Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
460/11.4TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: GRANJA DA FONSECA
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
GRAVAÇÃO DA PROVA
PODERES DA RELAÇÃO
IMPUGNAÇÃO
FACTOS CONCLUSIVOS
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 05/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ANULADA A DECISÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, página 688.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC) / 2013: - ARTIGOS 615.º, N.º 1, ALÍNEA B), 640.º, 662º, 674º, N.ºS 1, AL. B), 2, 682.º, N.º2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 10/01/2012, REVISTA N.º 197/04.OTCGMR.S1 – 6ª SECÇÃO.
-DE 22/05/2012, REVISTA N.º 5504/09.7TVLSB.L1.S1 – 1ª SECÇÃO
-DE 4/12/2014, REVISTA N.º 282/03.6TBVRM.G1.S1 – 7ª SECÇÃO
-DE 5/02/2015, REVISTA N.º 2659/14.2TBMTS-B.P1.S1. – 2ª SECÇÃO
-DE 19/02/2015, REVISTA N.º 299/05.6TBMGD.P2.S1 – 2ª SECÇÃO
Sumário :
I - Aquilo que a lei considera causa de nulidade da sentença é a falta absoluta de motivação, e já não a motivação deficiente, medíocre ou errada, a qual afecta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser alterada ou revogada.

II - Não obstante o art. 682.º, n.º 2, do NCPC (2013), não permitir que o STJ altere a matéria de facto fixada pela Relação (salvo em caso de ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova ou fixe a força de determinado meio de prova), nada impede que, com fundamento no art. 674.º, n.º 1, al. b), do NCPC, aquele tribunal aprecie se o tribunal recorrido violou as condições formais exigidas pelo art. 640.º do referido diploma e cujo incumprimento determina a rejeição do recurso.

III - Não cumpre o ónus de impugnação, referido no art. 640.º do NCPC, o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem uma única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz.

IV - A inserção, na matéria de facto, de conceitos que podem ser tidos como de direito é irrelevante – e não determina que se tenham os mesmos por não escritos – se os mesmos forem factualizados e usualmente utilizados na linguagem comum, possuindo um sentido apreensível.

V - Não é de considerar não escrita (como entendeu a Relação) a resposta a um quesito em que se afirma que «a sociedade D e, depois dela, a ré ignoravam que ao passar a ocupar o prédio lesavam o direito de outrem», posto que o seu objecto constitui um facto e um facto sujeito a prova.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I.

1.

“Laboratórios AA, Lda” intentou contra “BB - PRODUTOS FARMACEUTICOS, SA” a presente acção declarativa com processo comum e forma ordinária, pedindo:

a) – O reconhecimento e a declaração de que a Autora é legítima proprietária do prédio urbano sito na Rua … n.os …, em Alvalade, Lisboa, descrito na CRP de Lisboa sob o n.º …, da freguesia do Campo Grande, (com a anterior descrição em livro n.º …), condenando-se a Ré a reconhecer tal direito;

b) – A condenação da Ré a devolver tal prédio à Autora, livre e devoluto de pessoas e bens;

c) – A condenação da Ré a pagar à Autora uma indemnização, a liquidar no decurso do processo ou em incidente subsequente à sentença pelos prejuízos decorrentes da ilegítima ocupação e recusa na entrega desse prédio, e até que a mesma ocorra, e que terão por base, no mínimo, o valor locativo de mercado, correspondente ao possível arrendamento do mesmo;

d) – A condenação da Ré no pagamento da sanção pecuniária compulsória de € 1.500 por dia, a partir da data do trânsito em julgado da sentença e até ao seu efectivo cumprimento.


Fundamentando a sua pretensão, alegou, em síntese, ser proprietária do prédio mencionado, encontrando-se inscrita no registo a aquisição a seu favor, sendo que a Ré o ocupa, sem qualquer título, recusando-se a entregá-lo à Autora.


A Ré contestou, pronunciando-se pela improcedência da acção e, deduzindo reconvenção contra a Autora, pediu o reconhecimento e a declaração de ser ela a legítima possuidora e proprietária do prédio em causa, condenando-se a Autora a reconhecer esse direito.

Alega, para o efeito, que, desde 8/04/1988, está na posse do referido prédio, a qual se manteve ininterruptamente até à presente data, de forma pública, pacífica e de boa – fé, nunca tendo tal posse sido contestada até Janeiro de 2011, pelo que adquiriu a propriedade do referido prédio por usucapião.


As partes ainda replicaram e treplicaram, mantendo, contudo, as suas posições já defendidas nos seus anteriores articulados.


Oportunamente foi proferida sentença (fls. 1017 a 1033), tendo sido decidido:

a) - Julgar a acção totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolver a Ré de todos os pedidos contra si formulados;

b) - Julgar a reconvenção procedente, por provada, e, em consequência, reconhecer e condenar a Autora a reconhecer que a Ré é titular do direito de propriedade sobre o prédio urbano descrito na CRP de Lisboa sob o n.º … (anterior descrição n.º …, do Livro n.º 67), sito na Rua …, n.os …, em Alvalade, freguesia do Campo Grande, Lisboa, inscrito na matriz predial da freguesia de S. João de Brito sob o artigo …, por o ter adquirido por usucapião;

c) - Ordenar o cancelamento do registo de aquisição a favor da Autora que impende sobre o mesmo prédio.


Inconformada com a decisão, a Autora recorreu, pedindo a sua revogação e substituição por outra em que se dê como improcedente o pedido reconvencional e procedentes os pedidos da acção, com o fundamento de que, tendo a Autora registado a seu favor a propriedade do prédio, se presume ser titular desse direito.

Por acórdão de 11/11/2014, o Tribunal da Relação, na procedência da apelação e improcedência da reconvenção, decidiu:

1º - Revogar totalmente a sentença recorrida e, em sua substituição:

a) – Declarou que a Autora é a legítima proprietária do prédio urbano, sito na Rua …, n.os …, em Alvalade, Lisboa, descrito na CRP de Lisboa sob o n.º …, da freguesia do Campo Grande (com a anterior descrição em livro n.º …), condenando a Ré a reconhecer tal direito e a devolver esse prédio à Autora, livre e devoluto de pessoas e bens;

b) – Condenou, ainda, a Ré a pagar à Autora:

i - Uma indemnização, a liquidar em incidente a tramitar no processo de execução de sentença, pelos prejuízos decorrentes da ilegítima ocupação e recusa na entrega desse prédio, e até que a mesma ocorra;

ii - Uma sanção pecuniária compulsória de € 500,00 por dia, a partir da data do trânsito em julgado desta decisão e até ao seu efectivo cumprimento;

2º – Absolveu a Autora do pedido reconvencional que a Ré contra ela havia deduzido.


Não se conformando com esta decisão, recorreu de revista a BB, finalizando as alegações com as seguintes conclusões:

1ª – O Tribunal da Relação considerou improcedente a argumentação expendida pela ora Recorrente no que se refere à inexistência de reapreciação da prova gravada, o que viola frontalmente o disposto no artigo 640º do CPC.

