Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1769/21.4T8VCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO DE DANOS PRÓPRIOS
FURTO OU ROUBO DE VEÍCULO
CAPITAL SEGURO
VALOR DA COISA
Nº do Documento: RP202403211769/21.4T8VCD.P1
Data do Acordão: 03/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGAÇÃO PARCIAL
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Estipulando a apólice de seguros que em caso de furto ou roubo do veículo a seguradora pagará ao segurado os «danos causados» o segurado pode exigir da seguradora não o valor do capital seguro, mas o valor venal do veículo à data do furto.
II - Não havendo coincidência entre o «capital seguro» e o valor venal da coisa segura aplica-se o disposto nos artigos 128.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril.
III - Para que a violação de deveres secundários ou acessórios do contrato faça a parte incorrer na obrigação de indemnizar a outra parte é necessário que estejam verificados vários pressupostos: a violação dos deveres (o ilícito contratual), a culpa do devedor (ainda que presumida), os danos e o nexo de causalidade entre a violação ocorrida e os danos a indemnizar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2024:1769.21.4T8VCD.P1

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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:


I. Relatório:
AA, contribuinte fiscal n.º ...40, residente em Braga, instaurou acção judicial contra A..., S.A, pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ...31, com sede em Lisboa, pedindo a condenação da ré a pagar ao autor €40.000, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, e, a título de danos não patrimoniais, €5.000.
Para fundamentar o seu pedido alegou, em súmula, que é proprietário de um veículo automóvel, que celebrou com a ré um contrato de seguro com a cobertura de danos próprios, incluindo furto ou roubo, que o veículo lhe foi furtado, que a ré se recusa a pagar ao autor a indemnização prevista no contrato de seguro, incorrendo em incumprimento das suas obrigações.
A ré foi citada e apresentou contestação, defendendo a improcedência da acção e alegando para o efeito que tem fundadas razões para crer que o alegado furto do veículo não ocorreu e que o autor não tem direito aos valores que reclama.
Realizado julgamento foi proferida sentença, tendo a acção sido julgada parcialmente procedente e a ré condenada a pagar ao autor a quantia de €34.446,85, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação e até integral pagamento, e a quantia de €2.000.
Do assim decidido, a interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I- A Ré impugna, por considerar incorrectamente julgados, a decisão proferida quanto aos factos dos pontos 21) e 39) da matéria dada como provada e r) s) e t) dos factos considerados não provados.
II- A factualidade dada como não provada nos pontos r) e t) resulta demonstrada, desde logo, por via de uma presunção judicial, que se retira da factualidade dada como provada nos pontos 1, 2 e 47 da matéria provada.
III- De facto, sabendo-se que em Outubro de 2017 o Autor adquiriu o veículo em questão na Alemanha, suportando um encargo global (incluindo preço e despesas) de 27.000,00€, que os veículos sofrem uma depreciação com o uso e com o passar do tempo - facto que é notório e não carece de alegação ou prova e que o alegado furto é dado como ocorrido em Dezembro de 2018, ou seja, um ano e dois meses depois da aquisição do veículo, é forçoso concluir que, nesta última data, o TR não valia os cerca de 27.000,00€ que o demandante terá suportado para o adquirir, mas sim valor inferior.
IV- E, atendendo a que, entre a data da aquisição do automóvel com a matrícula ..-TR- .. e a data do seu alegado furto, decorreram cerca de um ano e dois meses, deve ter-se como notório e absolutamente razoável que, nesse período, sofreria uma desvalorização de, pelo menos, 2.000,00€, valendo, à data do alegado furto – e podendo ser comprado no mercado de usados internacional – no máximo, 25.000,00€
V- Assim, perante o que acima se expôs, estando provado que, cerca de um ano e dois meses antes do alegado furto, o Autor conseguiu adquirir no mercado internacional de usados o automóvel com a matrícula ..-TR-.. pelo preço global de cerca de 27.000,00€, devem ter-se como provados, por via de presunção judicial, os factos dos pontos r) e t) da matéria dada como não demonstrada, nos seguintes termos: r) Em 08.12.2018, o veiculo com a matrícula ..-TR-.. tinha o valor, no máximo a €.25.000,00; t) E, recorrendo ao mercado internacional – como o próprio Autor fez – esse carro poderia ser adquirido por valor de, no máximo, 25.000,00€
VI- Ainda sobre a matéria dos pontos r) s) e t) dos factos provados depôs a testemunha BB, perito avaliador que colabora com a Ré, o qual no seu depoimento gravado no sistema H@bilus no dia 10/05/2023, entre as 16h48m e as 17h01m (ficheiro: Diligencia_1769-21.4T8VCD_2023-05-10_16-48-01.mp3), para além de ter confirmado que o “TR” valia, no máximo, cerca de 25.000,00€ na data do alegado furto, atestou, ainda, que, por esse preço, poderia ser adquirido um veículo igual no mercado de usados
VII- Esta testemunha explicitou no seu depoimento, em consonância com o que foi dado como provado, que o veículo em questão não era a versão ... do A3, apesar de dispor de alguns equipamentos característicos dessa versão, os quais considerou na sua avaliação.
VIII- Por outro lado, o facto de um veículo como o TR poder ser adquirido por aquele valor de cerca de 25.000,00€ é o que resulta, ainda, do teor dos Docs 10 a 12 juntos com a contestação da Ré, que contêm anúncios de venda de carros similares por aquele preço ou inferior.
IX- O depoimento da testemunha BB é corroborado, ainda, pela própria circunstâncias de o TR ter sido adquirido na Alemanha, um ano e dois meses antes, pelo preço de 26.000,00€ (21.500€ + despesas de legalização), sendo perfeitamente plausível que valesse menos do que esse valor na data do alegado furto.
X- Assim, entende a recorrente que, tendo por base uma presunção que se retira da matéria de facto dada como provada nos pontos 1), 2) e 47), bem como em face do depoimento da testemunha BB, gravado no sistema H@bilus no dia 10/05/2023, entre as 16h48m e as 17h01m, ficheiro: Diligencia_1769- 21.4T8VCD_2023-05-10_16-48-01.mp3, nas passagens dos minutos 00m38s a 03m04s e 3m14s a 9m43s, e dos documentos 10 a 12 juntos com a contestação, se impunha que fosse dado como provado, quanto aos factos em causa, o seguinte: r) provado que: Em 08.12.2018, o veiculo com a matrícula ..-TR-.. tinha o valor, no máximo €.25.000,00; s) provado que: “Por esse valor ou até inferior era possível, nessa data adquirir no mercado nacional de usados um veículo igual ao veiculo com a matrícula ..-TR-...”; t) provado que: “E, recorrendo ao mercado internacional – como o próprio Autor fez – esse carro poderia ser adquirido por valor de, no máximo, 25.000,00€
XI- O facto do ponto 21) da matéria dada como provada não ficou demonstrado, impondo-se a sua alteração.
XII- A versão que o Autor apresentou no que toca à forma como foi fixado o capital da cobertura de furto da apólice (cfr depoimento gravado no sistema H@bilus no dia 10/05/2023, entre as 10h06m e as 10h57m- ficheiro “Diligencia_1769- 21.4T8VCD_2023-05-10_10-06-39.mp3- foi a de que o valor do capital foi atribuído pela Ré, através da matrícula do veículo (cfr passagens dos minutos 5m23s a 7m00s), o que acabou por ser afastado, atendendo ao que se provou no ponto 22) da matéria assente.
XIII- No seu depoimento gravado no sistema H@bilus no dia 10/05/2023, entre as 14h11m e as 14h29s – ficheiro Diligencia_1769-21.4T8VCD_2023-05-10_14-11-13.mp3- nas passagens dos minutos 02m08s a 7m01s e 11m17s a 11m54, a testemunha CC, funcionário da Ré, ligado à área da subscrição de apólices, asseverou que a seguradora não atribuiu ao veículo em questão qualquer valor, tendo-se limitado a aceitar a fixação de um capital inicial de 40.000,00€ para a cobertura de furto ou roubo da apólice, sem que tenha avaliado o dito automóvel, ou recorrido à denominada tabela Eurotax e que a Ré não procedeu a qualquer avaliação do TR
XIV- A testemunha DD, agente de seguros, não revelou ter conhecimento das circunstâncias nas quais foi celebrada a apólice, em nada tendo o seu depoimento contribuído para o apuramento dos factos em questão.
XV- Entende a Ré que o que resulta dos elementos de prova constantes dos autos é que Autor e Ré acordaram entre si na fixação de um capital para a cobertura de furto da apólice, mas não que as partes tenham avaliado o veículo naquele montante.
XVI- Consequentemente, entende a Ré que, atendendo ao depoimento do Autor, gravado no sistema H@bilus no dia 10/05/2023, entre as 10h06m e as 10h57m (ficheiro “Diligencia_1769-21.4T8VCD_2023-05-10_10-06-39.mp3”) nas passagens dos minutos 5m23s a 7m00s, da testemunha CC, gravado no sistema H@bilus no dia 10/05/2023, entre as 14h11m e as 14h29s (Diligencia_1769- 21.4T8VCD_2023-05-10_14-11-13.mp3), nas passagens dos minutos 2m08s a 11m54s, tudo conjugado com o que foi dado como provado no ponto 22 da matéria de facto provada, se impunha que tivesse sido dado como provado quanto a este facto, apenas, que 21) Aquando da proposta de seguro, em circunstâncias não concretamente apuradas, foi fixado por Autor e Ré o valor de €.40.000,00 como capital da cobertura de furto da apólice, para efeitos de cálculo de pagamento de prémio.
XVII- O ponto 39) da matéria de facto dada como provada constitui o cerne da factualidade relevante para a decisão da causa, mais precisamente aquele em que foi dado como provado que o ..-TR-.. foi furtado.
XVIII- O ónus de provar que o TR foi furtado competia ao Autor.
XIX- A mera apresentação de participação policial do desaparecimento do carro nada prova, a não ser que o lesado deu conta da alegada ocorrência desse evento às autoridades.
XX- A eventual dificuldade de demonstração de um facto não permite que seja aligeirada a exigência probatória ou, muito menos, invertido o ónus probatório.
XXI- O esforço probatório do Autor deve ter em vista permitir “um juízo de verosimilhança suficiente para sustentar uma adequada confirmação das questões de facto enunciadas, as quais se traduzem, então, na fundada probabilidade, razoabilidade e consistência de tal veículo ter sido deixado pelo autor, nas circunstâncias de tempo, modo e lugar por este descritas, com a constatação do seu desaparecimento sem motivo aparente”.
XXII- Nenhum dos documentos ou depoimentos testemunhais que o julgador invoca na motivação da decisão proferida quanto à matéria de facto é susceptível de, por si só, comprovar a ocorrência do furto, tanto mais que nenhuma das testemunhas identificadas, ou o próprio Autor, declararam ter presenciado o alegado furto.
XXIII- Ora, a ocorrência do furto do TR no local em causa, nas circunstâncias de tempo descritas e atendendo às características desse carro, é, a todos os títulos, improvável.
XXIV- Importa ter presente que, face ao que ficou provado nos provados nos pontos 23), 24), 27) a 38) e 47) da matéria de facto, o local onde se diz ter ocorrido o furto era exposto e movimentado
XXV- Como referiu o Autor no seu depoimento gravado no sistema H@bilus no dia 10/05/2023, entre as 10h06m e as 10h57m (ficheiro“Diligencia_1769- 21.4T8VCD_2023-05-10_10-06-39.mp3”), nas passagens dos minutos 11m08s e 11m23s e a testemunha EE, colega de trabalho do Autor, que esteve presente no local do alegado furto no dia 08/12/2018, cujo depoimento está gravado no sistema H@bilus no dia 10/05/2023, entre as 11h18m e as 11h36m (ficheiro Diligencia_1769-21.4T8VCD_2023-05-10_11-18-42.mp3), nas passagens dos minutos 6m54s a 6m57s, no dia 08/12/2018 o tempo esteve bom em Vila do Conde e não choveu.
