Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1083/15.4T8MTS.P1.S1
Nº Convencional: 4ª. SECÇÃO
Relator: PINTO HESPANHOL
Descritores: FACTOS CONCLUSIVOS
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DESPEDIMENTO COM JUSTA CAUSA
DEVER DE ZELO E DILIGÊNCIA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Área Temática:
DIREITO DO TRABALHO - CONTRATO DE TRABALHO / DEVERES DO TRABALHADOR - CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO / DESPEDIMENTO POR INICIATIVA DO EMPREGADOR / FACTO IMPUTÁVEL AO TRABALHADOR.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS / ALTERAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / RECURSO DE REVISTA / PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 342.º, N.ºS 1 E 2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º, N.º 2, 607.º, N.ºS 3 E 4, 608.º, N.º 2, 662.º, N.º4, 663.º, N.º 2, 679.º, 682.º, N.º 3, 683.º, N.º 1.
CÓDIGO DO TRABALHO (CT): - ARTIGOS 128.º, N.º 1, ALÍNEAS C) E E), 351.º, N.ºS 1, 2 E 3, 387.º, N.ºS 1 E 3.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA (CRP): - ARTIGO 53.º.
Sumário :
1. O n.º 16 da matéria de facto tida como provada pelo tribunal de 1.ª instância, pese embora algum défice de densificação e concretização no plano factual, porque não se reconduz ao uso de conceitos normativos de que dependa a solução, no plano jurídico, do caso e na medida em que contém um inquestionável substrato factual, minimamente consistente, que deve ser interpretado em conexão com os restantes segmentos que integram o acervo factual provado, pode subsistir no elenco dos factos materiais a considerar para a decisão do pleito.

2. A faculdade concedida ao Supremo Tribunal de Justiça de ordenar a ampliação da matéria de facto, só pode ser exercida no respeitante a factos articulados pelas partes ou de conhecimento oficioso.

3. Provado que a trabalhadora, que exercia as funções de estilista, responsável pela elaboração de coleção de roupa de homem, demonstrou reiterada indiferença pelas sucessivas advertências por parte da Administração da ré para que executasse o trabalho em sintonia com as determinações da sua chefia e cumprisse os prazos estabelecidos, e que não deu justificação para o não atendimento dos pedidos de informação que lhe foram dirigidos por superiores hierárquicos e companheiros de trabalho, bem como para a não entrega atempada do trabalho que lhe estava confiado, violou, culposamente e de forma grave, os deveres de cumprir as ordens e instruções do empregador atinentes à execução do trabalho e de realizar com zelo e diligência as funções que lhe estavam confiadas.

4. Neste contexto, este comportamento tornou, pela sua gravidade e consequências, imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral, verificando-‑se, assim, justa causa para o despedimento.

Decisão Texto Integral:

N.º 29/2016 (PH)
GR / LD
Processo n.º 1083/15.4T8MTS.P1.S1 (Revista) – 4.ª Secção

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

                                                    I

1. Em 4 de março de 2015, na Comarca do …, …, Instância Central, 3.ª Secção do Trabalho – J2, AA instaurou ação especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, nos termos dos artigos 98.º-B e seguintes do Código de Processo do Trabalho, contra BB, S. A., manifestando a oposição ao despedimento efetuado pela empregadora, em 18 de fevereiro de 2015, e requerendo que fosse declarada a ilicitude ou a irregularidade do mesmo, com as legais consequências, sendo que, frustrada a tentativa de conciliação que teve lugar na audiência de partes, a empregadora foi notificada para apresentar o articulado motivador do despedimento e juntar o respetivo procedimento disciplinar, o que fez, tendo sustentado a existência de justa causa para o despedimento operado.

A trabalhadora apresentou contestação e reconvenção, articulado que não foi admitido, e requereu, subsequentemente, o reconhecimento da verificação de justo impedimento no ato de apresentação a juízo daquele articulado, o que foi indeferido.

Tendo a causa prosseguido os seus termos, proferiu-se sentença, que julgou a ação improcedente e decidiu absolver a ré do pedido.

2. Irresignada, a trabalhadora interpôs recurso da sentença e dos despachos interlocutórios que não admitiram o seu articulado e o justo impedimento, e arguiu nulidades, tendo o Tribunal da Relação julgado parcialmente procedente o recurso, revogado a sentença recorrida e deliberado: «1. declara-se ilícito o despedimento de que foi alvo a trabalhadora AA; 2. condena-se a empregadora BB, Lda., a pagar à trabalhadora AA uma indemnização em substituição da reintegração, que se fixa em 20 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fração de antiguidade, devendo atender-se a todo o tempo decorrido desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão judicial e as retribuições que a mesma deixou de auferir desde a data do despedimento (18/02/2015) até ao trânsito em julgado da presente decisão, incluindo as férias e os subsídios de férias e de Natal que se venceram, aquela indemnização e estas retribuições, no que vier a ser liquidado no respetivo incidente, quantias estas acrescidas de juros de mora, à taxa legal, a contar desde a data dos respetivos vencimentos e até integral e efetivo pagamento. A estas retribuições deve ser deduzido o eventual subsídio de desemprego auferido pela trabalhadora.»

É contra o assim deliberado que a empregadora agora se insurge, mediante recurso de revista, no qual formulou as seguintes conclusões, alinhadas na sequência de convite que lhe foi dirigido pelo relator no sentido de as sintetizar:

