Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A2124
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: HÉLDER ROQUE
Descritores: NASCITURO
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
DOCUMENTO SUPERVENIENTE
ALEGAÇÕES DE RECURSO
ACIDENTE DE VIAÇÃO
FACTO NOTÓRIO
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS FUTUROS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
SEGURANÇA SOCIAL
DANO MORTE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: SJ200902170021241
Data do Acordão: 02/17/2009
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVII, TOMO I/2009, P. 96
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - São três os fundamentos excepcionais justificativos da apresentação de documentos supervenientes com as alegações de recurso: destinarem-se os documentos a provar factos posteriores aos articulados; ter-se tornado necessária a sua junção por virtude de ocorrência posterior; e tornar-se a sua apresentação necessária devido ao julgamento proferido em 1.ª instância.
II - Não é facto notório que pela circunstância de o acidente ter acontecido junto a uma loja Maxmat o mesmo se tenha registado dentro de uma povoação, devendo antes figurar entre a matéria alegada e ser objecto de prova positiva.
III - A indemnização dos danos patrimoniais devidos aos parentes, em caso de morte da vítima, reconduz-se, praticamente, à prestação dos alimentos, sendo titulares deste direito os que podiam exigir alimentos ao lesado, em conformidade com o disposto pelos arts. 495.º, n.º 3, 2009.º, n.º 1, al. a), 2015.º e 1675.º, todos do CC.
IV - Considerando que, em consequência de acidente de viação, totalmente imputável a culpa do condutor segurado, faleceu o marido da Autora, que tinha então 35 anos de idade e trabalhava como gerente de três sociedades comerciais, auferindo o quantitativo mensal líquido de €2.599.75 (catorze vezes no ano), mostra-se equitativamente equilibrado fixar o montante da indemnização devida àquela, a título de danos patrimoniais futuros, em €300.000,00, a que se deve abater a quantia de €7.819,98 de pensão de sobrevivência paga à Autora pela Segurança Social, mas que a Ré Seguradora terá de pagar a esta entidade.
V - Não existe contraditoriedade entre o facto biológico do nascimento, enquanto momento da aquisição da personalidade jurídica singular, por força do estipulado pelo artigo 66.º, n.º 1, do CC, e o princípio da inviolabilidade do direito à vida humana, com base no disposto pelo artigo 24.º, n.º 1, da Constituição da República, que tutela, genericamente, a gestação humana, sem considerar o nascituro como um sujeito de direito.
VI - Baseando-se a responsabilidade civil numa violação ilícita do direito de outrem e, portanto, pressupondo uma personalidade contemporânea da lesão, não havendo ainda terceiro, no momento da prática do facto ilícito, nenhum dever de indemnizar se formou, não sendo o eventual e posterior nascimento da pessoa que pode fazer radicar na mesma um crédito indemnizatório e constituir o infractor no dever de o satisfazer.
VII - O nascituro não é titular originário de um direito de indemnização, por danos não patrimoniais próprios, provenientes da morte de seu pai, em consequência de facto ilícito ocorrido antes do seu nascimento, à margem do fenómeno sucessório da herança da vítima, direito esse que apenas é reconhecido aos filhos, e estes, na acepção legal, são, tão-só, os nascidos com vida e que existam, à data da morte da vítima.
VIII - O facto gerador do alegado direito próprio do autor menor consiste na morte da vítima do acidente de viação, seu pai, ocasião em que aquele, ainda nascituro, não estava em condições de adquirir esse direito, por não dispor de personalidade jurídica, nem o tendo adquirido, aquando do seu nascimento, embora, então, já tivesse personalidade jurídica, por não haver lei que lho reconhecesse, à data do acidente.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


AA, por si e em representação de seu filho menor, BB, residentes na Rua ......................., ...., ....., em Braga, propuseram a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra DD SA, com sede na Rua A........................, em Lisboa, Transportes Centrais Monte Pedral, Lda, com sede na Rua Padre ......................, 210-212, no Porto e EE, residente na Rua ...................., r/c, Dto, Vilar do Paraíso, em Vila Nova de Gaia, pedindo que, na sua procedência, os réus sejam condenados a pagarem aos autores a quantia de €700.500,00, a título de indemnização, por danos patrimoniais e não patrimoniais, decorrentes de um acidente de viação que teve lugar, no dia 12 de Setembro de 2003, e no qual faleceu CC respectivamente, marido e pai dos autores, ao embater num veículo conduzido pelo réu EE, sob as ordens e direcção da ré Transportes Centrais Monte Pedral, Lda, que, por sua vez, havia transferido para a ré DD SA, a responsabilidade civil emergente da circulação desse veículo.
Para o efeito, e, em síntese, os autores alegam que o réu EE, atravessou o veículo automóvel que conduzia, na hemifaixa de rodagem por onde, a cerca de cinco metros, e, em sentido contrário, circulava o CC, tripulando um motociclo, dentro da sua mão de trânsito, provocando o embate dos veículos e, com ele, a morte de seu marido e pai.
Na contestação, os réus alegam, no que ora ainda releva, que o réu EE, antes de iniciar a manobra de mudança de direcção, tomou o eixo da via e deteve a marcha, só a executando depois de se certificar que não circulava qualquer veículo em sentido contrário.
Porém, continuam, quando estava prestes a concluir a manobra, surgiu o malogrado A......, a mais de 50/80/90Kms/hora, sem atenção ao trânsito, não tendo logrado, por esse facto, imobilizar o motociclo, no espaço livre e visível à sua frente.
Assim, imputam ao falecido CC a culpa pelo acidente e impugnam os danos alegados pelos autores, concluindo pela improcedência ou, pelo menos, pela sua parcial improcedência da acção.
A sentença julgou a acção, parcialmente, procedente por provada, e, em consequência, condenou os réus a pagar aos autores a quantia de €690.131,46, sendo a ré DD SA, até ao montante de €600.000,00, e juros, desde a citação, e bem assim como, também, parcialmente procedente, o pedido formulado pelo ISSS, condenando a ré seguradora a pagar-lhe a quantia de €10.368,64 e juros.
Desta sentença, a ré DD SA, interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado procedente a apelação, e, em consequência, condenou a ré seguradora a pagar aos autores a quantia de €65.400,00 (sessenta e cinco mil e quatrocentos euros), correspondente à soma dos danos morais sofridos pela vítima (€5.000,00), ao valor compensatório pela perda do direito à vida (€60.000,00) e aos danos emergentes (€400,00), acrescida de juros, à taxa de 4%, desde a citação, a pagar aos autores, a título de danos patrimoniais próprios, a quantia de €289.631,39 (duzentos e oitenta e nove mil, seiscentos e trinta e um euros e trinta e nove cêntimos), acrescida de juros vincendos, até efectivo pagamento, à mesma taxa legal, a pagar à autora AA a quantia de €30.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros, vencidos e vincendos, à referida taxa, e, finalmente, a pagar ao ISSS a quantia de €10.368,64 e juros, nos exactos termos fixados pela sentença, absolvendo os réus Transportes Centrais Monte Pedral, Lda e EE do pedido contra eles deduzido.
Do acórdão da Relação, os autores e a ré DD SA, interpuseram recurso de revista, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões que, textualmente, se reproduzem:
OS AUTORES:

1ª – O Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de que se recorre alterou as respostas a três artigos de base instrutória, fazendo um uso indevido dos poderes que lhe conferia o artº 712º nºs 1 e 2 do CPC, sobrepondo-se a pareceres que envolvem conhecimentos técnicos especiais, quer por parte de doutores em engenharia mecânica, quer mesmo por um especialista em traumatologia.