XXVI- A propósito das características do local indicado como sendo o do alegado furto e sobre se nele era ou não frequente a passagem de pessoas, a testemunha FF, averiguador da Ré, o qual, além de ter tido intervenção nas diligências de averiguação realizadas na sequência da participação do alegado furto, residia e reside nas proximidades do local onde se diz ter o pretenso furto ocorrido, atestou que num dia feriado e com bom tempo, a passagem de pessoas e viaturas no local era permanente, como se vê das seguintes passagens do seu depoimento gravado no sistema H@biluis no dia 10/05/2023, entre as 15h26m e as 16h06m (ficheiro áudio Diligencia_1769-21.4T8VCD_2023-05-10_15-26-56.mp3), nas passagens dos minutos 2m47s a 2m58s, 3m22s a 6m44s, 7m47s a 8m58s, 10m02s a 10m16s
XXVII- Também a testemunha GG, coordenador de investigação da Ré, descreveu, com conhecimento de causa, o local indicado como sendo o do alegado furto, o qual bem conhece por residir a cerca de 200 metros de distância, tendo atestado, também, que era muito movimentado durante o dia, sobretudo num feriado e com bom tempo, tendo referido, ainda, que, fruto das suas pesquisas, apurou que no dia 08/12/2018 esteve bom tempo, como se vê das passagens dos minutos 00m35s a 3m48s do seu depoimento gravado no sistema H@bilus no dia 10/05/2023, entre as 16h09m e as 16h47m (ficheiro áudio Diligencia_1769-21.4T8VCD_2023-05-10_16- 09-46.mp3),
XXVIII- Ora, o furto de um veículo em pleno dia, em local movimentado e situado numa zona onde era frequente a passagem de pessoas e viaturas, é, já de si, um acontecimento deveras improvável.
XXIX- Mas, se tivermos em conta os procedimentos necessários a concretizar o furto do veículo, temos de concluir que a subtracção, por furto, do TR naquelas circunstâncias é, totalmente, inverosímil.
XXX- No que toca às operações necessárias a furtar um veículo com o TR, declarou a testemunha GG, pessoa com experiencia de vários anos na averiguação de sinistros consistentes em furtos, declarou que aquele era um veículo dotado de equipamentos destinados a impedir a sua subtracção, sendo que seria sempre necessário estroncar a fechadura de uma das suas portas, partir um dos seus vidros, ou cortar a lona da sua capota e, de seguida, levar a cabo demoradas e chamativas operações técnicas, que demorariam mais de meia-hora (cfr depoimento gravado no sistema H@bilus no dia 10/05/2023, entre as 16h09m e as 16h47m (ficheiro áudio Diligencia_1769-21.4T8VCD_2023-05-10_16-09-46.mp3), nas passagens dos minutos 17m15s a 29m09s).
XXXI- No caso, a crer na versão do Autor, teríamos de aceitar como possível que o(s) autor(es) deste pretenso ilícito aceitaram correr o risco de furtar um veículo numa das zonas mais movimentadas da localidade de Vila do Conde num dia feriado – a respectiva marginal -, em pleno dia e em local onde poderiam passar e passavam várias pessoas e carros a qualquer momento.
XXXII- Não é crível que, em pleno dia e num local exposto, alguém, que passava no local levando consigo, por acaso, a instrumentação adequada a assaltar um carro com sofisticados meios de segurança, tivesse o impulso de furtar o TR em local movimentado e exposto a um conjunto de riscos.
XXXIII- De referir, ainda, que, atendendo ao motivo da presença do TR no local de onde se diz ter sido furtado – festa de Natal – ainda menos plausível se mostra a sua subtracção por furto, tanto mais que seria inesperada a sua presença nesse local.
XXXIV- E, atendendo ao facto de, como se assinalou, o furto desse veículo implicar, além do mais, o uso de ferramentas, é muito pouco plausível a “coincidência” de ter sido furtado naquele dia e local por um transeunte, munido daquelas ferramentas.
XXXV- Neste contexto, o que resulta da prova produzida, é que a ocorrência do furto nas circunstâncias dadas como provadas não é crível, impondo-se que fosse dada como não provada a sua ocorrência.
XXXVI- De facto, a complexidade das tarefas que envolvia a subtracção desse automóvel no local e, também, a impossibilidade de o alegado ladrão ter conseguido “desmontar” um carro em zona movimentada da localidade de Vila do Conde, em pleno dia, sem ser detectado, tornam manifestamente inverosímil a hipótese de furto do automóvel.
XXXVII- Ora, além de o furto do TR ser, manifestamente, inverosímil, resultaram da prova produzida na acção vários elementos que apontam no sentido de que o A teria vantagens com a participação deste sinistro.
XXXVIII- Com efeito, sabe-se que o A beneficiava de um contrato de seguro celebrado com a Ré que tinha um capital de cerca de 34.000,00€ em caso de furto ou roubo.
XXXIX- Porém, o Autor comprou esse carro cerca de 1 ano e dois meses antes pelo preço de 21.500,00€, ao qual se somaram a despesa de 4.500,00€ na respectiva legalização e valor não apurado em viagens de Portugal para a Alemanha e trajecto inverso, pelo que a participação do furto à seguradora poderia assegurar ao Autor o imediato recebimento de quantia superior à do valor do próprio carro alegadamente furtado.
XL- Assim, tendo em conta os factos dados como provados nos pontos 23), 24), 27) a 38) e 47) – e, ainda, a factualidade dos pontos r), s) e t) da matéria dada como não provada, caso venha a ser atendida a impugnação da decisão sobre os mesmos proferida – conjugados com as declarações do Autor, gravadas no sistema H@bilus no dia 10/05/2023, entre as 10h06m e as 10h57m (ficheiro “Diligencia_1769- 21.4T8VCD_2023-05-10_10-06-39.mp3”), nas passagens dos minutos 11m08s a 11m23s, da testemunha EE, gravadas no sistema H@bilus no dia 10/05/2023, entre as 11h18m e as 11h36m (ficheiro Diligencia_1769- 21.4T8VCD_2023-05-10_11-18-42.mp3), nas passagens dos minutos 6m54s a 6m57s, bem como da testemunha FF, gravadas no sistema H@bilus no dia 10/05/2023, entre as 15h26m e as 16h06m (ficheiro áudio Diligencia_1769-21.4T8VCD_2023-05-10_15-26-56.mp3), nas passagens dos minutos 2m47s a 2m58s, 3m27s a 6m44s, 7m47s a 10m16s, e da testemunha GG, gravadas no sistema H@bilus no dia 10/05/2023, entre as 16h09m e as 16h47m (ficheiro áudio Diligencia_1769-21.4T8VCD_2023-05-10_16-09-46.mp3), nas passagens dos minutos 00m35s a 3m48s e 17m05s a 21m38s, 21m57s a 29m09s, impunha-se que se tivesse dado como provado, quanto ao facto do ponto 39) da matéria de facto, apenas, que: 39) Quando o Autor saiu do convívio, tal como referido em 26), o veículo com a matrícula ..-TR-.. não se encontrava estacionado no local referido em 25) e 27)
XLI- Efectivamente, o que resulta da prova produzida é que o Autor estacionou o “TR” na manhã do dia 08/12/2018 na marginal de Vila do Conde, aliás à vista de variadíssimas testemunhas que poderiam e puderam atestar esse facto – e que não deixou de indicar na acção – e que, ao fim do dia, o carro já ali não estava – facto, mais uma vez, presenciado por várias testemunhas.
XLII- Porém, o que não se provou e não é plausível ou crível é que o “desaparecimento” do TR tenha resultado de um furto, o que impõe a alteração da decisão proferida nos termos acabados de expor, o que se requer.
XLIII- Caso venha a ser atendida a pretendida alteração da decisão proferida quanto à matéria de facto no que toca ao ponto 39) dos factos dados como provados, teremos como não demonstrada a ocorrência do furto do “TR”
XLIV- Assim, caso seja atendida a impugnação da decisão proferida quanto aquele facto, impõe-se a revogação da douta sentença e a absolvição da Ré do pedido, por não ter por verificado o evento (furto) que permitiria o accionamento das garantias da apólice.
XLV- Deste modo, caso seja alterada a decisão proferida quanto ao facto do ponto 39) da matéria dada como provada, sempre se imporia a revogação da douta sentença e absolvição da Ré do pedido, por não ter o Autor demonstrado os factos constitutivos do seu direito, o que se requer.
XLVI- A ser atendida a impugnação da decisão proferida quanto à matéria dos factos das alíneas r) a t) da matéria dada como não provada a prestação a cargo da Ré, se se entender ser devida, deve ser reduzida para o valor de 25.000,00€.
XLVII- De facto, por força do disposto no artigo 128.º do RJCS, independentemente do valor do capital do seguro indicado pelo tomador para sua contratação, a Ré não responderá para além do prejuízo sofrido pelo demandante, se este, sequer, se provar.
XLVIII- Assim, por aplicação das regras do contrato de seguro e as dos artigos 49º, 128º e 132º do DL 72/2008, nunca poderia a responsabilidade da Ré exceder o montante dos prejuízos alegadamente sofridos, isto é, 25.000,00€, devendo ser o contrato reduzido nesses termos, o que a seguradora logo requereu na sua contestação e agora reitera.
XLIX- Como tal, caso venha a considerar-se provado que o TR valia, à data do alegado sinistro, 25.000€, deve ser revogada a douta sentença, condenando-se a Ré a pagar ao Autor, pelos danos sofridos pelo veículo, a quantia de não mais de 25.000,00€.
L- Ou, se se vier a considerar provado que, na data do alegado sinistro, era outro o valor do TR, sempre se imporia a redução da prestação a cargo da Ré para esse montante, o que, subsidiariamente, se requer.
LI- Mesmo que se mantivesse provado que as partes acordaram num valor para o TR (facto do ponto 21)), nem assim se poderia impor à Ré a obrigação de liquidar ao Autor uma indemnização superior ao seu dano real.
LII- Desde logo, importa salientar que, ainda que as partes tenham acordado num valor para o bem a segurar – e entende a Ré que tal não ocorreu – o certo é que, a ser atendida a impugnação da decisão proferida quanto aos factos dos pontos r) a t) da matéria de facto dada como não provada, teremos como certo que o valor “acordado” era muito superior ao valor real do bem.
LIII- De facto, nesse caso, sempre se deveria considerar manifestamente infundado o valor acordado entre as partes (40.000,00€), uma vez que o bem tinha um valor de cerca de 25.000,00€ - Cfr. artigo 131º n.º 1 do RJCS.
LIV- Como tal, mesmo neste cenário, caso venha a considerar-se provado que o TR valia, à data do alegado sinistro, 25.000€, deve ser revogada a douta sentença, condenando-se a Ré a pagar ao Autor, pelos danos sofridos pelo veículo, a quantia de não mais de 25.000,00€.
LV- Ou, se se vier a considerar provado que, na data do alegado sinistro, era outro o valor do TR, sempre se imporia a redução da prestação a cargo da Ré para esse montante, o que, subsidiariamente, se requer.
LVI- A apólice previa a cobertura de veículo de substituição em caso de furto, pelo período de 30 dias, tendo a Ré disponibilizado ao Autor um automóvel nesse mesmo período.
LVII- Logo, a Ré cumpriu, integralmente, a sua obrigação contratual, no que toca a tal cobertura.
LVIII- Já os demais danos, não têm cobertura na apólice, nem na Lei (cfr artigo 130.º n.º 2 do RJCS).
LIX- Acresce que a eventual responsabilidade da Ré, a existir, seria de natureza contratual e não por factos ilícitos, pelo que a indemnização pela mora corresponderia aos juros e não a qualquer outra indemnização.
LX- O que impõe a revogação da douta sentença na parte em que atribuiu ao Autor a indemnização de 2.000,00€ a título de compensação por danos morais e a absolvição da Ré, nessa parte, do pedido.
LXI- De referir, também, que não incorreu a Ré no incumprimento de qualquer dever acessório de conduta que justificasse a atribuição ao Autor de compensação por danos morais.
LXII- Assim, é forçoso concluir que, nem mesmo com base nesta outra perspectiva da questão que nos ocupa, se sustentaria a condenação da Ré no pagamento ao Autor de qualquer compensação por danos morais.