«A)   DA LICITUDE DO DESPEDIMENTO
a)  O douto Tribunal a quo — cuja posição adotada é inaceitável — menosprezando a relevância do comportamento reiteradamente incumpridor da Recorrida espelhado nos factos dados como provados pelo Tribunal de 1.ª instância, entendeu que: “Todos os restantes factos como as advertências da administração de fevereiro, maio e novembro de 2014, por si só, ou seja, sem qualquer apoio em factos concretos praticados pela trabalhadora, não consubstanciam a violação de deveres que impendem sobre a mesma. Acresce que não resultam provados (nem foram alegados) quaisquer prejuízos para a empregadora decorrentes da atuação [da] trabalhadora, sendo certo que a matéria constante do ponto 16 foi considerada como não escrita.”
b)  [Dos] factos dados como provados pelo Tribunal de 1.ª instância e dados por reproduzidos pelo Tribunal a quo resulta, por si só, que a ora Recorrida foi despedida com processo disciplinar, cumprindo todas as formas legais e estando totalmente verificada a justa causa para o despedimento, pelo que terá que ser dado como regular e lícito o despedimento da ora Recorrida, revogando-se em conformidade a decisão proferida no douto Acórdão;
c)  O artigo 351.º, n.º 1, do Código do Trabalho, doravante CT, define o conceito de justa causa de despedimento como “o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho”, estabelecendo-se depois um quadro exemplificativo de comportamentos justificativos desse despedimento;
d)  A doutrina e jurisprudência pacíficas consideram que a existência de justa causa de despedimento nos termos do citado preceito exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: 1) um, de natureza subjetiva, traduzido num comportamento culposo do trabalhador; 2) outro, de natureza objetiva, que se traduz na impossibilidade de subsistência da relação de trabalho; 3) e, ainda, a existência de nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade de subsistência da relação laboral;
e)  Conforme bem referido no douto Acórdão proferido pelo Tribunal a quo, constitui justa causa de despedimento, entre o mais, o “desinteresse repetido pelo cumprimento, com a diligência devida, de obrigações inerentes ao exercício do cargo ou posto de trabalho a que está afeto” (conforme art. 351.º, n.º 2, al. d), do CT);
f)   Conforme resulta (e bem) da Sentença proferida em 1.ª Instância, é patente em relação à ora Recorrida “(...) a sua falta de interesse relativamente ao cumprimento das suas obrigações e aos interesses da sua entidade empregadora que não podia ignorar na medida do cumprimento pela autora das suas obrigações laborais, sobretudo num momento em que estava já ultrapassado o prazo limite para a entrega do trabalho. Tal falta de interesse e de zelo está bem patente no facto de apesar de estar doente a autora não se ter sequer preocupado em responder às inúmeras tentativas de contacto por parte da ré, para o que certamente não estava incapaz. De resto, no dia 10 de Dezembro, dia em que estava doente a autora, logrou entrar em contacto com um cliente para desmarcar uma reunião que tinha aprazada para esse dia, demonstrando que se quisesse também poderia ter contactado a ré, fosse por telefone, fosse por email”;
g)  Encontra-se bem fundamentado o despedimento da Recorrida, dado que se verifica o comportamento culposo da mesma, nomeadamente na violação do dever de zelo e diligência a que estava obrigada;
h)  A Recorrida, exercendo a função de estilista, estava responsável pela coleção de homem, cuja entrega estava sujeita a determinados prazos específicos, sob pena da coleção não poder ser lançada no tempo devido nas lojas, com todos os prejuízos daí advenientes — conforme resulta dos factos dados como provados;
i) Os factos provados, nomeadamente os factos 14), 16), 21), 22), 24), 25), 28) e 29), são  manifestamente demonstrativos de que a ora Recorrida, ao não entregar atempadamente — como bem sabia que estava obrigada — o seu trabalho respeitante à coleção de homem, para além de denotar o incumprimento dos deveres que lhe estão impostos, era suscetível de provocar grandes danos financeiros à ora  Recorrente;
j) Bem andou o Tribunal de 1.ª instância ao considerar, perante os factos dados como provados “Os problemas da autora com a chefia a que se refere mais tarde o administrador delegado da empresa, no mail de 02/01/2015, culminaram, pois, numa postura de total alheamento da autora relativamente aos interesses da ré, sua entidade empregadora, atrasando a entrega da coleção outono/inverno 2015, da qual era responsável como estilista, sem que para o efeito desse qualquer explicação ou justificação”;
k) Os comportamentos culposos e desobedientes reiterados da Recorrida — dados igualmente como integralmente provados na douta Sentença — atestam a prática de atos totalmente culposos e lesivos dos deveres que impendem sobre a mesma, enquanto trabalhadora;
l) A ora Recorrida não se escusou de prosseguir com os comportamentos culposos, não obstante ter sido diversas vezes alertada para o efeito, nomeadamente pelo administrador da ora Recorrida (Vide particularmente Factos 12), 13), 15), 19), 20) e 21) dos Factos Provados);
m) Atentas as situações de incumprimento reiterado da ora Recorrida encontra-se minada irremediavelmente, pela sua gravidade intrínseca, a relação de confiança que existia antes da ocorrência de tais episódios entre as partes como pressuposto de manutenção da relação de trabalho;
n)  A ora Recorrente encontrava-se totalmente constituída no direito, que exerceu, de despedir a ora Recorrida por justa causa;
o)  Os factos provados são manifestamente reveladores da violação de deveres a que a ora Recorrida estava vinculada e portanto, da ilicitude do comportamento da mesma, pois a mesma prosseguiu um comportamento disciplinarmente censurável que tornou imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho;
p)  Pelo todo exposto, é manifesto o nexo causal existente entre o comportamento culposo da trabalhadora e a impossibilidade de subsistência da relação laboral;
q)  Ainda que não se tenham comprovado nos autos quaisquer prejuízos monetários para a ora Recorrente, o que no entender da mesma não é indispensável para ser considerado lícito o despedimento;
r)  Dado que, para além de como ensina Júlio Gomes (Direito do Trabalho, vol. I, Relações Individuais de Trabalho, Coimbra Editora, 2007, pág. 951), no tocante às consequências da conduta do trabalhador, “...estas deverão consistir num prejuízo grave para o empregador, embora tal prejuízo não seja necessariamente de ordem patrimonial. Com efeito, as consequências perniciosas podem consistir em minar a autoridade do empregador (ou do superior hierárquico), lesar a imagem da empresa ou num dano por assim dizer ‘organizacional’. Referimo-nos, com isto, ao que vulgarmente se refere pela perda de confiança no trabalhador” (negrito e sublinhado nosso) — entendimento que é acompanhado pela ora Recorrente;
s)  Não aceita a Recorrente que o Facto 16) dos factos provados “O facto de a autora não ter apresentado a documentação e fichas técnicas de acordo com as regras definidas provocou atrasos e problemas de qualidade na confeção de 1200 polos de homem produzidos na CC, Lda., que estão por vender desde início de Setembro de 2014, por não apresentarem a qualidade requerida”, seja dado como não escrito como entendeu o Tribunal a quo;
t)   Se no entender do Tribunal a quo se revela essencial para efeitos de aferir da licitude do despedimento quais eram as regras definidas bem como os problemas de qualidade que se verificaram e ainda os prejuízos patrimoniais verificados, sempre deveria o mesmo ter remetido o presente processo para julgamento;
u)  Deste modo, requer-se de V. Exas. que, no caso de considerarem que o apuramento de tais factos se revela essencial para aferir da licitude do despedimento — com o qual jamais se anui pelo todo acima exposto — deverão os presentes autos ser remetidos para audiência de discussão e julgamento;
v)  Sem tal produção de prova revela-se prematuro e vedador da defesa da ora Recorrente fazer prova de tal facto dado por não escrito pelo Tribunal a quo, o que jamais é aceitável;
w) O facto de a ora Recorrida não ter sido anteriormente objeto de qualquer procedimento disciplinar assume diminuta relevância, dada a antiguidade que a mesma tinha na empresa Recorrente (desde 15.03.2004), não afastando de modo algum tal a gravidade do seu comportamento;
x)  É ainda de referir, acompanhando o Tribunal de 1.ª instância, “Uma última referência para dizer que a invocada dívida da autora para com a ré, em si mesma não constitui uma qualquer infração disciplinar. O que a esse respeito se provou não pode contudo deixar de revelar uma certa maneira de estar da autora perante a sua entidade empregadora e os seus superiores hierárquicos, já que tendo contraído uma dívida de valor relativamente elevado considerando que a mesma era relativa a roupa que a autora levou do armazém, apesar das insistências, nunca procedeu ao pagamento, apesar de se ter comprometido a pagar 50% até Setembro de 2014, nem apresentou qualquer plano alternativo. Desmereceu com tal comportamento a confiança da ré, degradando ainda mais as suas relações com a empresa, gerando um clima ainda mais propício para se considerar inexigível à ré a manutenção da relação contratual”;
y)  Em conclusão, nas circunstâncias concretas em apreciação, a permanência do contrato e das relações pessoais e patrimoniais que ele importava, feririam, de modo exagerado e violento, a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal, colocada na posição do empregador, ou seja, a continuidade do vínculo representaria uma insuportável e injusta imposição à ora Recorrente;
z)  Bem andou o Tribunal de 1.ª instância ao considerar como lícito o despedimento efetuado pela ora Recorrente, dado que o mesmo se revela lícito, proporcional e ajustado à gravidade das infrações e à culpabilidade da ora Recorrida, ao contrário do que se sustenta na deliberação em crise, que desvalorizou a conduta reiterada da Recorrida em incumprir com as suas funções advenientes à função que exercia;
aa) Tendo a ora Recorrente procedido a um despedimento lícito porque proporcional às infrações cometidas, tal determina o provimento do presente recurso, no que diz respeito à pretensão no mesmo formulada de ser reconhecida a licitude do despedimento da recorrente;
bb) Deve, face a todo o exposto, ser revogado o douto acórdão recorrido, declarando-se regular e lícito o despedimento da ora Recorrida promovido pela ora Recorrente, fazendo-se deste modo uma correta aplicação do disposto no art. 351.º do CT e, consequentemente, ser a ora Recorrente, absolvida dos montantes que foi condenada a liquidar à ora Recorrida.
Caso V. Exas. assim não o entendam, e ainda que sem prescindir quanto ao todo supra exposto, sempre se dirá o seguinte:
B) DAS CONSEQUÊNCIAS DO DESENTRANHAMENTO DA CONTESTAÇÃO
cc) O Tribunal a quo, na apreciação que faz da 4.ª e 5.ª questão, refere que: “Acontece que, como já ficou dito, foi ordenado o desentranhamento da contestação apresentada pela trabalhadora e, consequentemente, não foram formulados por aquela pedidos concretos ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 98.º do C. P. T.”;
dd) Todavia, concluiu que “(...) o pedido constante do formulário próprio da presente ação especial afigura-se-nos suficientemente concretizado no que respeita às aludidas consequências imediatas da ilicitude do despedimento, as legais, que não podem deixar de ser a reintegração e o pagamento das retribuições intercalares, afigurando-se-nos de um excessivo rigor formal a exigência da dedução (a que podemos chamar repetição) daqueles pedidos em sede de contestação/reconvenção”;
ee) Acontece que jamais pode a ora Recorrente anuir com a posição maioritária adotada pelo douto Tribunal a quo, e que contou com o voto de vencida da Exma. Sra. Desembargadora Fernanda Soares;
ff) Tal entendimento é de resto acompanhado pela nossa melhor jurisprudência, exemplificadamente: “No figurino processual da ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, introduzido pelo DL n.º 295/2009, de 13 de Outubro, se o trabalhador não apresenta contestação e, consequentemente, não formula nessa peça processual qualquer pedido relacionado com os denominados salários intercalares e com a indemnização de antiguidade em substituição da reintegração, preclude o direito de ulteriormente o fazer” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo n.º 66/11.8TTBRR.L1.4, datado de 15.12.2011);
AA) Atento o exposto, e ainda que não prescindindo quanto ao todo acima alegado, caso V. Exas. entendam que o despedimento da ora Recorrida é ilícito — o que jamais se aceita — nunca poderão os pedidos formulados pela mesma, em decorrência de tal, ser atendidos no âmbito da presente ação, atento o facto da contestação apresentada não ter sido admitida;
hh) Termos em que, também por este motivo deverá ser alterada a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo

Não foram apresentadas contra-alegações.

Neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta emitiu parecer no sentido de que devia ser negada a revista e mantida a deliberação recorrida, tendo sustentado, especificamente, que é de manter a eliminação do facto 16) da matéria de facto, porque «o seu teor não é admissível por conter conclusões retiradas de outros factos, em violação do que se dispõe no artigo 607.º, n.º 3, do CPC», e, outrossim, que «[o] comportamento da A., revelando, embora, falta de zelo no cumprimento das obrigações profissionais, e sendo certo que não foi alegado, nem provado, qualquer prejuízo para a empregadora decorrente [do mesmo], não se configura de gravidade suficiente, nem do mesmo resultaram consequências suficientemente graves para justificar a pena disciplinar de despedimento», acrescentando que «[a] declaração judicial de ilicitude do despedimento, sem que se condenasse a empregadora nos termos das normas citadas [artigos 391.º, n.º 1, a 391.º do atual Código do Trabalho] resultaria numa decisão em absoluta desarmonia com o sistema», parecer que, notificado às partes, motivou resposta da recorrente para reiterou o entendimento que já havia explicitado na alegação do recurso de revista.   

3. No caso, as questões suscitadas são as que se passam a enunciar, segundo a ordem lógica que entre as mesmas intercede:

  Se carece de fundamento legal dar-se como não escrita a proposição que consta do n.º 16 da matéria de facto considerada provada pelo tribunal de primeira instância [conclusão s) da alegação do recurso de revista];
  Se a decisão sobre a matéria de facto deve ser ampliada [conclusões t) a v) da alegação do recurso de revista];
  Se o despedimento da trabalhadora foi lícito, por ocorrer justa causa para aplicar tal sanção disciplinar [conclusões a) a r) e w) a bb) da alegação do recurso de revista];
  Sendo ilícito o despedimento e uma vez que o articulado da trabalhadora não foi admitido, se não se pode condenar a empregadora a pagar àquela indemnização em substituição da reintegração e as atinentes retribuições intercalares [conclusões cc) a hh) da alegação do recurso de revista].

Preparada a deliberação, cumpre julgar o objecto do recurso interposto.

