de arguição, a insuficiência do inquérito por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios. (cfr AUJ nº 1/2006 e ac. do TC 53/2011) .

E, adiante-se, um dos casos de acto legalmente obrigatório é o interrogatório do arguido desde que haja contra ele fundada suspeita da prática de crime, como impõe o artigo 272º do CPP.

O acrescento da “fundada suspeita” pela Reforma de 2007 pretendeu evitar a banalização da constituição de arguido. Porque “é irrealista considerar, em geral, que tal qualidade é vantajosa no plano jurídico-processual. Com efeito, para além de ser condição de aplicação de medidas restritivas ou privativas de direitos de natureza cautelar, o estatuto de arguido envolve, em regra, um efeito estigmatizante que não pode ser ignorado.” (in “O Domínio do Inquérito pelo Ministério Público”, Rui Pereira, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, Almedina, 2004).

A declaração de tal nulidade está dependente de arguição “até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito.”

Neste caso, porque no processo pode ocorrer a fase da instrução, o requerimento de arguição da nulidade está em tempo.

Vejamos se se verifica:

O despacho de arquivamento acaba a ditar

“a) O arquivamento dos autos relativamente aos crimes de introdução em lugar vedado ao público, de difamação agravada e de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva agravada em razão da prescrição do procedimento criminal (artigo 22 de ofensa 277º, nº 1, do Código de Processo Penal);

b) O arquivamento dos autos relativamente aos demais crimes denunciados em virtude de não se extraírem da queixa quaisquer factos que sugiram que tenha instigado à sua prática (artigo 277, nº 1, do Código de Processo penal.)”.

E se é verdade que, por razões de boa metodologia processual o MºPº aponta na al. a) para a prescrição, certo é que, ao que do despacho se extrai, se não considerasse ter sobrevindo a prescrição, teria ditado igualmente o arquivamento “em virtude de não se extraírem da queixa quaisquer factos que sugiram que tenha instigado à sua prática (artigo 277, nº 1, do Código de Processo penal.)”. Por inafastável obrigatória igualdade de razões.

E do que daí se retira é que o MºPº não procedeu ao interrogatório como arguida da denunciada por considerar inexistir suspeita fundada da prática de crime”, ut artigo 272º, nº 1, do CPP. Efetivamente se não se extraem da queixa quaisquer factos ou indícios que sugiram que tenha instigado à prática dos crimes forçoso é concluir pela falha de suspeita fundada da prática de crimes.

Sendo assim, percebe-se que o MºPº se tenha dispensado de proceder àquele interrogatório.

Assim como dispensou realizar as diligências de inquirição das testemunhas indicadas ligadas à OE e dos inspetores da IGAS e dos agentes da PSP diligências que as Requerentes classificam como de “diligências obrigatórias e diligencias essenciais para a descoberta da verdade”.

O artigo 272º, nº 1, do CPP só impõe a obrigatoriedade do interrogatório do arguido “correndo inquérito contra pessoa determinada em relação á qual haja suspeita fundada de crime.” E impõe tal obrigatoriedade como um direito de defesa do arguido antes da proferição de despacho de acusação, porque só interrogando-o é que ele pode rebater a factualidade imputada, e requerer a produção de meios de prova. (cfr ac. do TC nº 72/2012).

“A Lei 48/2007, de 29/08, mantém a obrigação de interrogatório no inquérito, mas restringe essa obrigação ao caso em que haja “fundada suspeita” de a pessoa ter cometido o crime (…). A ratio da lei é a mesma que orientou a modificação do artigo 58º, nº 1, al. a), isto é, evitar a constituição e o interrogatório como arguido nos casos de queixa manifestamente infundada, em que o Ministério Público, desde logo, vislumbra a possibilidade de arquivar o inquérito e vem a arquivá-lo.” (Pinto de Albuquerque, nota ao artigo 272º. No mesmo sentido, Henriques Gaspar et alii, nota ao artigo 272º).

À “norma” do AUJ nº 1/2006, de que “A falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo” deve actualisticamente acrescentar-se agora o segmento “no caso de fundada suspeita contra ela”.

Mas “a constituição como arguido em inquérito decorre de decisão do MºPº no sentido de que existe fundada suspeita sobre a prática de um crime, (…) nunca decorre de um qualquer automatismo, mas de um juízo do MP sobre a existência de fundada suspeita legitimadora da eventualidade do visado poder ser visado pelo exercício da ação penal (...).” Por isso, não existe obstáculo legal ao arquivamento, em despacho proferido ao abrigo do artigo 277º, nºs 1 e 2, sem prévia constituição como arguido.

O juízo sobre a verificação, ou não, da fundada suspeita cabe ao MP. E se, como aqui, o MP entendeu que faltava a “fundada suspeita” dessa falta decorria necessariamente a não obrigatoriedade do interrogatório como arguida da denunciada.

Com o que, forçoso é concluir, nenhum acto obrigatório se omitiu.

Com o que, por aqui, se não verifica a invocada nulidade de insuficiência de inquérito.

Quanto às demais diligências requeridas na queixa pelas ofendidas configurando-se como atos de inquérito não obrigatórios sempre seria da competência exclusiva do MP decidir da necessidade ou não da sua realização. Como se sublinhou no ac. do TC nº 395/2004, o MP “é livre, salvaguardados os atos de prática obrigatória e as exigências decorrentes do princípio da legalidade, de levar a cabo ou de promover as diligências que entender necessárias, com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o inquérito.”

Daí, “o JI não pode apreciar a omissão de diligências de investigação e de recolha de prova, requeridas pelo assistente durante a fase do inquérito, nem declarar a nulidade daquele por insuficiência. O artigo 32º, nº 4, da CRP não impõe a total jurisdicionalização do inquérito (ac. TC 7/87), nem um controlo judicial completo, ainda que remoto, do mesmo. Num processo de estrutura acusatória (art. 32º, nº 5, da CRP), compete ao MP, enquanto dominus do inquérito, determinar quais os atos de investigação (que não sejam obrigatórios) que cumpre realizar em ordem a legitimar a decisão de submeter ou não os factos a julgamento.”(in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, António Gama et alii, nota ao artigo 120º, I, Almedina).