LXIII- Em todo o caso, não existe o necessário nexo de causalidade entre o não pagamento pela Ré da indemnização pretendida pelo A (capital seguro) e os alegados danos morais.
LXIV- E, mesmo que assim não se entendesse, em face da escassa relevância dos danos em causa, sempre se imporia a redução dessa compensação para não mais de 500,00€, ou outra quantia inferior à de 2.000,00€, o que, subsidiariamente, se requer.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença sob censura e decidindo- se nos moldes acima apontados, como é de inteira e liminar Justiça.
O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.


II. Questões a decidir:

As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
i. Se a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada.
ii. Qual o valor a pagar pela ré pelo sinistro de furto do veículo.
iii. Se existe fundamento para condenar a ré a pagar ao autor, além do valor devido pelo furto, uma indemnização.


III. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
A recorrente impugnou a decisão de julgar provados os pontos 21 e 39 e a decisão de julgar não provados os factos das alíneas r), s) e t), defendendo que tais factos devem merecer resposta diferente.
Os factos em causa têm a seguinte redacção:
Dos não provados:
r) Em 08.12.2018, o veiculo com a matrícula ..-TR-.. tinha o valor, no máximo de €22.000,00 a €25.000,00.
s) Por esse valor ou até inferior era possível, nessa data adquirir no mercado nacional de usados um veículo igual ao veiculo com a matrícula ..-TR-...
t) E, recorrendo ao mercado internacional – como o próprio Autor fez – esse carro poderia ser adquirido por valor muito inferior.
Dos provados:
21) Aquando da proposta de seguro, em circunstâncias não concretamente apuradas, foi atribuído por Autor e Ré à viatura o valor de €40.000,00, com extras incluídos, para efeitos de cálculo de pagamento de prémio.
39) Quando o Autor saiu do convívio, tal como referido em 26), o veículo com a matrícula ..-TR-.. não se encontrava estacionado no local referido em 25) e 27), tendo sido furtado assim com os documentos que se encontravam no interior.
Mostram-se cumpridos de modo satisfatório os requisitos específicos desta impugnação, consagrados no artigo 640.º do Código de Processo Civil, pelo que nada obsta à apreciação da mesma.
No que concerne aos factos não provados, afigura-se-nos que a recorrente tem razão.
Com efeito, resultou provado no ponto 47, com fundamento, aliás, nas declarações do próprio autor e no conteúdo da declaração aduaneira elaborada para efeitos da importação do veículo, que o veículo foi adquirido na Alemanha, no estado de usado, pelo autor no início de Outubro de 2017, pelo preço de €21.500,00, a que acresceu o imposto para a sua importação para o nosso país de cerca de €4.500,00, e as despesas com as viagens entre Portugal e Alemanha, de valor não concretamente apurado.
Se o veículo foi adquirido por este preço mais impostos mais custos de transporte para Portugal, independentemente de saber a que modelo específico corresponde o veículo, rectius, se ele corresponde ao modelo com essa designação em Portugal (o modelo pode ter a mesma designação em Portugal e na Alemanha mas o seu equipamento divergir entre os dois mercados), é de presumir que na data em que o autor o comprou ele tinha esse valor, uma vez importado para Portugal, porquanto nada existe ou foi sequer aventado que permita supor que o autor pagou por ele valor inferior ou superior ao respectivo valor de mercado no país de origem e ambos os mercados são abertos e estão ligados entre si (basta ver o número de veículos que são importados usados da Alemanha, o que se justifica pela dimensão no mercado alemão dos veículos de marcas alemãs e a reputação dessas marcas em Portugal).
O alegado furto do veículo ocorreu cerca de 14 meses depois da sua importação. É um facto notório que o decurso do tempo é sempre um factor de depreciação dos veículos automóveis, independentemente do uso que deles se faça, sabendo-se que basta um veículo ter sido objecto de um registo de propriedade para de imediato se desvalorizar, mesmo que não tenha percorrido qualquer km e nem sequer tenha chegado a sair do stand de venda. Aliás, no caso, o próprio contrato de seguro tem associada uma tabela de desvalorização que dá expressão e concretiza aquele facto notório.
Por esse motivo, foi produzida prova perfeitamente suficiente para, considerando o valor do veículo à data da sua importação e o decurso do período de 14 meses, julgar provado que em 08.12.2018 o veículo valia cerca de €25.000,00, por corresponder ao valor mais alto aceite pela ré (facto que assim se pode considerar confessado porque nesse sentido e nessa medida lhe é desfavorável) e porque a aplicação da tabela de desvalorização do veículo associada ao contrato conduziria mesmo a um valor inferior (a desvalorização de 13,88% dada como provada no ponto 12 geraria uma redução de mais de €3.600 enquanto que o valor que se vai julgar provado incorpora uma redução de apenas €1.000, não considerado o valor não apurado das despesas de transporte).
Não tendo sido alegado que o autor possua especiais capacidades ou conhecimentos para encontrar veículos à venda na Alemanha por preços abaixo do valor de mercado ou se dedique profissionalmente a essa actividade (apresentou-se como “inspector automóvel” não obstante o significativo número de veículos automóveis valiosos de que já foi e/ou é proprietário), e sendo do conhecimento público a existência de pessoas e empresas que se dedicam à importação de grande quantidade de veículos automóveis usados de outros países europeus para Portugal, em especial da Alemanha no tocante aos veículos de marcas daquele país, deve aceitar-se, igualmente por presunção natural, que se o autor adquiriu na Alemanha o veículo por esse preço é porque era possível adquirir um veículo semelhante pelo mesmo preço.
Como assim decide-se aditar à fundamentação de facto da sentença os seguintes factos ora julgados provados:
74) Em 08.12.2018 o veículo valia cerca de €25.000.
75) Nessa data era possível adquirir em Portugal ou através de importação um veículo semelhante pelo mesmo preço.
A 1.ª instância julgou provado o facto do ponto 21, cuja redacção a recorrente defende que seja alterada.
Na redacção dada pela 1.ª instância, aquando da proposta de seguro as partes terão consensualizado, em circunstâncias não concretamente apuradas, atribuir ao veículo seguro o valor de €40.000,00 para efeitos de cálculo de pagamento de prémio. Na redacção sugerida pela recorrente, o consenso das partes não consistiu propriamente na avaliação do veículo, mas na definição do valor (de €.40.000,00) do capital para efeitos da cobertura de furto.
É assaz relevante que o tribunal a quo tenha reconhecido, ao ponto mesmo de o levar à redacção do próprio facto, a conjuntura de não se terem apurado concretamente as circunstâncias em que o contrato de seguro foi celebrado.
O responsável da empresa de mediação revelou no seu depoimento desconhecer como foi elaborada a proposta porque não teve participação nisso, tendo esse acto sido realizado com a intervenção de uma colaboradora que, entretanto, deixou de o ser. O autor no seu depoimento referiu ter enviado ao mediador de seguros onde a proposta de seguros foi subscrita fotografias do veículo para ele ser avaliado, o que a ter ocorrido seria fácil de demonstrar com a junção da mensagem electrónica de envio das fotografias, meio de prova que não foi produzido.
A testemunha CC conhece apenas os dados que constam do sistema informático da ré, tendo afirmado que também não sabe em que circunstâncias o contrato foi celebrado porque este chegou à companhia vindo do mediador. No entanto, afirmou com relevo que quando o veículo é usado, como aqui sucedia, é prática do mercado fazer-se a sua avaliação; que o sistema informático mostra que no caso o mediador não recorreu ao sistema da Eurotax, normalmente utilizado para o efeito, porque quando isso sucede o sistema gera um código de identificação da consulta que é transportado para o sistema e isso não se verifica no caso concreto; que o valor de “56.497,18€” que consta da apólice como “valor do veículo em novo” foi calculado a partir do valor de 40.000€ mencionado como “capital” aplicando a percentagem da tabela de desvalorização (se na data da proposta de seguro – com essa antiguidade – o veículo tinha o valor de 40.000€, na data – anterior – em que foi colocado no mercado – em novo – teria o valor de 56.497,18€, isto é, aquele valor menos a desvalorização que sofreu entre as duas datas).
Sendo esta a prova e, repete-se, não se tendo apurado as concretas circunstâncias em que a proposta de seguro foi preenchida e subscrita, o facto a julgar provado só pode ser o que a própria apólice menciona, isto é, que foram propostos e aceites os valores indicados na apólice.
Nessa medida a redacção do ponto 21 deve ser modificada para reflectir melhor a indicação que os meios de prova nos fornecem sobre o facto, razão pelo que se altera a sua redacção para a seguinte:
21) Aquando da proposta de seguro, em circunstâncias não concretamente apuradas, foi acordado por Autor e Ré que para efeitos da apólice e cálculo do prémio, nas coberturas de furto ou roubo, incêndio, raio ou explosão e fenómenos da natureza o capital seguro era de €40.000,00.
O último facto cuja decisão foi impugnada respeita ao furto do veículo. A recorrente defende que deve ser julgado não provado que foi furtado no local, hora e circunstâncias descritas pelo autor, porque cabe a este o ónus de fazer essa prova e a mesma não pode considerar-se satisfeita apenas pela apresentação de uma participação policial de furto, sendo certo que alegadamente o furto ocorreu no período diurno, num local movimentado e frequentado por muitas pessoas, sem ter sido notado ou deixado qualquer vestígio.
Permitimo-nos a este respeito repetir aqui o que, numa situação absolutamente similar à dos autos e em que também era ré a aqui ré, já escrevemos no Acórdão de 23-02-2023, proc. n.º 30/21.9T8PVZ.P1, in www.dgsi.pt:
«[…] Os artigos 346.º do Código Civil e 516.º do Código de Processo Civil mandam que na dúvida o juiz decida contra a parte onerada com a prova. Todavia, não existe entre nós norma ordinária ou constitucional que se pronuncie sobre o que deve ser entendido por dúvida, rectius, por dúvida relevante para fazer operar essa consequência.
A nosso ver a prova de um facto num processo judicial e para fins jurídicos é, por princípio, a demonstração de um alto grau de probabilidade (e não de mera possibilidade) de o mesmo corresponder à realidade material dos acontecimentos (dita verdade ontológica). O poder soberano que o Tribunal exerce, impondo às partes, mais que os efeitos jurídicos dos factos, os efeitos práticos da decisão jurisdicional, supõe e exige, como matriz radical da sua própria legitimidade, não uma qualquer probabilidade (apenas mais provável que não) mas um alto grau de probabilidade.
Por princípio, a prova alcança a medida bastante quando os meios de prova conseguem criar na convicção do juiz a ideia de que o facto em discussão, mais do que ser possível e verosímil, possui um alto grau de probabilidade e, sobretudo, a um grau de probabilidade bem superior e prevalecente ao de ser verdadeiro o facto inverso. Donde resulta que, em princípio, se a prova produzida for residual, o tribunal não tem de a aceitar como suficiente ou bastante só porque, por exemplo, nenhuma outra foi produzida e o facto é possível.
Esta regra carece, contudo, de adequação prática. Trata-se de uma regra que o julgador, com recurso ao bom senso e ao justo equilíbrio das coisas, há-de definir e aplicar caso a caso, em função das exigências de justiça que o mesmo coloca, determinadas a partir de aspectos como o da acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da acção.
Na verdade, se o padrão de prova for particularmente exigente tal pode conduzir à negação dos direitos, na medida em que dificulta a demonstração dos pressupostos de facto do direito. Todavia, a aceitação de um padrão pouco exigente importa precisamente o mesmo risco, na exacta medida em que ao facilitar a prova de quase tudo acaba por contemporizar com estratégias processuais vagas, difusas e pouco sustentadas, seja do lado activo seja do lado passivo da lide e, portanto, potencia a possibilidade de se fazer a prova do que não é verdade, perturbando o reconhecimento dos direitos correspondentes ao que realmente sucedeu. Por conseguinte, caso a caso o juiz deve adequar essa regra – esse grau de exigência – aos contornos da concreta situação que tem para julgar e ao contexto da prova dos factos que a corporizam.