2ª - O artigo 640º, n.º2 é peremptório ao prever que, “quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se fundou o recurso".

3ª - A ora Recorrida não mencionou expressamente no seu Recurso a sua intenção de reapreciação da prova gravada, sendo isso apenas deduzido pela ora Recorrente, atento o prazo de interposição do Recurso, aproveitado por aquela.

4ª – A ora Recorrida não mencionou igualmente em qualquer parte do seu Recurso qualquer passagem da gravação do depoimento das testemunhas e em que medida esses eventuais depoimentos impõem que os artigos 2º e 5º da Base Instrutória sejam considerados" não provados".

5ª - A ora Recorrida procedeu unicamente a uma referência genérica e ampla a depoimentos, a qual é necessariamente imprecisa em face da duração considerável dos mesmos.

6ª - A invocação de uma alegada contrariedade dos artigos da Base Instrutória não constitui, igualmente, objeto de uma reapreciação da prova gravada.

7ª - Como tal, a ora Recorrida não logrou cumprir no seu Recurso de Apelação os requisitos formais exigidos por lei, mais precisamente a indicação com precisão, nem tão-pouco de uma forma aproximada, das passagens da gravação em que funda o seu Recurso, o que impõe a sua imediata rejeição.

8ª - O Tribunal da Relação substituiu-se indevidamente à ora Recorrida, na medida em que, tendo aquela omitido um ónus de alegação, aquele Tribunal invocou em seu auxílio que os depoimentos não foram discriminados pois deveriam ser analisados na sua globalidade.

9ª - Resulta claro do exposto que o Tribunal da Relação retirou uma conclusão sem que isso tivesse sido oportunamente alegado pela então Recorrente, como lhe cabia em face do ónus de especificação decorrente do 640º do CPC.

10ª - Por outro lado, e mesmo que se considere ser ainda assim possível a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, tendo por referência a prova documental, sempre se dirá que a mera remissão para documentos já juntos aos autos, sem que haja uma verdadeira análise crítica dos mesmos, afasta-se igualmente dos requisitos do artigo 640º do CPC, devendo o Recurso ser rejeitado.

11ª - O presente Recurso é extemporâneo, pois foi interposto no dia 14/10/2013, mais precisamente no segundo dia útil subsequente ao termo do prazo (42º dia), como o recurso tivesse por objecto a reapreciação da prova gravada.

12ª - A ora Recorrida fez um uso abusivo do prazo mais dilatado de 40 dias para interpor o Recurso, especialmente previsto para os casos de reapreciação da prova gravada, o que pressupõe que lançasse real e efetivamente mão desse mecanismo, o que não se verificou.

13ª - Não colhe o entendimento do Tribunal da Relação expendido no acórdão recorrido quando considera que basta a "simples invocação de que se pretende impugnar a matéria de facto declarada provada", pois tal entendimento conduziria a uma subversão da “ratio legis” do artigo 640º do CPC, para além de incentivar uma subversão do normal prazo de interposição de um Recurso, os normais 30 dias, como mera estratégia processual.

14ª - Uma vez que o decurso de um prazo peremptório extingue o direito de praticar o ato, o presente Recurso devia ter sido imediatamente rejeitado, por extemporâneo, pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

15ª - Mesmo que assim não se entendesse, sempre deveria ter sido mantida a decisão da primeira instância e dar como provados os artigos 2º e 5º da BI.

16ª - A ora Recorrida (então Recorrente) veio alegar que fossem considerados como não provados os artigos 2º e 5º da BI, face aos documentos de fls. 366 a 374 e de fls. 745 a 916 e ao constante do artigo 6º da BI, tendo o Tribunal da Relação decidido favoravelmente à argumentação da então Recorrente (ora Recorrida).

17ª - Tendo havido excesso de pronúncia pelo Tribunal da Relação de Lisboa no Acórdão Recorrido.

18ª - Pois, quanto ao artigo 5º da BI, enquanto tinha sido pedido que o mesmo fosse considerado como Não Provado, o Tribunal da Relação declarou o mesmo como «não escrito», por considerar que a ignorância ou desconhecimento não é um facto, pronunciando-se em sentido diverso do alegado pelo então Recorrente (ora Recorrida).

19ª - De igual modo, a ignorância (desconhecimento) é em si um facto, e um facto sujeito a prova, tendo a ora Recorrente provado em 1ª instância o mesmo com base em prova testemunhal e documental.

20ª - Não se podendo ignorar que dos autos consta, conforme os pontos 9º e 11º da BI que foi registada definitivamente (no Registo Predial) a aquisição da propriedade pela Recorrente (através da sua antecessora CC).

21ª - Pois, nos termos do artigo 79º do Código do Registo Predial /I O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define", pelo que havendo presunção legal de propriedade, obviamente se ignorava estar a lesar alguém.

22ª - Recordando-se também a presunção estabelecida no artigo 1268º do Código Civil.

23ª - Pelo que deverá ser considerada nula a decisão do Tribunal da Relação ora recorrida quando considera como não escrito o artigo 5º da BI, por violação dos artigos 615º, nº 1, alínea b) e 662º nº 1 do CPC.

24ª - É igualmente nula a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa por violação do disposto nos artigos 635º, n.os 2, 4 e 5 em conjugação com os artigos 639º e 640º do CPC, porquanto o acórdão decide para além do especificado pela então Recorrente (ora Recorrida) nas suas alegações de recurso.

25ª - Deverá também ser julgado nulo o acórdão recorrido, nos termos do artigo 635º em conjugação com o artigo 640º do CPC, na parte em que considera como «não provado» o artigo 2º da BI.

26ª - Pois baseou o acórdão recorrido nos artigos X, V e Z da BI, os quais nunca foram alegados pela então Recorrente (agora Recorrida).

27ª - Em qualquer caso, os artigos X, V e Z dos Factos Assentos não implicavam que fosse respondido, como «não provado», o artigo 2º da BI.

28ª - O que resulta claro da Acta da Audiência de Discussão e Julgamento, que refere que os números 2º e 3º da BI foram dados como «provados» porquanto "teve-se em conta os depoimentos das testemunhas DD e EE, que afirmaram que aquando da elaboração do auto de apreensão a que alude a alínea Z) não foi solicitada a entrega ou a restituição do imóvel" (aproveitando-se para recordar que as referidas testemunhas eram o liquidatário judicial no processo de falência da Recorrida e a sua secretária).

29ª - Tendo o Tribunal da Relação ignorado que nem a ora Recorrente nem a sua antecessora CC eram parte do referido processo de falência, não podendo os actos no âmbito do mesmo ser-lhes oponíveis.

30ª - A Recorrente beneficia igualmente da presunção estabelecida no artigo 1257º, n.os 1 e 2 do Código Civil, que estabelece que a posse se mantém enquanto durar a actuação correspondente ao seu exercício e que se presume que a mesma continuou em nome de quem a começou, e face à presunção do artigo 1268º que estabelece a presunção do direito em benefício do possuidor, excepto se houver, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.