                                               II

1. As instâncias deram como provados os factos seguintes:
1) Por carta datada de 11/12/2014, que constitui o documento de fls. 7 do processo disciplinar apenso, cujo teor se reproduz, a ré comunicou à autora a instauração de procedimento disciplinar, com vista ao despedimento, bem como a sua suspensão preventiva [o Tribunal da Relação eliminou o texto sublinhado];
2) Com data de 08/01/2015, foi elaborada a nota de culpa com o teor de fls. 26 a 31 do processo disciplinar, cujo teor se reproduz, notificada à autora por carta de 08/01/2015, que a autora recebeu no dia seguinte, e da qual consta [o Tribunal da Relação eliminou a expressão sublinhada e aditou o subsequente texto a negrito]:
«1. V. Ex.a foi contratada por esta sociedade, adiante designada apenas por BB, em regime de Contrato de Trabalho, com efeitos a partir de 15/03/2004, para o cargo de Estilista.
2. Tem V. Ex.a conhecimento que a BB tem como objeto a conceção, confeção e venda de artigos de vestuário para homem e mulher e criança. Comercialização de artigos de vestuário, podendo para tanto usar de quaisquer meios, designadamente a venda através de lojas próprias, franchisadas ou lojas multimarca.
3. Bem como que, no âmbito da sua atividade, a BB comercializa os seus produtos sob a marca “...”, os quais são da exclusiva criação do seu departamento de Design, ora integrado na direção artística.
4. E que, neste contexto, o método utilizado para o desenvolvimento dos produtos para as coleções anuais de Outono/Inverno e de Primavera/Verão tem como suporte o departamento de Designe a sua equipa, onde V. Ex.a está integrada, sendo a atual responsável por parte da coleção de Homem.
5. Sendo, em consequência, a produtividade de V. Ex.a aferida, de facto, aquando da apresentação de cada uma das duas supra referidas coleções.
6. Cabendo a direção de tal Departamento, desde Julho de 2013, à Senhora Dra. DD, a quem V. Ex.a passou a reportar.
7. V. Ex.a, pelo menos desde então, tem revelado sistemática relutância em aceitar as ordens da chefia, em obedecer a instruções e em responder a solicitações por parte dos seus superiores hierárquicos, colegas e mesmo clientes.
8. Com efeito, V. Ex.a tem, de forma reiterada, ignorado as ordens, solicitações e instruções da sua superior hierárquica, Senhora Dra. DD.
9. E isto apesar de V. Ex.a ter sido, por diversas vezes, alertada pelo próprio Administrador Delegado da Empresa, Senhor Dr. EE, que as ordens da sua chefia deviam ser respeitadas, o que aliás se verificou, em 03/02/2014, por email de que se junta cópia como Doc. n.º 1.
10. Em Fevereiro de 2014, aquando da apresentação por parte de Departamento de Design (Artístico) da Coleção Outono/Inverno 2014, a coleção de Homem, apresentada por V. Ex.a, como então lhe foi referido, por falta da sua diligência e profissionalismo, ficou muito aquém do expectável.
11. E isso devido à sua falta de partilha e comunicação com a chefia e não utilização dos conceitos transmitidos em briefings ou dos métodos sugeridos.
12. O que consta de forma expressa na troca de [correspondência] por emails, entre a sua superior hierárquica e o Administrador, com cópia para V. Ex.a, datados de 05 e 06/02/2014, que se anexam como Docs 2 e 3.
13. Ademais, V. Ex.a falta diversas vezes sem pré-aviso e sem justificar as faltas (a mais das vezes sempre em véspera ou dia seguinte a fins de semana ou feriados), entrando e saindo do local de trabalho sem dizer porque sai ou quando volta, quer aos seus colegas, quer aos seus superiores hierárquicos.
14. Não respondendo sequer V. Ex.a aos inúmeros telefonemas que os seus superiores hierárquicos ou Colegas, necessitando de informações urgentes, lhe efetuem.
15. Não respondendo V. Ex.a aos emails da sua superior hierárquica, ignorando as ordens verbais e escritas que dela vai recebendo.
16. Incumprindo V. Ex.a, sistematicamente, os prazos que são estabelecidos para a entrega de trabalhos.
17. Acresce que V. Ex.a, muitas das vezes, não entrega de forma correta, completa e clara as informações necessárias [para] serem fornecidas à produção e às fábricas fornecedoras dos produtos, não apresentando a documentação e as fichas técnicas de acordo com as regras definidas.
18. O que tem provocado sistemáticos atrasos e problemas de qualidade, nomeadamente na confeção de 1.200 polos de Homem produzidos na CC, Lda, que estão por vender, desde início de Setembro de 2014, por não apresentarem a qualidade requerida.
19. Além disso, foi constatado que V. Ex.a teria uma dívida de € 2.057,10 para com a BB, por roupa que terá levantado do armazém e que apesar de várias insistências e mesmo após acordo de que 50% desse montante seria pago até Setembro de 2014, nunca tal quantia foi paga ou, sequer, apresentado um plano de pagamentos.
20. Não havendo alteração de comportamento por parte de V. Ex.a e apesar das inúmeras conversas nesse sentido por parte dos seus superiores hierárquicos, em 7 de Maio de 2014, o Administrador da BB, Senhor Dr. EE, envia novamente email para V. Ex.a, de que se junta cópia como Doc. n.º 4, no qual lhe relembra mais uma vez a necessidade de cumprimento das regras legais no que respeita à justificação de faltas, de profissionalismo na execução do seu trabalho em sintonia com as determinações da sua chefia e cumprimento dos prazos estabelecidos.
21. Porém, V. Ex.a não alterou qualquer daqueles comportamentos.
22. O que determinou que, em 26 de Setembro de 2014, conforme Doc. que se junta sob o n.º 5, tenha sido solicitado a V. Ex.a informação por escrito, dada a impossibilidade de comunicação telefónica, por V. Ex.a, como habitualmente, não atender nem responder, reiteradamente, aos telefonemas de colegas e chefias, informação acerca dos bordados nos polos e em outras peças e ainda acerca de botões da nova coleção.
23. Todavia, V. Ex.a não se dignou sequer responder a esse pedido escrito de informação.
24. O que determinou que V. Ex.a fosse interpelada pelo próprio administrador da BB e mais uma vez advertida para que não ignore, nem desrespeite as instruções da Hierarquia, conforme se constata por email datado de 28/9/2014, que se junta como Doc. n.º 6.
25. Foram assim dadas a V. Ex.a todas as possibilidades de melhorar o seu desempenho, continuando, porém, V. Ex.a a ignorar, de forma reiterada, as ordens, instruções e solicitações de Colegas, chefias e fornecedores, provocando, deliberadamente, atrasos na conclusão das coleções, agindo, conscientemente, contra os interesses da BB.
26. Devido a esta falta de zelo e obediência no cumprimento estrito das suas funções, em 11 de Novembro de 2014, o Administrador da empresa, Senhor Dr. EE, convocou V.Ex.a para uma reunião, na presença da Dra. DD e o Sr. FF, que exerce as funções de Diretor da Produção na BB.
27. Nessa reunião e na presença de todos os supra citados, foi V. Ex.a advertida, mais uma vez, dos seguintes pontos:
1 - Não poderia mais continuar a atrasar deliberadamente a entrega de trabalhos solicitados pela chefia;
2 - Não poderia mais incumprir as regras definidas para tratamento de documentos e amostras;
3 - Não podia continuar, reiteradamente, a não responder a questões e solicitações da chefia;
4 -   Não poderia continuar a incumprir ordens verbais e escritas das chefias;
5 - Não poderia voltar a faltar com resposta atempada a problemas urgentes, que necessitavam de resolução imediata;
6 -   Teria de melhorar o seu desempenho, por forma a evitar as queixas do departamento de produção e dos fornecedores relativas a atraso e falha de qualidade do seu trabalho.
28. Apesar de formalmente advertida, V. Ex.a voltou a ignorar, deliberadamente, as instruções que lhe foram dadas,
29. E assim, no dia 1 de Dezembro de 2014 (2.ª feira), data em que deveria ter entregue a ultima parte da coleção Outono/Inverno de 2015, V. Ex.a faltou, tendo avisado a sua superior hierárquica, por sms enviado de um telefone desconhecido, que se encontrava com enxaquecas.
30. Tendo enviado um email, mais tarde, a solicitar que lhe fosse considerado o dia em falta como sendo de férias.
31. E, apesar de saber e conhecer que o seu trabalho se encontrava em prazo limite, já inclusive ultrapassado, no decurso dessa semana, V. Ex.a não concluiu o trabalho, embora conhecedora das consequências graves que esse facto podia acarretar para a BB.
32. No dia 9 de Dezembro de 2014 (3.ª feira), dia seguinte ao feriado de 8 de Dezembro, faltou novamente ao trabalho.
33. Enviou novo sms do mesmo telefone particular, não obstante ter telefone da empresa, para a sua superior hierárquica, informando que estava com enxaqueca e à espera de médico.
34. Devido à imperiosa necessidade de entrega do trabalho ou, pelo menos, acesso ao trabalho que V. Ex.a teria já desenvolvido, para entrega à produção e fábricas fornecedoras, quer o administrador da BB, quer a sua superior hierárquica, quer a funcionária administrativa, tentaram por inúmeras vezes contactar V. Ex.a sem que porém o tivessem conseguido ou que V. Ex.a tenha respondido às chamadas. Inclusive o administrador delegado telefonou igualmente para o seu telemóvel particular e para o da empresa, mas V. Ex.a não atendeu.
35. E isto apesar de V. Ex.a conhecer os números de telefone que a contactaram dezenas de vezes, demonstrando o seu desinteresse e falta de zelo no exercício das funções de lhe foram confiadas, tanto mais que conhecia a urgência e motivo pelo qual ligavam, dado estar [estabelecida] essa data como limite para entrega aos fornecedores, sob pena de atrasos, irremediáveis, na produção e lançamento da coleção.
36. E, no dia seguinte, dia 10 de Dezembro de 2014, V. Ex.a voltou a faltar, a nada dizer e a não atender o telefone, apesar das inúmeras tentativas por parte das chefias e Colegas.
37. Acresce que nesse mesmo dia 10 de Dezembro, V. Ex.a tinha aprazado uma reunião com um fornecedor, sem desse facto ter dado conhecimento a ninguém, nem mesmo à sua superior hierárquica.
38. Nesse mesmo dia enviou, a partir de seu email privado, email ao fornecedor a desmarcar a reunião, igualmente sem ter dado conhecimento ao seu superior hierárquico ou a ninguém da empresa, doc. 7.
39. Nem V. Ex.a se dignou dar qualquer explicação ou justificação pela falta de entrega dos trabalhos que lhe estavam confiados dentro do prazo há muito ultrapassado.
40. V. Ex.a, com a sua conduta, tem, de forma reiterada, provocado instabilidade no Departamento de Design, que é a pedra basilar de todo o processo criativo da marca ..., bem como no Departamento de Produção, tendo provocado prejuízos graves à BB.
41. Com a sua conduta, V. Ex.a violou os deveres de respeitar e tratar o empregador, os superiores hierárquicos, os colegas de trabalho e as pessoas que se relacionem com a empresa com urbanidade e probidade, de comparecer ao serviço com assiduidade e pontualidade, de realizar o seu trabalho com zelo, diligência e lealdade, de cumprir as ordens e instruções do empregador e seu superior hierárquico respeitantes a execução ou disciplina no trabalho, de promover ou executar os atos tendentes à melhoria da produtividade da empresa, tudo conforme disposto nas alíneas a), b), c), e ) e h) do n.º 1 e n.º 2 do artigo 128.º do Código do Trabalho.
42. Pelo exposto, face à matéria apurada e à gravidade dos comportamentos de V. Ex.a, entendemos que os factos que lhe são imputados, pela sua gravidade, são inviabilizadores da manutenção da relação laboral, pelo que lhe deverá ser aplicada a sanção de despedimento imediato, sem qualquer indemnização ou compensação, nos termos do disposto no artigo 328.º, n.º 1, alínea f), do Código do Trabalho.