[…] a circunstância de um facto ser verosímil ou possível não significa que o mesmo seja verdadeiro, mas o contrário também é correcto. A vida diz-nos que por vezes ocorrem factos que eram pouco verosímeis ou não ocorrem factos que além de possíveis eram perfeitamente verosímeis. No entanto, o normal é haver verosimilhança no processo causal gerador de um facto, pelo que a maior verosimilhança do facto torna-o mais provável e a menor verosimilhança menos provável. São as regras da experiência que o determinam. Daí que se possa afirmar a seguinte regra probatória não escrita: quanto mais inverosímil e improvável o facto é, à luz da inteligência que rege os comportamentos humanos e das leis das ciências exactas, normalmente reconduzidas às regras da experiência, mais ou melhor prova deve ser exigida.
Quando os factos têm intervenção humana ou resultam de acções humanas é necessário atentar que as pessoas movem-se por interesses, motivações, objectivos, propósitos, emoções, impulsos. Estes são resultado do funcionamento do intelecto da pessoa enquanto animal dotado de razão, consciência, identidade pessoal. Nessa medida, perscrutar a realidade de um facto humano ou com intervenção humana é, antes de mais, averiguar a razão que subjaz a essa actuação, que lhe dá origem e a orienta, e, sobretudo, apurar se a mesma é compatível com o quadro de actuação de qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias.
Por isso, um dos elementos decisivos para a formação da convicção do julgador é a verosimilhança dos factos sobre os quais recai a controvérsia, ou seja, a pertinência lógica dos mesmos ao domínio dos acontecimentos humanos que por definição possuem motivações apreensíveis, são norteados pela inteligência humana (no sentido de serem comportamentos orientados para um fim compreensível e delineados por processos intelectualmente aptos, mesmo quando são comportamentos asnáticos) e estão de acordo com o que as regras da experiência nos ensinam ser expectável, corresponder ao devir normal.
Comportamentos privados de racionalidade, opostos ou diferentes da actuação que o comum dos cidadãos teria, cuja lógica ou motivação não é sequer perceptível ou se mostra destituída de coerência, são estranhos e como tal, ainda que possíveis, são pouco prováveis, indiciando que ou o comportamento não foi realmente aquele que é afirmado ou o seu objectivo é diferente daquele que se pretende.
Não tem dificuldade alguma as partes prestarem depoimentos ou apresentarem em juízo testemunhas que prestem depoimentos relativamente seguros e consistentes e, no entanto, totalmente fantasiosos, falsos ou apenas desconformes com a realidade. E isso pode dever-se a um propósito doloso da parte/testemunha ou apenas à circunstância, porventura a mais frequente e menos detectável, de no processo de formação e/ou revelação da sua memória terem ocorrido factores que motivaram ou a formação de uma falsa memória ou a incapacidade de recuperar com rigor a memória registada no cérebro.
Qualquer juiz ou advogado com alguns anos de experiência em sala de audiência sabe que esta vicissitude é frequente e sabe quão difícil é, por vezes, detectá-la e evitá-la. Esta circunstância obriga o tribunal a libertar-se da mera literalidade das afirmações e centrar mais a atenção na análise e interpretação da lógica dos acontecimentos relatados, colocados no seu contexto concreto, sob pena de o tribunal acabar por ser o cemitério da justiça quando se pretende que seja a vida dos direitos.
[…] o reconhecimento de um direito pressupõe a demonstração dos factos geradores do direito e para isso existem regras que distribuem o ónus da prova dos factos. Todavia, a função dessas regras não é tanto a de definir quem tem de provar o quê, mas essencialmente a de determinar contra quem se irá repercutir a não prova (por falta ou insuficiência dos meios de prova) de um facto.
Nos termos do artigo 414.º do Código de Processo Civil, havendo dúvidas sobre a realidade de um facto, a decisão deve ser desfavorável à parte a quem o facto aproveita. À outra parte não é exigida a prova do facto contrário, basta-lhe tornar o facto duvidoso. Isso mesmo resulta do artigo 346.º do Código Civil segundo o qual à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos e se o conseguir, rectius, se lograr criar dúvidas sobre a verificação dos factos, a questão é decidida contra a parte onerada com a prova. Por conseguinte, o esforço probatório a produzir pela parte sobre quem recai o ónus de prova é tanto maior quanto maior forem as dúvidas sobre o facto criadas pelos meios de prova produzidos pela parte contrária, mesmo que estes não sejam suficientes para fazer a prova do contrário.
[…] existe alguma jurisprudência que depois de afirmar a dificuldade em fazer a prova de que o veículo foi furtado para efeitos de accionamento do seguro que cobre o risco de furto ou roubo do mesmo, se inclina para atribuir à participação do furto às autoridades policiais pelo lesado a natureza de «prova de primeira aparência» (cf. Acórdão desta Relação de 08.11.2022, proc. n.º 2842/20.1T8STS.P1), considerando-a «suficiente… desde que a seguradora não consiga afastar essa prova de primeira aparência» (cf. Acórdão desta Relação de 28.10.2021, proc. n.º 1857/19.7T8VNG.P2), em resultado do que incumbiria à «seguradora, para afastar a sua responsabilidade … pôr em causa a aludida verosimilhança das alegações fácticas da autora fundada naquela prova» (cf. Acórdão desta Relação de 10.01.2022, proc. n.º 6509/18.2T8MTS.P1).
Outro Acórdão entende mesmo que «o indeferimento da pretensão do beneficiário de seguro pode resultar da suspeita de que o mesmo facto foi falsa e ilicitamente por si alegado. Mas, porque encerra uma suspeição criminal, esse indeferimento pressupõe estejam reunidos indícios que diríamos quase suficientes, isto é, ainda que não revistam a característica de provas que ultrapassem a dúvida sobre uma possível condenação (caso fosse submetido a julgamento criminal), tornem mais verosímil a conclusão pela fundamento da suspeita de burla» (cf. Acórdão desta Relação de 09.12.202, proc. n.º 3521/17.2T8GDM.P2).
Diferentemente e mais no sentido da nossa opinião, outro Acórdão manifesta que incumbe a quem «invoca a titularidade de um direito indemnizatório que lhe assiste por via da celebração de um contrato de seguro …, em consequência de se ter verificado um furto, … a prova da verificação do furto, uma vez que este surge como elemento constitutivo do seu direito. Porém, como a prova da verificação do furto de um veículo é normalmente difícil de efectuar por este ocorrer de forma sub-reptícia, impõe-se ao autor não uma prova directa deste, mas sim que, tendo apresentado a respectiva queixa junto das entidades policiais, forneça ao tribunal elementos probatórios coadjuvantes que permitam formular um juízo de verosimilhança relativamente a essa queixa. Se esses elementos probatórios coadjuvantes não são produzidos, a prova da verificação do furto não poderá ser feita apenas com base na participação que foi apresentada nas autoridades policiais» (cf. Acórdão desta Relação de 10.07.2019, proc. n.º 1521/17.1T8AMT.P1).
A este respeito afigura-se-nos que não existem razões nem fundamento para a propósito de acções deste género nos afastarmos das regras legais do ónus da prova e do regime imperativo consagrado no artigo 347.º do Código Civil. Tais regras são, aliás, modelações legais do princípio da livre apreciação da prova, razão pela qual, em respeito pelas regras do Estado de Direito democrático que balizam o âmbito dos poderes dos vários órgãos de soberania, devem ser acatados pelo julgador de modo estrito.
Por outro lado, tanto quanto vemos, a constatação correcta da dificuldade de provar determinados factos, que não é exclusiva das acções com este objecto e se intensifica quando estão em causa, por exemplo, factos negativos ou factos futuros, qualquer que seja a acção onde devem ser provado, não pode justificar que se atribua a um acto voluntário e livre do próprio interessado (o deslocar-se a um posto de policia para apresentar uma queixa) que é insusceptível de qualquer controlo ou fiscalização um valor probatório que manifestamente este não pode ter, atenta a sua natureza, origem e facilidade. Não é certamente por acaso que a lei penal consagra entre os vários tipos legais de crime, o crime de simulação de crime (artigo 366.º do Código Penal) punindo-o com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
Desse modo, na nossa leitura, numa situação como a que nos ocupa, não existe meio de prova que seja, pela sua própria natureza, isto é, abstractamente, mais valioso que outro, e todos se encontram sujeitos não apenas à livre apreciação do tribunal, como, sobretudo, aos critérios racionais de avaliação epistemológica do seu valor probatório relativo.»
A Mma. Juíza a quo fundamentou assim a sua decisão:
«O facto dado como provado em 39) resultou da conjugação do depoimento/declarações de parte do Autor, com os depoimentos de HH, EE e II, sendo que todos depuseram no exacto sentido que foi dado como provado e não foram infirmados por qualquer outro elemento de prova.
[…] o Autor relatou, de forma calma e espontânea que no dia 08.12.2018 (…), sábado, e dia de sol, veio a Vila do Conde, para o convívio de Natal que decorreu durante o dia no interior da marina da Póvoa de Varzim. Para tanto deslocou-se no seu veículo, que estacionou um local próprio para estacionamento, de frente para a marginal e para a construção utilizada pelos reformados e junto a habitações e a uma clínica médica. Veículo esse que ficou estacionado no mesmo local durante todo o dia, entre as 10h e as 17.30h. Ou seja, estacionou o veículo num local onde normalmente circulam muitas pessoas, seja a pé, de bicicleta ou de veículo automóvel. Se no dia houve muito movimento não se sabe, mas de acordo com as regras da lógica e da normalidade, e até porque resultou dos depoimentos das testemunhas, é um local de grande movimento de pessoas e veículos.
Na medida do que ainda se lembravam, HH, EE e II, confirmaram a versão do Autor, quanto ao convívio, à duração, ao local de estacionamento do veículo.
Confirmaram ainda todos que no final do dia, depois do convívio, o veículo não se encontrava no local e que o Autor foi à PSP da Póvoa de Varzim, onde apresentou a competente queixa. Nesta parte, as declarações do Autor e das testemunhas saem corroboradas pelo auto de denúncia.
[…] JJ, FF e GG …, de forma coincidente e com maior ou menor detalhe, disseram que a situação lhes suscita dúvidas, porque o veículo estava estacionado num local muito exposto e que abrir o carro com estroncamento da porta, descarnar da coluna da direcção e conseguir fazer a ligação directa, sem que o sistema bloqueasse (e nisto remetemos para o depoimento detalhado e bastante esclarecedor de GG, pessoa experiente neste tipo de situações), necessitava de várias ferramentas, fazia ruido e demorava o seu tempo (no mínimo 25 a 30 minutos a correr tudo bem). Tudo isto, todas as manobras que era necessário realizar, disseram, não faziam sentido atendendo ao local onde o Autor disse que deixou o veículo estacionado. Excluíram que a entrada fosse através do partir de um vidro porque não havia vestígios e que não foi com as chaves do Autor, porque ele disse que tinha duas e apresentou-as. Pelo aparato e pelo prejuízo excluíram também que a introdução se fizesse pela capota em lona.
As mesmas testemunhas, tinham ainda reservas e dúvidas por causa do modelo do veículo e do valor do mesmo, bem como do valor do capital seguro. Ora, no que diz respeito ao capital, não se fez prova de como é que o mesmo foi alcançado, ainda que seja evidente e notório que o aludido veículo foi segurado por um valor superior ao valor pelo qual o Autor o adquiriu (…), o que permite compreender as dúvidas das referidas testemunhas.
[…] KK, que recebeu a denúncia, … disse que normalmente os furtos dão-se durante a noite e que provavelmente chamaria a atenção, poderia chamar ou não a atenção. Por sua vez, em oficio a PSP, esclareceu que no dia em apreço não houve situações idênticas na zona (avenida em questão).
Quanto ao anúncio de venda do veículo, o Autor disse que o pôs a à venda, como tem o actual veículo de marca Mercedes, também anunciado, à espera de uma oportunidade de negócio (e note-se que pelos veículos que o Autor já teve em seu nome desde o sucedido, não é de estranhar que tenha o veículo à venda, a que acresce que antes do Audi também já foi dono de um Porsche (conforme depoimento de LL) que também vendeu).
Já quanto à alegada expressão «mais valia que tivesse sido furtado» a mesma não se provou.