Como se tira da leitura do despacho de arquivamento, não se extraindo da queixa quaisquer factos que sugiram que a denunciada tenha instigado à sua prática o MP ajuizou e concluiu pela desnecessidade de realização de adicionais diligências.

E sendo o MP o único incumbente para decidir dessa necessidade ou desnecessidade, mister é concluir que não se verifica, por aqui, qualquer nulidade de insuficiência do inquérito.

II.2. Da admissibilidade, ou não, do RAI

II.2.1. Configuração do presente RAI

O RAI apresentado pelas assistentes não objetiva mais do que o completamento do inquérito através da fase processual da instrução, como claramente se induz da sua leitura quando a crucial falha apontada ao inquérito é a falta de realização de diligências. Depois de assinalar a realização de apenas cinco diligências no inquérito, as próprias assistentes, recordando os “Requerimentos probatórios” apresentados a final da queixa conjunta, sublinham em II, que “A recolha da prova indicada a final da queixa/participação sobre a factualidade nesta descrita, revelava-se essencial para formular um juízo sobre a verificação ou não da prática dos ilícitos ali imputados.” E, mais à frente, que “uma só constatação e conclusão de pode fazer e retirar: a manifesta falta, ou pelo menos, a insuficiência do inquérito e a manifesta omissão de diligências de prova indispensáveis (e algumas até obrigatórias) para a adequada procura da verdade material e, consequentemente, à fundamentação do despacho final a proferir em sede de inquérito.”

“O inquérito, a considerar-se que existiu (de facto não teve lugar qualquer investigação criminal digna desse nome) apresenta-se, pois, pelo menos, como manifestamente insuficiente, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios e terem sido omitidas diligências essenciais para a descoberta da verdade.”

II.2.2. A fase da instrução: sua finalidade

Nos termos do artigo 286º, nº 1 do CPP, “A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.”

Tem natureza facultativa e, segundo o nº 3 do artigo 287º, o respetivo requerimento só pode ser rejeitado “por extemporâneo por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.”

Para o caso presente ficam desde já afastadas as causas da extemporaneidade e da incompetência do juiz por inverificadas.

Importa, porém, saber se se verifica “inadmissibilidade legal da instrução”.

Sobre o conteúdo dessa cláusula geral como fundamento de rejeição do RAI a nossa posição foi expressa recentemente no recurso penal que sob o nº 15/22.8... que correu termos neste Supremo e onde relatámos o acórdão de 11 de outubro de 2023 sumariado assim:

“1. A cláusula geral de inadmissibilidade legal da instrução, além dos casos formais e adjectivos que aí indiscutivelmente entram, abrange, por via de uma interpretação material do conceito, aqueles casos que a estrutura acusatória do processo penal desde logo exclui.

2. É bom exemplo disso aquele caso em que o RAI se mostra inepto, inidóneo, imprestável para cumprimento da função processual que lhe está destinada. Como será o caso de não narrar todos os factos que sustentem os elementos típicos do crime e pretender a sindicância da decisão do MºPº de arquivamento.

3. Igualmente abrangerá aqueles casos em que se pede ao Juiz de Instrução aquilo que, por lhe não cometido funcionalmente, por exemplo, um suplemento investigatório, o JI não pode dar.

4.Mas, se cumprir essa obrigação de narrativa e se se contiver dentro de pedido útil e funcionalmente adequado, não pode o despacho de rejeição do RAI, transmutando-se em prematuro despacho de não pronúncia, dedicar-se a precoce apreciação dos indícios, esquecendo-se de avaliar, antes, da capacidade de o RAI determinar a abertura ou rejeição da fase instrutória.

5.Primo, defere-se ou rejeita-se o RAI, secundo, pronuncia-se ou não o arguido. Por esta ordem, em despachos finalisticamente diferentes e em tempos cronológicos e processuais distintos. Só depois de admitido o RAI é que sobrevem a apreciação de mérito. A questão de mérito, acerto ou desacerto da posição do MºPº na valoração dos indícios, constituirá o cerne do objecto da instrução, na amplitude determinada pelo JI, e especificamente do (imprescindível) debate instrutório, se só este se realizar.

6. O despacho de abertura ou rejeição da instrução só visa decidir da existência ou não da subsequente fase processual.

7. No despacho de abertura ou de rejeição da instrução não cabe a exaustiva análise e valoração de indícios, como no caso se fez, para, concluindo pela inexistência de indícios, se reiterar o arquivamento do inquérito e, por aí, “por manifesta inviabilidade de os factos constituírem crime”, se rejeitar o RAI. A aceitar-se que o despacho de rejeição do RAI tenha tal abrangência (i) estar-se-á a antecipar o despacho de não pronúncia, (ii) acaba a confundir-se esse despacho com o despacho de rejeição do RAI, (iii) com o que se descarta o despacho a que se refere o artigo 287º, nº 3, do CPP, (iv) antecipando o julgamento de mérito, (v) criando, extra legem, uma nova causa de rejeição do RAI, a inexistência de indícios da prática de crime, e (vi) elimina-se contra legem uma fase processual, a instrutória.

8. Se há uma narrativa completa dos factos compatíveis com uma acusação e se se afigurar que outra, em termos de prefiguração de solução possível e plausível na valoração dos indícios, em eventual útil vindouro apport instrutório, pode ser a opinião do Juiz de Instrução, deve aceitar-se a realização da instrução.

9. E, no caso, assim se procederá ao controlo judicial da decisão do Ministério Público de arquivar; repete-se, da decisão de arquivamento sempre tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento, não da forma de investigação, em termos de completude, suficiência ou bem fundado da realização das diligências.”

E, em termos de fundamentação, assinalou-se no dito aresto: “Antes de nos abalançarmos para a apreciação do caso concreto impõe-se que fixemos o sentido dessa cláusula geral, ou dito de outra forma, que estabeleçamos a latitude que se pode atribuir à mesma no que toca à sua força ou extensão de rejeição.