43. Mais, mantém-se a decisão de suspensão preventiva de V. Ex.a, já notificada por carta datada de 11 de Dezembro de 2014, nos termos do n.º 1 do artigo 354.º do Código do Trabalho, por a sua presença na empresa se continuar a mostrar inconveniente.
44. Nos termos do n.º 1 do artigo 355.º do Código do Trabalho, V. Ex.a tem o prazo de 10 dias úteis, a contar da receção da presente Nota de Culpa, para apresentar, querendo, a sua defesa escrita e meios de prova que considere pertinentes para o esclarecimento da verdade.»
3) A Autora respondeu à nota de culpa por fax de 23/01/2015, conforme fls. 36 a 43 do processo disciplinar, que se reproduz, alegando, além do mais, que «os factos descritos na Nota de Culpa, para além de, na sua grande maioria, não constituírem mais do que ilações conclusivas, aliás, falsas, sem qualquer suporte fáctico circunstanciado e apoiados erroneamente em documentação truncada propositadamente desinserida do seu contexto, são inexatos, falsos e difamatórios» e concluindo que [o Tribunal da Relação eliminou a expressão sublinhada e aditou o subsequente texto a negrito]:
«18.  Não é a arguida que provoca instabilidade no Departamento de Design.
19.  A arguida não provocou quaisquer prejuízos à BB.
20.  A arguida não violou quaisquer deveres laborais.
21. Inexiste, assim, qualquer fundamento para o seu despedimento.»
4) Finda a instrução do processo disciplinar foi proferido relatório final, datado de 10/02/2015, com o teor de fls. 78 a 90 do processo disciplinar, que se dá por reproduzido, tendo sido proferida decisão de despedimento, com data de 11/02/2015, com o teor de fls. 88 do processo disciplinar, que se reproduz, notificada à autora por carta de 16/02/2015, pela mesma recebida em 18/02/2015 [o Tribunal da Relação eliminou as expressões sublinhadas];
5) A trabalhadora, AA, foi contratada pela BB, S. A., em regime de Contrato de Trabalho, com efeitos a partir de 15/03/2004, para exercer as funções de estilista;
6) A Ré tem como objeto comercial a conceção, confeção e venda de artigos de vestuário para homem e mulher e criança, comercialização de artigos de vestuário, podendo para tanto usar de quaisquer meios, designadamente a venda através de lojas próprias, franchisadas ou lojas multimarca;
7) No âmbito da sua atividade, a Ré comercializa os seus produtos sob a marca «...», os quais são da exclusiva criação do seu departamento de design, integrado na direção artística;
8) A autora encontra-se integrada no Departamento de Design e à data dos factos era a estilista responsável da coleção de homem;
9) Tal departamento cria duas coleções anuais de Outono/Inverno e de Primavera/Verão, da marca ...;
10) A produtividade dos trabalhadores deste departamento e em particular da autora, apenas podia ser aferida e avaliada, duas vezes por ano, coincidindo com a apresentação de cada uma das coleções de Outono/Inverno e Primavera/Verão;
11) O departamento de design é dirigido, desde julho de 2013, pela Sra. Dra. DD;
12) Conforme email datado de 03/02/2014, constante de fls. 25 e 54 dos autos de processo disciplinar, a autora foi advertida pelo administrador delegado da empresa, Sr. Dr. EE, de que as ordens da sua chefia deviam ser respeitadas, nos seguintes termos: «[…] As hierarquias devem ser respeitadas, e cada um deve assumir a sua missão com alegria e vontade de vencer. […]»;
13) Com conhecimento à autora, o administrador delegado da empresa e a superior hierárquica da autora trocaram os emails de 05/02/2014 e 06/02/2014, que constituem os documentos de fls. 21 a 24, cujo teor se reproduz, constando do enviado pelo primeiro à segunda, além do mais, que «como lhe disse acho que o trabalho para a coleção homem O/I 2014 não está aceitável e será necessário rapidamente encontrar uma forma de acabar esta coleção…»; «A apresentação foi surrealista, e não se repetirá tamanha desorganização.»
E do enviado pela superior hierárquica da A. ao administrador delegado da empresa, além do mais, o seguinte:
«Coleção de Homem – AA
Quanto à AA, a comunicação estabelecida não é tão fluida. A mesma não me passa o feedback que entendo ser necessário para o desenvolvimento da Coleção de Homem (falta de sentido da partilha), gerindo muitas vezes por si mesma o trabalho (individualismo) e não partilhando comigo (a falta de comunicação com o interlocutor privilegiado e hierarquicamente responsável não pode acontecer, com prejuízos da relação e o embargo da satisfação das necessidades propostas e aprovadas). Entendo que só agora iniciámos o processo, e que é necessário tempo para melhorar e corrigir situações: Mas para tal considero que a AA terá que rever a sua forma de comunicar e entender que a Coleção e a Marca são a mais-valia da empresa. Assim, a coleção, naturalmente, não traduz os inputs enviados, não sendo a sua leitura tão clara e definida. Claro que da minha parte à semelhança da coleção de senhora, haverá  sempre algo a melhorar, em particular, o afinamento dos timings de entrega de cada uma das fases, o que permitirá um maior approach com o designer, desta forma, criando mais método e regra.
Conclusão:
Se os briefings e os métodos sugeridos foram enviados de igual forma para as colaboradoras do Dep. de Design, por que razão são discrepantes as Coleções de Homem e de Senhora?
As razões de base, em meu entender, estão explicitadas acima.» [o Tribunal da Relação eliminou a expressão sublinhada e aditou o texto a negrito];
14) A coleção de homem outono/inverno 2014, criada pela Autora e apresentada em fevereiro de 2014, foi do desagrado da administração da empresa;
15) Em 7 de maio de 2014, o administrador da Ré, Dr. EE, enviou email à Autora, o qual consta a fls. 19 e 20, 47 e 48 dos autos de processo disciplinar, no qual a adverte da necessidade de dar cumprimento às regras legais no que respeita à justificação de faltas, apelando ainda ao profissionalismo da autora na execução do trabalho em sintonia com as determinações da sua chefia e cumprimento dos prazos estabelecidos;
16) O facto de a Autora não ter apresentado a documentação e fichas técnicas de acordo com as regras definidas provocou atrasos e problemas de qualidade na confeção de 1200 polos de homem produzidos na CC, Lda., que estão por vender desde início de setembro de 2014, por não apresentarem a qualidade requerida [o Tribunal da Relação deliberou dar como não escrita esta proposição, por considerar tratar-se de matéria conclusiva];
17) No dia 26 de setembro de 2014, conforme documento constante de fls. 17 e 45 dos autos de processo disciplinar, foi solicitado à autora via email, por uma colega de trabalho, Sra. D. GG, informação acerca dos bordados nos polos e em outras peças e ainda acerca de botões da nova coleção;
18) A Autora não respondeu a esse pedido escrito de informação;
19) Em 28/09/2014, a Autora foi interpelada pelo próprio administrador da BB e mais uma vez advertida para que não ignorasse, nem desrespeitasse as instruções da hierarquia, conforme documentos constantes dos autos a fls. 18 e 46 do processo disciplinar;
20) Em 11 de novembro de 2014, o administrador da empresa, Sr. Dr. EE, convocou a autora para uma reunião, na presença da Dra. DD (sua superior hierárquica) e o Sr. FF, que exerce as funções de diretor da produção da Ré;
21) Nessa reunião, a Autora foi advertida que:
A -    Não poderia mais continuar a atrasar deliberadamente a entrega de trabalhos solicitados pela chefia;
B -    Não poderia mais incumprir as regras definidas para tratamento de documentos e amostras;
C -   Não podia continuar, reiteradamente, a não responder a questões e solicitações da chefia;
D -   Não poderia continuar a incumprir ordens verbais e escritas das chefias;
E -    Não poderia voltar a faltar com resposta atempada a problemas urgentes, que necessitavam de resolução imediata;
F -    Teria de melhorar o seu desempenho, por forma a evitar as queixas do departamento de produção e dos fornecedores relativas a atraso e falha de qualidade do seu trabalho;
22) No dia 1 de dezembro de 2014 (2.ª feira), data em que deveria ter entregue a última parte da coleção Outono/Inverno de 2015, a autora faltou ao trabalho, tendo avisado a sua superior hierárquica, por sms enviado de um telefone desconhecido, que se encontrava doente, padecendo de enxaquecas;
23) Enviou a autora mais tarde um email, com o teor de fls. 13 do processo disciplinar, a solicitar que lhe fosse considerado o dia em falta como sendo de férias;
24) A Autora sabia que o limite de prazo de entrega do seu trabalho (01/12/2014) se encontrava ultrapassado, mas ainda assim, no decurso dessa semana, não concluiu o trabalho;
25) A autora conhecia as consequências que esse facto podia acarretar para a Ré;
26) No dia 9 de dezembro de 2014 (3.ª feira), dia seguinte ao feriado de 8 de dezembro, faltou novamente ao trabalho;
27) Enviou novo sms de telefone desconhecido, não obstante ter telefone da empresa, para a sua superior hierárquica, informando que estava com enxaqueca e à espera de médico;
28) Devido à necessidade de entrega do trabalho ou, pelo menos, acesso ao trabalho já desenvolvido pela autora, para entrega à produção e fábricas fornecedoras, quer o administrador da Ré, quer a sua superior hierárquica, quer a funcionária administrativa, tentaram por inúmeras vezes contactá-la por telefone;
29) Porém, não conseguiram, pois esta nunca atendeu o telefone ou respondeu às chamadas, apesar de conhecer os números de telefone que a contactaram dezenas de vezes;
30) No dia seguinte, dia 10 de dezembro de 2014, a trabalhadora voltou a faltar, e a nada dizer, não atendeu novamente o telefone apesar das inúmeras chamadas telefónicas que lhe foram efetuadas por parte das chefias e Colegas;
31) A trabalhadora apresentou posteriormente justificação das suas faltas nos dias 09 e 10 de dezembro, com declaração médica emitida pelo II, S. A., a qual informa que esta foi observada no dia 09/12/2014 e se encontra impossibilitada de cumprir com as suas obrigações profissionais nesses dias;
32) No dia 10 de dezembro 2014, a Autora tinha aprazado uma reunião com um fornecedor, HH, sem desse facto ter dado conhecimento a ninguém, nem mesmo à sua superior hierárquica;
33) Nesse mesmo dia enviou, a partir de seu email privado (...@hotmail.com), email ao fornecedor a desmarcar a reunião, igualmente sem ter dado conhecimento ao seu superior hierárquico ou a alguém da empresa, conforme documento constante de fls. 16 dos autos de procedimento disciplinar;
34) A Autora não deu qualquer explicação ou justificação pela falta de entrega do trabalho que lhe estava confiado e já haviam passado 10 dias sobre a data limite para apresentação do mesmo;
35) A Autora tinha uma dívida de € 1.957,10 para com a Ré, por roupa que levantou no armazém, desde janeiro de 2014 (o Tribunal da Relação retificou o ano em causa de 2015 para 2014, «considerando o teor do documento de suporte da alegação e a coerência cronológica com o mais alegado»);
36) O pagamento de tal valor foi por diversas vezes solicitado à Autora;
37) A Autora acordou com o administrador da Ré que 50% desse montante seria pago até setembro de 2014, todavia nunca pagou tal quantia ou, sequer, apresentou um plano de pagamento alternativo;
38) Em 07/05/2014, por ocasião do pagamento de férias referentes ao ano de 2013, insistiu o administrador da Ré no pagamento do valor em dívida, todavia nada foi pago pela trabalhadora, nem nessa data nem em momento posterior.

