Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3533/20.9T8LRS.C1.S2
Nº Convencional: 4.ª SECÇÃO
Relator: RAMALHO PINTO
Descritores: REVISTA EXCECIONAL
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
Data do Acordão: 04/24/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA EXCEPCIONAL
Decisão: ADMITIDA A REVISTA EXECIONAL.
Sumário :

Existe contradição de acórdãos, para efeitos da al. c) do nº 1 do artº 672º, do CPC, quando o acórdão recorrido e o acórdão fundamento dão respostas opostas à questão de saber se os valores pagos, a título de “ajudas de custo”, regular e periodicamente e independentemente de o trabalhador ter ou não realizado uma qualquer despesa, maior ou menor, de alimentação, não lhe sendo exigido qualquer prova da realização da despesa e mesmo do respectivo montante, integram o cálculo das prestações devidas por acidente de trabalho, por não se destinarem a suportar custos aleatórios.

Decisão Texto Integral:

Processo 3533/20.9T8LRS.C1.S2


Revista Excepcional


149/24


Acordam na Formação a que se refere o nº 3 do artigo 672.º do Código de Processo Civil da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


AA intentou a presente ação especial de acidente de trabalho contra Generali Seguros, SA e B..., Lda, formulando o seguinte pedido:


“Nestes termos e nos demais de direito que Vossa Excelência doutamente suprirá deve a presente ação ser julgada procedente por provada e consequentemente:


a) Ser reconhecida a existência de um acidente de trabalho no dia 25 de fevereiro de 2019, pelas 10.30h, quando o Sinistrado trabalhava nas instalações da 2.ª Ré, no aeródromo de ..., sob autoridade e direção desta e estava a proceder à inspeção da aeronave AW 109 E; que tal acidente produziu um choque elétrico ao nível dos dedos da mão direita do Sinistrado e que esta ocorrência foi causa direta e necessária das lesões detetadas nos exames médicos juntos aos autos;


b) Reconhecer que a remuneração mensal do Sinistrado integra uma componente fixa e uma componente variável, em função da atividade prestada à 2.ª Ré, denominada no contrato de trabalho como “diária”, nas tabelas salariais como “complemento” e nos recibos como “ajudas de custo”;


c) Reconhecer que em 2021 a retribuição anual do Sinistrado é de 92.493,31€, correspondente ao produto de 12 vezes a retribuição mensal acrescida dos subsídios de Natal e de férias e outras prestações anuais a que o sinistrado tinha direito com carácter de regularidade;


d) Ser determinada a realização de junta médica, conforme artigo 139.º do CPT, para fixar a incapacidade permanente parcial do Sinistrado, identificando-se como perito a designar pelo sinistrado o Dr. (...)


e) Ser calculada e determinado o pagamento de remição parcial prevista no artigo 75.º, n.º 2, da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, em função do resultado do exame requerido na alínea antecedente e da retribuição anual julgada procedente;


f) Serem condenadas as Rés, em função da responsabilidade entre si contratualizada, a pagarem ao Sinistrado o valor da remição parcial e pensão anual vitalícia, acrescidos de juros de mora desde a data da alta do sinistrado, que ocorreu em 5 de Abril de 2019;


g) Serem as Rés condenadas no pagamento das custas judiciais, incluindo custas de parte.”


Citada, as Rés contestaram.


Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:


Pelo exposto:


1. Fixo ao A., AA, a incapacidade permanente parcial de 7%, desde 5/4/2019.


2. Fixo em 50.552,48 (cinquenta mil, quinhentos e cinquenta e dois Euros e quarenta e oito cêntimos) a retribuição anual relevante para cálculo das prestações emergentes de acidente de trabalho.


3. Condeno a R. “Generali Seguros, S.A.” a pagar ao A.:


a) a quantia de 96,42 (noventa e seis Euros e quarenta e dois cêntimos), a título de indemnização relativa aos períodos de incapacidade temporária;


b) o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no valor de 2.464,44 (dois mil, quatrocentos e sessenta e quatro Euros e quarenta e quatro cêntimos), desde 5/4/2019;


c) a quantia de 37,00 (trinta e sete Euros), a título de deslocações obrigatórias;


d) juros de mora sobre as prestações supra atribuídas e em atraso, vencidos e vincendos, à taxa anual de 4%, até integral pagamento.