Questão a que a doutrina e a jurisprudência vêm tentando dar resposta. E se é verdade que (indiscutíveis) casos há em que uma e outra fácil e unanimemente integram na cláusula geral, naturalmente diversificada, muitos e diferentes são os casos limite em que a questão do cabimento na cláusula geral não é fácil de discernir, quer para integrar quer para excluir.

Por isso, é que, antevendo a dificuldade na demarcação da sua extensão, no “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, III, 2ª edição, António Gama et alii, in nota ao artigo 287º, se escreve que “não raro a inadmissibilidade legal da instrução resulta não propriamente de uma norma-regra (ainda o art. 286/3), mas da correcta compreensão e otimização dos princípios que caraterizam o processo penal pátrio.”

É unânime o elenco de alguns casos que aí cabem, por exemplo, a ilegitimidade ou a falta de interesse em agir do requerente; o não preenchimento dos requisitos a que o RAI está sujeito por força do nº 2 do artigo 287º; o pedido de instrução nos processos especiais, por proibido, nos termos do artigo 286º, nº 3; o pedido de instrução contra incertos; o pedido de instrução na falta de pressupostos processuais; o pedido de instrução relativamente a factos novos; o pedido de instrução unicamente para discutir a qualificação jurídica dos factos; e muitos outros .

Mas a grande maioria das situações elencadas não suscita dúvidas em termos de integração na cláusula geral de rejeição. Digamos que a maior parte delas são situações de rejeição por razões técnicas ou meramente processuais.

Só que, se é verdade que inicialmente a cláusula geral da inadmissibilidade era interpretada restritivamente, limitando-a aos chamados casos de rejeição por razões técnicas, hoje quer a doutrina quer a jurisprudência entendem que a “inadmissibilidade legal da instrução” abrange outrossim uma faceta ou interpretação material, atenta a filosofia subjacente a essa fase preliminar e, por isso, engloba igualmente os casos em que o alegado no requerimento de abertura de instrução não satisfaz as finalidades da instrução, como sucede quando o RAI é inepto (quer seja apresentado pelo assistente, quer seja apresentado pelo arguido) ou quando não é o meio/mecanismo processual próprio para atingir o fim visado. Inadmissibilidade que, em interpretação material, abrangerá os casos em que o requerimento é inepto para o fim visado, se mostra inadequado ou inidóneo processualmente para tal desiderato, seja, imprestável ou incapaz de exercício da sua função, id est, o RAI não cumpra a função processual para que está vocacionado ou destinado (ac, do STJ, de 24/09/2003, proc. nº 03P2299, Henriques Gaspar).

É, por exemplo, entendimento dominante, como se sublinhou no ac. de 15/03/2023, proc. nº 19/21.8TRGMR.S1, Lopes da Mota, o de que o requerimento do assistente para abertura de instrução que não “narra” os factos deve ser rejeitado por “inadmissibilidade legal”. “Para chegar a esta solução, a jurisprudência segue vias diversas, fazendo apelo a “nulidade de conhecimento oficioso”, a “nulidade por falta de objeto”, a “inexistência”, a “falta de objeto de instrução”, à “equiparação” do requerimento à acusação manifestamente infundada, ao “não cumprimento da função processual para que está vocacionado”, à “inadmissão por ilegalidade”.

E caberá outrossim no conceito de inadmissibilidade legal da instrução, é bom de ver, o RAI que pede ao Juiz de Instrução aquilo que a este não está cometido.

Àquilo que é o âmbito material da cláusula geral da inadmissibilidade legal da instrução responderá, em concreto, a afirmativa à seguinte pergunta: o RAI, sem mácula em termos processuais, está a atacar a errada valoração dos indícios colhidos na investigação?

Se o RAI couber na finalidade de ataque à errada valoração pelo MºPº dos indícios colhidos na investigação será apto a desempenhar a sua função de pedido de abertura da instrução. E está-se a pedir ao JI aquilo que ao JI cabe. Já se o RAI se limitar a contestar alegada insuficiência de investigação ou tiver qualquer outro fito estaremos perante pedido inepto para abertura de instrução; estar-se-ia a pedir ao JI aquilo que legalmente lhe não está cometido.

Exactamente porque, como manda o artigo 286º, nº 1, do CPP, “a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.” O Juiz de instrução, perante os elementos apurados no inquérito, acrescidos dos atos que (facultativamente) “entenda levar a cabo” (art. 289º, nº 1) e da substância do (obrigatório) debate instrutório, (art. 289º, nº 1) há de, pois, em escrutínio materialmente jurisdicional, decidir se aqueles factos (e só factos são apreciados – art. 287º, nº 1), constituem, ou não, crime.”

Mas, volvendo ao caso hic et nunc em apreciação, ressalve-se, contudo, que, se é pertinente para os dois casos a fixação da latitude da cláusula geral como fundamento de rejeição do RAI, certo é que os casos tratados num e noutro dos acórdãos não são sequer aparentados em termos de concreta questão a dilucidar e decidir.

No acórdão de que atrás fomos relator estava em causa, não um pedido de suplemento investigatório, mas sim uma impugnação de alegada errada valoração dos indícios, tendo-se, por errada antecipação, o despacho de admissão ou não admissão do RAI se transmutado em despacho de não pronúncia, apesar de, em termos de plausibilidade de soluções, a instrução dentro da sua finalidade poder trazer apport útil, independentemente de, a final, o arguido ser pronunciado ou não .

Para o aqui pertinente importará fazer ressaltar o ponto “3.” do sobredito sumário: “3. Igualmente abrangerá aqueles casos em que se pede ao Juiz de Instrução aquilo que, por lhe não cometido funcionalmente, por exemplo, um suplemento investigatório, o JI não pode dar.”

Não cabe no âmbito da instrução fornecer um suplemento de investigação aos sujeitos processuais. Sob pena de se entregar a atividade materialmente policial ou investigatória específica do inquérito ao JI, a quem está destinado processualmente uma função materialmente jurisdicional ou de garantia. (António Gama, ibidem)

Na linha, aliás, daquilo que a jurisprudência tem defendido de que é exemplo o também recente acórdão do STJ de 31/05/2023, proc. nº 260/21.3TRLSB, Carmo Silva Dias, em cujo sumário se lê o seguinte:

“I. Como sabido, a instrução destina-se, consoante os casos, ou a comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou a proceder ao controlo judicial da decisão do Ministério Público de arquivar, sempre tendo em vista a submissão ou não da causa a julgamento (art. 286.º, n.º 1, CPP).