2. A ré/recorrente, na conclusão s) da alegação do recurso de revista, afirma não aceitar que o Tribunal da Relação recorrido tenha dado como não escrito o n.º 16 da matéria de facto tida por provada pelo tribunal de 1.ª instância.

Neste particular, o aresto recorrido, após enunciar as considerações jurídicas atinentes à apreciação das questões 4.ª e 5.ª suscitadas no recurso de apelação, a saber, «inexistência de justa causa para o despedimento da trabalhadora» e «se o  despedimento era uma sanção desproporcional», aduziu a fundamentação seguinte:

«Antes de mais, cumpre dizer que a matéria constante do ponto 16 da matéria de facto provada, ou seja, “o facto de a Autora não ter apresentado a documentação e fichas técnicas de acordo com as regras definidas provocou atrasos e problemas de qualidade na confeção de 1200 polos de homem produzidos na CC, Lda, que estão por vender desde início de setembro de 2014, por não apresentarem a qualidade requerida”, é matéria conclusiva.
Na verdade, dizer-se que o não ter apresentado a documentação e fichas técnicas de acordo com as regras definidas provocou atrasos e problemas de qualidade na confeção mais não é do que uma conclusão que devia retirar-se dos respetivos factos demonstrativos do não cumprimento das regras definidas.
Quais eram as regras definidas? E os problemas de qualidade? Não sabemos. Tais factos não constam da matéria de facto provada sendo que, nem sequer foram alegados, o que impossibilita o tribunal de concluir pelo não cumprimento daquelas e pelos consequentes atrasos e problemas de qualidade na confeção.
Assim sendo, e tendo em conta que o juiz, na sentença, deve discriminar os factos que considera provados (n.º 3 do artigo 607.º, do C.P.C.) e não matéria conclusiva, a constante do ponto 16 do elenco dos factos provados deve dar-se como não escrita [...].»

A questão de saber se o n.º 16 da matéria de facto tida como provada na 1.ª instância contém matéria conclusiva e, por isso, deve dar-se como não escrito, não resulta do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto questionada, hipótese em que não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do n.º 4 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, mas antes da estrita aplicação de um critério normativo extraído do n.º 3 do artigo 607.º do mesmo Código, enquanto fundamento da distinção entre questão de facto e de direito, pelo que, versando afinal sobre matéria de direito, não está vedada ao conhecimento deste Supremo Tribunal.

Estabelece o n.º 3 do artigo 607.º do Código de Processo Civil, diploma a que pertencem os preceitos adiante citados, sem menção da origem, que o juiz, na elaboração da sentença, deve «discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes».

O n.º 4 da mesma norma reza que «[n]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência».

No n.º 16 da matéria de facto tida como provada pela 1.ª instância constava que «[o] facto de a Autora não ter apresentado a documentação e fichas técnicas de acordo com as regras definidas provocou atrasos e problemas de qualidade na confeção de 1200 polos de homem produzidos na CC, Lda., que estão por vender desde início de setembro de 2014, por não apresentarem a qualidade requerida», proposição que o Tribunal da Relação considerou como não escrita, por entender que se tratava de matéria conclusiva.

Ora, a questionada proposição, pese embora algum défice de densificação e concretização no plano factual, não se reconduz ao uso de conceitos normativos de que dependa a solução, no plano jurídico, do caso, contendo antes um inquestionável substrato factual, minimamente consistente, que deve ser interpretado em conexão com os restantes segmentos que integram o acervo factual provado, nomeadamente os factos provados 15), 17), 18), 19), 20) e 21), alíneas B., D. e F., deles resultando a caracterização das regras definidas em causa e dos concretos problemas de qualidade.

Assim sendo, carece de fundamento a eliminação do apontado segmento da matéria de facto, porquanto o mesmo consubstancia o mínimo de densidade factual exigível, termos em que o n.º 16 da matéria de facto deve subsistir no elenco da matéria de facto provada, tal como foi delineado pelo tribunal de 1.ª instância.

Procede, pois, a conclusão s) da alegação do recurso de revista.

3. A ré/recorrente, nas conclusões t) a v) da alegação do recurso de revista, sustenta que, caso se considere essencial, para aferir da licitude do despedimento, o apuramento das regras definidas, dos problemas de qualidade que se verificaram e dos prejuízos patrimoniais verificados, «deverão os presentes autos ser remetidos para audiência de discussão e julgamento», na medida em que, «[s]em tal produção de prova revela-se prematuro e vedador da defesa da ora Recorrente fazer prova de tal facto dado por não escrito pelo Tribunal a quo, o que jamais é aceitável».

Nos termos dos conjugados artigos 682.º, n.º 3, e 683.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, este Supremo Tribunal pode mandar «julgar novamente a causa», quando «entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito».

Porém, conforme se vem entendendo uniformemente, a faculdade concedida a este Supremo Tribunal de ordenar a ampliação da matéria de facto, só pode ser exercida no respeitante a factos articulados pelas partes ou de conhecimento oficioso, em consonância com o prevenido no n.º 2 do artigo 5.º do Código de Processo Civil.

No caso vertente, para além dos factos já considerados pelas instâncias, não se descortina qualquer outra factualidade, aduzida pelas partes ou de consideração oficiosa, com relevância para a decisão de direito.

Acresce que não se vislumbram contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito.

Assim, não há fundamento para determinar a ampliação da matéria de facto, ao abrigo do n.º 3 do artigo 682.º do Código de Processo Civil, pelo que improcedem as conclusões t) a v) da alegação do recurso de revista.

Será, pois, com base no acervo factual anteriormente enunciado que hão de ser resolvidas as restantes questões suscitadas no recurso em apreciação.

4. A recorrente alega que está bem fundamentado o despedimento, dado que se verifica o comportamento culposo da recorrida, «nomeadamente na violação do dever de zelo e diligência a que estava obrigada», e que «[o]s factos provados, nomeadamente os factos 14), 16), 21), 22), 24), 25), 28) e 29), são  manifestamente demonstrativos de que a ora Recorrida, ao não entregar atempadamente — como bem sabia que estava obrigada — o seu trabalho respeitante à coleção de homem, para além de denotar o incumprimento dos deveres que lhe estão impostos, era suscetível de provocar grandes danos financeiros à ora  Recorrente».

Mais aduz que «[o]s comportamentos culposos e desobedientes reiterados da Recorrida […] atestam a prática de atos totalmente culposos e lesivos dos deveres que impendem sobre a mesma, enquanto trabalhadora», que a recorrida «não se escusou de prosseguir com os comportamentos culposos, não obstante ter sido diversas vezes alertada para o efeito, nomeadamente pelo administrador da ora Recorrida» e ainda que, «[a]tentas as situações de incumprimento reiterado da ora Recorrida encontra-se minada irremediavelmente, pela sua gravidade intrínseca, a relação de confiança que existia antes da ocorrência de tais episódios entre as partes como pressuposto de manutenção da relação de trabalho».

A ré/recorrente alega, ainda, que «é manifesto o nexo causal existente entre o comportamento culposo da trabalhadora e a impossibilidade de subsistência da relação laboral», embora «não se tenham comprovado nos autos quaisquer prejuízos monetários para a ora Recorrente, o que no entender da mesma não é indispensável para ser considerado lícito o despedimento», e que «[o] facto de a ora Recorrida não ter sido anteriormente objeto de qualquer procedimento disciplinar assume diminuta relevância, dada a antiguidade que a mesma tinha na empresa Recorrente (desde 15.03.2004), não afastando de modo algum tal a gravidade do seu comportamento», pelo que deve revogar-se o acórdão recorrido, «declarando-se regular e lícito o despedimento da ora Recorrida promovido pela ora Recorrente, fazendo-se deste modo uma correta aplicação do disposto no art. 351.º do CT […]».
A sentença do tribunal de 1.ª instância entendeu que mesmo desconhecendo a existência de prejuízos, «a atuação da autora, reveladora de [um] manifesto e repetido desinteresse pelo cumprimento, com a diligência devida, das obrigações inerentes ao seu posto de trabalho, enquanto estilista responsável pela coleção de homem da marca e, até certo ponto, de afronta à hierarquia, foi suficientemente grave para tornar inexigível à ré a manutenção da confiança no desempenho futuro da autora, a qual constitui o suporte mínimo da manutenção da relação de trabalho», daí que «impor à ré a manutenção do contrato de trabalho é impor-lhe um ónus que a mesma não tem obrigação de suportar, sendo a atuação da autora causal da impossibilidade de subsistência da relação de trabalho e como tal […] procede [a] justa causa para o seu despedimento». 

Diversamente, o acórdão recorrido concluiu que a atuação da trabalhadora, apesar de violadora do dever de diligência, «não assume em si mesma e nas suas consequências gravidade bastante que torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho», e que não se verifica «um manifesto e repetido desinteresse pelo cumprimento com a diligência devida das obrigações inerentes ao posto de trabalho» — «falta de zelo e diligência houve, mas já não um desinteresse repetido pelo cumprimento com a diligência devida» —, donde o despedimento «não se mostra proporcional à gravidade do seu comportamento», sendo a aplicação de uma sanção conservatória «suficiente para repor o normal desenvolvimento da relação laboral devendo, assim, prevalecer o interesse na permanência do contrato», termos em que declarou a ilicitude do despedimento efetivado.

