Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05S2850
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDES CADILHA
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
RETRIBUIÇÃO
DESCANSO SEMANAL
DESCANSO SEMANAL COMPLEMENTAR
LIQUIDAÇÃO EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA
Nº do Documento: SJ200512070028504
Data do Acordão: 12/07/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 125/03
Data: 10/29/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : Provando-se, na competente acção de contrato de trabalho, que o trabalhador exerceu a sua actividade em dias de descanso semanal complementar, embora sem que se tivesse quantificado o número de dias em que essa situação se verificou, há lugar a uma condenação ilíquida, remetendo essa quantificação para execução de sentença por apelo ao disposto no artigo 661º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. Relatório

"A", com os sinais dos autos, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra B - Hipermercados, S.A, com sede em Braga, pedindo, na sequência de rescisão com justa causa, que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia de 10.003.482$00 correspondente à indemnização por antiguidade e a diferenças salariais em dívida, que incluem o pagamento de trabalho suplementar e dos acréscimos devidos por trabalho prestado em dia de descanso semanal.

Em sentença de primeira instância a acção foi julgada parcialmente procedente, condenando-se a ré, além do mais, nas quantias que se vierem a apurar em execução de sentença relativamente a trabalho suplementar prestado nos últimos cinco anos em que vigorou o contrato de trabalho celebrado entre as partes e aos dias de descanso complementar não gozados.

A ré interpôs recurso de apelação em que impugna a matéria de facto dada como provada e discute a legalidade da aplicação, no caso, do artigo 661º, n.º 2, do Código de Processo Civil, manifestando o entendimento de que o tribunal apenas pode condenar no que se liquidar em execução de sentença quando ainda não seja possível conhecer com exactidão os elementos quanto ao objecto ou à quantidade do pedido, e não já quando se tenha verificado um fracasso da prova quanto a essa matéria.

Após diversas outras vicissitudes patenteadas nos autos, o Tribunal da Relação do Porto veio a negar provimento ao recurso e a confirmar a decisão recorrida, mormente no tocante à falada condenação no que se liquidar em execução de sentença.

É contra esta decisão que a ré agora se insurge mediante recurso de agravo, em que invoca que o acórdão recorrido se encontra em oposição com os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Janeiro de 1995, publicado no BMJ n.º 443, pág. 404, e de 13 de Janeiro e 24 de Fevereiro de 2000.

Admitido o recurso, a recorrente apresentou a sua alegação, em que formula as seguintes conclusões:

1 - O artigo 661º, nº 2, do Código do Processo Civil não permite remeter para liquidação em execução de sentença, quando, por fracasso da prova, não houver elementos para fixar o objecto ou quantidade, mas apenas como consequência de não se conhecerem ainda, com exactidão, as unidades componentes da universalidade ou de ainda não se terem revelado ou estarem em evolução todas as suas consequências.
2 - Competia à Autora a prova do alegado trabalho em dias de descanso semanal, mas o que se verificou no processo foi que a Autora não logrou fazer prova daqueles dias e, consequentemente, das horas de descanso semanal não gozadas.
3 - Pelo que deveria o Tribunal da 1ª instância ter logo concluído pela falta de prova daquelas alegadas horas de trabalho em período de descanso semanal e absolvido a ora recorrente, nessa parte do pedido, sem relegar a sua liquidação para execução de sentença.
4 - Decidindo como decidiu, o acórdão recorrido interpretou o artigo 661º, nº 2, do C.P.C., no sentido de que este permite que seja relegado para liquidação em execução de sentença, quando por fracasso da prova não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, quando o deveria ter interpretado que só seria possível o recurso àquele expediente, nos casos em que se não conheçam ainda, com exactidão as unidades que componham a universalidade por ainda não se terem revelado ou estarem em evolução todas as consequências. E, nesses termos, violou também, aquele preceito legal e violou assim aquela disposição legal.

Neste Supremo Tribunal, o Exmo Procurador-Geral-Adjunto emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso, por entender que nada obstava a que a sentença relegasse para liquidação em execução de sentença a quantificação dos dias de descanso semanal em que a autora trabalhou, ao que a recorrente respondeu dizendo que o regime legal seria aplicável apenas quando se tivesse feito prova da prestação de trabalho em dias de descanso semanal ainda que sem concretização dos dias em que teve lugar a prestação de trabalho nesse condicionalismo.