[…] o Autor relatou a situação – na medida do que poderia ter relatado – no que foi corroborado pelas demais testemunhas, colegas de trabalho à data, que também foram ao convívio. A corroborar tal circunstancialismo, o Autor ainda se deslocou à PSP, no próprio dia, para apresentar queixa.
Mas será que a Ré, com a prova produzida e os factos provados, conseguiu afastar o relato e a prova produzida pelo Autor.
[…] Não se pode dizer que não é estranho um furto ocorrer num local tão visível como aquele em apreço nos autos, mas isso não torna a situação impossível ou inverosímil. Na verdade, apesar de ser um dia de sol e sábado, não se sabe o movimento em tal rua/marginal, nomeadamente de pessoas a pé, pois o trânsito de veículos não permitiria, sem mais considerar, que se apercebessem da situação (excepto os que saem da marina porque esses têm visão directa para o local). Depois não podemos esquecer que, não obstante ser normal estarem pessoas na construção situada em frente (local para onde se deslocam pessoas de idade), e de terem visão para o local, as pessoas no seu interior estão, por regra, em convívio e podem não estar necessariamente a olhar para o local. O mesmo se dirá das pessoas que vivem nos prédios com vista para o local, que não têm necessariamente de estar à varanda ou à janela a ver o que se passa no parque de estacionamento. Quanto à clínica médica, nem se apurou se esteve aberta todo o dia e o normal é as pessoas não estarem a olhar pela janela. E não havendo «barulho ou alarido» as pessoas não ficam, por regra, a apreciar os carros estacionados num parque de estacionamento e, por isso, as respostas das pessoas contactas pelos Srs. Peritos, não invalidam o sucedido. Como disse o agente da PSP «poderia chamar a atenção ou não…».
E depois importa considerar que se tratou de um lapso de tempo muito longo, de cerca de sete horas (entre o Autor estacionar e regressar ao local), em que muita coisa pode ter sucedido no local, períodos há em que muita gente pode ter circulado e outros em que isso não ocorreu. Não se apurou em concreto, mas com tal circunstancialismo e com a prova produzida, livremente apreciada e considerada à luz das regras da experiência e da normalidade da vida, não se pode dizer que há razões para consideramos a versão tal como foi apresentada pelo Autor e corroborada pelas testemunhas de HH, EE e II, como sendo inverosímil ou que não constitui prova bastante de que o furto ocorreu, nas circunstâncias de tempo e lugar dadas como provadas. E considerando tais elementos de prova e bem ainda as regras relativas ao ónus da prova, demos tal facto como provado.»
A esta motivação pertinente e cuidada e a recorrente objecta, essencialmente, que «o furto de um veículo em pleno dia, em local movimentado e situado numa zona onde era frequente a passagem de pessoas e viaturas, é … um acontecimento deveras improvável» porquanto para o veículo ser furtado era necessário «estroncar a sua fechadura ou partir algum dos seus vidros, ou a lona da capota» e «qualquer um desses procedimentos chamaria a atenção a transeuntes que por ali passassem», risco que um ladrão não correria.
A recorrente aceita que o autor estacionou o seu veículo no local indicado, manteve-se ausente do local entre o início da manhã e o fim da tarde e quando regressou ao local o seu veículo já ali não se encontrava. O que significa que na tese da recorrente o autor encenou um furto, conluiando-se com um terceiro para que este, na sua ausência, fosse buscar o veículo ao local, permitindo depois ao autor anunciar que o veículo tinha sido furtado. Por outras palavras, a tese da recorrente implica aceitar que o veículo foi retirado do local por alguém que não o autor, ou seja, o veículo teve de ser retirado do local sem que isso fosse notado por qualquer outra pessoa. Se é assim então o factor relacionado com o período diurno e a frequência do sítio por automobilistas e transeuntes diminui drasticamente de relevo indiciário.
O aspecto das operações necessárias para subtrair o veículo do local também não tem o relevo decisivo que a recorrente lhe atribui porque todas elas pressupõem que quem retirou o veículo do local só podia fazê-lo depois de arrombar a porta do veículo, aceder ao seu interior, descarnar a coluna da direcção e fazer uma ligação directa. Ora não pode ser excluída a possibilidade de isso ter sido feito mediante o uso de uma chave falsificada.
É o próprio especialista na área que a recorrente arrolou como testemunha, GG, que refere que o veículo não tinha alarme e funcionava ainda de modo «arcaico, digamos», com um sistema de chave mecânica dotada de um chip. Nessas situações o que verdadeiramente impede o acesso ao veículo não é a burilagem da lâmina que entra no canhão, a qual não é muito diversa entre os veículos da mesma marca e modelo, mas sim o chip, o qual pode ser clonado por meios mecânicos, sem a dificuldade ou a complexidade tecnológica que as chaves dos veículos mais recentes apresentam (apesar do que também as chaves destes são muitas vezes copiadas ilegitimamente).
O aspecto de o veículo se encontrar naquele local de forma pontual por este não corresponder ao local de trabalho nem ao local de residência do autor, mas sim ao local de realização de um evento ocasional, não é igualmente determinante. O alegado furto pode ter sido uma coisa planeada, o que exigiria o seguimento do veículo no percurso que fez até ao local, mas também pode ter sido algo fortuito, não planeado, fruto do acaso de o ladrão ter localizado o veículo no local. O número de horas consecutivas (quase 8 horas seguidas) que o veículo permaneceu no local (que é próximo da marina, instalação para onde as pessoas se deslocam para realizar actividades náuticas, o que implica períodos de tempo demorados, como qualquer pessoa que vigie o local facilmente detectará) parece possibilitar a realização de actos de execução de uma chave falsa, o que não está excluído dos possíveis modos de concretização do furto.
O aspecto da diferença entre o valor que o autor suportou para adquirir e importar o veículo e o valor escolhido para capital a suportar pela seguradora em caso de furto suscita efectivamente dúvidas. Todavia, tendo sido levado aos factos provados e nesse particular sem oposição da ora recorrente que a escolha deste capital ocorreu «em circunstâncias não concretamente apuradas», não vemos que seja possível deduzir daí que essa escolha foi feita exclusivamente pelo autor e de forma deliberada para que a garantia do seguro ultrapassasse o valor venal do veículo.
Acresce que o alegado furto só teve lugar 14 meses depois da celebração do seguro (quando o valor do capital até já tinha diminuído de forma significativa fruto de uma desvalorização contratual de …13,88%) e nesse ínterim o autor chegou anunciar publicamente nas redas sociais que vendia o veículo (desconhecendo-se por que preço), o que não é propriamente consentâneo (ainda que não seja incompatível) com a existência, cerca de 7 meses antes, de uma intenção deliberada de simular um furto do veículo para receber da seguradora a indemnização do dano próprio.
Nesse contexto, não podendo deixar de haver legítimas suspeitas sobre o que realmente aconteceu ou em que circunstâncias aconteceu, mas sendo indesmentível que os furtos de veículos são em regra cometidos por criminosos especialmente hábeis e dotados de conhecimentos e meios técnicos para conseguirem apropriar-se sub-repticiamente dos veículos, entendemos que as dúvidas levantadas não são suficientes para justificar a aplicação da regra de julgamento constante dos artigos 346.º do Código Civil e 516.º do Código de Processo Civil, isto é, não alcançam a medida bastante para vincular o juiz a decidir contra a parte onerada com a prova, o autor. Por isso, apesar da margem de risco que a conclusão implica, concordamos com a decisão da 1.ª instância de julgar provado o facto do ponto 39, decisão que aqui se confirma.


IV. Fundamentação de facto:
Encontram-se julgados provados em definitivo os seguintes factos:
1) O Autor é proprietário do veículo automóvel com matrícula ..-TR-.., marca Audi 8 V, modelo ..., diesel, cor branca e com o n.º de ...866.
2) O Autor adquiriu o referido veículo na Alemanha, tendo importado o mesmo, em Outubro 2017, com 41.200 km.
3) Em consequência da aquisição do veículo referido em 1), o Autor recorreu à agência B..., Lda. para celebrar um contrato de seguro com a Ré.
4) Entre o Autor, como tomador e segurado, e a Ré, como seguradora, em 20.10.2017, foi celebrado um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice n.º ...43, mediante o qual o Autor transferiu para a Ré a responsabilidade civil obrigatória relativamente a terceiros, decorrente da circulação do veículo com a matrícula ..-TR-...
5) No âmbito desse contrato de seguro referido em 3), o Autor subscreveu ainda a cobertura de furto ou roubo do indicado veículo.
6) Consta das condições particulares da apólice que o veículo seguro é da marca Audi, modelo ..., ..., com a matrícula ..-TR-.. e que o valor do capital seguro para as coberturas de «furto ou roubo» é de €.40.000,00 e sem franquia.
7) Consta ainda das condições particulares a cobertura «Multi assistência VIP Plus» que inclui, para além do mais, «Veículo de substituição, pelo período de imobilização, em caso de: avaria (máx. 5 dias, 3 avarias/ano) … furto ou roubo (máx. 30 dias, 2 ocorrências/ano).
8) Consta das condições gerais da apólice relativas à cobertura «Furto ou Roubo» que:
«Cláusula 1.ª – Definições
Para efeito da presente Condição Especial considera-se: Furto ou Roubo: o desaparecimento, destruição ou deterioração do veículo por motivo de furto, roubo ou furto de uso (tentados ou consumados).
Cláusula 2.ª – Âmbito da cobertura
Em derrogação do disposto na alínea a) do n.º 4 da cláusula 5.ª, a presente Condição Especial garante ao Segurado o ressarcimento dos danos causados ao veículo seguro por furto ou roubo, quer estes se traduzam no desaparecimento, na destruição ou deterioração do veículo e/ou dos seus componentes, quer na subtracção de peças fixas e indispensáveis à sua utilização.
Cláusula 3.ª – Exclusões
Para além das exclusões previstas nas cláusulas 5.ª e 40.ª das Condições Gerais, não ficam garantidas ao abrigo da presente Condição Especial as seguintes situações: a) Danos que consistam em lucros cessantes, perda de benefícios ou de resultados para o Tomador do Seguro e/ou Segurado em consequência de privações de uso, gastos de substituição ou depreciação do veículo seguro; b) Furto ou roubo cometido por pessoas que coabitem ou dependam economicamente do Tomador do Seguro/Segurado, pessoas que se encontram ao seu serviço, ou por quem, em geral, aqueles sejam civilmente responsáveis; c) Danos directamente produzidos por lama ou alcatrão ou outros materiais utilizados na construção das vias; d) Danos causados em extras, tal como definido na cláusula 38.ª, incluindo o tecto de abrir, quando os mesmos não forem devidamente valorizados e identificados nas Condições Particulares; e) Danos em capotas de lona.
Cláusula 4.ª – Condições de funcionamento da cobertura
1. Ocorrendo furto ou roubo, e querendo o Segurado usar dos direitos que a presente Condição Especial lhe confere, deverá apresentar assim que possível queixa às autoridades competentes e promover as diligências ao seu alcance conducentes à descoberta do veículo e dos autores do crime.
2. Ocorrendo furto ou roubo que dê origem ao desaparecimento do veículo, o Segurador obriga-se ao pagamento da indemnização devida, decorridos que sejam sessenta (60) dias sobre a data da participação da ocorrência à autoridade competente, se ao fim desse período não tiver sido encontrado.»
9) Nas condições gerais da apólice e relativamente à cobertura de Multi Assistência VIP, consta, para além do mais, que:
«Cláusula 1.ª – Definições
… Furto ou roubo: O desaparecimento, destruição ou deterioração do veículo por motivo de furto, roubo ou furto de uso, tentados ou consumados …
Cláusula 3.ª - Garantias de assistência ao veículo seguro e seus ocupantes …
11. Viatura de substituição
11.4. Viatura de substituição por furto ou roubo
Caso o veículo seguro seja objecto de furto ou roubo, devidamente participado às autoridades competentes, o Segurador colocará à disposição da Pessoa Segura uma viatura de substituição, de categoria e cilindrada equivalentes às do veículo seguro, logo que lhe seja apresentado comprovativo documental da participação às autoridades de tal facto.
