Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05S576
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PINTO HESPANHOL
Descritores: CONDENAÇÃO EM QUANTIA A LIQUIDAR EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA
LIQUIDAÇÃO EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA
TRABALHO SUPLEMENTAR
CASO JULGADO
Nº do Documento: SJ200602150005764
Data do Acordão: 02/15/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 1918/04
Data: 10/11/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. O facto do autor, na acção declarativa, pedir a condenação do réu em determinado montante líquido e não ter logrado provar o exacto montante do invocado crédito, não obsta à condenação do réu em quantia a liquidar em execução de sentença;
2. Resultando da matéria de facto que o autor prestou muitas horas de trabalho para além do período normal de trabalho a que estava obrigado, que tais horas de trabalho foram previamente ordenadas pela ré, que tem mais de 10 trabalhadores ao seu serviço e não concedeu ao autor qualquer descanso compensatório, nada obsta a que se profira uma condenação ilíquida, remetendo-se essa quantificação para execução de sentença, nos termos do n.º 2 do artigo 661.º do Código de Processo Civil;
3. Ao declarar-se a existência de um crédito fundado na prestação de trabalho suplementar, num condicionalismo que exigia o pagamento de um acréscimo remuneratório, condenando-se no pagamento da quantia que vier a ser liquidada em execução de sentença, não se cria, com a respectiva decisão final, caso julgado impeditivo de posterior pronúncia judicial quanto à exacta quantidade do já demonstrado crédito.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I
1. Em 4 de Setembro de 2002, no Tribunal do Trabalho de Matosinhos, A intentou acção, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho contra B, S. A., pedindo que ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de 109.756,30 euros, a título de trabalho suplementar prestado e não pago, descansos compensatórios, descansos não gozados por trabalho prestado no dia de descanso semanal complementar, acréscimo de trabalho nos feriados, acréscimo de trabalho nocturno, diferenças no subsídio de agente único e diferenças nas férias e nos subsídios de férias e de Natal, a que tudo acrescem juros legais a partir da data do vencimento das obrigações e até integral pagamento.

Alega, em síntese, que foi admitido ao serviço da ré, em 1 de Julho de 1995, e que esta não lhe pagou as quantias cujos montantes e proveniências discrimina.

Contestou a ré pedindo a improcedência da acção.

Realizado julgamento, proferiu-se sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré a pagar ao autor a quantia de 2.385,89 euros, a título de diferenças na retribuição de férias e de subsídios de férias e de Natal, e relativas ao subsídio de agente único nos anos de 1996 a 2002, acrescida de juros de mora à taxa legal desde o respectivo vencimento, absolvendo a ré dos demais pedidos.

2. Inconformado, o autor interpôs recurso de apelação, tendo a Relação decidido conceder parcial provimento ao recurso e revogar a sentença recorrida na medida em que não condenou a recorrida a pagar ao recorrente o trabalho prestado fora do horário de trabalho, «no que vai condenada agora, cujo montante se liquidará em execução de sentença».

É contra esta decisão que a ré agora se insurge, mediante recurso de revista, em que pede a revogação do acórdão recorrido e a repristinação da sentença da 1.ª instância, ao abrigo das seguintes conclusões:

- O autor não logrou provar qual o trabalho prestado para além do período normal e que não foi pago, não tendo provado, concretamente, o número de horas de trabalho diárias, nem a sua continuidade;
- O ónus da prova compete àquele que invoca um direito, cabendo-lhe fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado (n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil), sendo que o autor não logrou fazer prova dos factos constitutivos do seu direito na parte que não mereceu provimento;
- Remeter-se para o que vier a ser liquidado em execução de sentença, seria uma duplicação/repetição da prova, que redundaria em violação do caso julgado, não se justificando aqui a aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 661.º do Código de Processo Civil;
- As provas foram analisadas criticamente e especificados os fundamentos decisivos para a convicção do julgador;
- A ausência de elementos para fixação do montante ou quantidade apenas pode ser imputável ao autor;
- O acórdão recorrido violou, entre outras disposições, os artigos 342.º, n.º 1, do Código Civil, 497.º e 661.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

Em contra-alegações, o recorrido veio defender a confirmação do julgado.

Neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta pronunciou-se no sentido de ser negada a revista, parecer que, notificado às partes, suscitou resposta da ré/recorrente para discordar daquela posição.