4. Condeno a R. “Avincis Aviation Portugal, Unipessoal Lda.” a pagar ao A.:


a) a quantia de 18,79 (dezoito Euros e setenta e nove cêntimos), a título de indemnização relativa aos períodos de incapacidade temporária;


b) o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no valor de 12,63 (doze Euros e sessenta e três cêntimos) desde 5/4/2019;


c) juros de mora sobre as prestações supra atribuídas e em atraso, vencidos e vincendos, à taxa anual de 4%, até integral pagamento.”


O Autor interpôs recurso de apelação.


Por acórdão de 24.11.2023, os Juízes do Tribunal da Relação deliberaram do seguinte modo:


“Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se, na improcedência do recurso, em manter a sentença recorrida”.


O Autor interpôs recurso de revista excepcional.


O processo foi distribuído a esta Formação, para se indagar se estão preenchidos os pressupostos para a admissibilidade da revista excepcional referidos na alínea c) do nº 1 do artº 672º do Código de Processo Civil.


O Autor formulou as seguintes conclusões:


A. O presente recurso de revista excecional baseia-se numa divergência jurisprudencial notória na interpretação do n.º 2 do artigo 71.º da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro.


B. Com base nesta norma o Acórdão Recorrido declarou o afastamento da presunção de que o pagamento da quantia denominada “valor diário de serviço” constituía retribuição do sinistrado, por ter ficado demonstrado que parte desta quantia se destinou a compensar o A. pelas despesas de alimentação realizadas por ocasião da prestação do trabalho”.


C. Em sentido contrário, o Acórdão Fundamento proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no processo 4286/15.8T8LSB.L1.S1, em 12 de Janeiro de 2023, esclarece que “os valores pagos a título de “ajudas de custo operacionais”, que o eram regular e periodicamente e independentemente de o trabalhador ter ou não realizado uma qualquer despesa, maior ou menor, de alimentação, desde logo, num restaurante, não lhe sendo exigido qualquer prova da realização da despesa e mesmo do respectivo montante, integram o cálculo das prestações devidas por acidente de trabalho, por não se destinarem a suportar custos aleatórios.


D. Os Acórdão ora colocados emconfronto decidem a mesma questão, convocando factos similares, aplicam a mesma normal legal – o n.º 2 do artigo 71.º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro – e emergem da mesma situação de vida: um acidente de trabalho.


E. Existe, portanto, identidade e oposição que justificam uma uniformização de jurisprudência.


F. Tanto mais que o Acórdão recorrido se opõe a um Acórdão recente do Supremo Tribunal de Justiça.


G. Admitindo que a requerida revista excecional possa ser aceite, reitera-se que com base nos pontos 10 a 15 dos factos provados a decisão sobre o thema decidendum deveria ser diferente.


H. O valor anual fixo pago ao recorrente (28.844,62€) é quase equivalente ao resultante das diárias ou complementos (28.252,86).


I. Apesar de a Recorrida pretender cobrir parte do valor anual das diárias com uma suposta ajuda de custo para pagamento de refeições, o que sobressai é que tal valor era pago em montante fixo, sem que o Recorrente tivesse de comprovar qualquer despesa, sendo indiferente se utilizava o valor pago para comer num estabelecimento hoteleiro, ou se adquiria refeições confecionadas, ou se as confecionava ele próprio.


J. Emerge uma regularidade na atribuição de uma prestação pecuniária além do mais associada a blocos de 12 horas de trabalho, que perdura ao longo de toda a execução do contrato.


K. Deste modo, julgando-se como julgou o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão Fundamento chegar-se-á à conclusão que a remuneração anual do Recorrente era de 57.097,48€, valor que deveria ser considerado para cálculo das prestações emergentes de acidente de trabalho.


L. Nestes termos e nos demais de direito que os Colendos Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça suprirão deve o Acórdão Recorrido ser revogado e substituído por outro que realize a almejada JUSTIÇA!


x


Cumpre apreciar e decidir:


A revista excepcional é um verdadeiro recurso de revista concebido para as situações em que ocorra uma situação de dupla conforme, nos termos do artigo 671º, nº 3, do Código de Processo Civil.


A admissão do recurso de revista, pela via da revista excepcional, não tem por fim a resolução do litígio entre as partes, visando antes salvaguardar a estabilidade do sistema jurídico globalmente considerado e a normalidade do processo de aplicação do Direito.


De outra banda, a revista excepcional, como o seu próprio nome indica, deve ser isso mesmo- excepcional .