31ª - Pelo que, cabia à ora Recorrida a obrigação de provar para além de qualquer dúvida razoável que a posse foi contestada, o que não fez, tendo pelo contrário a ora Recorrente feito prova plena da não contestação, devendo por isso ser dado como provado o artigo 2º da BI, tal como decidido em 1ª instância.

32ª - Resulta provado que a ora Recorrente tem a posse continuada, sem quaisquer interrupções, de boa-fé, pública e pacífica do imóvel objecto dos presentes autos desde 08/04/1988,data em que foi lavrado o termo de entrega do mencionado imóvel.

33ª – Sendo que a mesma é igualmente titulada desde 05/07/1988, data em que foi lavrado o registo do imóvel, presumindo-se assim a boa-fé da ora Recorrente atento o referido título possessório.

34ª - O imóvel objecto da acção é a sede social da ora Recorrente desde 1992 até ao dia de hoje, estando devidamente registado como tal, colocando-se assim ênfase no facto de esta se tratar de uma posse pública, na medida em que era do conhecimento geral o domínio daquele imóvel.

35ª - Esta posse é igualmente pacífica pois não poderia ser constituída com violência, pois não se constituiu mediante coacção física ou moral, nem tão-pouco a Recorrida logrou demonstrar o contrário.

36ª - Sublinhe-se que as vicissitudes processuais decorrentes dos autos de falência da ora Recorrida não prejudicam a continuidade da posse titulada, de boa-fé, pública e pacífica da Recorrente, uma vez que a posse é independente da validade do negócio que lhe subjaz.

37ª - Não colhe assim o entendimento do Acórdão Recorrido que inculca que as vicissitudes resultantes dos autos de falência interrompem a posse, pois os requisitos da posse nunca deixaram de se verificar.

38ª - Ora, não restam dúvidas que a ora Recorrente tem o domínio do imóvel (corpus), assim como tem a intenção de exercer esse direito como titular do mesmo (animus).

39ª - Atenta a existência de uma posse titulada e de boa-fé, e decorrido o lapso temporal relevante para a aquisição do imóvel por usucapião, 10 anos, conclui-se que a Recorrente é a legítima proprietária do mesmo.

40ª - Em face do exposto, não são igualmente oponíveis os actos processuais resultantes dos autos de falência da ora Recorrida, que neles não é parte, nem os mesmos notificados à ora Recorrente.

41ª - Pelo ora recorrido Acórdão violou-se o principio constitucionalmente consagrado do direito à defesa, não tendo sido dada oportunidade à ora Recorrente para se pronunciar relativamente a actos que lhe pudessem interessar.

42ª - E as conclusões supra sempre se manteriam mesmo que fossem dados como não provado o nº 2 da Base Instrutória e não escrito o nº 5 da Base Instrutória.

43ª - Pois, conforme resulta dos n.os 9º e 11º da BI a posse começou por ser titulada, logo de boa-fé e pacífica.

44ª - Sendo que estas características são aferidas no momento da aquisição da posse, não sendo alteradas.

45ª - Pelo que está indevidamente fundamentado o acórdão recorrido, pois, apesar de muito bem reconhecer que "é indesmentível que a posse mantida pelas entidades cuja situação é actualmente detida pela Ré começou por ser titulada, pacífica e de boa - fé", conclui depois pela perda das referidas característica, considerando que passou a ser não titulada, não pacífica e de má - fé a partir de 10/12/1992 (ou 09/07/1993).

46ª - Até porque o referido despacho (tal como o auto de arrolamento) nunca poderia lograr produzir efeitos relativamente à Recorrente ou à sua antecessora CC, (nomeadamente efeitos interruptivos da posse), porquanto nem a Recorrente nem a sua antecessora CC eram parte no referido processo de falência da Recorrida, nunca tendo sido notificadas de qualquer decisão nos mesmos (excepto a decisão de não habilitação da Recorrente como parte).

47ª - Pelo que qualquer decisão em sentido diverso violaria o disposto nos artigos 219º, e ainda dos artigos 619º, 620º e 621º do CPC.

48ª - Recordando-se a respeito do ponto anterior o parágrafo AA dos factos Assentes, nos termos do qual o tribunal que julgou a falência da Recorrida simultaneamente recusa a habilitação da Recorrente como parte nesse processo e refere (erroneamente) que a sua antecessora CC era inexistente (o que por mera lógica permite aferir que o referido tribunal não terá notificado de nenhum acto processual uma sociedade que considera inexistente).

49ª - De igual modo, a posse nunca passou a mera detenção, em primeiro lugar porque não houve uma interrupção da posse no sentido estabelecido nos artigos 1265º e 1267º do Código Civil.

50ª - Sendo que caberia à ora Recorrida provar essa perda da posse, face às presunções de titularidade já referidas estabelecidas a favor do possuidor, o que não fez!

51ª - E contrariamente ao decidido no Acórdão Recorrido, o auto de arrolamento nunca poderia interromper a referida posse, porque nunca foi formalmente executado e em qualquer caso não era oponível à Recorrente ou à sua antecessora (por não serem partes no processo no âmbito do qual foi proferido e nunca terem sido notificados do mesmo).

52ª - E mesmo que, por hipótese académica, tivesse interrompido, nessa data já haveria aquisição por usucapião, nos termos do artigo 1294º, alínea a), pela ora Recorrente (ou a sua antecessora CC), pois a posse, que era titulada, pacífica e de boa - fé já durava há dez anos.

53ª - Por outro lado, o Acórdão de que ora se recorre padece do vício de falta de fundamentação, nos termos do disposto no artigo 615º, n.º 1, alínea b) do CPC, na medida em que não procede a uma análise objectiva, critica e fundamentada.

54ª - Neste sentido, deve a sentença considerar-se nula, por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a sua decisão.

55ª - Ademais, o Tribunal da Relação substitui-se à ora Recorrida, defendendo haver danos, quando tais alegações, sendo ónus das partes, nos termos do princípio do dispositivo, não foram feitas no caso sub judice pela ora Recorrida.

56ª - A condenação ordenada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, o pedido de indemnização e a sanção pecuniária compulsória devem improceder, por não provados, dado que a Recorrente sempre exerceu a posse legítima do imóvel.

57ª - Não pode proceder o mencionado pedido de indemnização porquanto não foram alegados e provados os requisitos da responsabilidade civil, que fundamentam uma indemnização.

58ª - Por último, não pode igualmente proceder o decretamento da sanção pecuniária compulsória, pois inexiste a obrigação de devolução do imóvel objecto da presente acção.

59ª - Conclui-se, assim, que o acórdão de que se recorre carece de fundamento, porquanto viola a lei processual aplicável, mormente os requisitos de reapreciação da prova gravada e da existência de um prazo peremptório de interposição do Recurso, para além da errada aplicação da lei substantiva, uma vez estarem preenchidos os requisitos do direito de usucapião da ora Recorrente.