4.1. A proibição dos despedimentos sem justa causa recebeu expresso reconhecimento constitucional no artigo 53.º da Lei Fundamental, subordinado à epígrafe «Segurança no emprego» e inserido no capítulo III («Direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores»), do Título II («Direitos, liberdades e garantias») da Parte I («Direitos e deveres fundamentais»).

No plano infraconstitucional, estando em causa um despedimento efetuado em 18 de fevereiro de 2015, há que atender à disciplina legal do despedimento por facto imputável ao trabalhador contida no Código do Trabalho de 2009, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro, em vigor a partir de 17 de Fevereiro de 2009, diploma a que pertencem os demais preceitos a citar adiante, sem menção da origem.

De acordo com o n.º 1 do artigo 351.º constitui justa causa de despedimento «o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho».

O conceito de justa causa formulado neste normativo integra, segundo o entendimento generalizado tanto na doutrina, como na jurisprudência, três elementos: a) um elemento subjectivo, traduzido num comportamento culposo do trabalhador, por acção ou omissão; b) um elemento objectivo, traduzido na impossibilidade da subsistência da relação de trabalho; c) o nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade.

Ora, verifica-se a impossibilidade prática da subsistência da relação laboral, quando se esteja perante uma situação de absoluta quebra de confiança entre a entidade patronal e o trabalhador, susceptível de criar no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta daquele.

Na concretização do critério geral para determinação da justa causa, o n.º 2 do artigo 351.º indica alguns comportamentos do trabalhador que podem configurar justa causa de despedimento, indicação que assume clara natureza exemplificativa.

Por outro lado, os deveres do trabalhador são listados no artigo 128.º, sendo que o incumprimento baseado no comportamento ilícito e culposo do trabalhador tanto pode proceder do desrespeito de deveres principais, como o dever de realizar o trabalho com zelo e diligência [alínea c)], de deveres secundários, como o dever de velar pela conservação e boa utilização dos bens relacionados com o seu trabalho [alínea g)], ou de deveres acessórios de conduta, deduzidos do princípio geral da boa-‑fé no cumprimento das obrigações, acolhido no n.º 2 do artigo 762.º do Código Civil e reiterado no n.º 1 do artigo 126.º do Código do Trabalho, figurando, entre eles, o dever de guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios [alínea f)], que são apenas afloramentos do dever de lealdade, como flui do termo «nomeadamente» aí utilizado.

Tal como determina o n.º 3 do artigo 351.º, «[p]ara apreciação da justa causa deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes».

Nesta conformidade, a determinação em concreto da justa causa resolve-se pela ponderação de todos os interesses em presença, face à situação de facto que a gerou. Há justa causa quando, ponderados esses interesses e as circunstâncias do caso que se mostrem relevantes — intensidade da culpa, gravidade e consequências do comportamento, grau de lesão dos interesses do empregador, carácter das relações entre as partes —, se conclua pela premência da desvinculação.

Por conseguinte, o conceito de justa causa liga-se à inviabilidade do vínculo contratual, e corresponde a uma crise contratual extrema e irreversível.

Refira-se que, na presente ação, o ónus probatório compete à trabalhadora quanto à existência do contrato de trabalho e ao despedimento, recaindo sobre a empregadora relativamente à verificação da justa causa de despedimento, sendo que «o empregador apenas pode invocar factos e fundamentos constantes de decisão de despedimento comunicada ao trabalhador» (artigos 342.º, n.os 1 e 2, do Código Civil e 387.º, n.os 1 e 3, do Código do Trabalho).
4.2. O comportamento infracional imputado à trabalhadora cinge-se, como dão nota os autos e os factos provados, ao desinteresse repetido pelo cumprimento, com a diligência devida, das obrigações inerentes ao exercício do posto de trabalho.

Neste plano de consideração, demonstrou-se que a ré/recorrente «tem como objeto comercial a conceção, confeção e venda de artigos de vestuário para homem e mulher e criança, comercialização de artigos de vestuário, podendo para tanto usar de quaisquer meios, designadamente a venda através de lojas próprias, franchisadas ou lojas multimarca» [facto provado 6)], que «a Ré comercializa os seus produtos sob a marca ..., os quais são da exclusiva criação do seu departamento de design, integrado na direção artística» [facto provado 7)] e que a trabalhadora «foi contratada pela BB, S. A., em regime de Contrato de Trabalho, com efeitos a partir de 15/03/2004, para exercer as funções de estilista» [facto provado 5)], sendo «integrada no Departamento de Design e à data dos factos era a estilista responsável da coleção de homem» [facto provado 8)], departamento que «cria duas coleções anuais de Outono/Inverno e de Primavera/Verão, da marca ...» [facto provado 9)], pelo que «[a] produtividade dos trabalhadores deste departamento e em particular da autora, apenas podia ser aferida e avaliada, duas vezes por ano, coincidindo com a apresentação de cada uma das coleções de Outono/Inverno e Primavera/Verão» [facto provado 10)].

Mais se provou que «[o] departamento de design é dirigido, desde julho de 2013, pela Sra. Dra. DD», e que, em 3 de fevereiro de 2014, «a autora foi advertida pelo administrador delegado da empresa, Sr. Dr. EE, de que as ordens da sua chefia deviam ser respeitadas», sendo que, em 7 de maio de 2014, foi advertida pelo mesmo administrador, «da necessidade de dar cumprimento às regras legais no que respeita à justificação de faltas, apelando ainda ao profissionalismo da autora na execução do trabalho em sintonia com as determinações da sua chefia e cumprimento dos prazos estabelecidos» [factos provados 11), 12) e 15)].

O certo é que, não obstante as ditas advertências, pelo facto da autora «não ter apresentado a documentação e fichas técnicas de acordo com as regras definidas, provocou atrasos e problemas de qualidade na confeção de 1200 polos de homem produzidos na CC, Lda., que estão por vender desde início de setembro de 2014, por não apresentarem a qualidade requerida», e embora, em 26 de setembro de 2014, tenha sido pedida «à autora, via email, por uma colega de trabalho, […], informação acerca dos bordados nos polos e em outras peças e ainda acerca de botões da nova coleção», «[a] autora não respondeu a esse pedido escrito de informação», o que determinou que, em 28 de setembro de 2014, a autora tivesse sido «interpelada pelo próprio administrador da BB e mais uma vez advertida para que não ignorasse, nem desrespeitasse as instruções da hierarquia», sendo que, em  11 de novembro de 2014, «o administrador da empresa, Sr. Dr. EE, convocou a autora para uma reunião, na presença da Dra. DD (sua superior hierárquica) e o Sr. FF, que exerce as funções de diretor da produção da Ré», tendo-a advertido, nessa reunião, que «não poderia mais continuar a atrasar deliberadamente a entrega de trabalhos solicitados pela chefia», «não poderia mais incumprir as regras definidas para tratamento de documentos e amostras», «não podia continuar, reiteradamente, a não responder a questões e solicitações da chefia», «não poderia continuar a incumprir ordens verbais e escritas das chefias», «não poderia voltar a faltar com resposta atempada a problemas urgentes, que necessitavam de resolução imediata» e «teria de melhorar o seu desempenho, por forma a evitar as queixas do departamento de produção e dos fornecedores relativas a atraso e falha de qualidade do seu trabalho» [factos provados 16) a 21)].