2ª - Não obstante o estatuído no artº 722 nº 2 do CPC, será admissível ao STJ censurar o mau uso pela Relação de tais poderes, conforme se decidiu no Acórdão do STJ de 25-09-2007, proferido no processo 07A090.
3ª - Apesar da alteração indevida da matéria de facto, não houve, naturalmente, alteração do decidido em Primeira Instância em matéria de culpa.
4ª - Na verdade o condutor do veículo de mercadorias ..-...-.. seguro pela (R-) Apelante nunca poderia ter atravessado a hemi-faixa de rodagem contrária, sem previamente se ter assegurado de que da sua manobra não resultaria perigo nem embaraço para o restante tráfego e daí a sua culpa exclusiva na produção do acidente a que os autos se reportam.
5ª - O A. BB, não pode deixar de ser considerado como filho da vítima e como tal com direito a ser ressarcido do dano não patrimonial que a morte do pai lhe causou.
6ª - A Lei reconhece o nascituro como filho dos respectivos progenitores e, como tal, terá de reconhecer-se o A. BB como filho da vítima.
7ª - O artº 496º nº 2 do Código Civil ao atribuir aos filhos direito de indemnização por danos não patrimoniais por morte da vítima, engloba neles os filhos nascituros.
8ª - O nascituro tem o direito a danos morais pela morte do pai em acidente de viação, desde que se venha a verificar o condicionalismo do artigo 66º nº 2 do Código Civil.
9ª - O A. BB nasceu com vida em 18 de Outubro de 2003, logo os seus direitos absolutos de personalidade – retrotraem-se ao momento em que foi concebido.
10ª - O A. BB não chegou a conhecer o pai e irá padecer ao longo da sua vida a ausência da figura paterna.
11ª - O A. BB não poderá beneficiar do acompanhamento, do amparo, da assistência, do carinho e afecto do pai, que são importantes para o desenvolvimento equilibrado de uma criança, de um adolescente e de um jovem.
12ª - Assim, deve manter-se a indemnização que lhe foi fixada pela Primeira Instância no valor de €10.000,00 que só peca por defeito.
13ª - A vítima e a A. AA viviam em grande harmonia, em clima de dedicação e afeição, nutriam laços recíprocos de amor e estima, tendo aumentado a felicidade de ambos com a espera do A. ....
14ª - A vítima contribuía para as despesas do seu agregado familiar, (água, electricidade, telefones, alimentação e outros) e desde o casamento até à sua morte foram adquiridos bens móveis e imóveis com os proventos auferidos.
15ª - A vítima auferia em rendimentos de trabalho comprovados por recibo €3.423,24 por mês.
16ª - A vítima, à data, da morte tinha 35 anos de idade e era sócio de varias sociedades comerciais, para lá de desportista de renome nacional e mesmo internacional.
17ª - A vítima recebia patrocínios de marcas pelas quais corria que lhe permitiam suportar as despesas com corridas, material, equipamentos, alojamento (próprio e da A. AA).
18ª - O nível de vida do casal era pois elevado, passando fins-de-semana fora e tomando, frequentemente, refeições em restaurantes.
19ª - A morte da vítima causou um elevado dano patrimonial aos AA.
20ª - O quantum indemnizatório deve ser calculado tendo em conta o rendimento anual da vítima € 47.925,36, no ano de 2003.
21ª - Os cálculos efectuados pela 1ª Instância tiveram em conta a situação real da vítima e dos AA..
22ª - A indemnização apurada pela 1ª Instância no valor de € 693.509,00 foi calculada tendo em conta a idade de 70 anos de vida, mas foi reduzida para €600.000,00.
23ª - Tal redução é compatível com os cálculos indemnizatórios tendo em conta apenas a idade activa da vítima de 65 anos.
24ª - Não se pode igualar o que é diferente, como fez a Relação.
25ª - Não é justo, nem equitativo o valor de indemnização “actualizada” atribuída pelo Tribunal da Relação aos AA por danos futuros de €300.000,00.
26ª - Antes é justo o valor de €600.000,00 fixado pela Primeira Instância, valor sujeito a actualização correspondente ao acréscimo de juros de mora à taxa legal em vigor, desde a citação.
27ª - A decisão, ora recorrida, violou o disposto nos art.ºs 483º, 495º, 496º, 564º, 566º, 570º, 804º, 805º e 806º, do CC, 712º e 659º do CPC.

A RÉ SEGURDORA:

1ª - Após a sindicância da matéria de facto pelo Tribunal “a quo” ficou assente que o motociclo circulava a mais de 50 kms/horários, tal como tinha sido alegado pela Ré na acção quanto ao modo de produção do sinistro.
2ª - Este caracterizou-se pela colisão do motociclo contra a lateral direita, sobre o pneu traseiro, dum ligeiro de mercadorias com caixa frigorífica de cerca de 6 ms. de comprimento, a circular em sentido contrário à moto e em vias de efectuar uma mudança de direcção à esquerda na via.
3ª - Essa colisão verificou-se quando o veículo automóvel ligeiro tinha o seu rodado dianteiro, sob a cabina, já fora da via e ocupava, com a sua parte restante (i.e. a cx. frigorífica e o rodado traseiro), apenas a hemi-faixa de rodagem contrária àquela donde provinha e por onde vinha já o motociclo.
4ª - O local do sinistro situa-se junto ao entroncamento de acesso ao MAXMAT, dentro do perímetro da freguesia e localidade de Real, e está assinalado por placas de limitação de velocidade de 40 kms/hora para o trânsito que circulava na EN 205-4, que liga a EN 201 a Mire de Tibães, e respectivo sentido de trânsito, como era o caso do motociclo em questão.
5ª - Isso mesmo está já documentado nos autos através da certidão emitida pela "ESTRADAS DE PORTUGAL, SA" e/ou respectiva Direcção de Estradas de Braga em 03 de Abril de 2008, e que, enquanto documento superveniente devido ao julgamento efectuado na Relação, foi agora junta aos autos com a minuta de alegações de revista.
6ª - Esse facto era e é público e notório e, aliás, do conhecimento geral, pelo menos em relação ao julgamento operado na 1.ª instância dos autos, efectuado até no local, como se vê da acta respectiva.
7ª - Tanto na 1.ª instância, como na Relação, a questão da velocidade e das distâncias de visualização e aproximação entre os condutores dos dois veículos foram questões de acérrima discussão quanto à fixação da matéria de facto, porque certamente implicadas e/ou dirimentes das responsabilidades respectivas, ali e então a apurar e a decidir.
8ª - E decidido que ficou pelo tribunal a quo que, contrariamente ao juízo feito na 1.ª instância, a moto não circulava à velocidade de 50 kms/h., ou sequer inferior, como a Autora alegava na acção, mas sim a velocidade superior, e que a mesma moto não estava já a apenas 5 ms. de distância quando o ligeiro de mercadorias efectuou a mudança de direcção na via, coloca-se a questão de saber se tal factualidade impõe decisão de mérito diversa daquela sobrevinda nas instâncias.
9ª - Pela presente revista propugna-se a resposta afirmativa à dita questão, dado que a velocidade superior a 50 kms/horários é claramente ofensiva da regulamentação de trânsito imperativa para o local do sinistro - i.e. limitativa da velocidade instantânea dos veículos implicados a 40 kms/h. - e veio aumentar os riscos de colisão face à concreta manobra ali em causa, no local do entroncamento de acesso à MAXMAT, em Real.
10ª - Esses riscos estão certamente na mente da entidade regulamentadora e ordenadora do trânsito respectivo, ao limitar àquele estrito valor a velocidade no local, o qual está ladeado de passeios para peões e de um casario em banda, com portões de entradas e saídas dos automóveis dos moradores, como flui abundantemente das fotografias que se acham anexas aos autos com vista ao julgamento da causa na 1.ª instância.