2.Matéria de facto

As instâncias deram como assente a seguinte factualidade:
a) a R. dedica-se ao comércio em geral, nomeadamente explorando o estabelecimento denominado "Hipermercado B";
b) a A. foi admitida ao serviço da R. em Junho de 1989, por tempo indeterminado, para exercer naquele estabelecimento as funções de operadora especializada, mediante contrapartida mensal que, em Junho de 2000, era de 90.350$, acrescida de 17.600$00 de subsídio de alimentação;
c) no exercício da sua actividade e até Fevereiro de 2000, a A. fazia "permanências" ao sector de bazar, isto é, dava apoio ao sector no qual trabalhava, designadamente, atendendo reclamações dos clientes sobre preços incorrectos, devoluções e troca de artigos, controle das rupturas de artigos nos lineares;
d) desde a data da sua admissão a até meados de 1998, por imposição da R., a A. fazia, em média, três permanências por mês;
e) nesses dias, entrava ao serviço às 8 horas e saía cerca de 30/45 minutos após o fecho do estabelecimento;
f) após meados de 1998, as "permanências" passaram a ser, em média duas por mês e a ter a duração de 8 horas;
g) a A. deixou de fazer "permanências" a partir de Março de 2000, a seu pedido;
h) até essa data, a A. nunca se opôs a fazer "permanências";
i) após a "permanência", caso no dia seguinte estivesse escalada, entrava ao serviço às 8 horas;
j) a R. estipulou o pagamento de 2.000.$00 por cada "permanência";
k)após meados de Maio de 1998, as "permanências" deixaram de ser pagas;
l) quando se encontrava de "permanência", a A. tinha que interromper a hora de almoço ou jantar, caso surgisse alguma reclamação;
m) enquanto trabalhou para a R., a A. gozou, pelos menos, um dia de descanso semanal;
n) a R. pagou à A., por diversas vezes, diversas quantias a titulo de "horas em dia de descanso", "trabalho nocturno", "trabalho ao domingo", "subsídio de feriado", "horas extra", para além da contrapartida mensal fixada;
o) a A. sempre foi uma trabalhadora eficiente, competente e honesta;
p)em 31-8-00, a A. enviou à R. a carta de fls. 15 e 16, cujo teor aqui se dá por reproduzido;
q) até esta data, a A. nunca apresentou qualquer reclamação junto da R. por não pagamento prestado fora do seu horário de trabalho;
r) a R. aceitou um convite que lhe foi dirigido por uma empresa do mesmo ramo da R., para a qual passou a trabalhar, em Esposende;
s) a R. processou o recibo da contrapartida mensal, subsídio de alimentação, trabalho nocturno e trabalho ao domingo, respeitante ao mês de Agosto e relativos à A.

3. Enquadramento jurídico

A única questão a decidir é a de saber se o tribunal poderia ter relegado para execução de sentença a liquidação dos acréscimos salariais devidos por prestação de trabalho em dias de descanso semanal complementar.

Está especialmente em discussão o âmbito de aplicação do disposto no artigo 661º, n.º 2, do CPC, norma que, procurando definir os limites da condenação, dispõe que "se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que se liquidar em execução de sentença, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida.

A recorrente, apoiando-se designadamente no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Janeiro de 1995 (BMJ n.º 443, pág. 404), defende que o apontado preceito só permite remeter para liquidação em execução de sentença, quando não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, mas apenas como consequência de não se conhecerem ainda, com exactidão, as unidades componentes da universalidade ou de ainda não se terem revelado ou estarem em evolução todas as suas consequências, e não também no caso em que a carência dos elementos resulte da falta de prova sobre os factos alegados.

O aresto em referência formula, na verdade, uma interpretação restritiva da referida disposição, considerando que a hipótese legal se reporta aos casos em que o autor tenha deduzido um pedido genérico, nos termos previstos no artigo 471º do CPC, ou ainda quando, tendo sido formulado um pedido específico, não seja possível, no momento da decisão, fixar ao objecto ou a quantidade da condenação por se desconhecerem todas ou algumas das consequências do fato ilícito, por estas ainda se não terem produzido ou por se não terem produzido todos os factos influentes na determinação do quantitativo de uma dívida.

Esta matéria não é, porém, inteiramente pacífica e ainda no recente acórdão de 28 de Setembro de 2005 (Processo n.º 578/05), tendo embora presente a referida argumentação, acabou por concluir-se em sentido diverso, admitindo-se que a condenação em liquidação de sentença possa ocorrer mesmo quando o autor, tendo formulado um pedido líquido, não tenha logrado provar, no processo declarativo, o exacto montante do que lhe é devido.

No caso vertente, a autora formulou um pedido de pagamento de acréscimos salariais por prestação de trabalho em dias de descanso semanal, alegando que "apenas gozava um dia de folga semanal, por imposição da ré" (artigo 27 da petição inicial).

Na contestação, a ré impugnou esse facto, invocando que a autora "em média sempre gozou dois dias de descanso por semana" (artigo 21).

E o tribunal veio a dar como assente, face à prova coligida nos autos, que "enquanto trabalhou para a R., a autor gozou, pelos menos, um dia de descanso semanal" (alínea m) da matéria de facto).

Como bem se vê, sendo controvertida a questão de facto relativa à prestação de trabalho em dias de descanso semanal complementar, a resposta do tribunal não é inteiramente concludente no sentido do alegado por qualquer das partes: não se prova, conforme a autora alegara, que esta só tenha gozado, durante a vigência do contrato de trabalho, um dia de folga; mas também não é líquido que, como propugnava a contestante, a autora sempre tivesse usufruído dos dias de descanso semanal e de descanso semanal complementar.

Poderia dizer-se que a resposta do tribunal quanto a esta matéria é obscura, porquanto a expressão "pelo menos", inclusa na referida alínea m) da matéria de facto, não é suficientemente explícita quanto a saber se a autora terá também usufruído de alguns mas não todos os dias de descanso semanal complementar.