II. A instrução não é um pré-julgamento, nem tão pouco se traduz numa forma de completar ou ampliar a investigação feita no inquérito e, por isso, também não pode constituir um novo inquérito.

III. Não podendo haver instrução (que é facultativa, dependendo de requerimento do assistente idóneo para o efeito) sem previamente existir inquérito (excluídos os processos especiais, por aí não ser admissível instrução, conforme o art. 286.º, n.º 3, do CPP), é lógico que para o juiz de instrução poder ter condições de, se for o caso, formular um juízo positivo de deduzir acusação (como pedido no RAI), tem o assistente de previamente indicar as razões de facto e de direito da sua discordância, quanto ao arquivamento, decisão essa proferida após o encerramento do respetivo inquérito (art. 286.º, n.º1 e 287.º, n.º 2, do CPP), para além de deduzir uma acusação com factos concretos que preencham os crimes que imputa ao arguido.

IV. As razões de facto e de direito que fundamentam a discordância do assistente, para serem aptas e idóneas à abertura de instrução, têm de estar diretamente relacionadas com o arquivamento do inquérito, evidenciando que seria caso de acusar e não de arquivar. O que se compreende uma vez que a dedução de acusação pelo Ministério Público, como deve pugnar o assistente no RAI, depende de no inquérito terem sido recolhidos indícios suficientes do acusado ter cometido o crime ou crimes denunciados (art. 283º, nºs 1 a 3, do CPP).

V. Aqui está em causa a rejeição do requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução (art. 287.º, n.º 3, do CPP), não definindo o legislador o que entende por “inadmissibilidade legal da instrução”. De todo o modo, a “inadmissibilidade legal da instrução” abrange uma interpretação material, atenta a filosofia subjacente a essa fase preliminar e, por isso, engloba igualmente os casos em que o alegado no requerimento de abertura de instrução não satisfaz as finalidades da instrução, como sucede, por exemplo, quando o RAI é inepto (quer seja apresentado pelo assistente, quer seja apresentado pelo arguido) ou quando não é o meio/mecanismo próprio para atingir o fim (neste caso acusação) visado.

VI. Com efeito, sabido que o JI está confinado pelo alegado no RAI (art. 288.º, n.º 4, do CPP), não podendo substituir o sujeito processual que requer a fase de instrução, não se pode aceitar a prática de supostos atos de instrução propriamente ditos que antes envolvem a continuação da investigação que não foi feita pelo Ministério Público no inquérito e, assim, implicam que o JI extravase as suas funções.

VII. Pela simples apreciação do requerimento de abertura de instrução e sem recurso a qualquer elemento externo, era fácil ao juiz concluir que os factos narrados pela assistente jamais poderiam levar à pronúncia da denunciada/arguida e, bem assim, à eventual aplicação de uma sanção, após o julgamento, pelo que sempre teria de concluir-se que a fase de instrução era uma pura inutilidade e, como tal, legalmente inadmissível. Ou seja, a assistente não foi capaz de cumprir a função que lhe incumbia quando apresenta o RAI.

VIII. Mas, além disso, o que se passa neste caso, é que, a recorrente no RAI, indica provas que pretende que o JI leve a cabo para sustentar uma acusação, provas essas que, na sua perspetiva, não foram recolhidas em fase de inquérito pelo Ministério Público, que é o investigador. De resto, pelos motivos indicados, também explicados na decisão recorrida, neste caso, perante forma como a recorrente configurou o RAI, a forma de reagir ao despacho de arquivamento era claramente a reclamação hierárquica.

IX. Daí que (como assinala João Conde Correia), não ficando no “livre arbítrio do assistente” a escolha dos “dois mecanismos processuais penais de impugnação do despacho de arquivamento do inquérito (reclamação hierárquica ou abertura de instrução)”, igualmente como bem diz Paulo Pinto de Albuquerque, neste caso, como se demonstrou, a assistente devia, pois, ter reclamado uma vez “que os elementos do inquérito [eram] insuficientes para apresentar um requerimento de abertura de instrução/acusação”, só podemos concluir que foi muito bem rejeitado o RAI, por inadmissibilidade legal.”

E, acrescentamos nós, também a doutrina vai no sentido de que “se o que pretende o assistente é questionar a atuação do MP em termos de ter ignorado certos factos ou pressupostos agentes deles não dirigindo relativamente a uns e a outros diligências de investigação, deve é lançar mão da intervenção hierárquica (art. 278º))”. (Gama, ibidem, em nota ao 287º)

Ou seja, só a errada valoração dos indícios colhidos na investigação é sindicada judicialmente por via da abertura da instrução. Já a insuficiência da investigação realizada pelo MP no inquérito é sindicada hierarquicamente por via de reclamação. (cfr Pinto de Albuquerque, ibidem, nota art. 286º)

E é assim porque a investigação do crime e dos seus agentes tem de ser feita exclusivamente no inquérito, como manda o artigo 262º, nº 1, do CPP. “Se o inquérito foi arquivado sem ter sido efectuada qualquer diligência (arquivamento liminar) ou, se se entender que não foram feitas as diligências necessárias para a descoberta da verdade, então deve lançar-se mão, não do RAI, mas da intervenção hierárquica ou da arguição da nulidade do inquérito.” (Vinício Ribeiro, in “Código de Processo Penal Notas e Comentários”, nota ao artigo 286º).

No caso sub judicio, a prova a produzir, ao invés da facultativa residual e complementar própria da instrução (artigo 289º, nº 1), constituiria, eventualmente, mas sobretudo nas palavras das próprias assistentes, prova decisiva e essencial. O que as Requerentes atacam é a não realização de diligências que tinham por essenciais. E dizem claramente: que se omitiu “a realização das diligências essenciais em sede de inquérito para o apuramento dos factos e a descoberta da verdade material, nomeadamente a constituição como arguidos dos denunciados e o seu interrogatório nessa qualidade, a inquirição e eventual constituição como arguidos e interrogatório nessa qualidade dos Inspetores da IGAS e dos Agentes da PSP, bem como a inquirição das testemunhas indicadas no final da queixa/participação,”, com o que “o MP deixou de efetuar diligências obrigatórias e diligências essenciais para a descoberta da verdade e fez uma errada interpretação do disposto nos artigos 262.° e 267, ambos do Código de Processo Penal.”