11ª - Assim, não podemos senão discordar do entendimento do tribunal a quo, ao decidir que essa transgressão do motociclista em nada influiu nem foi causal para com o acidente a ajuizar, tendo em vista, ainda, as demais circunstâncias de facto implicadas na decisão a proferir a final e sobre as quais se fez incidir a nossa análise crítica na minuta das presentes alegações, as quais não importa aqui especificamente reproduzir.
12ª - Resta, entretanto, reafirmar que, seja em relação aos danos produzidos com este sinistro, brutais para a pessoa e corpo humano do motociclista, como flui do respectivo auto de autópsia, seja em relação ao modo da sua produção ex facto, aquela velocidade fixada ex novo pela sindicância do tribunal a quo, i.e. superior a 50 kms/h., em zona limitada a 40 kms/h., foi seguramente causal duns, i.e. os danos pessoais ou o seu agravamento (v.g. a morte do motociclista), e do outro, i.e. a eclosão do sinistro em si.
13ª - Vale dizer, contrariamente ao decidido pelo tribunal a quo, que foi essa inadequação da velocidade que imprimia ao seu motociclo no local implicado, ora demonstrada nos autos, que determinou ou concorreu, pelo menos, para a verificação desta colisão mortal e, claro, da "ilicitude" do dito motociclista na sua condução, a qual o tribunal a quo descartou.
14ª - Pelos motivos supra apontados, é pois entendimento da seguradora ora recorrente que essa condução foi concausal deste acidente de viação, em medida igual à do condutor do veículo assegurado, i.e. numa proporção de 50% vs. 50% de co-responsabilidade(s) para ambos.
15ª - Sem prescindir, tido porventura o excesso de velocidade do motociclo como efectivamente não causal, como se decidiu no tribunal a quo, sempre o caso em apreço deve ter-se então, em face da restante factualidade implicada, como atinente ao risco de circulação de ambos os veículos, conduzidos um e outro por pessoa(s) actuando como comissários dos seus proprietário(s) comitente(s).
16ª - Decidindo doutro modo, seja quanto à alegação principal, seja quanto à hipótese subsidiária supra, o tribunal a quo violou o disposto nos arts. 483.º, 506.º e 570.º do CC, por erro de aplicação e/ou interpretação, bem como o disposto nos arts. 28.º e 44.º do CEstrada.
17ª - Um princípio básico do instituto da responsabilidade civil por facto ilícito é o de que só tem direito a indemnização o titular do bem jurídico (seja um direito subjectivo, seja um interesse legítimo legalmente protegido) afectado pelo evento danoso, e não terceiros.
18ª - Com efeito, indemnizar é reconstituir ou reparar a ofensa trazida a um concreto direito subjectivo de outrem, directamente lesado pelo acto ilícito; porém, excepcionalmente, concede-se o direito de indemnização a terceiros, mediata ou indirectamente lesados, por reflexo, e um desses casos excepcionais é o do segmento normativo contido no art.495°/3 CCiv.
19ª - Nestes casos excepcionais ao princípio de exclusão de ressarcimento do chamado dano mediato, indirecto, ou por reflexo, torna-se absolutamente necessária a existência duma norma-tipo especial que delimite as causas fundadora e integradora dessa responsabilidade excepcional.
20ª - Ou seja, coloca-se aí o problema normativo duma justa delimitação das consequências do acto ilícito danoso, no que ao resultado descrito e aos seus pressupostos de facto, ou ao volume de dano imputável, respeita.
21ª - E isso, porque para além do plano subjectivo relativo à eventual legitimidade dos lesados, coloca-se aqui um outro plano, de pendor bem objectivo, que é relativo ao princípio de que só deve vir a ser objecto de indemnização o dano cuja produção a norma em causa se propõe impedir, segundo o seu sentido e finalidade integradoras.
22ª - Por outras palavras, a sucessão de factos conducentes ao dano/prejuízo a indemnizar deve manter-se dentro do âmbito de protecção dessa norma protectora e/ou de responsabilidade, sem estar dependente da casualidade de ao mesmo tempo ser infringida lei destinada a proteger uma esfera jurídica completamente distinta.
23ª - Assim, o dano que pode vir a ser objecto de indemnização no caso dos autos é o dano da perda ou privação de alimentos que o lesado, se fosse vivo, haveria de prestar aos AA. da acção, e não a medida da fortuna que este podia amealhar em vida e só a si cabia gerir ou empregar - ex vi norma especial, que outra não há, emergente do cit. art.495°/3 CCiv.
24ª - Ora, por alimentos entende-se tudo o que é necessário ao sustento, habitação e vestuário duma pessoa em geral e ainda, em particular, do que for necessário a esta ou àquela pessoa para o seu lazer, bem-estar normal, saúde e educação, de acordo com as condições habituais do respectivo agregado familiar e da específica condição social a considerar - cfr. art. 2003° CCiv.
25ª - Ou seja, tudo o que é indispensável à satisfação das necessidades da vida segundo a situação económica e social do(s) alimentando(s), para o que bastar até dar à palavra "sustento" um significado largo e atribuir carácter exemplificativo ao disposto no referido art.2003° e ss. CCiv.
26ª - Mas o que é essencial, por definição, é que o(s) alimentando(s) careçam efectivamente de alimentos para as tais necessidades da vida corrente, qualquer que seja a natureza destas e de harmonia com a sua posição ou condição sócio-económica, ou que seja essa carência desde logo previsível para o futuro.
27ª - Dúvidas não há de que o marido (e ex-marido!) deve alimentos a sua mulher (e vice-versa) por forma a assegurar-lhe sempre uma situação patrimonial correspondente à que teria se a sua vida em comum se mantivesse - i.e. a correspondente à condição económica e social da família -, mas não mais do que isso, como se vê do art.2004° CCiv.
28ª - Se o cônjuge do lesado vítima de homicídio culposo auferir rendimentos tão elevados que possam dispensar a necessidade de alimentos, ou quando esses rendimentos forem tão avultados que cheguem para que ele mantenha a situação económica correspondente à condição social da família, não terá o lesante - tal como é seguro não teria o lesado pois que o lesante não tem de suportar mais dispêndio neste campo do que sucederia com o lesado - de lhe prestar qualquer amparo e/ou auxílio alimentar.
29ª - Doutro modo, caso bastasse para a concessão de tal auxílio a simples qualidade referida na norma protectora em causa - e, aliás, de natureza excepcional (v.g. cito art. 495°) -, daí resultaria um mero arbítrio indemnizatório judicial, na falta dos necessários critérios legais a atender na determinação do conteúdo e fixação em valor da indemnização em questão, enquanto danos futuros - cfr. art. 564°/2 CCiv.
30ª - Nessa hipótese, tal norma ficaria então despida de qualquer conteúdo, pelo que tal interpretação da mesma, segundo a conclusão supra, como sucedeu in casu, se tornaria materialmente inconstitucional, por ofensa dos princípios que se acham consignados nos arts. 2° e 13°, pelo menos, da CRP, quando conjugados com o disposto nos arts. 68°, 70°, 483° ss. e 562° ss. CCiv.
31º - E, para além disso, essa mesma interpretação seria sumamente ilegal, por absoluta desconformidade com o disposto nos arts. 564°/2 e, mesmo, 562° e 566°/2 CCiv (v.g. previsibilidade do dano futuro, teoria da diferença e situação patrimonial do lesado em termos de actualidade), que estariam nessa hipótese a ser violados.