Sucede que, pese embora as sucessivas advertências que foram dirigidas à autora, por parte da Administração:

«22)  No dia 1 de dezembro de 2014 (2.ª feira), data em que deveria ter entregue a última parte da coleção Outono/Inverno de 2015, a autora faltou ao trabalho, tendo avisado a sua superior hierárquica, por sms enviado de um telefone desconhecido, que se encontrava doente, padecendo de enxaquecas;
23)  Enviou a autora mais tarde um email, […], a solicitar que lhe fosse considerado o dia em falta como sendo de férias;
24)  A Autora sabia que o limite de prazo de entrega do seu trabalho (01/12/2014) se encontrava ultrapassado, mas ainda assim, no decurso dessa semana, não concluiu o trabalho;
25)  A autora conhecia as consequências que esse facto podia acarretar para a Ré;
26)  No dia 9 de dezembro de 2014 (3.ª feira), dia seguinte ao feriado de 8 de dezembro, faltou novamente ao trabalho;
27)  Enviou novo sms de telefone desconhecido, não obstante ter telefone da empresa, para a sua superior hierárquica, informando que estava com enxaqueca e à espera de médico;
28)  Devido à necessidade de entrega do trabalho ou, pelo menos, acesso ao trabalho já desenvolvido pela autora, para entrega à produção e fábricas fornecedoras, quer o administrador da Ré, quer a sua superior hierárquica, quer a funcionária administrativa, tentaram por inúmeras vezes contactá-la por telefone;
29)  Porém, não conseguiram, pois esta nunca atendeu o telefone ou respondeu às chamadas, apesar de conhecer os números de telefone que a contactaram dezenas de vezes;
30)  No dia seguinte, dia 10 de dezembro de 2014, a trabalhadora voltou a faltar, e a nada dizer, não atendeu novamente o telefone apesar das inúmeras chamadas telefónicas que lhe foram efetuadas por parte das chefias e Colegas;
31)  A trabalhadora apresentou posteriormente justificação das suas faltas nos dias 09 e 10 de dezembro, com declaração médica emitida pelo II, S. A., a qual informa que esta foi observada no dia 09/12/2014 e se encontra impossibilitada de cumprir com as suas obrigações profissionais nesses dias;
32)  No dia 10 de dezembro 2014, a Autora tinha aprazado uma reunião com um fornecedor, HH, sem desse facto ter dado conhecimento a ninguém, nem mesmo à sua superior hierárquica;
33)  Nesse mesmo dia enviou, a partir de seu email privado […], email ao fornecedor a desmarcar a reunião, igualmente sem ter dado conhecimento ao seu superior hierárquico ou a alguém da empresa, […];
34)  A Autora não deu qualquer explicação ou justificação pela falta de entrega do trabalho que lhe estava confiado e já haviam passado 10 dias sobre a data limite para apresentação do mesmo.»

A conduta descrita assume indiscutível relevância disciplinar, na medida em que ofende, principal e predominantemente, o dever de realizar o trabalho com zelo e diligência e o dever de cumprir as instruções do empregador pertinentes à execução do trabalho, sendo que a circunstância de se desconhecer a existência de concretos prejuízos decorrentes daquela conduta, não dirime a acolhida relevância disciplinar, já que se demonstrou que a autora foi advertida, várias vezes, pela Administração, para respeitar as determinações da sua chefia e cumprir os prazos estabelecidos.

Acresce que, tal como resulta dos factos provados, «a Ré comercializa os seus produtos sob a marca “...”, os quais são da exclusiva criação do seu departamento de design, integrado na direção artística», e a autora, à data dos factos, «era a estilista responsável da coleção de homem», cabendo àquele departamento criar «duas coleções anuais de Outono/Inverno e de Primavera/Verão, da marca ...», o que evidencia a importância da atividade da autora no processo criativo daquela marca e nos resultados comerciais da empregadora [factos provados 6) a 9)].

Mostra-se, assim, provada a violação, pela trabalhadora, do dever de realizar o trabalho com zelo e diligência, previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º, sendo que a alínea d) do n.º 2 do artigo 351.º acolhe como justa causa de despedimento, o desinteresse repetido pelo cumprimento, com a diligência devida, de obrigações inerentes ao exercício do cargo ou posto de trabalho a que o trabalhador está afeto.

4.3. Afirmada a relevância disciplinar dos comportamentos imputados à trabalhadora, a apreciação da sua gravidade, para efeito de ponderação da justa causa de despedimento, há de aferir-se em função do circunstancialismo que os rodeia.

Milita a favor da trabalhadora, neste âmbito, a sua antiguidade (foi admitida a partir de 15 de março de 2004 e o seu despedimento ocorreu em 18 de fevereiro de 2015) e a circunstância de não lhe serem conhecidos antecedentes disciplinares.

Todavia, não se afigura que esses factos sejam suficientes para neutralizar ou diminuir a gravidade dos comportamentos assumidos pela autora, em ordem a impor à ré a manutenção do vínculo laboral.

Impressiona, neste domínio, a demonstrada indiferença da trabalhadora em relação às sucessivas advertências por parte da Administração da ré e a ausência de explicação ou justificação para o não atendimento dos pedidos de informação que lhe foram dirigidos por superiores hierárquicos e companheiros de trabalho, bem como para a não entrega atempada do trabalho que lhe estava confiado [facto provado 34)].

O comportamento da trabalhadora tem de ser analisado na perspetiva da sua projeção sobre o vínculo laboral, em atenção às funções por ela desempenhadas e à possibilidade de estas subsistirem sem lesão irremediável dos deveres fundamentais inerentes. E, neste conspecto, há que reconhecer que o sobredito comportamento, nas circunstâncias concretas em que ocorreu, teve necessariamente como consequência a perda de confiança na trabalhadora, a quem estavam confiadas funções de criação da marca ..., «responsável da coleção de homem», cuja elaboração estava sujeita a prazos rigorosos, estatuto que lhe impunha uma especial postura de zelo e diligência, e que, uma vez frustrada, é suscetível de criar na entidade empregadora fortes dúvidas acerca da idoneidade futura do seu comportamento, acrescendo que, também do ponto de vista objectivo, revela uma completa desadequação da conduta da trabalhadora no respeito pelos interesses da entidade empregadora.

Neste contexto, impõe-se concluir que a trabalhadora, com a assinalada conduta, violou, culposamente e de forma grave, os deveres de cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes à execução do trabalho e de realizar com zelo e diligência as funções que lhe estavam confiadas, previstos no artigo 128.º, n.º 1, alíneas c) e e), e que essa conduta, nas circunstâncias concretas em que ocorreu, tornou, pela sua gravidade e consequências, imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral, verificando-se justa causa para o despedimento.

Procedem, assim, as conclusões a) a r) e w) a bb) da alegação do recurso.

5. Em derradeiro termo, a ré/recorrente sustenta que, caso se entenda «que o despedimento da ora Recorrida é ilícito — o que jamais se aceita — nunca poderão os pedidos formulados pela mesma, em decorrência de tal, ser atendidos no âmbito da presente ação, atento o facto da contestação apresentada não ter sido admitida».

Ora, tendo-se concluído pela licitude do despedimento, fica prejudicado o conhecimento da questão suscitada nas conclusões cc) a hh) da alegação do recurso.

Efetivamente, o n.º 2 do artigo 608.º do Código de Processo Civil, aplicável aos acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do preceituado nos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º daquele Código, estatui que o tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
                                             III

Pelo exposto, delibera-se conceder a revista e revogar o aresto recorrido, na parte em que (i) deu como não escrito o ponto 16) do elenco dos factos provados, (ii) declarou a ilicitude do despedimento e (iii) condenou a entidade empregadora a pagar à trabalhadora uma indemnização em substituição da reintegração e as retribuições que esta deixou de auferir, desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão, absolvendo-se, em conformidade, a ré do pedido.

Custas, nas instâncias e no Supremo, a cargo da trabalhadora/recorrida.

Anexa-se o sumário do acórdão.

Lisboa, 12 de janeiro de 2017
 
Pinto Hespanhol - Relator

Gonçalves Rocha

António Leones Dantas


---*---



                           S U M Á R I O

FACTOS CONCLUSIVOS
AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DESPEDIMENTO COM JUSTA CAUSA
DEVER DE ZELO E DILIGÊNCIA

1.  O n.º 16 da matéria de facto tida como provada pelo tribunal de 1.ª instância, pese embora algum défice de densificação e concretização no plano factual, porque não se reconduz ao uso de conceitos normativos de que dependa a solução, no plano jurídico, do caso e na medida em que contém um inquestionável substrato factual, minimamente consistente, que deve ser interpretado em conexão com os restantes segmentos que integram o acervo factual provado, pode subsistir no elenco dos factos materiais a considerar para a decisão do pleito.
2.  A faculdade concedida ao Supremo Tribunal de Justiça de ordenar a ampliação da matéria de facto, só pode ser exercida no respeitante a factos articulados pelas partes ou de conhecimento oficioso.
3.  Provado que a trabalhadora, que exercia as funções de estilista, responsável pela elaboração de coleção de roupa de homem, demonstrou reiterada indiferença pelas sucessivas advertências por parte da Administração da ré para que executasse o trabalho em sintonia com as determinações da sua chefia e cumprisse os prazos estabelecidos, e que não deu justificação para o não atendimento dos pedidos de informação que lhe foram dirigidos por superiores hierárquicos e companheiros de trabalho, bem como para a não entrega atempada do trabalho que lhe estava confiado, violou, culposamente e de forma grave, os deveres de cumprir as ordens e instruções do empregador atinentes à execução do trabalho e de realizar com zelo e diligência as funções que lhe estavam confiadas.
4.  Neste contexto, este comportamento tornou, pela sua gravidade e consequências, imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral, verificando-‑se, assim, justa causa para o despedimento.

Data do Acórdão: 12 de Janeiro de 2017
Processo n.º 1083/15.4T8MTS.P1.S1 (Revista) – 4.ª Secção
Pinto Hespanhol (relator)
Gonçalves Rocha
Leones Dantas