3. Corridos os vistos, o processo foi, entretanto, redistribuído, por jubilação do então relator.

No caso vertente, a única questão suscitada prende-se com o âmbito de aplicação do n.º 2 do artigo 661.º do Código de Processo Civil, enquanto permite ao tribunal condenar no que vier a ser liquidado em execução de sentença.

Tudo visto, cumpre decidir.
II
1. As instâncias deram como provada a seguinte matéria de facto:

1) O autor foi admitido pela ré em 1-7-95 para lhe prestar serviço sob a sua autoridade e direcção, com a categoria e funções de motorista de pesados de passageiros;
2) A ré dedica-se ao transporte de passageiros e explora com intuito lucrativo o negócio conhecido como «Transportes (Viagens) B»;
3) O autor é sindicalizado e a ré é sócia da C - Associação Nacional de Transportadores Rodoviários de Pesados de Passageiros;
4) O autor prestou serviço de carreira logo a partir da data da admissão;
5) Nesse serviço prestou muitas horas de trabalho para além do período normal de trabalho a que estava obrigado;
6) Tais horas de trabalho foram previamente ordenadas pela ré, em seu benefício e do seu negócio;
7) As ordens eram dadas através da organização dos horários e escalas de serviço;
8) A ré tem mais de 10 trabalhadores ao seu serviço;
9) A ré não concedeu ao autor qualquer descanso compensatório;
10) O autor trabalhava como agente único;
11) O autor auferiu de retribuição mensal uma remuneração de base, diuturnidades e subsídio de agente único (além de um subsídio de alimentação e abonos para falhas) nos seguintes montantes:
- De Janeiro a Abril de 1997: 90.200$00 + 22.500$00;
- De Maio a Dezembro de 1997: 92.000$00 + 22.500$00;
- De Janeiro a Junho de 1998: 94.500$00 + 22.500$00;
- De Julho a Dezembro de 1998: 94.500$00 + 2.670$00 + 22.500$00;
- De Janeiro a Março de 1999: 97.500$00 + 2.670$00 + 22.500$00;
- De Abril a Dezembro de 1999: 97.500$00 + 2.670$00+ 24.300$00;
- De Janeiro a Março de 2000: 99.950$00 + 2.670$00 + 25.000$00;
- De Abril de 2000 a Março de 2001: 100.000$00 + 2.670$00 + 25.000$00;
- De Abril a Maio de 2001: 102.500$00 + 25.000$00;
- De Junho a Dezembro de 2001: 103.000$00 + 5.400$00 + 25.000$00;
- De Janeiro de 2002 em diante: € 529,17 + € 132 + € 26,94;
12) O autor venceu a 1.ª diuturnidade em 1-7-98, e a ré assim lha pagou pelo valor de 2.670$00, e venceu a 2.ª diuturnidade em 1-7-01, e assim a ré lha começou a processar pelo valor único das duas, de 5.400$00, a partir do mês de Junho de 2001;
13) A ré apenas pagou nos subsídios de férias e de Natal a retribuição mensal e as diuturnidades que estava a processar e já não o subsídio de agente único.

Os factos materiais fixados pelo tribunal recorrido não foram objecto de impugnação pelas partes, nem se vislumbra que ocorra qualquer das situações que permitam ao Supremo alterá-los ou promover a sua ampliação (artigos 722.º, n.º 2, e 729.º, n.º 3, ambos do Código de Processo Civil), por conseguinte, será com base nesses factos que há-de ser resolvida a questão suscitada no presente recurso.
2. A recorrente defende que o autor não logrou provar qual o trabalho prestado para além do período normal e que não foi pago, pelo que, remeter-se para o que vier a ser liquidado em execução de sentença, seria uma repetição da prova, que redundaria em violação do caso julgado, não se justificando aqui a aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 661.º do Código de Processo Civil.

O tribunal de primeira instância considerou que «o autor não logrou fazer prova do número de horas de trabalho para além do período normal diário de trabalho, bem como o número de horas de trabalho "nocturno" ou os feriados em que trabalhou, sendo que sobre o autor recaía o respectivo ónus. Deverão pois improceder todos os pedidos de pagamento, à excepção das diferenças da retribuição de férias e dos subsídios de férias e de Natal na parte relativa ao subsídio de agente único.»