60ª - Donde, estando - porque efectivamente estão - preenchidos os requisitos da usucapião, a reconvenção deduzida pela Ré, ora Recorrente, terá de ser procedente tal como decidido em 1ª instância.


Contra – alegou a Autora, Laboratórios AA, Lda, defendendo a confirmação do acórdão recorrido.


II.

1.

Na 1ª instância foram declarados provados os seguintes factos:

Dos factos assentes:

A - Encontra-se descrito na CRP de Lisboa sob o n.º … (anterior descrição n.º …, do Livro n.º 67) o prédio urbano sito na Rua …, n.os …, em Alvalade, freguesia do Campo Grande, Lisboa, com a área total de 1032 m2, a área coberta de 756 m2 e a área descoberta de 276 m2, composto por três corpos ligados, com cave, rés-do-chão, 1º e 2º andares, anexo com rés-do-chão e primeiro andar e logradouro, inscrito na matriz predial da freguesia de S. João de Brito sob o artigo …, conforme certidão permanente de fls. 577 e seguintes, doravante designado, apenas, Prédio.

B - Relativamente ao Prédio, foram feitas as seguintes inscrições:

i - Em 07/01/1954, a aquisição, por arrematação, a favor de «FF - Produtos Farmacêuticos, Lda», rectificada, por averbamento, em 16/07/2002, passando a constar que o sujeito activo é a sociedade «Laboratórios AA, Lda»;

ii - Em 27/02/2002, a apreensão de bens em processo de falência, cancelada por averbamento de 15/02/2011.

C - Foi lavrado, oficiosamente, em 16/07/2002, um averbamento à inscrição de 07/01/1954 (aquisição), do qual consta que o titular passou a ser «FF – Produtos Farmacêuticos, L.da», tendo tal averbamento sido cancelado em 17/07/2002.

D - A Ré ocupa o Prédio.

E - A Autora, através do advogado signatário da petição inicial, remeteu à Ré, sob registo e aviso de recepção, a carta cuja cópia consta de fls. 137, datada de 21/01/2011, cujo teor se dá por reproduzido, da qual consta, nomeadamente:

«(…) ficam intimados a proceder à respectiva entrega à minha Constituinte, no prazo de 15 dias. A falta de entrega do prédio implicará que vos seja pedida indemnização pelos prejuízos decorrentes da ocupação ilegítima e que se estimam em € 40.000,00 (…)».

F - A Ré recusou e recusa tal entrega.

G - Encontra-se matriculada na CRC de Lisboa sob o n.º …, a sociedade «FF - Produtos Farmacêuticos, Lda», que mudou a firma para «CC - Produtos Farmacêuticos, L.da», e para «CC Produtos Farmacêuticos, S.A.», por inscrições de 23/06/92 e 03/05/2001, conforme certidão de fls. 106 a 112.

H - Encontra-se matriculada na CRC de Lisboa sob o n.º …, a sociedade «CC Portuguesa, L.da», que alterou a firma para «GG - Produtos Farmacêuticos, Lda», para «GG - Produtos Farmacêuticos, S.A.», e para «HH – Farmacêutica, S.A.», por inscrições de 11/02/92, 12/06/2001 e 11/01/2002, sendo que, pela apresentação n.º 22 de 12.09.91, mostra-se inscrita a alteração da sede para a Rua do …, n.os …, Lisboa, tudo conforme certidão de fls. 122 a 133.

I - Encontra-se matriculada na CRC de Lisboa sob o n.º …, a sociedade «CC - Produtos Farmacêuticos, S.A.», tendo sido incorporada por fusão na sociedade «BB - Produtos Farmacêuticos, S.A.», ora Ré, com transferência global do património, por inscrição de 29/11/2010, conforme certidão permanente de fls. 96 a 105.

J - Encontra-se matriculada, na CRC de Lisboa sob o n.º …, a sociedade «HH – Farmacêutica, S.A.», que alterou a firma para «BB - Produtos Farmacêuticos, S.A.», por inscrição de 12.04.2006, conforme certidão permanente de fls. 113 a 121;

K - A Ré ocupa e utiliza o Prédio, desde 23/06/1992, o qual desde então passou a ser a sua sede.

L - No âmbito do Processo n.º 4058/1974, da 3ª Secção da então 3ª Vara Cível de Lisboa, posteriormente distribuído à 13.ª Vara Cível de Lisboa, foi proferida sentença, em 13/11/1974, decretando a falência da Autora, a qual veio a ser confirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 09/03/1976, transitado em julgado em 18/06/1976, conforme certidões de fls. 168 e seguintes e 247 e seguintes.

M - Ainda no âmbito do referido processo, foi lavrado, em 28/04/1977, um termo de apreensão do Prédio, conforme decorre da mesma certidão.

N - Por requerimento de 06/07/1987, os credores comuns da Autora, II, JJ e «KK & Cª», que haviam sido reconhecidos e graduados, requereram, ao abrigo o artigo 1266º do CPC, a convocação de uma assembleia de credores a fim de deliberar sobre a conveniência de se estabelecer um acordo de credores, cujo projecto juntaram com o seu requerimento, e no qual se prevê, nomeadamente, a constituição de uma sociedade, integrando os credores comuns cujos créditos fossem de valor, cada um deles, superior a 500 contos, o que deu origem ao Apenso DP (autos de acordo de credores), conforme documentos de fls. 61 a 77 e certidão de fls. 247 e seguintes.

O - Por despacho proferido no dia 17/07/1987, nos autos de falência, foram declarados suspensos os termos da falência, por ter sido recebido projecto de acordo de credores, conforme certidão de fls. 247 e seguintes.

P - Ainda por despacho de 17/07/1987, proferido no referido apenso DP, foi recebido o referido projecto de acordo e designada data para a reunião da assembleia de credores, conforme certidão de fls. 247 e seguintes.

Q - No dia 12/10/1987, foi realizada uma assembleia de credores, na qual foi declarado aceite o acordo de credores proposto, conforme certidão de fls. 247 e seguintes.

R - Na sequência daquela aprovação, foi constituída pelos credores II e JJ uma sociedade, com a denominação de «FF - Produtos Farmacêuticos, Lda», conforme escritura pública outorgada no dia 09/11/1987, no 17.º Cartório Notarial de Lisboa, a fls. 43 a 44vº do Livro de Notas para escrituras diversas, nº 252-F daquele Cartório, conforme documento de fls. 87 a 93.

S - Por despacho proferido no referido apenso DP, em 25/11/1987, foi homologado o referido acordo de credores.

T - No dia 08/04/1988, foi lavrado, nos autos de falência, um termo de entrega de bens, nos termos do qual o então administrador da falência entregou à sociedade «FF - Produtos Farmacêuticos, Lda», todos os bens que se encontravam apreendidos para a massa falida de «Laboratórios AA, Lda», e que se encontram descritos nos autos de arrolamento junto ao processo, conforme documento de fls. 95.