32ª - Vale isto tudo para afirmar que a referência feita no art. 495° CCiv aos que podiam exigir alimentos ao lesado directo pelo evento danoso tem de ser entendida, sob pena de grave absurdo lógico e quebra da unidade de todo o sistema jurídico, em termos de efectiva carência de alimentos e/ou sua imediata previsibilidade no futuro próximo, enquanto adequação causal implicada pelo ilícito a ressarcir, por exigência e/ou segundo a medida dos arts. 2003° ss e 564°/2 CCiv.
33ª - Doutro modo se perderia toda a referência que, sem dúvida, a citada norma protectora (e, aliás, excepcional) concede à qualidade de pessoas terceiros alimentandos, que não à pessoa directamente lesada pelo evento danoso, essa já falecida e desprovida de personalidade para tanto, à luz do circulo de interesses privados que a lei (cit. norma-tipo) assim visa excepcionalmente tutelar.
34ª - E essa dita referência às "pessoas que podiam exigir alimentos ao lesado" só pode enquadrar-se, no sistema jurídico em vigor, visto à luz do princípio da unidade, se perspectivada estiver não só à própria noção de alimentos (sob a condição da sua necessidade - arts. 2003° ss.) e sua medida legal em termos de actualidade, como também à ressarcibilidade em si dos danos futuros (na condição da sua previsibilidade - art. 564°).
35ª - Nesta matéria, o princípio sagrado terá de ser sempre o de que sem demonstração do dano, nenhuma indemnização dever conceder-se, sob pena de puro arbítrio indemnizatório ou enriquecimento à custa de outrem, atentatórios do próprio instituto de responsabilidade civil, bem como dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.
36ª - O terceiro lesado pode ter a qualidade referida na norma protectora, mas isso não basta; tem ainda de sofrer o dano em concreto produzido dentro do âmbito dessa norma, sem nenhuma margem de ambiguidade e em termos de adequação causal e previsibilidade futura.
37ª - Em suma, o bem jurídico, ou o interesse legítimo que é protegido na norma em causa (cit. art. 495°/3) é o direito de alimentos, que dada a sua importância, significado e protecção legais para os cidadãos em geral, se não quer perdido por ilícito imputável a outrem.
38ª - Aproximando as conclusões antecedentes do caso concreto, para real determinação da medida alimentar que ficou em causa com o decesso da pessoa obrigada a alimentos e vítima mortal do sinistro, verifica-se que a A. viúva não tem nenhuma carência alimentar, actual ou previsível.
39ª - Assim, não deve ser atribuída qualquer indemnização alimentar, ao abrigo do cito art.495°/3, a esta A. viúva, por não estar demonstrado que dela venha a carecer, rectius, por dela não carecer nem ser sequer previsível que venha a carecer de...tais alimentos, atenta a escassez da factualidade fixada a propósito nos autos e nem sequer neles alegada, aliás, como podia e devia ter sido pela respectiva Autora, com vista a tal efeito e em salvaguarda do princípio do contraditório na matéria.
40ª - Não pode esquecer-se ainda que, atenta essa factualidade interessante, a viúva da vítima mantém para si, vista até a (mais ainda do que antes, porque agora de direito próprio) confortável situação material que lhe sobreveio no pós-decesso de seu ex-marido, o dever de contribuir também para os alimentos de seus filhos menores, fazendo uso dos rendimentos respectivos, nos termos legais - v.g. art. 2009°/1.c) CCiv.
41ª - No aresto recorrido, decidindo-se em contrário das conclusões supra apesar de nele se fazer uma expressa referência ao seu brilhantismo" (e não perdidas de todo, assim, as expectativas delas decorrentes quanto ao respectivo mérito a final!) a sua exacta reprodução nesta sede - vista a inutilidade de que antes se revestiram, por terem sido rejeitadas pela Relação -, violou-se o disposto nos arts. 564°/2 e 566°/2, conjugados com o disposto nos arts. 483°, 495°/3, 562°, 2003°, 2004° e 2009°/1.c) CCiv, também por erro de aplicação e/ou de interpretação.
42ª - Em conformidade com o acima exposto, deve retirar-se da indemnização concedida à Autora viúva pelo alegado dano patrimonial futuro, concedido ao abrigo do disposto no art. 495°/3 CCiv - que outra norma não existe para a cobertura - a quantia de € 300.000,00 (trezentos mil euros).

*

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC), são as seguintes:
I – A admissibilidade da junção de documentos com as alegações da revista e sua influência sobre a apreciação da matéria de facto.
II – A alteração da decisão sobre a matéria de facto.
III – O nexo de causalidade na produção do acidente e/ou no agravamento dos danos.
IV – A indemnização por danos patrimoniais futuros.
V – O direito do nascituro à indemnização por danos não patrimoniais próprios.

I. DA JUNÇAO DE DOCUMENTOS COM A REVISTA

Com as alegações de recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, a ré DD SA, juntou novos documentos, constantes de folhas 1147 a 1149, tendentes a comprovar que, no local onde ocorreu o embate, não era permitido circular a velocidade superior a 40 km/h, e que a velocidade do motociclo foi concausal do acidente, ou, pelo menos, contribuiu para o agravamento dos danos.
A regra geral quanto à oportunidade da junção de documentos posteriores ao encerramento da discussão em 1ª instância deve ser encontrada, através da interpretação conjugada dos artigos 523º, 706º e 524º, todos do CPC, sendo, desde logo, de destacar que este último normativo preceitua, no respectivo nº 1, que “depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até aquele momento”.
Sendo princípio fundamental, nesta matéria, o de que os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com os articulados em que se aleguem os factos correspondentes, ou, na impossibilidade, até ao encerramento da discussão em 1ª instância, como decorre do disposto no artigo 523º, nºs 1 e 2, a lei admite, igualmente, por força do estipulado pelo artigo 524º, nº 1, citados, que, depois deste último momento [encerramento da discussão em 1ª instância], os documentos supervenientes possam ser juntos com as alegações de recurso, mas, ainda assim, apenas, nos casos excepcionais em que a sua apresentação não tenha sido possível, até ao encerramento da discussão em 1ª instância.
Dentre os documentos supervenientes que podem ser juntos com as alegações de recurso, por a sua apresentação não ter sido possível, até ao encerramento da discussão em 1ª instância, encontram-se, face ao disciplinado pelo artigo 524º, nº 2, os documentos destinados a provar factos posteriores aos articulados, ou cuja apresentação se tenha tornado necessária, por virtude de ocorrência posterior e, também, atento o preceituado pelo artigo 706º, nº 1, ambos do CPC, aqueles cuja junção apenas se tornar necessária, em virtude do julgamento proferido em 1ªinstância.
Assim sendo, são três os fundamentos excepcionais justificativos da apresentação de documentos supervenientes com as alegações de recurso, ou seja, quando os documentos se destinem a provar factos posteriores aos articulados, quando a sua junção se tenha tornado necessária, por virtude de ocorrência posterior e, finalmente, no caso de a sua apresentação apenas se tornar necessária, devido ao julgamento proferido em 1ª instância.
Ora, os mencionados documentos que a ré DD SA, quer ver juntos aos autos, não se destinam a provar factos posteriores aos articulados, a sua junção não se tornou necessária, por virtude de ocorrência posterior, nem sequer devido ao julgamento proferido em 1ª instância.
Assim sendo, não podem os mesmos documentos ser admitidos, pelo que se ordena o seu desentranhamento e a consequente restituição à ré DD SA, nos termos do estipulado pelos artigos 524º e 543º, nº 1, ambos do CPC.

II. DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Entendem os autores que foi feito mau uso, por parte da Relação, da faculdade de proceder à alteração da matéria de facto, que havia sido considerada assente/provada, em primeira instância.
No entanto, devem os autores ter presente que a competência do Supremo Tribunal de Justiça, quanto ao acto de sindicar a prova, é, meramente residual, encontrando-se limitada pela verificação de determinados princípios, como resulta manifesto da conjugação do disposto nos artigos 712º, nº 6, 722º, nºs 2 e 3 e 729º, nºs 2 e 3, todos do CPC, com destaque para:
a) a verificação da existência de violação de alguma norma atinente ao direito probatório material, isto é, a detecção daquelas situações em que se constate que houve ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou em que se fixe a força de determinado meio de prova [artigo 722º, nº 2, do CPC];
b) a determinação daquelas situações em que se impõe a necessidade de alargar a base instrutória a outros factos alegados pelas partes que não tenham sido objecto de apreciação, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito [artigo 729º, nº 3, 1ª parte, do CPC];
c) ou ainda para a detecção daqueles casos em que se verifique a existência de contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizem a discussão jurídica do pleito [artigo 729º, nº 3, 2ª parte, do CPC].
Ora, nenhuma dessas situações se detecta, no caso em apreço, porquanto não foi apontada qualquer situação concreta que corresponda à violação do direito probatório material, nenhum facto concreto foi indicado, em alegada contradição com outro existente na matéria de facto considerada provada, e, finalmente, nenhuma reclamação foi assinalada quanto à necessidade da ampliação da matéria que deveria constar da que foi considerada assente ou que deveria fazer parte da base instrutória, no âmbito dos factos alegados.
E, não exigindo a lei, para a existência ou prova dos factos jurídicos em apreciação, qualquer formalidade especial, o Juiz, ao apreciar as provas, decide segundo a sua livre e prudente convicção, a respeito de cada facto, nos termos do estipulado pelo artigo 655º, do CPC.
Assim sendo, não pode o Supremo Tribunal de Justiça substituir-se às instâncias, reabrindo a discussão da causa, na parte atinente à matéria de facto.
É de considerar, de resto, que, no exercício deste poder de sindicância que levou à alteração de parte da matéria provada e da sua posterior fixação, a Relação actuou, tendo o cuidado expresso de explicar e fundamentar, devida e exaustivamente, as razões por que o fazia.
Como assim, este Supremo Tribunal de Justiça tem como aceites os factos que o Tribunal da Relação declarou demonstrados, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do CPC, mas reproduz:
1° - No dia 12 de Setembro de 2003, cerca das 15 horas, ocorreu um embate na EN n° 205-4, em Real, Braga, no qual intervieram o veículo automóvel ligeiro de mercadorias, de matrícula ..........(camioneta Mitsubishi/Cant), conduzido por EE, e o motociclo, de matrícula ............, propriedade de Hispanor, Lda, e conduzido por CC.
2° - O veículo ........., antes do embate, circulava no sentido Martim/Real.
3° - O motociclo ........... circulava, antes do embate, no sentido Real/Martim.
4° - A estrada, no local onde o embate ocorreu, mede - e media - de largura, berma a berma, 7,50 metros.
5°- Do lado direito, atento o sentido Martim/Real, existe e existia uma berma em paralelo, com 2,60 metros de largura.
6° - O pavimento da estrada era em betão e encontrava-se seco e em bom estado de conservação.
7° - O tempo estava claro.
8° - O condutor do veículo ligeiro de mercadorias era motorista de profissão e conduzia o veículo, no âmbito de contrato de trabalho celebrado com a proprietária, Transportes Centrais Monte Pedral, Lda, sob as ordens, direcção e fiscalização desta.
9° - O CC conduzia o motociclo, no exercício de funções que lhe foram conferidas pela Hispanor, Lda.
10° - O CC tripulava o ..........., pela metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido Real/Martim.
11°- O CC a imprimia ao motociclo .......... velocidade superior a 50 Km/h. (1)
12°- O embate ocorreu numa curva que tem inclinação para a direita, atento o sentido de marcha Martim/Real.
13°- Considerando o ponto de embate, um condutor a ocupar ainda a metade direita da estrada, considerando o sentido Martim/Real, e junto do eixo da via, pode avistar, até uma distância de 75 metros, sendo que na parte final dessa distância a estrada não é avistável, em toda a sua largura, mas, apenas, na sua metade esquerda, considerando o referido sentido.
14°- Ao Km 9,995, situa-se, do lado esquerdo da estrada, atento o sentido Martim/Real, o estabelecimento MAXMAT.
15°- Ao aproximar-se da entrada para o estabelecimento MAXMAT, o condutor do veículo ............. inflectiu o veículo para a esquerda, no intuito de aceder à entrada do estabelecimento, para onde pretendia prosseguir.
16°- Efectuou o referido no anterior número, sem deter a marcha do ..............
17°- O condutor do veículo ligeiro de mercadorias, ao aproximar-se do local referido nos anteriores números 14° e seguintes, reduziu a velocidade.
18°- O condutor do ligeiro de mercadorias efectuou a manobra de mudança de direcção, à esquerda, na perpendicular da via.
19°- Correspondia à resposta ao quesito 9º, cuja resposta foi considerada como não provada pela Relação (2)
20°- O condutor do motociclo travou.
21°- O embate ocorreu entre a frente do motociclo e a parte lateral direita do veículo ............, junto ao rodado traseiro.
22°- O embate ocorreu quando o veículo ligeiro de mercadorias atravessava a via, em direcção aos acessos à Maxmat, estando o rodado da frente e a cabina já fora da via donde provinha e dentro do referido acesso, estando parte restante desse veículo a ocupar a metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido Real/Martim.
23°- O embate entre os dois veículos deu-se a dois metros do eixo da via, atento o sentido de marcha Real/Martim.
24°- O veículo ligeiro de mercadorias .............. estava dotado de caixa térmica e tem 6 metros de comprimento (cabina incluída).
25°- Atento o sentido de marcha do CC, a faixa de rodagem contrária é avistável em não menos de 50 metros.
26°- Por força do embate, o condutor e motociclo caíram no solo, ambos na hemi-faixa de rodagem direita, atento o sentido Real/Martim.
27°- Em consequência do embate, o A....... sofreu lesões traumáticas que, associadas a choque hipovolémico, foram causa directa da sua morte.
28°- Em consequência do embate, o A.....sofreu fracturas, nos ossos do nariz, hemorragia cerebral, contusão, ao nível de CI, C2, C3 e C4, fracturas, ao nível de D7, D8, D9, D10, D11 e D12, fracturas dos 2°,3°,4°,5°,6°,7° e 9° arcos costais esquerdos, fractura dos 1°, 2°, 4°, 5°, 6°, 7° e 9° arcos costais direitos, laceração da parte interior e posterior do ventrículo esquerdo, laceração da parte posterior da aurícula esquerda, secção medular, ao nível de D10, fractura do punho direito e fractura dos ossos do braço esquerdo.
29°- O CC faleceu, no dia 12 de Setembro de 2003, com 35 anos de idade.
30°- O CC era casado com a autora AA.
31°- O autor BB nasceu, no dia 18 de Outubro de 2003, e é filho de AA e de CC.
32°- Em escritura de habilitação de herdeiros, outorgada no dia 15 de Dezembro de 2003, os autores foram habilitados como únicos e universais herdeiros do CC.
33°- A autora AA nasceu no dia 5 de Janeiro de 1973.
34°- A autora AA e o CC viviam em harmonia, em clima de dedicação e afeição, nutrindo laços recíprocos de amor e estima.
35°- O CC era apaixonado pelas motos, desde jovem.