E que “a recolha da prova indicada a final da queixa/participação sobre a factualidade nesta descrita, revelava-se essencial para formular um juízo sobre a verificação ou não da prática dos ilícitos ali imputados.”

E, mais à frente, que “uma só constatação e conclusão de pode fazer e retirar: a manifesta falta, ou pelo menos, a insuficiência do inquérito e a manifesta omissão de diligências de prova indispensáveis (e algumas até obrigatórias) para a adequada procura da verdade material e, consequentemente, à fundamentação do despacho final a proferir em sede de inquérito.”

E ainda, “O inquérito, a considerar-se que existiu (de facto não teve lugar qualquer investigação criminal digna desse nome) apresenta-se, pois, pelo menos, como manifestamente insuficiente, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios e terem sido omitidas diligências essenciais para a descoberta da verdade.”

Mais: “É de facto manifesto que face à conclusão expressa pelo Ministério Público no despacho de arquivamento quanto à não inexistência de conduta criminalmente relevante, as diligências omitidas, mormente, a inquirição e eventual constituição como arguidos dos denunciados relativamente aos factos descritos na queixa/participação apresentada, bem como a inquirição das testemunhas arroladas, se revelavam absolutamente adequadas e essenciais ao apuramento dos factos participados, para a aferição da relevância criminal, ou não, das condutas e, consequentemente, para a decisão de imputação ou não de responsabilidade criminal pelos factos ocorridos.

O Ministério Público não podia ter concluído no sentido ali expresso sem realizar essas diligências de prova tendentes ao apuramento dos factos e à consequente apreciação da relevância criminal dos factos denunciados e à suficiência ou não dos indícios para imputar a pessoas concretas a responsabilidade pelo ocorrido.

O Ministério Público deveria ter determinado a realização de tais diligências necessárias e adequadas ao cabal esclarecimento dos factos e respetivos responsáveis.”

E ainda: “(…) pois se se tiver em consideração a prova produzida no inquérito (por declarações e documental), a prova documental que ora se junta e ainda a prova que se requer que seja produzida em instrução, considera-se que existem indícios suficientes da prática por ela, como instigadora, de tais crimes quando exerceu funções como Inspectora Geral das Actividades em Saúde.”.

As aqui Requerentes consideram, pois, que haveria várias outras diligências essenciais e imprescindíveis para a descoberta da verdade que o MºPº, erradamente nas suas opiniões, descartou.

Mas, a ser assim, e na linha do que ficou dito de que à instrução não cabe suprir o tal suplemento investigatório, caberia às Requerentes reclamar hierarquicamente. A escolha entre a instrução e a intervenção hierárquica não pode ser aleatória, muito menos dependente da vontade de qualquer um dos sujeitos processuais.

E tanto mais assim será quando as duas possibilidades se situam em tempo e momento processuais coincidentes.

À intervenção hierárquica caberia dar, ou não, provimento à pretensão das Requerentes e, no eventual provimento, ultrapassar as invocadas falhas ou deficiências da investigação.

Não teria qualquer sentido a possibilidade de opção sem critério pela instrução ou pela intervenção hierárquica (ou, pior, a faculdade de proceder a ambas simultaneamente e com o mesmo fito) em face de princípios processuais como os da celeridade e utilidade dos actos e unidade do sistema.

E é também justamente por aquela coincidência temporal que se conclui pela absoluta necessidade de delimitação das duas figuras, em termos de se poder afirmar que se a pretensão relevar de actividade tipicamente judicial, estaremos em face de caso em que caberá instrução, ao passo que se aquela solicitação tem em vista actividade tipicamente do Ministério Público, será a correspondente intervenção a figura processualmente adequada.

In casu as Requerentes visam tão só o completamento da investigação, desiderato que não se pode demandar à instrução.

Pelo que os requerimentos de abertura de instrução deduzidos pelas assistentes terão de ser rejeitados por inadmissibilidade legal, nos termos do nº 3 do artº 287º do Código de Processo Penal.

III. DECISÃO

São termos em que que rejeito os requerimentos de abertura de instrução apresentados pelas assistentes.

Custas pelas assistentes, fixando-se a taxa de justiça em três (3) UC’s para cada uma.

Notifique.”

2. Fundamentação

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas respectivas conclusões (art. 412.º, n.º 1, do CPP), a questão a apreciar circunscreve-se a saber se o requerimento de abertura de instrução formulado pelas assistentes satisfaz as exigências legais ou se, pelo contrário, sobrevém caso de inadmissibilidade legal da instrução.

Argumentam as recorrentes ser “essencial ter-se presente na apreciação do presente recurso que as Assistentes, em face do despacho de arquivamento, não suscitaram apenas uma questão jurídica no requerimento de abertura de instrução, mas sim duas questões jurídicas: primeiro, arguição das nulidades de falta ou de insuficiência do inquérito, e segundo, requerimento de abertura de instrução”.

Aditam que o requerimento de abertura de instrução tem uma parte de arguição de nulidades do inquérito, que termina com o pedido correspondente, e só depois começa o requerimento de abertura de instrução propriamente dito; e que neste “não se pede mais investigação!”

Rematam que formularam no RAI uma "acusação em sentido material" e que “a grande questão segundo a qual os factos em causa constituem ou não crime é uma pura questão de Direito”.

Mas não é assim. A argumentação exposta não consegue sustentar, materialmente, a pretensão visada no recurso, e não abala a fundamentação e decisão do despacho recorrido.

Na posição defendida no recurso, o RAI apresentado pelas recorrentes deveria ter sido apreciado a se, na vertente de uma estrita correcção formal como verdadeira acusação, isso bastando. E bastando, independentemente de uma (ausência de) prova que, sempre na sua alegação, o inquérito efectivamente não contém. Prova que, também segundo o RAI, pretenderiam ver produzida em instrução e assim incorporada no processo. É o que se afirma no RAI.