U - Na sequência de um requerimento apresentado pela falida, ora Autora, em 27/11/1989, nos autos de falência, e dos acórdãos proferidos, em 13/02/1992, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, e em 10/12/1992 pelo STJ, foram, por despacho de 09/07/1993, transitado em julgado, declarados anulados todos os trâmites processuais posteriores aos despachos de 17/07/1987 a que se alude nas alíneas O) e P), conforme documento de fls. 139 a 165 e certidões referidas.

V - No dia 11/04/1994, foi realizada uma assembleia de credores, na qual foi declarado aceite o acordo de credores que havia sido apresentado em 06/07/1987 com as respectivas alterações, sendo que, para cumprimento do disposto no artigo 1167º n.º 3 do CPC, foi fixado um prazo de 45 dias, conforme certidão de fls. 247 e seguintes.

W - No dia 20/07/2006, foi proferido despacho no apenso DP, que declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, mas onde consta que «(…) não foi dado cumprimento: a) ao judicialmente determinado na assembleia de credores a que se reporta a acta de fls. 285-289 (…), (a de 11.04.94); b) ao estipulado no artigo 1167º, n.º 3 do CPC. Consequentemente (…) há agora que dar sem efeito o deliberado na assembleia de credores (…), assim como o projecto de acordo apresentado a fls 1-3, o que, inevitavelmente acarreta a insubsistência da razão de ser da presente acção», confirmado por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14/06/2007, cujo teor se dá aqui por reproduzido, do qual foi interposto, ainda, recurso para o STJ, que dele não conheceu por inadmissibilidade, conforme despacho de 14/02/2008, transitado em julgado em 08/05/2008 (cfr. certidão de fls. 247 e seguintes).

X - No dia 06/07/2001, o senhor liquidatário judicial apresentou, no âmbito do apenso DU (liquidação) requerimento, manifestando o entendimento de que, em virtude da anulação supra referida, «(…) ficam prejudicados todos os actos processuais efectuados depois de 17/07/1987, designadamente a transferência do bem imóvel (…), pelo que o bem imóvel (…), que lhe foi entregue, deve reverter para a massa falida, o que desde já requer», com vista à respectiva venda, conforme certidão de fls. 247 e seguintes.

Y - Tal requerimento foi deferido por despacho datado de 12/11/2001, conforme certidão de fls. 247 e seguintes.

Z - Em 02/01/2002, foi elaborado pelo senhor liquidatário um auto de arrolamento e apreensão de bens, do qual consta que o Prédio foi apreendido, conforme certidão de fls. 247 e seguintes.

AA - No dia 18/10/2002, a sociedade «HH – Farmacêutica, S.A.», apresentou requerimento nos autos de falência, querendo a sua habilitação como cessionária dos credores da falida, o que veio a ser liminarmente indeferido por despacho de 25/03/2003, transitado em julgado, que se dá por reproduzido, mas do qual consta, nomeadamente, «a sociedade FF, L.da, da qual a requerente “HH” alega ser cessionária, não tem qualquer existência legal, tanto mais que o acordo de credores obtido na assembleia realizada em 12/10/87 (…) e respectivo despacho homologatório, com base nos quais a mesma sociedade foi constituída, foram anulados pelo Tribunal Superior, tendo sido anulado todo o processado daquele apenso posterior a fls. 37, incluindo o referido acordo e despacho homologatório», conforme certidão de fls. 247 e seguintes.

BB - Por requerimento de 11/12/2002, apresentado no âmbito do apenso DU (liquidação), o senhor liquidatário informou que os sócios da falida desejam pôr fim ao processo de falência, pagando a todos os credores com créditos verificados, e requereu que fosse autorizada a publicação de anúncios visando notificar os credores que não fossem localizados directamente, com vista a lhes fazer pagamento, o que foi deferido por despacho de 11/02/2003, proferido nos autos de falência, transitado em julgado, conforme certidão de fls. 247 e seguintes.

CC - Por despacho de 14/01/2010, foi determinado o levantamento da inibição da falida e a entrega à mesma do bem imóvel apreendido no âmbito dos autos, tendo tal decisão sido confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 25/11/2010, cujo teor se dá por reproduzido, transitado em julgado em 13/12/2010, conforme certidão de fls. 247 e seguintes.

Da Base Instrutória

1º - Apesar do que consta da alínea Z), nunca foram feitas diligências com vista à entrega efectiva do prédio, continuando o mesmo a ser ocupado e utilizado pela Ré (resposta ao quesito 1º).

2º - Até à carta referida em E), nunca ninguém contestou o que consta das alíneas D) e K) (resposta ao quesito 2º)[1].

3º - O que consta das alíneas D) e K) ocorreu à vista de toda a gente e foi sempre do conhecimento geral (resposta ao quesito 3º).

4º - O Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) incidente sobre o Prédio foi emitido em nome da sociedade «CC – Produtos Farmacêuticos, L.da», entre 1993 e 2000 e em nome de «CC – Produtos Farmacêuticos, S.A.», entre 2000 e 2010, sendo que a segunda prestação do IMI de 2010 foi paga, em Setembro de 2011, por débito numa conta da titularidade da ora Ré (resposta ao quesito 4º).

5º - A sociedade CC e depois a Ré, ignoravam que, ao passar a ocupar o Prédio, lesavam o direito de outrem (resposta ao quesito 5º)[2].

6º - Em 10/09/1993, o advogado signatário da petição inicial remeteu cartas às sociedades «LL - Sociedade Industrial de Expansão Farmacêutica, L.da», e «GG - Produtos Farmacêuticos, L.da», alertando-as de que a «FF», então já com a denominação «CC – Produtos Farmacêuticos, L.da», deixara de ter existência jurídica (resposta ao quesito 6º).

7º - Os relatórios anuais da sociedade «CC – Produtos Farmacêuticos, S.A.», juntos a fls. 745 a 916, reconhecem a existência de um litígio sobre a legítima propriedade do prédio “entre a empresa e uma entidade externa” (resposta ao quesito 7º).

Das certidões juntas após a BI (cfr. fls. 659).

8º - Através da inscrição n.º 33.854, de 07.01.1954, foi inscrita a transmissão do prédio identificado na alínea A), por arrematação, conforme certidão de fls. 666 a 680, que se dá por reproduzida.

9º - Pela ap. nº 2 de 05/07/1988, foi lavrado o averbamento nº 2 á inscrição referida na alínea B), com o seguinte teor «a titular da inscrição 33.854 passou a ser FF – Produtos Farmacêuticos, L.da (…) nos termos do acordo de credores homologado no processo de declaração de falência da sociedade AA», conforme decorre da mesma certidão.

10º - O prédio identificado na alínea A) encontra-se inscrito na matriz predial urbana da freguesia de São João de Brito sob o artigo …, sendo titular a ora Autora, conforme certidões de fls.698 a 700 e 705 a 707.

11º - Tal prédio foi inscrito na matriz no ano de 1955, sob o artigo … da freguesia do Campo Grande, e esteve inscrito, a partir de 1988, em nome de «FF Produtos Farmacêuticos, L.da», e, a partir de 1996, em nome de «CC Produtos Farmacêuticos, L.da», por alteração da firma social em 14/05/1992” (fls. 1019 a 1025).