36°- Conquistava títulos nacionais, tendo corrido, pela primeira vez, na Trafaria.
37°- Era sócio fundador do Motor Clube de Braga.
38º- Era sócio do Motor Clube de Guimarães.
39°- Era querido pelas suas qualidades de desportista.
40°- Era homem generoso e querido, amigo de todos.
41°- Era atleta e desportista, referenciado, múltiplas vezes, pela imprensa do meio desportivo.
42°- Após o seu falecimento, foi instituído o "Troféu A..M", pela Federação Nacional de Motociclismo.
43°- A autora AA partilhava com o CC a paixão e entrega ao desporto de duas rodas.
44°- Acompanhava-o às competições, aos treinos e convivia com os seus amigos.
45°- A felicidade da AA e do CC tinha aumentado com a espera do BB.
46°- Esperavam, ansiosamente, o nascimento do filho.
47°- O CC compartilhou com a autora AA a decoração do quarto destinado ao filho, comprando mobiliário, cortinados, bonecos, alcofa, cadeirinha para as suas deslocações.
48°- O CC tinha o gosto de, com a autora AA, escolher as roupas para o filho.
49°- Adorava crianças.
50°- Sempre foi companheiro e amigo dos sobrinhos.
51°- A autora AA recorreu a acompanhamento médico e psiquiátrico, em virtude da morte do CC.
52°- O CC praticava natação e corrida de bicicleta.
53°- Tinha os treinos de motos.
54°- Era pessoa saudável.
55°- Apercebeu-se que o embate lhe seria fatal.
56°- O CC era piloto de “Enduro”.
57.º- Participou em centenas de competições, desde 1986.
58°- Recebia patrocínios de marcas pelas quais corria que lhe permitiam suportar as despesas com as corridas, materiais, alojamento (seu e da autora AA), equipamentos (fatos, capacetes, pneus, etc.).
59°- O CC era sócio da sociedade Hispanor - Produtos Industriais, Lda.
60°- O CC auferia vencimento mensal ilíquido, 14 vezes por ano, enquanto gerente da sociedade FF, Lda, no montante de 1.366,08€, auferia vencimento mensal ilíquido, 14 vezes por ano, enquanto gerente da sociedade GG Lda, no montante de 1028,58€, e auferia o vencimento mensal ilíquido, 14 vezes por ano, enquanto gerente da sociedade Hispanor Produtos Industriais, Lda, no montante de 1.028,58€, sendo-lhe ainda proporcionado, por esta ultima sociedade, o uso do motociclo ..........e do veículo automóvel Toyota, modelo Land Cruiser, sendo-lhe pago o preço do combustível utilizado nestes veículos, os seguros e despesas de oficina.
61°- Com os seus rendimentos, o CC custeava as suas despesas pessoais e contribuía para as despesas do seu agregado familiar (despesas de água, electricidade, telefones, alimentação, etc), tendo ele e a autora AA, desde o casamento e até à sua morte, adquirido bens móveis e imóveis com os proventos por ambos auferidos.
62°- A autora AA passava os fins-de-semana fora e tomava refeições em restaurantes, sendo o custo suportado pelos rendimentos de ambos os membros do casal.
63°- A autora tinha uma pessoa que lhe tratava das limpezas e da vida da casa.
64°- Com o embate ficaram destruídos o vestuário e o capacete que o CC usava.
65°- O capacete tinha o valor de, pelo menos, €300,00.
66°- As calças de ganga, t-shirt e roupa interior tinham o valor global de €100,00.
67°- O CC era o beneficiário nº0000000000 do ISSS.
68°- A autora AA por si e em representação do autor CC, com base no falecimento do CC requereu ao ISSS as prestações por morte.
69°- O Instituto de Segurança Social pagou de subsídio por morte, relativamente ao beneficiário 000000000000 - CC - o total de 7.511,82€, tendo pago, a cada um dos autores, o montante de 3.755,91€.
70°- No período entre Novembro de 2003 a Novembro de 2006, o Instituto de Segurança Social pagou pensões de sobrevivência, aos autores da presente acção, no total de 10.368,64€, sendo à autora AA o montante de 7.819,98€ e ao autor CC o montante de 2.548,56€.
71° - Por via do contrato de seguro, titulado pela apólice nº5070/1004102, a ré havia assumido a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ligeiro de mercadorias 00000000, responsabilidade essa ilimitada, quanto aos danos causados a terceiros.

III – DO NEXO DE CAUSALIDADE NA PRODUÇÃO DO ACIDENTE E/OU NO AGRAVAMENTO DOS DANOS

No acórdão recorrido, tal como já acontecera com a sentença de primeira instância, imputou-se a responsabilidade pela produção do embate a culpa exclusiva do réu EE.
A ré DD SA, não concorda com este sentido da decisão, vindo a sustentar que o acidente ocorreu, devido a culpas concorrentes dos respectivos condutores, imputando 50% a cada um deles.
Para o efeito, começou por fazer referência aos documentos que juntou ao processo, com as alegações para este Supremo Tribunal de Justiça, mas que, por intempestivos, se mandaram desentranhar, conforme já se decidiu.
Tentava demonstrar com esses documentos que o falecido circulava a velocidade superior à, legalmente, permitida para o local, e que, segundo alega, seria apenas de 40 km/h.
Devido à posição assumida quanto às provas e aos novos dados a atender, há apenas que referir que os elementos factuais, à luz dos quais importa emitir pronúncia, são apenas os fixados pela Relação, que não considerou provada essa factualidade.
A ré DD SA, prossegue as suas alegações de recurso, desenvolvendo argumentação no sentido de tentar demonstrar que o falecido tinha a possibilidade de evitar o acidente ou, pelo menos, que a sua conduta havia contribuído para o agravamento dos danos.
Na verdade, compete aos autores provar os elementos constitutivos do seu direito, e aos réus os respectivos factos impeditivos, modificativos e extintivos.
Ora, em qualquer pedido de indemnização, com base em responsabilidade civil extracontratual, por factos ilícitos, como é o caso, os factos constitutivos que o lesado tem que provar são, pois, os constantes do artigo 483º, do Código Civil (CC), ou seja:
a) a existência do direito ou de norma destinada a proteger interesses alheios;
b) a violação desse direito ou da respectiva norma;
c) a culpa do agente;
d) a produção de dano;
e) a existência de nexo causal entre a violação do direito e a produção do dano.
O artigo 487º, do CC, estabelece, expressamente, que, neste tipo de responsabilidade, é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.
Os autores provaram que o réu EE, condutor da viatura segurada, um ligeiro de mercadorias, com seis metros de comprimento, empreendeu a manobra de mudança de direcção para a esquerda, numa curva, cuja visibilidade, junto ao eixo da via, era de 75 metros, na parte esquerda da mesma, para quem circule, como o fazia aquele réu, no sentido de Martim para Real, e de, apenas, 50 metros, para quem circule, em sentido inverso, como era o caso do condutor CC.
Provaram ainda os autores que o condutor da viatura ligeira de mercadorias realizou essa manobra de mudança de direcção, atravessando e cortando a faixa de rodagem destinada à circulação do A..M..., sem parar, ainda que reduzindo a velocidade da mesma.
Provaram ainda que o embate ocorreu, no seio da faixa de rodagem por onde circulava o malogrado CC, a dois metros do eixo da via, atento o sentido de marcha Real/Martim, que a este competia, não obstante a travagem que o mesmo deixou marcada no pavimento, no sentido de o evitar.
Provaram, por outro lado, que do acidente resultou a morte, além de outros danos, patrimoniais e não patrimoniais.