O direito a usufruir da viatura de substituição cessa na data de recuperação do veículo furtado ou roubado, salvo se:
a) O veículo seguro tiver sido recuperado com danos, mas puder circular pelos próprios meios, o Segurador assumirá a atribuição de viatura de substituição pelo Período de Reparação Efectiva, após recepção e confirmação do relatório de peritagem ou orçamento de Reparação Efectiva;
b) O veículo seguro não puder circular pelos seus próprios meios, o Segurador assumirá a atribuição da viatura de substituição desde a data da recuperação até à conclusão da Reparação Efectiva.
No caso previsto na alínea b), o prazo máximo de prestação de viatura de substituição é de cinco (5) dias seguidos contados entre a data de recuperação e o início da reparação do veículo seguro e a prestação do veículo de substituição durante o Período de Reparação Efectiva fica dependente da recepção e confirmação do orçamento de reparação pelo Serviço de Assistência.
Os dias previstos nas alíneas a) e b) anteriores cumulados com os dias de atribuição da viatura de substituição de que a Pessoa Segura beneficiou até à recuperação do veículo seguro não poderão, em caso algum, exceder o limite máximo previsto nas Condições Particulares.
Caso o Segurador proceda ao pagamento da indemnização ao abrigo da cobertura de furto ou roubo antes do termo do prazo máximo de prestação da viatura de substituição, o direito a auferir da viatura de substituição cessa automaticamente na data em que esse pagamento é feito.
As viaturas de substituição atribuídas incluirão cobertura de seguro similar à que se encontra contratada para o veículo seguro.
Esta cobertura é garantida até aos limites fixados nas Condições Particulares e é válida exclusivamente em Portugal. Não obstante, caso se verifique um sinistro em país estrangeiro, após o repatriamento do veículo seguro para Portugal, serão aplicáveis os termos da cobertura aqui definidos. …
Cláusula 4.ª – Exclusões
1. Exclusão de carácter geral
Para além das exclusões previstas nas cláusulas 5.ª e 40.ª das Condições Gerais, aplicáveis à presente Condição Especial com as devidas adaptações, não ficam garantidas por este seguro as prestações que não tenham sido solicitadas ao Segurador que não tenham sido efectuadas com o seu acordo, salvo nos casos de força maior ou de impossibilidade material demonstrada. …
4. Exclusões relativas à cobertura de veículo de Substituição
O Segurador não será igualmente responsável pelo pagamento de encargos ou prestações relacionados com:
a) Pedidos de viaturas de substituição que não surjam na sequência de um sinistro expressamente garantido pelo presente Contrato;
b) Ocorrências e suas consequências não comprovadas pelo Segurador (…)».
10) Consta ainda do artigo 43.º das Condições Gerais da Apólice do seguro que:
«1. Após a determinação do valor seguro nos termos da cláusula anterior, e salvo se outro regime de desvalorização for acordado e expresso nas Condições Particulares, o valor do veículo seguro para efeitos de determinação do montante a indemnizar em caso de perda total, será, nos meses e anuidades seguintes aos da celebração do contrato, automática e sucessivamente alterado de acordo com a tabela de desvalorização aplicável.
2. Se no mesmo contrato de seguro, conjuntamente com o veículo estiver garantido um reboque, a menos que em sentido contrário seja acordado e expresso nas Condições Particulares, as regras de desvalorização aplicáveis serão autónomas, aplicando-se em relação a cada objecto seguro as respectivas tabelas identificadas nas Condições Particulares.
3. Salvo estipulação em contrário nas Condições Particulares, o valor seguro dos extras será, nos meses e anuidades seguintes aos da celebração do contrato, automática e sucessivamente alterado de acordo com os factores de desvalorização aplicados ao veículo seguro.».
11) Nas condições particulares da apólice ficou a constar a tabela de desvalorização a que alude no artigo 43.º das condições gerais da apólice.
12) Considerando o valor inicial de €40.000,00, o capital para a cobertura de “furto ou roubo”, mercê da aplicação da tabela de desvalorização, em 08.12.2018, era de €34.446,85.
13) Consta ainda das condições gerais da apólice que:
«Cláusula 40.ª – Exclusões
1. Para além das exclusões previstas na cláusula 5.ª, o contrato também não garantirá ao abrigo das coberturas facultativas acima previstas, as seguintes situações: …
b) Danos causados intencionalmente pelo Tomador do Seguro, Segurado, pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis ou às quais tenham confiado a guarda ou utilização do veículo seguro; …
2. Salvo convenção expressa em contrário, devidamente especificada nas Condições Particulares, não ficam garantidas as indemnizações por: …
d) Lucros cessantes ou perdas de benefícios ou resultados advindos ao Tomador do Seguro ou ao Segurado em virtude de privação de uso, gastos de substituição ou depreciação do veículo seguro ou provenientes de depreciação, desgaste ou consumo naturais; (…)».
14) O prémio de seguro respectivo foi pago pelo Autor.
15) O texto das condições gerais e especiais foi fornecido ao Autor antes de este subscrever e entregar a proposta de seguro e delas ficou com uma cópia após a sua apresentação.
16) Aquando da proposta de seguro, o Autor assinou uma declaração da qual conta que «declara terem-lhe sido prestadas todas as informações relevantes para a subscrição do presente Contrato, nomeadamente as suas principais características, âmbito as garantias e exclusões e demais esclarecimentos exigíveis, nos termos previstos no artigo 18.º do DL 72/2008, de 16 de Abril, bem como ter recebido a “nota informativa” com um resumo das Condições Gerais e especiais aplicáveis ao contrato. Declara, ainda terem-lhe sido explicadas e colocadas à disposição, no acto da celebração do contrato, as Condições Gerais aplicáveis à apólice de Seguro, as quais também lhe serão entregues em qualquer data, numa loja Tranquilidade. O Cliente/Tomador de Seguro toma ainda conhecimento que, para sua maior comodidade, as mesmas se encontram ainda disponíveis, a todo o tempo, para consulta ou impressão no sítio da internet em www.....pt».
17) Depois de ter sido celebrado o contrato de seguro, a Ré remeteu ao Autor, em 20.10.2017, as condições particulares da apólice, as quais foram por este recebidas, sendo que nas condições particulares consta a seguinte menção «O presente Contrato de seguro regula-se por estas Condições Particulares e ainda pelas Condições Gerais e Especiais com o modelo 105.041 - jul 2017, que poderão ser consultadas a qualquer momento em tranquilidade.pt utilizando o número da apólice para pesquisa
18) O Autor tinha conhecimento das Condições da Cobertura de Multiassistencia VIP.
19) O Autor dispunha de computador ou outro dispositivo com acesso à internet.
20) Aquando da proposta de seguro foi feita uma simulação do prémio de seguro, tendo em conta o valor de €40.000,00.
21) Aquando da proposta de seguro, em circunstâncias não concretamente apuradas, foi acordado por Autor e Ré que para efeitos da apólice e cálculo do prémio, nas coberturas de furto ou roubo, incêndio, raio ou explosão e fenómenos da natureza o capital seguro era de €40.000,00.
22) Nessas circunstâncias, a Ré não procedeu a qualquer avaliação do veículo, nem recorreu a tabelas de valorização de automóveis como o eurotax.
23) No passado dia 08.12.2018, o Autor deslocou-se à Marina da Póvoa de Varzim, para um convívio de Natal com os demais colegas de trabalho.
24) A Avenida ... corresponde à via marginal da localidade de Vila do Conde.
25) Por volta das 10h00m, o Autor estacionou o veículo com a matrícula ..-TR-.., num local destinado ao estacionamento de viaturas situado na margem direita Avenida ..., atento o sentido Sul-Norte, da localidade de Vila do Conde.
26) De seguida o Autor dirigiu-se para o interior da Marina, onde permaneceu até cerca das 17h45m.
27) O local onde o veículo ficou estacionado era o primeiro lugar de estacionamento e situava-se em frente à Clinica ....
28) Tal clínica localizava-se num prédio com quatro andares, com janelas e varandas voltadas para o local de estacionamento.
29) Para Norte e para Sul desse prédio, existiam, de forma contínua, casas de habitação e comércio, todas com janelas voltadas para o local.
30) O local referido em 25) e 27) situava-se junto do entroncamento entre a Avenida ... e a Travessa ..., sendo que os utentes desta última artéria têm vista directa para o local referido.
31) O local referido em 25) e 27) ficava, ainda, no exacto enfiamento de uma das entradas da marina de Póvoa de Varzim.
32) No local referido em 25) e 27) existiam outras viaturas estacionadas.
33) Do lado do mar e à frente do local referido em 25) e 27) existia um espaço envidraçado, o qual era frequentado por pessoas de idade, que aí conviviam e realizavam actividades lúdicas, não só no interior desse espaço, como também sentados no murete adjacente, o qual, por sua vez, ficava voltado para o local referido em 25) e 27).
34) Quer na faixa de rodagem da Av. ..., quer nos seus passeios, processava-se, habitualmente, trânsito de pessoas e viaturas.
35) À frente do local referido em 25) e 27), do outro lado da Av. ..., existia uma pista para velocípedes, onde era normal o trânsito de veículos desse tipo, sobretudo durante os fins-de-semana.
36) A Av. ... era um local de passeio, a pé, de bicicleta ou de carro, sobretudo aos fins de semana.
37) Quem se deslocasse desde e para a marina da Póvoa de Varzim passava pelo local referido em 25) e 27).
38) Essa marina era muito frequentada por pessoas, sobretudo aos fins de semana.
39) Quando o Autor saiu do convívio, tal como referido em 26), o veículo com a matrícula ..-TR-.. não se encontrava estacionado no local referido em 25) e 27), tendo sido furtado assim com os documentos que se encontravam no interior.
40) No local referido em 25) não existiam quaisquer vestígios.
41) O referido em 23), 25) a 27) e 40) foi dito pelo Autor ao Perito da Seguradora.
42) No dia 08.12.2018, às 18.20 horas, o Autor apresentou queixa na Polícia de Segurança Pública da Povoa de Varzim, por nesse mesmo dia, entre as 10.20h e as 17.45h na Avenida ..., desconhecidos «terem subtraído a viatura … que se encontrava devidamente estacionada no local indicado …. através de método que desconhece, supondo que se terá tratado de utilização de chave falsa, uma vez que no local não eram visíveis quaisquer indícios de arrombamento, nomeadamente vidros ou plásticos partidos. Informou que é possuidor de duas chaves… disse que a viatura se encontra equipada com sistema electrónico de passagens, vulgo via verde, e não possui sistema de localização…».
43) Tal queixa deu origem ao Processo com o n.º 1110/18.3PAPVZ.
44) O Autor participou o sinistro à Ré em 10.12.2018.
45) O Autor preencheu declaração amigável de acidente automóvel.
46) O veículo com a matrícula ..-TR-.. continua desaparecido.
47) No início de Outubro de 2017, o Autor importou, ele próprio, da Alemanha, o veículo com a matrícula ..-TR-.., tendo pago €21.500,00 pela aquisição do automóvel e cerca de €4.500,00 na sua legalização, bem como suportou as despesas com as viagens entre Portugal e Alemanha, de valor não concretamente apurado.
48) O perito da Ré contactou duas funcionárias da Clinica da Marginal, a quem perguntou se tinham conhecimento do furto e pelas mesmas foi dito que a clinica estava aberta aos sábados, em horário não apurado, e que não tiveram conhecimento do alegado furto do veículo com a matrícula ..-TR-.., nem notaram qualquer movimentação estranha no decurso do dia 08.12.2018.
49) O perito deslocou-se, ainda, ao espaço de lazer destinado a idosos, mas nenhuma das pessoas aí contactadas teve conhecimento do alegado furto, ou notou alguma movimentação estranha no decurso do dia 08.12.2018.
50) Quer as funcionárias da Clinica, quer os utentes daquele espaço de lazer manifestaram a sua surpresa e incredulidade quanto à alegada ocorrência de um furto de veículo naquele local e em pleno dia.
51) Em data não apurada, mas anterior a 08.12.2018, o Autor participou à Ré um outro sinistro envolvendo o veículo com a matrícula ..-TR-.., consistente numa quebra de vidros.