III.

1.

Nos termos do preceituado nos artigos 608º nº 2, 635º nº 3 e 690º nº 1 do Código de Processo Civil, e sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal.

Nesta conformidade e considerando também a natureza jurídica da matéria versada, cumpre focar os seguintes pontos:

1.1. - Nulidade da decisão, por alegada falta de fundamentação;

1.2. - Se a apelante cumpriu ou não as obrigações impostas pelos n.os 1 e 2 a) artigo 640º do CPC 2013 para que possa ser admitida a impugnação da matéria de facto gravada e declarada provada em 1ª instância.

1.3. - Discordância quanto ao decidido relativamente à questão da possibilidade da modificação da decisão de facto com reapreciação da prova gravada, incluindo no que se refere à rejeição total do recurso de apelação, por alegada extemporaneidade;

1.4. - Discordância no tocante à decisão que considerou não escrito o n.º 5 da BI e, por via disso, também a resposta que lhe fora dada em 1ª Instância, bem como discordância relativa à alteração para não provado do n.º 2 da BI;

1.5. - Erro da decisão recorrida quanto à não verificação dos pressupostos da aquisição por usucapião;

1.6. - Discordância quanto à condenação em indemnização e em sanção pecuniária compulsória.

2.

Discussão jurídica da causa.

2.1.

Nulidade da decisão, por alegada falta de fundamentação:

O recurso tem por objecto o acórdão da Relação de Lisboa que julgou, no essencial, procedente, a apelação da Autora, então Recorrente, começando por (i) declarar não escrito, por considerar conclusivo, o n.º 5 da BI e, por via disso, também a resposta que lhe foi dada em 1ª Instância e (ii) alterar para “não provado” a resposta dada ao perguntado no n.º 2 da BI.

A Ré, ora Recorrente, impugnando a decisão sobre a matéria de facto, quanto às respostas dadas aos quesitos 2º e 5º, que se assinalaram, começa por arguir a nulidade do acórdão por falta de fundamentação, nos termos do disposto no artigo 615º, n.º 1, alínea b) do CPC, na medida em que não procede, em seu entender, a uma análise objectiva, crítica e fundamentada, devendo, em consequência, considerar-se nulo, por não especificar os fundamentos de facto e de direito que justificam a sua decisão.

Não tem razão.

Como é sabido, constitui entendimento pacífico, quer na doutrina, quer na jurisprudência, que, na arguição desta nulidade, importa distinguir entre a falta absoluta de motivação e a motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera causa de nulidade é a falta absoluta de motivação. A insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente: afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser alterada ou revogada em recurso, mas não produz a nulidade.

Só enferma, pois, de nulidade a sentença em que se verifique a falta absoluta de fundamentos, seja de facto, seja de direito, que justifiquem a decisão e não aquela em que a motivação é deficiente.

Neste sentido, relativamente à fundamentação de facto, só a falta de concretização dos factos provados que servem de base à decisão, permite que seja deduzida a nulidade da sentença/acórdão.

Quanto á fundamentação de direito, “o julgador não tem de analisar todas as razões jurídicas que cada uma das partes invoque em abono das suas posições, embora lhe incumba resolver todas as questões suscitadas pelas partes: a fundamentação da sentença/acórdão contenta-se com a indicação das razões jurídicas que servem de apoio à solução adoptada pelo julgador[3]”.

No caso dos autos, encontram-se concretizados os factos provados que servem de base à decisão e são indicadas as razões jurídicas que serviram de apoio à solução adoptada pelos julgadores no Tribunal da Relação.

Tanto basta para se poder seguramente concluir que o acórdão recorrido não padece da invocada nulidade.

2.2.

Se a apelante cumpriu ou não as obrigações impostas pelos n.os 1 e 2 a) artigo 640º do CPC 2013 para que possa ser admitida a impugnação da matéria de facto gravada.

Antes de abordarmos esta questão importa que se clarifiquem os poderes do Supremo Tribunal de Justiça no que respeita à decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto á matéria de facto.

A este respeito estabelece o n.º 2 do artigo 682º do NCPC que a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (ver artigo 674º, n.º 2 NCPC).

Nada, porém, impede que, com fundamento na alínea b) do n.º 1 do artigo 674º, (dado tratar-se de violação ou errada aplicação da lei do processo), o Supremo Tribunal de Justiça aprecie se o tribunal recorrido violou as condições formais exigidas, que constituem um ónus do recorrente que impugna a decisão relativa á matéria de facto, tal como o artigo 640º do CPC determina e cujo incumprimento acarreta a rejeição do recurso.

Exactamente, o que se vai passar a apreciar é se houve ou não violação desta lei do processo por parte da recorrente, no recurso de apelação, o que, como se disse, não nos está vedado.


A 1ª Instância, tal como decorre do despacho de fls. 1012 a 1015 dos autos, considerou provados os quesitos 2º, 3º e 5º, tendo em conta, quanto aos quesitos 2º e 3º os depoimentos das testemunhas DD e EE e das testemunhas MM, NN e OO, com os fundamentos que desse despacho constam.

Considerou provado o quesito 5º, tomando em conta os depoimentos das testemunhas já referidas MM, NN e OO, com os fundamentos, que a propósito constam do aludido despacho.

Pretendendo a alteração das respostas dadas aos quesitos 2º e 5º, impunha-se que a então recorrente, na apelação, satisfizesse as condições impostas pelo artigo 640º do NCPC, para que o recurso da decisão relativa à matéria de facto não fosse rejeitado.

Tendo o acórdão recorrido considerado que “a alteração peticionada pela apelante (que de provado passe a responder-se não provado aos números 2º e 5º) não se baseia em qualquer dos depoimentos prestados em audiência, antes referindo expressamente que “os depoimentos das testemunhas MM, NN e OO, prestados na audiência de 3 de Junho de 2013m e que se encontram gravados em suporte digital, aludidos na acta respectiva, não são susceptíveis de contrariar o que resulta daqueles documentos”, mas sim no conteúdo dos “documentos de fls. 366 a 374, de fls. 745 a 916 e no constante da resposta ao quesito 6º”, considerando que, por si só, esses elementos “impunham que aos artigos 2º e 5º dessa peça fosse dada resposta negativa”, concluiu o acórdão recorrido que a Autora havia cumprido as obrigações impostas pelos n.os 1 e 2 do artigo 640º do NCPC.

A ora Recorrente discorda deste segmento decisório do acórdão, realçando nas conclusões 1ª a 7ª, em síntese, que a Autora / Recorrida não cumpriu no seu recurso de apelação, no que concerne à impugnação da decisão relativa à matéria de facto, os requisitos formais exigidos por lei, mais precisamente a identificação dos concretos depoimentos de testemunhas e a indicação, com exactidão das passagens da gravação, em que se funda o seu recurso, o que impunha a sua imediata rejeição.