Por sua vez, a Relação entendeu que «está provado que o recorrente [autor] prestou à recorrida [ré] muitas horas de trabalho para além do período semanal de trabalho, que tais horas foram previamente ordenadas pela recorrida e não está provado que esta lhe pagou esse trabalho, sendo que sobre ela impendia o ónus daquela prova - artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil. É evidente que facto do recorrente não ter provado o número de horas que trabalhou, e que indicou na petição inicial, não é impeditivo do seu ressarcimento atento o preceituado no artigo 661.º, n.º 2 [por manifesto lapso, escreveu-se n.º 1], do Código de Processo Civil. A não ser assim, teríamos a recorrida a enriquecer à conta do trabalho prestado pelo recorrente, sem causa justificativa - artigo 473.º, n.º 1, do Código Civil. Tem assim o recorrente [autor] direito a receber da recorrida [ré] os montantes referentes ao trabalho prestado nos termos já referidos e a liquidar em execução de sentença.»

Tendo em conta os anteditos factos dados como provados e o preceituado nos artigos 2.º, 3.º, 7.º e 9.º do Decreto-Lei n.º 421/83, de 2 de Dezembro (Regime Jurídico do Trabalho Suplementar), impõe-se concluir que o autor fez prova de que prestou trabalho suplementar, trabalho esse prévia e expressamente determinado pela entidade empregadora, em benefício desta e da sua actividade empresarial, e, ainda, que não gozou qualquer dia a título de descanso compensatório.

Aparentemente, a inexistência de elementos absolutamente fidedignos quanto ao número de horas prestado em regime de trabalho suplementar, não parece ser suficiente para negar procedência à pretensão deduzida em juízo pelo autor.

3. A questão prende-se essencialmente com o âmbito de aplicação do n.º 2 do artigo 661.º do Código de Processo Civil, norma que, procurando definir os limites da condenação, dispõe que «[s]e não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que se liquidar em execução de sentença, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida».

A delimitação do âmbito da possibilidade de condenação no que vier a ser liquidado em execução de sentença não tem sido ajuizada de modo uniforme pela jurisprudência, designadamente deste Supremo Tribunal.

Assim, segundo uma das perspectivas, o n.º 2 do artigo 661.º do Código de Processo Civil só permite remeter para liquidação em execução de sentença, quando não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, mas entendida esta falta de elementos, não como fracasso da prova na acção declarativa sobre esse objecto ou quantidade, mas antes como consequência de ainda não se conhecerem com exactidão todas as consequências do facto no momento da propositura da acção declarativa.

Nesta perspectiva, a carência de elementos não se refere à inexistência de prova dos factos já produzidos e que foram submetidos a prova, mas sim à inexistência de factos provados, na medida em que estes factos não eram ainda conhecidos ou estavam em evolução no momento da propositura da acção ou no momento da decisão quanto à matéria de facto (cf., neste sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Janeiro de 1995, disponível em www.dgsi.pt, n.º convencional JSTJ00026462, de 13 de Janeiro de 2000, Revista n.º 44/99 da 2.ª Secção, de 24 de Fevereiro de 2000, Revista n.º 27/2000 da 2.ª Secção, de 6 de Julho de 2005, Revista n.º 1169/2005 da 4.ª Secção).

Porém, como se refere no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 2 de Fevereiro de 2006, proferido no Processo n.º 3225/05 (Revista), da 4.ª secção, «[e]sta é uma interpretação restritiva, que reconduz o âmbito de aplicação do preceito aos casos em que o autor tenha deduzido um pedido genérico, nos termos previstos no artigo 471º do CPC, ou tenha formulado um pedido específico, mas não tenha sido possível, no momento da decisão, fixar o objecto ou a quantidade da condenação por se desconhecerem todas ou algumas das consequências do facto ilícito, por estas ainda se não terem produzido ou por se não terem produzido todos os factos influentes na determinação do quantitativo de uma dívida».

E prossegue o mesmo acórdão, «[a] questão não é, no entanto, pacífica e ainda no recente acórdão de 28 de Setembro de 2005 (Processo n.º 578/05), tendo embora presente a referida argumentação, acabou por concluir-se que a condenação em liquidação de sentença poderá ocorrer mesmo quando o autor, tendo formulado um pedido líquido, não tenha logrado provar, no processo declarativo, o exacto montante do que lhe é devido (no mesmo sentido, também o acórdão de 7 de Dezembro de 2005, Processo n.º 2850/05)».