52) Nessa ocasião o veículo com a matrícula ostentava danos não só no pára-brisas dianteiro, como também no «pilar A», sendo que a Ré declinou a responsabilidade pela reparação dos danos existentes no pilar A.
53) Em Maio de 2018 o Autor colocou o veículo com a matrícula ..-TR-.. à venda, através de anúncio na sua página de Facebook, negócio esse que não se concretizou.
54) No dia 08.12.20188, entre as 09h e as 18h, não foi registado qualquer outro furto na Avenida ..., em Vila do Conde.
55) Em 08.12.2018, o Autor era funcionário de um Centro de Inspecções de veículos automóveis.
56) À data, o Autor residia em ... e o seu local de trabalho era em ..., Barcelos.
57) Não era habitual o veículo com a matrícula ..-TR-.. ser estacionado no local referido em 25) e 27).
58) O veículo de marca Audi modelo ..., tem primeira matrícula de Maio de 2015.
59) Ora, aquando da celebração da apólice o Autor indicou à Ré que o TR era a versão ... do ....
60) O veículo com a matrícula ..-TR-.. tem, de fábrica, logotipo ... no exterior, friso da soleira da porta com inscrição ..., pacote ... exterior, volante multifunções desportivo em couro, suspensão desportiva e bancos desportivos dianteiros e estofos desportivos.
61) O veículo tinha duas chaves que estavam na posse do Autor e que forneceu aos Peritos da Ré.
62) Na sequência da participação do alegado furto o Autor solicitou a atribuição de um veículo de substituição, a qual lhe foi atribuída durante 30 dias.
63) Por carta de 22.02.2019, a Ré comunicou ao Autor que: «... após análise aos elementos que integram o nosso processo, nomeadamente à averiguação efectuada, concluímos que o sinistro não ocorreu nos moldes efectuados em que nos foi participado/reclamado. Em face ao exposto, declinamos qualquer responsabilidade pela via extrajudicial, pela liquidação dos danos decorrente do mesmo...»
64) Desde 08.12.2018, o Autor viu-se impedido de utilizar o seu veículo com a matrícula ..-TR-.., como o fazia diariamente, até aquele dia.
65) O Autor adquiriu a viatura com vista à sua deslocação diária para o seu emprego e afazeres pessoais, fazendo o Autor uma utilização diária do mesmo.
66) Após o período referido em 62), o Autor pediu emprestado um veículo, a familiares, para se poder deslocar com o seu agregado familiar.
67) O Autor ficou dependente de terceiros e sujeita à disponibilidade desses familiares para emprestarem um carro.
68) Esta situação causou ao Autor mau estar, preocupação e transtorno.
69) Entre 15.07.2019 e 19.10.2019 o Autor utilizou e teve sob a sua disponibilidade o automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-RQ, de marca Seat, modelo ....
70) Entre 02.08.2019 e 20.03.2021, o Autor utilizou e teve sob a sua disponibilidade o automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-FP, de marca Land Rover, modelo ....
71) Entre 22.07.2020 e 21.07.2021, o Autor utilizou e teve sob a sua disponibilidade o automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula XD-..-.., de marca Fiat, modelo ....
72) Entre 19.10.2021 e a presente data, o Autor utilizou e teve sob a sua disponibilidade o automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula ..-..-VL, de marca Mercedes- Benz, modelo ..., do qual ainda é proprietário.
73) Em 04 de Setembro de 2018, o Autor despendeu a quantia de €210 para a substituição de dois pneus.
74) Em 08.12.2018 o veículo valia cerca de €25.000.
75) Nessa data era possível adquirir em Portugal ou através de importação um veículo semelhante pelo mesmo preço.


V. Matéria de Direito:

A] Da não verificação do risco coberto pelo contrato de seguro:
A recorrente começa as alegações de direito sustentando que não se verificou o risco de furto coberto pelo contrato de seguro, pelo que não tem em relação ao autor a obrigação de pagamento do capital assinalado na apólice para a hipótese de ocorrência do furto do veículo.
Trata-se de uma questão que é essencialmente de facto e que, como tal, ficou resolvida em sede de apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, no sentido desfavorável à recorrente ao decidir-se manter na fundamentação de facto o ponto 39 que descreve precisamente o furto do veículo.
Por conseguinte, improcede sem mais a pretensão principal da recorrente.
B] Do valor a pagar pela ré pelo furto do veículo:
O autor demandou a ré com fundamento no contrato de seguro celebrado entre ambos, reclamando, em primeiro lugar, o cumprimento da obrigação a que a seguradora se vinculou perante ele na hipótese de vir a ocorrer o furto do veículo objecto desse contrato.
Assente que esse risco ocorreu, vejamos o que estabelece o contrato em relação à prestação que nessa hipótese a seguradora se vinculou a realizar em benefício do autor.
Muito embora nas condições gerais da apólice, para efeitos da cobertura do furto ou roubo, se mencione na primeira apólice o «capital seguro» de €40.000 e na segunda apólice aquele valor deduzido da desvalorização segundo a tabela de desvalorização anexa ao contrato, o contrato de seguro não estabelece que em caso de furto o segurado receberá esse exacto valor.
Lendo as cláusulas da apólice, verifica-se que nas disposições contratuais o «capital seguro» representa coisas diversas: há situações em que corresponde ao valor a suportar pela seguradora (v.g. cobertura de condutor e ocupantes em caso de morte), noutras situações corresponde apenas ao limite até ao qual a seguradora responde (v.g. cobertura da responsabilidade civil, quebra de vidros, etc.).
As condições especiais do contrato de seguro estabelecem na cláusula segunda da condição especial «furto ou roubo» que a seguradora pagará ao segurado os «danos causados ao veículo seguro por furto ou roubo, quer estes se traduzam no desaparecimento, na destruição ou deterioração do veículo e/ou dos seus componentes, quer na subtracção de peças fixas e indispensáveis à sua utilização».
Nos termos desta cláusula do contrato, em caso de furto ou roubo o segurado não tem direito ao recebimento do «capital seguro», mas sim a receber o valor necessário ao ressarcimento dos danos sofridos com o desaparecimento do veículo, que, naturalmente, corresponderá ao valor total que o veículo representava no património do autor na data do furto (o furto é o desaparecimento ou a perda total do veículo), leia-se, o respectivo valor venal apurado por referência a essa data.
Nessa medida e conforme regime contratual estabelecido para esta cobertura facultativa, o autor apenas tem o direito de exigir da ré seguradora o valor venal do veículo à data do furto, valor esse que se provou ser de €25.000 (facto 74) e que não se confunde com o valor de €34.446,85 decorrente da aplicação da tabela de desvalorização do valor do «capital seguro» assinalado nas condições particulares para esta cobertura (facto 12).
O conteúdo desta cláusula corresponde e reproduz o conteúdo do Regime jurídico do contrato de seguro aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, que na parte relativa ao seguro de danos estabelece no artigo 128.º que «a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro», e no artigo 130.º que «no seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro».
O disposto nestes preceitos não é, note-se, contrariado pelo artigo 131.º do mesmo diploma, quando estabelece no n.º 1 que «sem prejuízo do disposto no artigo 128.º e no n.º 1 do artigo anterior, podem as partes acordar no valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização, não devendo esse valor ser manifestamente infundado», e no n.º 3 que «as partes podem acordar, nomeadamente, na fixação de um valor de reconstrução ou de substituição do bem ou em não considerar a depreciação do valor do interesse seguro em função da vetustez ou do uso do bem».
O que resulta deste preceito é que por acordo entre elas as partes podem fixar antecipadamente o valor a suportar pela seguradora, desde que este não seja manifestamente infundado, ou o critério para determinar o dano que a prestação da seguradora deverá ressarcir. A lei impõe por isso que a prestação da seguradora está limitada ao dano decorrente do sinistro («sem prejuízo do artigo 128.º …»), mas as partes podem, por acordo, fixar antecipadamente o critério para a determinação do dano ou mesmo o montante do dano, desde que a escolha deste não seja manifestamente infundada.
Daqui decorre que as partes podiam ter acordado que em caso de furto ou roubo o valor a suportar pela seguradora equivalia sem mais ao «capital seguro», mas não eram obrigadas a fazê-lo, sendo certo que o estabelecimento de um «capital seguro» tem de ser interpretado à luz e com o sentido que as cláusulas do contrato lhe atribuem, não com o significado que arbitrariamente uma das partes lhe queira associar.
Daí que constando da apólice que a prestação corresponde aos «danos causados ao veículo», essa cláusula não apenas corresponde ao regime legal, sendo por isso válida, como respeita o princípio indemnizatório que em qualquer circunstância a lei manda que regule o valor da prestação da seguradora (constituindo assim um limite à vontade das partes: «… não devendo esse valor ser manifestamente infundado»).
Por isso mesmo, improcede igualmente a objecção avançada pelo autor com fundamento no regime jurídico das cláusulas contratuais gerais aprovado pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro. Com efeito, o artigo 3.º daquele regime jurídico estabelece que esse regime «não se aplica: a) a cláusulas típicas aprovadas pelo legislador».
Como refere José Manuel de Araújo Barros, in Cláusulas Contratuais Gerais, Abril 2010, Coimbra Editora, página 51-52, «Há outro tipo de cláusulas que, como é óbvio, extravasam o âmbito deste diploma. São aquelas que se limitam a transcrever textos da lei que se aplicaria a determinado contrato, caso nele nada se previsse sobre a matéria. Ou, ainda por maioria de razão, as que são cópia de preceitos legais de carácter imperativo. (…) Não houve necessidade de incluir tal evidente excepção no rol do artigo 3.º do DL n.º 446/85. Podendo, em uma interpretação lata, cair mesmo na previsão da sua alínea a). Efectivamente, não se pode conceber cláusula que mais colha a aprovação do legislador do que a própria lei
Efectivamente, uma vez que a cláusula do contrato que se refere ao valor a suportar pela ré em caso de furto ou roubo do veículo reproduz o conteúdo do artigo 128.º do regime jurídico do contrato de seguro, a comunicação e explicação do sentido dessa cláusula deve considerar-se dispensada, inútil ou inócua na medida em que a ignorância da lei não aproveita a ninguém (artigo 6.º do Código Civil) e o regime legal sobre essa matéria, correspondente ao teor da cláusula em apreço, seria aplicável ainda que o contrato fosse inteiramente lacunoso a esse respeito e nada dispusesse sobre tais consequências ou a respectiva cláusula fosse afastada do contrato por aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais.
Este desfecho não é colocado em crise pelo disposto no Decreto-lei n.º 214/97 de 16 de Agosto.
Esse diploma estabelece regras destinadas a assegurar uma maior transparência em matéria de sobresseguro nos contratos de seguro automóvel facultativo, impondo a existência de tabelas de desvalorização automática do capital seguro para combater a «manutenção do valor seguro, e correspondente reflexo no prémio devido, por falta de iniciativa do segurado no sentido da respectiva actualização, quando é certo que a indemnização a suportar pela seguradora em caso de sinistro tem em conta a desvalorização comercial entretanto sofrida pelo veículo».
O que decorre deste diploma é a obrigação da existência de um regime contratual de desvalorização automática do valor seguro dos veículos (artigo 2.º) e a cominação para a falta de cumprimento da obrigação de operar essa desvalorização e calcular o prémio por referência ao valor desvalorizado da consequência de a seguradora responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro (artigo 3.º).
Ora no caso não é disso que se trata, pois o contrato compreende uma tabela de desvalorização do veículo e não se alega que a ré tenha cobrado prémios por referência a valores que não atendam à desvalorização do bem seguro.
No caso, o que se discute é o aspecto distinto da correspondência entre o «capital seguro» e o valor venal da coisa segura, rectius, da validade de o contrato indicar um «capital seguro» que em cada momento excede o valor venal do veículo. Essa questão não é tratada no Decreto-lei n.º 214/97 de 16 de Agosto, é tratada nos artigos 128.º e seguintes do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril.
Procede assim o recurso nesta parte, devendo a ré ser condenada a pagar €25.000 em vez de €34.446,85.