Deste modo, considera a Ré/Recorrente ser inadmissível o pedido de reapreciação da matéria de facto provada na 1ª Instância, nos moldes em que tal pedido foi formulado pela Autora/Apelante, ora Recorrida, impondo-se a imediata rejeição do recurso.

Vejamos:

Esta questão acerca da inadmissibilidade do pedido de reapreciação da matéria de facto gravada foi suscitada, como questão prévia pela Ré, ali recorrida, na apelação interposta pela Autora.

Dispõe o artigo 640º do CPC/2013:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) - Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) - Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) - A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) - Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

b) – (…).


Reportando-nos à apelação, constata-se que a Autora, ali recorrente, impugnou a decisão sobre a matéria de facto no que toca às respostas dadas aos quesitos 2º e 5º, salientando-se que para a convicção do Tribunal da 1ª instância foram decisivos os depoimentos das testemunhas que nessa decisão se mencionam, esclarecendo-se de forma fundamentada as razões ou fundamentos que levaram a essa convicção (cfr. fls. 1040/1041).

Pretendendo a alteração das respostas dadas a esses quesitos, e tendo a prova sido gravada, impunha-se naturalmente que a Recorrente satisfizesse as condições impostas pelo artigo 640º do CPC.

Questão é saber se a Recorrente satisfez (ou não) os ónus a que estava adstrita para que a impugnação da decisão relativa á matéria de facto não seja rejeitada.


Tem sido entendimento pacífico, neste Supremo Tribunal de Justiça, que a impugnação da decisão de facto, feita perante a Relação, não se destina a que este tribunal reaprecie global e genericamente a prova valorizada em 1ª instância, razão pela qual se impõe ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação.

“A exigência da especificação dos concretos pontos de facto que se pretendem impugnar com as conclusões sobre a decisão a proferir nesse domínio tem por função delimitar o objecto do recurso sobre a impugnação da decisão de facto.

Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados e a indicação exacta das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre do preceituado no artigo 662º do CPC.

É em vista dessa função que a lei comina a inobservância daqueles requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso, nos termos do artigo 640º, n.º 1, proémio e n.º 2, alínea a) do NCPC.

A indicação do horário da gravação tem de ser vista como complemento da anterior indicação das partes dos depoimentos em causa e não como uma indicação genérica da discordância[4]”.

“Não observa tal ónus o recorrente que identifica os pontos de facto que considera mal julgados, mas se limita a indicar os depoimentos prestados e a listar os documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham que cada um desses pontos fosse julgado provado ou não provado”.

“Nessa conformidade, enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm como função delimitar o objecto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória”.

“Por outro lado, a insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro de reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação”.

“Tais condições formais de impugnação da decisão de facto radicam em normas de direito processual disciplinadoras do limite cognitivo e do exercício dos poderes do tribunal da Relação em sede de reapreciação dessa decisão, cuja violação e incorrecta aplicação são susceptíveis de servir de fundamento do recurso de revista, ao abrigo do artigo 674º, n.º 1, alínea b), do NCPC[5]”.

No caso em apreço, a então Recorrente, ora Recorrida, não mencionou em qualquer parte do seu recurso, qualquer passagem da gravação dos depoimentos de testemunhas e a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, pelo que não foram cumpridas as exigências formais exigidas por lei.

A ora Recorrida começou por fazer uma referência às respostas dadas à BI pelo Tribunal da 1ª Instância, nomeadamente aos quesitos 2º, 3º e 5º e não apenas aos quesitos 2º e 5º.

Salienta, para o efeito, que o Tribunal da 1ª Instância considerou os depoimentos das testemunhas relevantes, nomeadamente no que se refere à não solicitação de entrega ou restituição do imóvel, à permanência da Recorrida no mesmo de uma forma pública e pacífica, á detenção do imóvel até ao presente e, ainda, quanto à inexistência de qualquer litígio acerca do referido imóvel.

A então recorrente, ora Recorrida, procedeu unicamente a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo Tribunal para a prova dos quesitos, não existindo uma única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz naquele sentido, pelo que a então Recorrente não logrou efectuar uma análise crítica e detalhada desses depoimentos, de forma a demonstrar que a valoração efectuada pelo Tribunal da 1ª Instância não foi a mais correcta face ao que foi dito (ou não) pelas testemunhas.

Isto é, a ora Recorrida não demonstrou, com base nos depoimentos prestados, o motivo pelo qual os quesitos 2º e 5º deveriam ser considerados “não provados”.

Se, como refere o acórdão recorrido, a então Recorrente não se baseou em qualquer depoimento prestado em audiência final para fundar as suas alegações, não poderá existir qualquer reapreciação da prova gravada, em consonância com aquilo que pacificamente tem vindo a ser entendido.

Não existindo reapreciação da prova gravada, porquanto a então Recorrente não o fez em moldes que permitissem identificar o seu objecto e por não ter sido dado cumprimento ao ónus de especificação que recaía sobre aquela nos termos da lei processual civil, tal facto originou igualmente a inexistência de base factual para contra – alegar por parte da então Recorrida, ora Recorrente.

Pelo exposto, deve ser rejeitado o recurso que impugnou a decisão sobre a matéria de facto (artigo 640º, n.º 1).

2.3.

Discordância no tocante à decisão que considerou não escrito o n.º 5 da Base Instrutória e, por via disso, também a resposta que lhe fora dada em 1ª Instância.

O acórdão recorrido, quanto ao quesito 5º, entendeu que o mesmo integrava matéria conclusiva e não factos, pelo que o considerou bem como a resposta que foi dada como não escrita.

Perguntava-se nesse quesito se “a sociedade CC e, depois, a Ré ignoravam que, ao passar a ocupar o Prédio, lesavam o direito de outrem”.

Como se referiu, o acórdão recorrido considera que este quesito não é sequer um facto, considerando ser essa uma conclusão a tirar de factos e não um facto em si.

Procurando justificar esta decisão, pergunta-se o acórdão recorrido se, “sem se ser telepata, admitindo a existência de seres humanos dotados dessa capacidade mítica, alguém conseguirá realmente saber o que alguém conhece ou não conhece”.

E acrescenta:

“Consabidamente, mesmo com a nova amplitude do actual artigo 596º do CPC 2013, porque só factos podem servir de fundamento “em matéria de facto” à decisão do pleito (artigos 615º n.º 1 b), por interpretação extensiva, e 662º n.º 1 do CPC 2013), continua a não ser possível perguntar se “a sociedade CC e, depois, a Ré ignoravam que, ao passar a ocupar o Prédio, lesavam o direito de outrem”, porque essa afirmação consubstancia uma conclusão a retirar de factos e não um facto em si”.

Prosseguindo, salienta que, “sem margem para dúvidas, o “quesito” terá sido formulado porque uma das pedras angulares desta acção é aquilatar se a posse ou detenção do imóvel mantida pela Ré o foi de boa ou má - fé, mas, insiste-se, essa é uma conclusão que cabe ao Tribunal tirar a partir dos factos que resultarem provados nos autos, depois de um processo cognitivo de subsunção lógica dos mesmos, e não algo que pode ser servido de bandeja com uma resposta a uma pergunta de uma Base Instrutória.