Esquecem as recorrentes que qualquer juízo de indiciação a efectuar em instrução só poderá ter lugar com base em provas (indiciárias). E que não há juízo de indiciação sem provas.

Mas são as próprias recorrentes a afirmar no RAI a “clamorosa falta ou insuficiência de inquérito”, a asseverar que “não se investigaram devidamente os factos contrariamente ao que devia ter sido feito”, e que vieram então requerer, agora em instrução, a produção da prova indevidamente omissa, designadamente a inquirição de dezoito testemunhas.

Sucede que perante as apodadas omissões de investigação e prova, que resultavam evidentes do despacho de arquivamento do inquérito, dispunha a assistente de um outro meio processual de reacção, que seria o concretamente adequado à defesa da sua pretensão. E esse meio não é o requerimento de abertura de instrução.

Dizem as recorrentes que “no RAI propriamente dito imputaram-se factos e crimes concretos a pessoa determinada, esses factos concretos foram afirmativamente narrados e indicou-se até, como parte da acusação, prova a produzir em julgamento (para além da prova a produzir em instrução)”. Mas a verdade desta afirmação não abala o despacho recorrido, pois a rejeição do RAI não se deveu a uma eventual falta de tais elementos. Não foi esse o fundamento da rejeição.

O fundamento da rejeição consistiu na inadequada utilização da instrução, visada pelas recorrentes, com vista à realização pelo juiz da instrução de uma investigação deficientemente feita pelo Ministério Público, como resulta claramente da posição expressa no RAI.

Ou seja, no RAI pretendeu-se reagir contra o arquivamento. Mas não apenas por uma discordância material da decisão do Ministério Público de arquivamento, mas por via da imputação de deficiências graves na actividade investigatória e probatória do dominus do inquérito. Deficiências que se pretenderia agora ver colmatadas na instrução, pelo juiz da instrução. Daí o requerimento de inquirição de dezoito testemunhas. Porém, a instrução não pode visar essa finalidade.

O fundamento da rejeição encontra-se exaustiva e claramente desenvolvido no despacho recorrido, sempre em conformidade com a realidade do processo, a base factual que cumpria apreciar e as normas legais à luz das quais cabia decidir.

O fundamento da rejeição encontra-se mui correctamente sintetizado no excerto seguinte: “No caso sub judicio, a prova a produzir, ao invés da facultativa residual e complementar própria da instrução (artigo 289º, nº 1), constituiria, eventualmente, mas sobretudo nas palavras das próprias assistentes, prova decisiva e essencial. O que as Requerentes atacam é a não realização de diligências que tinham por essenciais. E dizem claramente: que se omitiu “a realização das diligências essenciais em sede de inquérito para o apuramento dos factos e a descoberta da verdade material, nomeadamente a constituição como arguidos dos denunciados e o seu interrogatório nessa qualidade, a inquirição e eventual constituição como arguidos e interrogatório nessa qualidade dos Inspetores da IGAS e dos Agentes da PSP, bem como a inquirição das testemunhas indicadas no final da queixa/participação,”, com o que “o MP deixou de efetuar diligências obrigatórias e diligências essenciais para a descoberta da verdade e fez uma errada interpretação do disposto nos artigos 262.° e 267, ambos do Código de Processo Penal.”

E que “a recolha da prova indicada a final da queixa/participação sobre a factualidade nesta descrita, revelava-se essencial para formular um juízo sobre a verificação ou não da prática dos ilícitos ali imputados.”

E, mais à frente, que “uma só constatação e conclusão de pode fazer e retirar: a manifesta falta, ou pelo menos, a insuficiência do inquérito e a manifesta omissão de diligências de prova indispensáveis (e algumas até obrigatórias) para a adequada procura da verdade material e, consequentemente, à fundamentação do despacho final a proferir em sede de inquérito.”

E ainda, “O inquérito, a considerar-se que existiu (de facto não teve lugar qualquer investigação criminal digna desse nome) apresenta-se, pois, pelo menos, como manifestamente insuficiente, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios e terem sido omitidas diligências essenciais para a descoberta da verdade.”

Mais: “É de facto manifesto que face à conclusão expressa pelo Ministério Público no despacho de arquivamento quanto à não inexistência de conduta criminalmente relevante, as diligências omitidas, mormente, a inquirição e eventual constituição como arguidos dos denunciados relativamente aos factos descritos na queixa/participação apresentada, bem como a inquirição das testemunhas arroladas, se revelavam absolutamente adequadas e essenciais ao apuramento dos factos participados, para a aferição da relevância criminal, ou não, das condutas e, consequentemente, para a decisão de imputação ou não de responsabilidade criminal pelos factos ocorridos.

O Ministério Público não podia ter concluído no sentido ali expresso sem realizar essas diligências de prova tendentes ao apuramento dos factos e à consequente apreciação da relevância criminal dos factos denunciados e à suficiência ou não dos indícios para imputar a pessoas concretas a responsabilidade pelo ocorrido.

O Ministério Público deveria ter determinado a realização de tais diligências necessárias e adequadas ao cabal esclarecimento dos factos e respetivos responsáveis.”

E ainda: “(…) pois se se tiver em consideração a prova produzida no inquérito (por declarações e documental), a prova documental que ora se junta e ainda a prova que se requer que seja produzida em instrução, considera-se que existem indícios suficientes da prática por ela, como instigadora, de tais crimes quando exerceu funções como Inspectora Geral das Actividades em Saúde.”.

As aqui Requerentes consideram, pois, que haveria várias outras diligências essenciais e imprescindíveis para a descoberta da verdade que o MºPº, erradamente nas suas opiniões, descartou.

Mas, a ser assim, e na linha do que ficou dito de que à instrução não cabe suprir o tal suplemento investigatório, caberia às Requerentes reclamar hierarquicamente. A escolha entre a instrução e a intervenção hierárquica não pode ser aleatória, muito menos dependente da vontade de qualquer um dos sujeitos processuais.