C] Da indemnização por danos não patrimoniais:
O autor deduziu contra a ré ainda o pedido de pagamento «a título de danos não patrimoniais, a quantia de € 5000 (cinco mil euros) atentos prejuízos causados pela ré ao autor».
Para fundamentar esse pedido alegou o seguinte:
«27. O Autor adquiriu a viatura em causa por ser um veículo de uma gama média, de baixo consumo, com vista à sua deslocação diária para o seu emprego e afazeres pessoais, fazendo o A. uma utilização diária do mesmo.
28. Todavia, a Ré ao não assumir a responsabilidade decorrente do contrato de seguro celebrado,
designadamente, pagamento da referida indemnização, o Autor viu-se privado da utilização do veículo furtado, bem como, na impossibilidade de adquirir outro para sua substituição atento o comportamento da Ré.
29. O Autor viu-se na contingência de ter de pedir emprestado um veículo, a familiares, para se poder deslocar com o seu agregado familiar.
30. Ora, perante o cenário supra, ficou o Autor dependente de terceiros e sujeita à disponibilidade desses familiares para emprestarem um carro.
31. Toda esta situação causou ao Autor mau estar, desgosto, preocupação e transtorno, passíveis de assumir relevância para efeitos de dano não patrimonial.
32. Ademais, até aos dias de hoje o Autor não tem meios económico-financeiros suficientes para custear a compra de novo veículo.
33. Pelo exposto, a este título, para efeitos de danos não patrimoniais, o Autor requer que a Ré atento seu comportamento, ao declinar qualquer responsabilidade, seja condenada no pagamento a fixar pelo tribunal, mas que se computa no mínimo de € 5.000,00 (cinco mil euros).
34. Esta situação similarmente desgastou psicologicamente o Autor, que se viu forçado a recorrer a Advogado e aos Tribunais atento comportamento da Ré, para fazer valer os seus direitos.
Na sentença recorrida foi decidido fixar a indemnização em €2.000 porque o «autor teve danos pois ficou impedido de circular e de fazer a sua vida normal durante um período de cerca de seis meses».
A recorrente insurge-se contra esta decisão.
Afigura-se-nos que o dano da privação do uso do veículo não é invocável no caso.
Em primeiro lugar, porque, qualquer que seja o modo como se configure normativamente o nexo da causalidade adequada, não existe nexo de causalidade entre o dano da perda do uso do veículo e o eventual incumprimento do contrato de seguro. A única e exclusiva causa adequada daquele dano é, como não pode deixar de ser, o furto, e o responsável pelas respectivas consequências é o autor do furto.
Por outro lado, no contrato de seguro as partes vincularam-se reciprocamente aos deveres de prestação que resultam da apólice. A ré não se vinculou, em caso de perda do veículo, designadamente por furto, a ressarcir o segurado de qualquer dano proveniente da impossibilidade de fazer uso do veículo, vinculou-se a pagar-lhe o valor do bem furtado.
Isso significa, por exemplo, que a ré não podia cumprir a sua obrigação propondo-se disponibilizar ao autor um veículo similar ao furtado para este usar nas mesmas condições em que usava o veículo furtado, hipótese que, no entanto, teria de ser aceite, caso se entendesse, a nosso ver mal, que a seguradora cobria a possibilidade de uso do veículo e era esse o dano que estava obrigada a indemnizar.
A ré vinculou-se apenas no âmbito da garantia denominada «multi assistência» a facultar ao segurado um veículo de substituição, no caso de este ter sido furtado ou roubado, durante 30 dias, até ao máximo de duas ocorrências por anuidade. A ré cumpriu este dever de prestação de imediato, perante a participação do furto, mesmo antes de proceder às averiguações para tomar posição expressa sobre a verificação de um sinistro coberto pela apólice. Assim, não é possível imputar à ré a violação de qualquer obrigação emergente do contrato relacionada com o uso do veículo.
O que é imputável à ré é a recusa em pagar o valor indemnizatório previsto no contrato no caso de verificação do risco de furto do veículo coberto pela apólice de seguro. Essa obrigação tem a natureza de obrigação pecuniária: o objecto da prestação é a entrega de determinada quantia em dinheiro.
Sucede, todavia, que quando se trata de uma obrigação pecuniária, a mora do devedor tem um regime próprio quanto às consequências do retardamento da prestação, o qual está consagrado no artigo 806.º do Código Civil. Nesse caso, a indemnização pela mora corresponde apenas aos juros a contar do dia da constituição em mora, encontrando-se, aliás, o primeiro pedido do autor formulado em conformidade com esse regime.
O n.º 3 do artigo 806.º permite, é certo, ao credor exigir uma indemnização suplementar aos juros de mora demonstrando que a mora lhe causou dano superior aos juros, mas esta disposição só se aplica, conforme parte final do preceito, se se tratar de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o que não é o caso, porque nos encontramos no âmbito da responsabilidade emergente de um contrato.
Desse modo, o que se pode questionar é se é imputável à ré a violação culposa de outro dever emergente do contrato, mais especificamente de algum dever secundário ou acessório, e, na afirmativa, se em virtude da sua violação a ré incorre em responsabilidade perante o autor e que danos têm como causa adequada essa violação. Assinale-se, no entanto, que o percurso até à fixação de uma indemnização a favor da contraparte no contrato não prescinde de diversos pressupostos que têm de estar demonstrados: a violação dos deveres (o ilícito contratual), a culpa do devedor (ainda que presumida), os danos e o nexo de causalidade entre o acto ilícito e os danos.
O regime jurídico do contrato de seguro possui normas relativas ao sinistro e à realização da prestação do segurador decorrente desse sinistro.
O artigo 99.º estabelece que o sinistro corresponde à verificação, total ou parcial, do evento que desencadeia o accionamento da cobertura do risco prevista no contrato. O artigo 100.º estabelece que a verificação do sinistro deve ser comunicada ao segurador pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo beneficiário, no prazo fixado no contrato ou, na falta deste, nos oito dias imediatos àquele em que tenha conhecimento, devendo na participação ser explicitadas as circunstâncias da verificação do sinistro, as eventuais causas da sua ocorrência e respectivas consequências, e estando os participantes obrigados a prestar ao segurador todas as informações relevantes que este solicite relativas ao sinistro e às suas consequências. O artigo 102.º estabelece que o segurador se obriga a satisfazer a prestação contratual a quem for devida, após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências, podendo ser necessária, dependendo das circunstâncias, a prévia quantificação das consequências do sinistro. E o artigo 104.º estabelece que a obrigação do segurador se vence decorridos 30 dias sobre o apuramento dos factos a que se refere o artigo 102.º.
Daqui resulta, portanto, que aquele regime jurídico faz depender o vencimento da obrigação do segurador do apuramento da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências, mas não só não fixa prazo para esse apuramento, como não fixa qualquer critério para determinar que diligências de apuramento devem ser consideradas necessárias e suficiente.
Refira-se que essa situação não é exactamente a que ocorre no regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, no âmbito do qual existe um procedimento legal específico para a regularização dos sinistros que possui regras, prazos e cominações (cf. artigo 31.º e seguintes). Todavia, este regime não é convocável para o caso porque se aplica apenas ao seguro obrigatório e no caso estamos perante um seguro facultativo, sendo certo que nos termos do artigo 92.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, o regime dos artigos 32.º, 33.º, 35.º a 40.º, 43.º a 46.º só se aplica aos contratos de seguro automóvel que incluam coberturas facultativas relativas aos danos próprios sofridos pelos veículos seguros, se os sinistros tiverem ocorrido em virtude de choque, colisão ou capotamento, o que, de novo, não é o caso (furto ou roubo).
A circunstância de estes dois regimes jurídicos possuírem regulamentações próprias sobre a regularização do sinistro e a conjuntura de o regime jurídico do contrato de seguro ser posterior ao regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, o que faz presumir que o legislador daquele tinha conhecimento deste e das necessidades inerentes à regularização de sinistros com seguros automóveis, determina que o intérprete deva ser cauteloso na fundamentação de uma solução que importe a fixação de prazos para a regularização de sinistros e cominações para a falta de acatamento desses prazos que manifestamente o regime jurídico aplicável não define nem prevê.
O recurso ao controle dos ditames da boa fé é sempre possível, mas, perante o que acaba de se afirmar, estamos em crer que deve ser circunscrito a situações manifestas, que não suscitem dúvidas razoáveis. Só nessa situação poderemos aceitar que a violação dos deveres secundários ou acessórios de pagamento da indemnização prevista no contrato de seguro atinja a natureza de um ilícito, um resultado que representa uma ruptura injustificada dos pressupostos e dos objectivos almejados pela concreta relação contratual celebrada pelas partes. Se é certo que nenhuma parte no contrato pode na sua actuação contratual desprezar os interesses da outra parte, também é certo que ela não está obrigada a dar primazia aos interesses da outra em detrimento dos seus: o que lhe é exigível é que respeite o equilíbrio subjacente ao acordo das partes.
O regime jurídico do contrato de seguro estabelece aquilo que parece óbvio: não basta que o segurado tenha participado um sinistro para que a seguradora fique sem mais obrigada a suportar a respectiva prestação contratual. A seguradora tem o direito de fazer averiguações para apurar se o sinistro ocorreu efectivamente, em que circunstâncias ocorreu, o que o causou e que consequências desencadeou. Mas se é assim e se isto corresponde a uma prerrogativa da seguradora é inevitável o surgimento de situações de divergência, situações em que a seguradora considera que o sinistro não ocorreu, não teve a causa descrita na participação ou não gerou as consequências que a participação reclama.
Portanto, a nosso ver, o que no caso se pode discutir é se a posição da ré de, na sequência das averiguações que realizou, considerar que o sinistro participado não ocorreu ou não ocorreu nas circunstâncias da participação e recusar suportar a prestação contratual, é injustificada, parcial e tendenciosa, já que apenas nessas hipóteses, com apelo às regras da boa fé, será possível concluir que a ré cometeu um ilícito contratual por violação de deveres acessórios e secundários.
Colocando as coisas desse modo, afigura-se-nos que não é possível concluir no sentido da ilicitude do comportamento da ré.
É certo que o tribunal julgou provado o furto, mas também é certo que a situação apresenta contornos duvidosos que associam a esse julgamento algum grau de falibilidade. Referimo-nos às circunstâncias de o contrato de seguro ter sido celebrado por um capital seguro que o autor bem sabia não corresponder ao valor venal do veículo e cujo prémio de seguro não tinha interesse em pagar excepto se desse modo pretendesse receber uma indemnização superior àquele valor venal, de o furto ter sido cometido em pleno dia, num local público, visível e frequentado por muitas pessoas, de não haver qualquer vestígio do furto para além da não localização do veículo, de o furto ter ocorrido pouco mais de um ano depois da celebração do contrato e depois de o autor ter feito outra participação de sinistro com base no mesmo contrato e ter anunciado mesmo, sem sucesso, nas redes sociais a intenção de vender o veículo.
Pergunta-se: impunha-se à ré que desprezasse o valor indiciário destas circunstâncias, que apesar delas colocasse os interesses do autor à frente dos seus, que pagasse o valor da indemnização sem ter sido condenada por um tribunal a fazê-lo e prejudicando irremediavelmente a averiguação judicial do sinistro! Em consciência entendemos que não.
Entendemos que a invocação da boa fé para justificar a posição contrária não pode deixar de ser tributária de uma desconfiança em relação aos comportamentos das seguradoras que não pode ser eleito como critério da decisão judicial num caso concreto em que essa desconfiança não esteja, como aqui não está, alicerçada em factos objectivos demonstrados. Por isso, afigura-se-nos que não existe fundamento contratual para condenar a ré a pagar ao autor a reclamada indemnização por danos não patrimoniais.
Procede assim nesta parte o recurso.


VI. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, alteram a decisão recorrida, condenando a ré a pagar ao autor a quantia de €25.000 (vinte e cinco mil euros), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

Custas do recurso por ambas as partes na proporção do respectivo decaimento.
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Porto, 21 de Março de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 808)
1.º Adjunto: Ana Márcia Vieira
2.º Adjunto: Isabel Peixoto Pereira



[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]