E porque assim é, forçoso se torna declarar não escrito esse número 5 da Base Instrutória e, consequentemente, também a resposta que lhe foi dada em 1ª instância.

O que, sem que se mostre necessária a apresentação de qualquer outra argumentação lógica justificativa, aqui se declara e decreta”.

Vejamos:

No regime anterior ao actual CPC (2013), o n.º 4 do artigo 646º do CPC, que estabelecia os limites da atendibilidade e validade das respostas do tribunal sobre a matéria de facto, determinava que se tivessem por não escritas as respostas sobre questões de direito.

Não era pacífico que a regra nela contida pudesse aplicar-se às respostas que encerrassem matéria conclusiva.

Nesse sentido, escrevia-se no acórdão do STJ, infra referenciado: “o artigo 646º, n.º 4 do CPC, manda ter por não escritas apenas as respostas sobre matéria de direito, e não propriamente as respostas conclusivas, sendo duvidoso, no mínimo, que a regra contida nessa norma possa aplicar-se por analogia a esta última situação, por não ser inteiramente líquido que procedam no caso omisso (factos conclusivos) as razões justificativas da regulamentação do caso previsto na lei (questão de direito)[6].

Em contrapartida, considerava o Ac. de 22/05/2012 deste STJ, em sentido contrário ao anteriormente sustentado, que, determinando o n.º 4 do artigo 646º do CPC que se tivessem por não escritas as respostas sobre questões de direito, “igual solução mereciam as respostas sobre pontos que encerrassem matéria de natureza conclusiva, por serem idênticas as razões justificativas do regime estabelecido[7]”.

Esquecida esta divergência, constitui entendimento pacífico ser “praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis pelos sentidos e compreensíveis pelo intelecto do homem, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia e um exacerbado rigorismo na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena da resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstracções distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger[8]”.

“Se, quer os factos vertidos nos pontos controversos, quer as respostas que lhe forem dadas, reflectem realidades concretas, perfeitamente apreensíveis por qualquer pessoa, estando longe de encerrarem um juízo valorativo de uma certa factualidade, não há fundamento para considerar as referidas respostas como não escritas[9]”.

“A inserção, na matéria de facto, de conceitos que podem ser tidos como sendo de direito é irrelevante, se os mesmos forem factualizados e forem usualmente utilizados na linguagem comum, possuindo um sentido comum que é o empregue nas respostas[10]”.

Reportando-nos ao caso concreto, afigura-se-nos que o conhecimento ou a ignorância ou desconhecimento é efectivamente um facto e um facto sujeito a prova.

O conhecimento pode provar-se por confissão (ex. o próprio declara conhecer), por prova testemunhal (ex. alguém testemunha ter comunicado) ou documental (ex. documento escrito de onde conste o conhecimento).

Por outro lado, a ignorância é um facto e sujeito às regras da prova, podendo ser provado por declarações das partes, por prova testemunhal ou documental.

Assim, a decisão do Tribunal da Relação, ao considerar como não escrito o facto 5º da Base Instrutória, é nula, por violação dos artigos 615º, n.º 1, alínea b) e 662º, n.º 1, uma vez que tal quesito constitui um facto e um facto sujeito a prova, confirmando-se, consequentemente, a resposta que havia sido dada pelo Tribunal de 1ª Instância ao aludido quesito.

2.4.

Devendo ser rejeitado, pelos fundamentos expostos, o recurso de apelação interposto pela autora, no que concerne á impugnação da decisão da matéria de facto e havendo sido declarada a nulidade da decisão que declarou não escrito o número 5º da Base Instrutória e, consequentemente, também a resposta que lhe foi dada em 1ª instância, importa anular o acórdão recorrido, para que, sem prejuízo do disposto no artigo 662º do NCPC, os mesmos Senhores Juízes Desembargadores, com a alteração das respostas dadas aos pontos 2º e 5º da Base Instrutória, reanalisem as questões que foram suscitadas no recurso de apelação e que se não considerem prejudicadas por esta decisão.

3.

Concluindo:

I - Aquilo que a lei considera causa de nulidade da sentença é a falta absoluta de motivação, e já não a motivação deficiente, medíocre ou errada, a qual afecta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser alterada ou revogada.

II - Não obstante o artigo 682º, n.º 2, do NCPC (2013), não permitir que o STJ altere a matéria de facto fixada pela Relação, (salvo em caso de ofensa de disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova ou fixe a força de determinado meio de prova), nada impede que, com fundamento no artigo 674º, n.º 1, alínea b), do NCPC, aquele tribunal aprecie se o tribunal recorrido violou as condições formais exigidas pelo artigo 640º do referido diploma e cujo incumprimento determina a rejeição do recurso.

III - Não cumpre o ónus de impugnação, referido no artigo 640º do NCPC, o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem uma única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz.

IV - A inserção, na matéria de facto, de conceitos que podem ser tidos como de direito é irrelevante – e não determina que se tenham os mesmos por não escritos – se os mesmos forem factualizados e usualmente utilizados na linguagem comum, possuindo um sentido apreensível.

V - Não é de considerar não escrita (como entendeu a Relação) a resposta a um quesito em que se afirma que «a sociedade D e, depois dela, a ré ignoravam que ao passar a ocupar o prédio lesavam o direito de outrem», posto que o seu objecto constitui um facto e um facto sujeito a prova.


DECISÃO:

3.

Pelo exposto, decide-se anular o acórdão recorrido, nos termos sobreditos.


Sem prejuízo do que vier a ser fixado a final, custas pela Recorrida.


Lisboa, 28 de Maio de 2015


Manuel F. Granja da Fonseca (Relator)

António da Silva Gonçalves

Fernanda Isabel Pereira

______________________
[1] A Relação alterou para “não provado” a resposta dada a este quesito.
[2] A Relação considerou não escrito, por considerar conclusivo, o quesito 5º e, por via disso, também a resposta que lhe foi dada em primeira instância.
[3] Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, página 688.
[4] Ac. STJ de 5/02/2015, Revista n.º 2659/14.2TBMTS-B.P1.S1. – 2ª Secção (Relator Oliveira de Vasconcelos).
[5] Ac. STJ de 19/02/2015, Revista n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1 – 2ª Secção – (Relator Tomé Gomes).
[6] Ac. STJ de 10/01/2012, Revista n.º 197/04.OTCGMR.S1 – 6ª Secção (Relator Nuno Cameira).
[7] Revista n.º 5504/09.7TVLSB.L1.S1 – 1ª Secção (Relator Paulo Sá).
[8] Ac. STJ de 10/01/2012, Revista n.º 197/04.OTCGMR.S1 – 6ª Secção (Relator Nuno Cameira).
[9] Revista n.º 5504/09.7TVLSB.L1.S1 – 1ª Secção (Relator Paulo Sá).
[10] Ac. STJ de 4/12/2014, Revista n.º 282/03.6TBVRM.G1.S1 – 7ª Secção (Relator Pires da Rosa).