O Recorrente invoca, com vista à admissão da revista excepcional, a al. c) do nº 1 do artº 672º do CPC, que estabelece:


“1 - Excecionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando:


(...)


c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme”.


Quanto a este fundamento, no Acórdão do STJ de 3/03/2016, proc. 102/13.3TVLSB.L1.S1, incluído nos Boletins Anuais disponibilizados em www.stj.pt, entendeu-se, lapidarmente, que “I - Constitui entendimento uniforme da Formação de apreciação preliminar, que a oposição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito, para efeitos de admissibilidade do recurso de revista excepcional ao abrigo do disposto no art. 672.º, n.º 1, al. c), do CPC, verifica-se quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro caso, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação.


Por sua vez no Ac. deste STJ e Secção Social de 13/1/2021, proc. 512/18.0T8LSB.L1.S2, escreveu-se:


“A doutrina e a jurisprudência têm entendido que o acesso ao recurso de revista excecional, previsto no art.º 672.º, n.º 1, alínea c), do CPC, pressupõe a verificação dos seguintes requisitos:


- O acórdão recorrido e o acórdão-fundamento têm de incidir sobre a mesma questão fundamental de direito, devendo ser idêntico o núcleo da situação de facto, atento o ratio da norma aplicável;


- A existência de uma contradição ao nível da resposta dada em ambos os acórdãos a determinada questão, bastando que no acórdão recorrido se tenha dado uma resposta diversa e não, propriamente, contrária à resposta dada no acórdão-fundamento, devendo, no entanto, a oposição ser frontal e não implícita ou pressuposta;


- A essencialidade da questão de direito conducente ao resultado numa e noutra das decisões, sendo irrelevante a argumentação sem valor decisivo;


- A existência de um quadro normativo idêntico, independentemente de eventuais alterações que não tenham alterado a sua substância;


- Não exista acórdão de uniformização de jurisprudência sobre a questão jurídica em questão que o acórdão recorrido tenha seguido”.


No caso que nos ocupa e analisando os dois acórdãos- recorrido e fundamento- constata-se que efectivamente existe a apontada contradição.


Está em causa, em ambos os arestos- recorrido e fundamento- a aplicação do n.º 2 do artigo 71.º da LAT (Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro) e mais concretamente se os montantes recebidos pelo sinistrado a título de ajudas de custo devem ou não ser consideradas retribuição para efeito de responsabilidade de acidente de trabalho.


Tendo-se chegado a conclusões perfeitamente opostas.


No acórdão fundamento considerou-se provado, com relevância:


Os valores pagos pela Ré – empregadora à Autora a título de “ajudas de custo operacionais” são, primeiro, calculados em função dos voos planeados ou programados, sendo posteriormente feitos os acertos em função dos voos que efectivamente o tripulante realizou. Procedendo a Ré – empregadora ao seu pagamento através de transferência bancária, não os fazendo incluir nos recibos de vencimento mas sim em documentos autónomos.


Tais valores são pagos independentemente de o tripulante ter ou não realizado uma qualquer despesa, maior ou menor, de alimentação, desde logo, num restaurante, não lhe sendo exigido qualquer prova da realização da despesa e mesmo do respetivo montante.


Os valores pagos pela Ré – empregadora à Autora a título de “ajudas de custo operacionais” destinam-se a compensar despesas com refeições e outras do tripulante fora da base e para além daquelas que já estão previamente pagas. O respectivo montante difere conforme o destino voado pelo tripulante, os horários de serviço de voo e a duração da estadia/deslocação”.


Concluindo-se que sendo tais valores, a título de “ajudas de custo operacionais”, pagos regular e periodicamente e independentemente de a trabalhadora ter ou não realizado uma qualquer despesa, maior ou menor, de alimentação (sublinhado nosso) desde logo, num restaurante, não lhe sendo exigido qualquer prova da realização da despesa e do respectivo montante, os mesmos valores integram o cálculo das prestações devidas por acidente de trabalho, por não se destinarem a suportar custos aleatórios.