Está provado, também, que a viatura segurada era um veículo com câmara frigorífica, com 6 metros de comprimento, e que o embate ocorreu quando o veículo ligeiro de mercadorias se encontrava a atravessar a via, em direcção aos acessos à Maxmat, estando o rodado da frente e a cabina, em cerca de 2 metros, já fora da via donde provinha, e dentro do referido acesso, enquanto que a parte restante desse veículo, em cerca de 4 metros, se encontrava a ocupar a metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido Real/Martim.
Os réus conseguiram provar, é certo, que o falecido CC circulava a mais de 50 km/h.
Não pode, no entanto, considerar-se, face à matéria de facto fixada, que o referido CC e conduzisse, de forma negligente, desatenta, imperita, imprudente, com falta de destreza ou em infracção às regras de trânsito para o local.
Não é um facto notório, por outro lado, que pela circunstância de o acidente ter acontecido, junto a uma loja Maxmat, o mesmo se tenha registado dentro de uma povoação.
E, a ser verdade que ocorreu no interior de uma povoação, o facto só seria notório para as pessoas que conheçam o local, e não para o Tribunal, designadamente, para o Supremo Tribunal de Justiça, que, por isso, não pode considerar esse suposto facto, como matéria provada a ter em conta, uma vez que as instâncias o não indicaram sequer como facto notório.
Teria, por isso, de figurar entre a matéria alegada e ser objecto de prova positiva.
Portanto, não pode dizer-se que, pelo facto de a vítima circular a velocidade superior a 50 km/h, o fazia com infracção das regras estradais, pois que, não podendo considerar este Tribunal como estando provada essa alegação (3), também não está demonstrado que aquela circulasse a mais de 60 km/h.
Neste domínio, como matéria de excepção ao pedido indemnizatório, o ónus probatório da condução com velocidade excessiva e da consequente culpa da vítima ou da sua contribuição para o agravamento dos danos, competia aos réus.
Há que considerar, portanto, que, à luz da causalidade adequada, que a doutrina ensina e os nossos tribunais têm seguido, o embate não pode imputar-se a velocidade excessiva do condutor do motociclo, havendo apenas elementos factuais que nos permitem determinar que o acidente ocorreu devido à temeridade do réu EE, em realizar a manobra de mudança de direcção, numa curva que exigia redobradas cautelas.
Aliás, sendo o acidente em curva, e tendo o condutor do motociclo obstruída toda a faixa de rodagem por onde seguia e ainda parte da outra, a única alternativa, virtualmente, possível, para evitar esse concreto acidente, teria de passar pela invasão da parte que ainda restava da faixa de rodagem contrária ou da respectiva berma, mas, numa curva em que poderia vir a confrontar-se com outro veículo que lhe pudesse surgir pela frente ou algum obstáculo que na berma se posicionasse.
Os autores provaram, assim, que o acidente se ficou a dever a culpa exclusiva do réu EE.
E os réus, por seu turno, não provaram que o lesado tivesse culpa no referido acidente ou que tivesse contribuído para a agravação dos danos registados, porquanto não conseguiram demonstrar que circulasse desatento ou tivesse uma condução negligente, imperita ou que o fizesse com falta de cuidado, nem que a velocidade a que o falecido circulava fosse superior à, legalmente, permitida, ou desadequada para o local.

IV – DOS DANOS PATRIMONIAIS FUTUROS

A sentença havia fixado, em €600.000,00, a indemnização arbitrada aos autores, a título de danos patrimoniais futuros.
A Relação, no entanto, entendendo que essa indemnização se devia cifrar em €300.000,00, considerando que o ISSS já lhes havia pago, adiantadamente, €10.368,64, importância da qual esta entidade iria ser reembolsada pela seguradora, reduziu para €289.631,39 o quantitativo que a ré DD SA, foi condenada a pagar aos autores.
Não se conformam os autores com a indemnização atribuída pela Relação, entendendo que deveria ser reposto o valor determinado pela primeira instância.
Não se conforma, também, a ré DD SA, que sustenta nada dever pagar aos autores, a esse título, uma vez que os rendimentos da autora não são de molde a suscitar uma situação de carência de alimentos.
Refere o artigo 495º, nº 1, do CC, que, “no caso de lesão de que proveio a morte, é o responsável obrigado a indemnizar as despesas feitas para salvar o lesado e todas as demais, sem exceptuar as do funeral”, acrescentando o respectivo nº 2 que “(…)têm direito de indemnização os que socorreram o lesado, bem como os estabelecimentos hospitalares, médicos ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para o tratamento ou assistência da vítima”, enquanto que, por sua vez, o seu nº 3 enuncia, que “têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural”.
Como se pode ver, os nºs 2 e 3, do artigo 495º, do CC, citado, estabelecem a enunciação dos terceiros com direito a exigir indemnização ao causador de morte ou lesão corporal ao lesado.
Ora, na categoria dos vinculados à prestação de alimentos, enunciada pelo mencionado nº 3, cabem, precisamente, o cônjuge e os filhos, de acordo com a ordem contemplada pelo artigo 2009º, nº 1, a) e b), do CC.
A referência que é feita, no respectivo nº 3, do artigo 495º, do CC, aqueles que podiam exigir alimentos ao lesado, destina-se, desde logo, a explicitar o âmbito ou leque dos beneficiários de indemnização a que o terceiro causador do dano fica obrigado.
A isto acresce que a justificação teleológica deste normativo, ao referir-se, concretamente, aos alimentandos e não a outra categoria ou qualidade de destinatários, consiste no facto de no mesmo preceito se tentar preservar o direito a alimentos daqueles que já antes usufruíam ou deles podiam usufruir.
De notar, no entanto, que a indemnização a fixar, nos termos do artigo 495º, nº 3, do CC, não tem que corresponder a todos os danos patrimoniais futuros decorrentes da morte do lesado (4)..
Com efeito, há que ter presente, por um lado, que os cônjuges estavam, mutuamente, obrigados a alimentos entre si e para com o filho, entretanto, nascido, e, por outro lado, que nem todos os rendimentos do falecido seriam destinados a alimentos do agregado familiar, na medida em que nem tudo era consumido, em sustento, habitação e vestuário de todos os seus membros, ou, também, na instrução e educação, quanto ao filho menor.
Não é de estranhar, portanto, que a indemnização conferida, ao abrigo do artigo 495º, nº 3, do CC, se traduza, habitualmente, em quantia bastante inferior aquela que seria arbitrada, no caso de o obrigado a alimentos ter sobrevivido, ainda que com incapacidade permanente absoluta (5)..
No contexto do montante compensatório, por danos patrimoniais futuros, por óbito do lesado, importa ter em consideração que, por alimentos, se entende “tudo o que é indispensável ao sustento, habitação e vestuário”, neles se compreendendo, também, “a instrução e educação do alimentando em caso de este ser menor”, de acordo com o estipulado pelo artigo 2003º, do CC.
Importa, também, não deixar de considerar, atendendo ao disciplinado pelo artigo 2004º, nºs 1 e 2, do CC, que “os alimentos serão proporcionados aos meios daquele que houver de prestá-los e à necessidade daquele que houver de recebê-los”, considerando-se, é certo, a “possibilidade de o alimentando prover à sua subsistência”.
A questão de saber o que deve entender-se por alimentos necessários, tem a ver com as diversas condições económicas e sociais das famílias, não podendo, portanto, nivelar-se o montante a atribuir, a título de alimentos, por referência a um padrão uniforme.
A necessidade de “alimentação”, não se traduz num prato de sopa, a da “habitação”, não se satisfaz com um casebre, a do “vestuário”, não se preenche com o número de peças que seja, só por si, bastante para cobrir o corpo, a da “instrução”, não se resume a saber ler, escrever e contar, e a da “educação”, não se atinge com a aprendizagem de um código sumário de condutas para que o alimentando não possa ser rotulado como marginal.