Efectivamente, na sua actual composição, a Secção Social deste Supremo Tribunal tem considerado, em termos uniformes, que o facto do autor, na acção declarativa, pedir a condenação do réu em determinado montante líquido e não ter logrado provar o exacto montante do invocado crédito, não obsta à condenação do réu em quantia a liquidar em execução de sentença (neste sentido, os mencionados Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de Setembro de 2005, de 7 de Dezembro de 2005 e de 2 de Fevereiro de 2006, todos da 4.ª Secção).
No caso vertente, ficou provado que «[o] autor prestou serviço de carreira logo a partir da data da admissão», «[n]esse serviço prestou muitas horas de trabalho para além do período normal de trabalho a que estava obrigado», «[t]ais horas de trabalho foram previamente ordenadas pela ré, em seu benefício e do seu negócio» e «[a]s ordens eram dadas através da organização dos horários e escalas de serviço», sendo que, «[a] ré tem mais de 10 trabalhadores ao seu serviço» e «não concedeu ao autor qualquer descanso compensatório».

Neste contexto, o autor logrou provar que prestou trabalho suplementar, trabalho esse prévia e expressamente determinado pela entidade empregadora, e, ainda, que não gozou qualquer dia a título de descanso compensatório.

Apenas não foi possível determinar com rigor qual o número de horas de trabalho que efectivamente cumpriu para além do horário normal e quais os dias concretos que não gozou descanso compensatório.

Conforme se ponderou no citado Acórdão deste Supremo Tribunal, de 2 de Fevereiro de 2006, «[n]ão parece curial, em todo o caso, que, tendo o autor provado a existência de uma situação de violação do direito à retribuição, por ter prestado trabalho num condicionalismo que justificava o pagamento de um acréscimo remuneratório, apesar disso, a acção devesse ser julgada improcedente apenas porque se não provou o exacto montante que se encontra, a esse título, em dívida.

«É certo que numa interpretação lata do artigo 661.º, n.º 2, como preconiza o citado acórdão de 28 de Setembro de 2005, acaba por se conceder uma nova oportunidade de prova ao demandante. No entanto, nas circunstâncias do caso, essa segunda oportunidade de prova não incide sobre a existência da situação de violação do direito laboral que constitui o fundamento do pedido, mas apenas sobre a quantidade da condenação a proferir.»

Concretamente, no que respeita a uma pretensa e alegada violação do caso julgado, mormente do disposto no artigo 497.º do Código de Processo Civil, não se vislumbra que o entendimento sufragado possa gerar uma tal ofensa.

Na verdade, o fenómeno jurídico-processual do caso julgado, conforme decorre do estipulado nos artigos 497.º, 498.º, 671.º, 673.º e 675.º do Código de Processo Civil, pressupõe a existência de uma decisão que resolveu uma questão que se entronca na relação material controvertida ou que versa sobre a relação processual, e visa evitar que essa mesma questão venha a ser validamente definida, mais tarde, em termos diferentes, pelo mesmo ou por outro tribunal.

Ora, os limites objectivos do caso julgado são traçados pelos elementos identificadores da relação ou situação jurídica substancial definida no correspondente conteúdo da decisão judicial em causa.

Por outro lado, há que distinguir entre a demonstração do direito invocado e a prova do respectivo objecto ou quantidade.

No caso em apreciação, ao declarar-se a existência de um crédito fundado na prestação de trabalho suplementar, num condicionalismo que exigia o pagamento de um acréscimo remuneratório, condenando-se no pagamento da quantia que venha a ser liquidada em execução de sentença, não se cria, com a respectiva decisão final, caso julgado impeditivo de posterior pronúncia judicial quanto à exacta quantidade do já demonstrado crédito.

Nada parece obstar, nestes termos, que em face da insuficiência de elementos para determinar o montante em dívida se profira uma condenação ilíquida, com a consequente remissão do apuramento quantitativo da atinente responsabilidade para execução de sentença.

Assim, improcedem todas as conclusões da alegação do recurso de revista.
III
Pelos fundamentos expostos, decide-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 15 de Fevereiro de 2006
Pinto Hespanhol
Fernandes Cadilha
Mário Pereira