Por sua vez no acórdão recorrido foi considerada a seguinte factualidade:


“10. Entre fevereiro de 2018 e janeiro de 2019, o A. auferiu as seguintes quantias mensais:


- Fevereiro: € 1.823,14 a título de remuneração base mensal, € 2.560,06 a título de valor diário pelo serviço;


- Março: € 1.823,14 a título de remuneração base mensal, € 1.922,44 a título de valor diário pelo serviço, € 332,14 a título de suplemento ATPLH;


- Abril: € 1.859,60 a título de remuneração base mensal, € 88,73 a título de suplemento ATPLH;


- Maio: € 1.859,60 a título de remuneração base mensal, € 5.291,05 a título de valor diário pelo serviço, € 88,73 a título de suplemento ATPLH;


- Junho: € 1.859,60 a título de remuneração base mensal, € 2.560,06 a título de valor diário pelo serviço, € 88,73 a título de suplemento ATPLH;


- Julho: € 1.859,60 a título de remuneração base mensal, € 2.730,99 a título de valor diário pelo serviço, € 88,73 a título de suplemento ATPLH;


- Agosto: € 1.859,60 a título de remuneração base mensal, € 2.901,92 a título de valor diário pelo serviço, € 88,73 a título de suplemento ATPLH;


- Setembro: € 1.859,60 a título de remuneração base mensal, € 2.389,13 a título de valor diário pelo serviço, € 88,73 a título de suplemento ATPLH;


- Outubro: € 1.859,60 a título de remuneração base mensal, € 3.414,71 a título de valor diário pelo serviço, € 88,73 a título de suplemento ATPLH;


- Novembro: € 1.859,60 a título de remuneração base mensal, € 2.560,06 a título de valor diário pelo serviço, € 88,73 a título de suplemento ATPLH, € 336,00 a título de suplemento experiência aeronáutica;


- Dezembro: € 1.859,60 a título de remuneração base mensal, € 443,64 a título de valor diário pelo serviço, € 88,73 a título de suplemento ATPLH, € 112,00 a título de suplemento experiência aeronáutica;


- Janeiro: € 1.859,60 a título de remuneração base mensal, € 1.478,80 a título de valor diário pelo serviço, € 88,73 a título de suplemento ATPLH, € 112,00 a título de suplemento experiência aeronáutica;


11. As quantias referidas em 3 dos temas de prova como “valor diário de serviço” eram pagas ao A. quando este se encontrava deslocado em base, em turno de 12 horas, por 6 dias;


12. A R. “Avincis” garantia o alojamento quando o A. estava deslocado em base;


13. Mas o A. poderia optar por outro alojamento – ponto 6 dos temas de prova;


14. Parte das quantias referenciadas como “valor diário pelo serviço” visava pagar a alimentação do A. quando se encontrava deslocado em base, que se calcula em € 35,00 diários;


15. O pagamento das quantias referenciadas como “valor diário pelo serviço” não dependia da apresentação de comprovativo das despesas concretas


Para se concluir, citando-se a sentença, que:


“No caso destes autos, em face dos factos apurados, entende-se que a R. “Avincis” afastou, parcialmente, a presunção de que o pagamento da quantia denominada “valor diário de serviço” constituía retribuição do sinistrado, por ter ficado demonstrado que parte desta quantia se destinou a compensar o A. pelas despesas de alimentação realizadas por ocasião da prestação do trabalho.


(...)


O A. auferiu o montante anual de € 28.252,86, a título de valor diário pelo serviço – cfr. soma da factualidade provada sob o número 7 por referência a esta prestação.


Deste montante auferido, € 6.545,00 (187 dias x € 35,00) destinou-se ao pagamento de despesas de alimentação do A. deslocado em base.


Assim, é retribuição relevante para efeitos da lei dos acidentes de trabalho a quantia anual de € 21.707,86 (€ 28.252,86 - € 6.545,00), por exceder aquela que é contrapartida das despesas de alimentação efectuadas pelo A. deslocado em base.


Já se sabe, por estar assente desde a tentativa de conciliação, que o A. auferia a título de retribuição base + suplemento ATPLH + suplemento de experiência aeronáutica, a quantia anual de € 28.844,62 (€ 2.060,33 x 14).


Deste modo, a retribuição do A. para efeito de cálculo das prestações pecuniárias emergentes do acidente de trabalho cifra-se em € 50.552,48 (€ 21.707,86 + € 28.844,62)”.


x


Decisão


Pelo exposto, acorda-se em admitir a revista excepcional, interposto pelo Autor / recorrente, do acórdão do Tribunal da Relação.


Custas a definir a final.


Lisboa, 24/04/2024


Ramalho Pinto (Relator)


Mário Belo Morgado


Júlio Gomes





Sumário (da responsabilidade do Relator).