E tanto mais assim será quando as duas possibilidades se situam em tempo e momento processuais coincidentes.

À intervenção hierárquica caberia dar, ou não, provimento à pretensão das Requerentes e, no eventual provimento, ultrapassar as invocadas falhas ou deficiências da investigação.

Não teria qualquer sentido a possibilidade de opção sem critério pela instrução ou pela intervenção hierárquica (ou, pior, a faculdade de proceder a ambas simultaneamente e com o mesmo fito) em face de princípios processuais como os da celeridade e utilidade dos actos e unidade do sistema.

E é também justamente por aquela coincidência temporal que se conclui pela absoluta necessidade de delimitação das duas figuras, em termos de se poder afirmar que se a pretensão relevar de actividade tipicamente judicial, estaremos em face de caso em que caberá instrução, ao passo que se aquela solicitação tem em vista actividade tipicamente do Ministério Público, será a correspondente intervenção a figura processualmente adequada.

In casu as Requerentes visam tão só o completamento da investigação, desiderato que não se pode demandar à instrução. ” (itálicos nosso)

Com efeito, o art. 286.º, n.º 1, do CPP, que cuida da finalidade e âmbito da instrução, preceitua que esta fase do processo se destina, exclusivamente, à comprovação judicial das decisões de acusação ou de arquivamento formuladas pelo Ministério Público no fim do inquérito, sendo desta segunda decisão que se trata, no presente caso. Ou seja, do exercício do controlo judicial da decisão de arquivar o inquérito.

Mas nem legal nem constitucionalmente, se podem comparar estes dois tipos de controlo judicial – respectivamente, o da decisão de acusar e o da decisão de arquivar.

O problema do arquivamento e do controlo judicial deste é ainda um problema de separação de poderes, pelo que importará exercer o controlo de que se trata aqui - o do arquivamento - de um modo ainda compatível com essa separação de poderes.

Na instrução, o juiz decide se a causa deve ou não ser submetida a julgamento. Em caso de discordância da decisão do Ministério Público, o juiz não pode ordenar-lhe que formule acusação em conformidade com a sua decisão; antes recebe uma outra acusação, aquela que se materializa afinal no requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, pronunciando o arguido por essa acusação. Só assim se respeita o princípio da acusação imposto pela estrutura acusatória do processo (Germano Marques da Silva, Curso PP, III, 126).

Nas palavras de Henriques Gaspar, “a estrutura acusatória do processo determina que o thema da decisão seja apresentado ao juiz, e que a decisão deste se deva situar dentro da formulação que lhe é proposta no requerimento para a abertura de instrução. (…) Os termos em que a lei dispõe sobre a definição do objecto da instrução através do requerimento para abertura desta fase processual têm de ser compreendidos pela estrutura e exigências do modelo acusatório. (…) O requerimento para a abertura de instrução constitui, pois, o elemento fundamental de definição e de determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas delimitada pelo tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura de instrução” (As exigências da investigação no processo penal durante a fase de instrução, in Que Futuro para o Processo Penal, 2009, p. 92-93).

No presente caso, não está em causa a completude do RAI como “acusação”, como se disse. Mas dessa completude não resulta sem mais que o RAI não possa ou não deva ser rejeitado.

A instrução, no modelo do processo penal português, não é um suplemento ou um complemento da investigação e não visa a substituição do Ministério Público por um juiz da investigação. O fim da instrução é, sempre e só, o “da comprovação de uma acusação deduzida pelo Ministério Público ou pelo assistente em ordem a uma decisão sobre o seu recebimento ou rejeição” (Germano Marques da Silva, ob. cit., p.128). Daí as exigências de forma e de substância ínsitas no n.º 2 do art. 287.º do CPP.

“A instrução tem como finalidade prolongar judicialmente a decisão de acusação. Nesta perspectiva, a finalidade da instrução não é continuar a investigação ou completar o inquérito, mas apenas possibilitar que o juiz verifique se as provas recolhidas no inquérito, eventualmente completadas na instrução, permitem, na leitura indiciária que faça segundo os critérios de valoração das provas que a lei impõe (princípio da livre apreciação, sustentar a decisão do Ministério Público (ou do assistente) de acusar ou do Ministério Público de arquivar o inquérito. A instrução não constitui um suplemento ou prolongamento do inquérito” (Henriques Gaspar, loc. cit. p. 94).

O juiz de instrução, no exercício do controlo judicial da decisão do Ministério Público, pode investigar autonomamente o caso submetido a instrução. Resulta efectivamente do n.º 4 do art. 288.º do CPP a imposição de um dever de investigação que transcende a matéria apurada em inquérito. Mas desta imposição ou dever não resulta que a instrução possa ser um sucedâneo do inquérito, nem que juiz de instrução se possa substituir ao Ministério Público.

O controlo da decisão de arquivamento do inquérito é, no modelo do Código de Processo Penal, um controlo duplo: controlo hierárquico ou controlo pelo juiz de instrução criminal. Pressupõe sempre a acção e a escolha do assistente: é ele que toma a iniciativa num ou noutro sentido.

Mas esta escolha não é aleatória nem indiferente. E mesmo as consequências dessa escolha não são processualmente as mesmas (atente-se na diferente força jurídica do despacho de arquivamento e da não pronúncia).

A escolha da via de reacção ao arquivamento é da responsabilidade do assistente, não se apresentando indiferente, como se disse. Inexiste similitude total do pedido (de abertura de instrução ou de intervenção hierárquica) bem como da decisão que se visa obter.

Notificadas do despacho de arquivamento do Ministério Público - em que este, segundo as recorrentes, revelou não ter dirigido diligentemente o inquérito e ter cometidos graves omissões na investigação e na recolha da prova - as assistentes optaram por requerer a abertura da instrução.

Fizeram-no em detrimento do uso do mecanismo previsto no art. 278.º do CPP, quando corresponderia à pretensão das recorrentes outra via processual: a intervenção hierárquica. Mas lançaram mão do meio desadequado ao caso e legalmente inadmissível de acordo com o modo como a pretensão se apresentou formulada.

Em suma, pediram ao juiz de instrução que realizasse o inquérito que o Ministério Público não realizou.