A Relação optou, no entanto, por não usar os poderes processuais que lhe conferem o artigo 712º, n.º 4, do Código de Processo Civil, em caso de obscuridade da decisão de facto da primeira instância, e antes retirou a ilação de que a factualidade assente, não permitindo quantificar exactamente os dias de prestação de trabalho, possibilita, no entanto, a conclusão de que a autora trabalhou em dias de descanso semanal complementar

Ora, tem-se já afirmado que o Supremo não pode controlar o não uso pela Relação dos poderes conferidos pelo artigo 712º do Código de Processo Civil, e apenas poderá efectuar esse controlo quando a Relação tenha feito uso desses poderes, caso em que o que está em causa não são os estritos aspectos de apreciação das provas ou de fixação dos factos materiais da causa, mas a eventual ocorrência de um erro de direito quanto à existência da deficiência, obscuridade ou contradição de decisão de facto, ou a necessidade da sua ampliação, que justifique a repetição do julgamento (cfr. Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, pág. 447, e acórdãos do STJ de 13 de Dezembro de 1984, Revista de Legislação e de Jurisprudência, nº 122, pág. 233, e de 15 de Março de 1994, BMJ nº 435, pág. 750).

E, do mesmo modo, também se considera que o Supremo não pode, em princípio, sindicar as presunções judiciais em matéria de prova, embora por vezes se admita que o possa fazer quando estas tenham sido retiradas a partir de factos desconhecidos ou não constituam uma consequência lógica dos factos apurados (cfr. acórdãos do STJ de 20 de Junho de 2000, Revista n.º 408/00, e de 20 de Janeiro de 1999, Revista n.º 1003/98).

De todo o modo, hoje em dia, o uso de qualquer destas possibilidades parece ter sido posta em causa, em via de recurso, por força do agora estatuído no n.º 6 do artigo 712º do CPC, que proíbe o recurso das decisões da Relação adoptadas, nos termos dos números anteriores desse artigo, em matéria de modificabilidade da decisão de facto da primeira instância. Ao tribunal de revista apenas incumbe, neste contexto, verificar a conformidade da decisão de facto, nos estritos termos do artigo 729º, n.º 3, que permite que o Supremo devolva o processo ao tribunal recorrido não apenas quando a decisão de facto deva ser ampliada por não constituir base suficiente para a decisão de direito, mas também quando "ocorram contradições na decisão de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito".


Não é nenhum destes o caso dos autos, pelo que há que ter como assente, face ao que consta da alínea m) da matéria de facto e à ilação que daí retirou a Relação, que a autora prestou a sua actividade em dias de descanso semanal complementar.

E, neste contexto, em que o que está em causa é, não a verificação da ilicitude, mas a fixação do quantum indemnizatur, afigura-se ser de manter o entendimento ainda recentemente firmado por esta secção através do citado acórdão de 28 de Setembro de 2005. Não parece curial, de facto, que, tendo a autora provado a existência de uma situação de violação do direito à retribuição, por ter prestado trabalho num condicionalismo que justificava o pagamento de um acréscimo remuneratório, apesar disso, a acção devesse ser julgada improcedente apenas porque se não provou o exacto montante que se encontra, a esse título, em dívida.

É certo que numa interpretação lata do artigo 661º, n.º 2, como preconiza o citado aresto, acaba por se conceder uma nova oportunidade de prova ao demandante. No entanto, contrariamente ao que afirma a recorrente, nas circunstâncias do caso, essa segunda oportunidade de prova não incide sobre a existência da situação de violação do direito laboral que constitui o fundamento do pedido, mas apenas sobre a quantidade da condenação a proferir. Como se anotou, a Relação efectuou uma interpretação da matéria de facto (que é agora insindicável pelo Supremo), pela qual a autora terá trabalhado, em certas ocasiões, em período de descanso semanal complementar, e isso é suficiente para que a acção não possa ser julgada totalmente improcedente quanto a essa matéria. O que sucede é que não foi possível, no processo declarativo, fixar o número exacto de dias de prestação de trabalho naquelas condições e é essa quantificação que se remete para a execução de sentença.

Dito de outro modo, só a completa inconcludência probatória é que conduziria à improcedência da acção; ao contrário, constatando-se que a ré incumpriu uma certa obrigação contratual, a mera ausência de elementos suficientes para determinar o montante em dívida apenas justifica que se profira uma condenação ilíquida, com a consequente remissão do apuramento da responsabilidade para execução de sentença.

É esta possibilidade que julgamos encontrar-se coberta pela previsão do artigo 661º, n.º 2, do Código de Processo Civil, pelo que não obstante os bons argumentos que poderão basear a opinião contrária, propendemos a confirmar o julgado pelas instâncias.

4. Decisão

Termos em que acordam em negar provimento ao recurso e confirmar recorrida

Custas pela recorrente.

Lisboa, 7 de Dezembro de 2005
Fernandes Cadilha, (relator)
Mário Pereira,
Laura Leonardo.