Tendo em conta o âmbito, a finalidade e os limites da fase de instrução não pode pedir-se ao juiz que substitua o inquérito do Ministério Público por outro que designadamente proceda ao apuramento dos factos que interessam à responsabilidade dos agentes do crime.

Para além de toda a jurisprudência citada no despacho recorrido e na resposta ao recurso, pode ainda ver-se no mesmo sentido o acórdão do TRE de 06.11.2012, que teve a relatora do presente, e o acórdão do TRG de 01-02-2010 (Rel. Fernando Monterroso) em que se disse: “Este enfoque sobre a natureza e finalidades da instrução não "condena" o ofendido à inevitabilidade de ver o seu caso injustificadamente findo, quando o magistrado do Ministério Público por incompetência, incúria ou outra razão decide arquivar um processo sem ter feito uma investigação adequada. O denunciante pode sempre provocar a intervenção hierárquica prevista no art. 278 do CPP, para que "as investigações prossigam". Deverá seguir esse caminho, em vez de requerer a instrução, quando a sua discordância não for apenas (ou essencialmente) quanto à decisão de não acusar, mas quando entender que a investigação foi deficiente, por ter omitido diligências de prova essenciais. Dessa forma não retirará a «investigação» do domínio do órgão do Estado competente, o Ministério Público”.

A posição expressa no RAI pressupõe que a instrução é um prolongamento do inquérito, em que a investigação passa a ser feita por um juiz. Mas no actual Código de Processo Penal, o juiz de instrução configura-se como um guardião dos direitos liberdades e garantias no decurso das fases preliminares do processo. E “a instrução não é uma segunda fase investigatória, desta feita levada a cabo pelo juiz, e mais nada. (...) Surge como um controlo que é solicitado ao juiz, e só por quem se sinta agastado pela decisão proferida uma vez encerrado o inquérito (José Souto Moura, Inquérito e Instrução, Jornadas de Direito de Processo Penal do CEJ, ed. 1988, pág. 125)”.

Também no acórdão do TRP de 04.03.2009 (Rel. Melo Lima) se concluiu que “se o Ministério Público arquiva o inquérito sem investigar o facto denunciado (…), o meio próprio para o assistente reagir contra essa decisão não é o pedido de abertura de instrução, mas a suscitação da intervenção hierárquica prevista no art. 278.º do CPP (…) no sentido de conseguir do imediato superior hierárquico a determinação de que as investigações prossigam”.

O estudo de Souto de Moura a que fizemos referência foi publicado aquando da entrada em vigor do actual (então novo) Código de Processo Penal. Nele, Souto de Moura debruçou-se sobre a “nova” instrução, distinguindo-a das anteriores instruções preparatória e contraditória, do Código de Processo Penal de 1929.

No estudo de Souto de Moura pode ler-se, sempre com interesse, que a instrução “só pode ser requerida segundo um certo condicionalismo satisfazendo-se um interesse semelhante ao do recorrente”. É com esta asserção que o autor encerra o item 10. do seu estudo, item denominado “Quem faz e para que é que se faz a instrução”. E deu-lhe mesmo um destaque por via da utilização do itálico: a instrução só pode ser requerida segundo um certo condicionalismo satisfazendo-se um interesse semelhante ao do recorrente.

Não deixa de ser impressiva esta equiparação que o autor faz entre instrução e recurso, entre a posição do sujeito processual que requer a abertura de instrução e a do que recorre, entre o efeito que cada um destes intervenientes visa e pode aspirar obter através da instrução e através do recurso, respectivamente.

Na verdade, à semelhança do recurso, que não é nem uma repetição, nem uma continuação do julgamento de 1.ª instância, também a instrução não pode ser uma repetição do inquérito, uma continuação do inquérito ou, nos casos mais limite uma substituição do inquérito.

Uma coisa é pedir ao juiz que aprecie determinados factos a que o Ministério Público não deu relevância jurídico-penal, outra é pretender que o próprio juiz investigue, averigue e obtenha a demonstração indiciária da existência de (praticamente todos os) factos de que se pretende ver retirada a consequências jurídico-penais.

No modelo processual penal português, o Ministério Público é o titular único da acção penal. Investiga sozinho, e fá-lo contra e a favor do arguido, ao contrário dos modelos de Ministério Público adversário. E o controlo da decisão de arquivamento, pelo juiz, mediante a iniciativa do assistente, tem de ser processualmente compatível com a estrutura acusatória do processo, a separação de poderes e a repartição de funções.

Notificadas do arquivamento do Ministério Público, as assistentes optaram por requerer a abertura da instrução, em detrimento do mecanismo previsto no art. 278.º do CPP. Tendo em conta o âmbito, a finalidade e os limites da fase de instrução não podiam pretender que o juiz substituísse o inquérito do Ministério Público por um outro, que apurasse a actuação da denunciada e determinasse a sua responsabilidade.

Perante tão graves insuficiências do inquérito – assim se encontra afirmado no RAI -, a opção das assistentes só poderia ter sido a de requerer a intervenção hierárquica do imediato superior do magistrado do Ministério Público que, declarando encerrado o inquérito, determinou o arquivamento. E não podiam pretender uma instrução, visando que o juiz de instrução se substituísse ao Ministério Público, em violação da estrutura acusatória do processo, praticando actos que, objectivamente, extravasariam os seus poderes funcionais, enquanto titular da instrução, em infracção ao disposto no art. 286.º, n.º 1 e 298.º, ambos do CPP.

Daí que se mostre correcta a conclusão retirada no despacho recorrido – de que “os requerimentos de abertura de instrução deduzidos pelas assistentes terão de ser rejeitados por inadmissibilidade legal, nos termos do n.º 3 do art. 287.º do CPP”. Despacho que é integralmente de confirmar.

3. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso.

Custas pelas assistentes, com 3 UC de taxa de justiça (art. 515.º, n.º 1, al. b) do CPP e tabela IV do RCP).

Notifique, também a denunciada.

Lisboa, 17.04.2024

Ana Barata Brito, relatora

Pedro Branquinho Dias, adjunto

Teresa Féria de Almeida, adjunta