Todos esses itemes devem ser aferidos, por um padrão mínimo de dignidade, face às exigências da vida actual e do respectivo meio social de inserção.
E, se é certo que ainda hoje muitas das prestações de alimentos se mostram fixadas, em montantes irrisórios, isso deve-se, frequentemente, à indisponibilidade económica dos obrigados às mesmas e não ao patamar das necessidades a satisfazer ao alimentando.
No caso em presença, o agregado familiar da vítima tinha um rendimento bastante elevado, colocando-se a um nível superior, já que, com 35 anos, o falecido CC auferia um rendimento anual ilíquido de €47.925,36, e líquido de €36.396,85.
Com a sua morte, os rendimentos deste agregado tiveram, necessariamente, de ressentir-se e, por via disso, também, as disponibilidades pecuniárias que estariam afectas à satisfação de alimentos.
Ora, é no quadro social e económico dos tempos modernos e, de acordo com a situação anterior do trem de vida do agregado, que deve encontrar-se o primeiro padrão de referência, que permitirá quantificar a medida dos alimentos.
Não seria justo que, em consequência da morte, causada por culpa exclusiva do condutor do veículo segurado na ré, ficassem os alimentandos limitados, de uma forma tão abrupta, no seu poder económico, parte do qual vinha sendo afectado à satisfação das suas necessidades de alimentos.
Não estando demonstrado que os alimentandos passaram a viver melhor, sem o seu marido e pai, é incompreensível sustentar-se para a satisfação das necessidades daqueles se basta com os rendimentos da autora-mãe e os proventos da herança.
Impõe-se, por isso, quantificar os valores respeitantes aos danos de natureza patrimonial, reclamados pela autora, AA, e pelo autor menor, BB, que contendem com os lucros cessantes, provenientes da morte da vítima CC, ou seja, fixar os alimentos ao cônjuge sobrevivo e ao filho menor, respectivamente.
Ao nível dos danos patrimoniais resultantes da perda da capacidade aquisitiva da vítima, ficou demonstrado que esta auferia, em rendimentos do trabalho, comprovados por documento, o quantitativo mensal ilíquido de €3423,24, e líquido de €2599.75, durante catorze vezes no ano, o qual revertia para os seus gastos pessoais, sendo o remanescente para a satisfação das despesas comuns da família, em proporção concreta que não foi possível determinar.
A indemnização por danos patrimoniais devidos aos parentes, em caso de morte da vítima, reconduz-se, praticamente, à prestação dos alimentos, sendo titulares deste direito os que podiam exigir alimentos ao lesado, em conformidade com o disposto pelos artigos 495º, nº 3, 2009º, nº 1, a), 2015º e 1675º, todos do CC.
No caso vertente, os autores têm a qualidade de que depende a possibilidade legal do exercício do direito, pois que são a esposa e filho do falecido, e, como tal, este estava vinculado a prestar-lhes alimentos (6).
No que concerne à viúva, são-lhe devidos alimentos, até ao final da sua vida, pois que é de presumir que o marido lhos prestaria, até esse momento, sendo certo que este deveria assegurar à esposa uma situação patrimonial equivalente à que ela teria, se a vida em comum se mantivesse, isto é, o correspondente à condição económica e social da família (7), enquanto que, em relação ao menor BB, a obrigação de alimentos terminaria, em princípio, quando este atingisse a maioridade ou quando terminasse a sua formação profissional ou deixasse de frequentar curso médio ou superior, razoavelmente, até aos 26 anos de idade.
Constituindo o prudente arbítrio norma referencial dos julgadores, não repugna ficcionar que a vítima gastava consigo, em despesas pessoais, um terço do seu rendimento anual (8)., concorrendo, portanto, com os dois terços restantes para o custeio das despesas do lar, ou seja, que contribuía, anualmente, com a importância de €24264.33 (€2599.75x14 meses = €36396.5 x 2/3 = €24264.33), a favor dos autores, que, por isso, se viram privados da mesma prestação.
Esta quantia deve ser actualizada, em função da teoria da diferença, nos termos do disposto pelo artigo 562º, do CC, em virtude da notória desvalorização da moeda, como vem sendo pratica jurisprudencial uniforme, importando que a indemnização a arbitrar seja calculada, por forma a representar um capital produtor de rendimento que a vítima irá perder, mas que cubra a diferença entre a situação anterior e a actual, até ao final desse período, e que se extinga, no termo provável da vida activa da mesma, e seja susceptível de garantir, durante ela, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho.
Urge, pois, calcular o capital necessário para que os autores obtenham aquele rendimento, com recurso, num primeiro momento, aos elementos objectivos utilizados pelos Tribunais, por forma a determinar qual o capital que será necessário para, à taxa de juro anual de 4%, tendo em atenção a presente situação monetária e a actual evolução das taxas de juro e da inflação, se encontrar o rendimento anual conhecido, introduzindo factores de correcção, a fim de se conseguir a extinção do capital, no final do período para que foi calculado (9).
A isto acresce que, para evitar que o valor resultante das fórmulas matemáticas ou tabelas financeiras, utilizadas como referencial primário, porque partem do pressuposto que o lesado não mais evoluirá na sua situação profissional, abstraem do aumento de produtividade, não incluem um factor que contemple a tendência, pelo menos, a médio e longo prazo, quanto à melhoria das condições de vida do país e da sociedade, não tomam em consideração a tendência para o aumento da vida activa, até atingir a reforma, não contam com a inflação, nem com o aumento da própria longevidade, nem com a previsível maior reforma a auferir se, durante a vida activa, designadamente, nos últimos anos, os descontos para a Segurança Social forem superiores, conduza a um resultado estático, deve intervir a equidade, com uma função decisiva e correctora, em termos de danos futuros previsíveis, com base nas disposições combinadas dos artigos 564º, nº 2 e 566º, nº 3, ambos do CC.
Efectivamente, é, na determinação dos dados dessa operação de cálculo que o julgamento de equidade, necessariamente, intervém, sem prescindir do que é normal acontecer, para o que importa introduzir os já aludidos factores de correcção, nomeadamente, o tempo provável de vida profissional activa, que caminha, aceleradamente, para os setenta anos de idade, a esperança média de vida da vítima, sendo certo que para os homens, cuja idade se situa na sua faixa etária, na altura com 35 anos, é de cerca de 75 anos(10), tendencialmente elevável, até à viragem da primeira metade deste século XXI, a diferença que, em cada época futura, existirá entre o rendimento recebido e o que auferiria, se não fosse a morte, a flutuação do valor da unidade monetária em que a indemnização se irá traduzir, o desenvolvimento tecnológico, os índices de produtividade, a alteração das taxas de juro do mercado, a inflação, os montantes ilíquidos dos valores, sem referência aos impostos, a antecipação imediata da totalidade do capital, o seu grau de incapacidade, o coeficiente de culpa na produção do acidente, e, finalmente, a dedução de um quarto na capitalização do rendimento, a fim de se conseguir a extinção do capital, no final do período para que foi calculado (11). , para evitar que a acumulação de juros acabe por penalizar os réus e permitir um enriquecimento injusto, à custa alheia, por parte dos autores.
Haverá ainda que considerar que a produção do acidente causador da lesão fatal resultou de culpa exclusiva do condutor do veículo segurado na ré DD SA, sendo esta uma entidade seguradora prestigiada e com boa situação económica, enquanto que o falecido era uma pessoa muito activa e com um trem de vida e rendimentos próprios de nível elevado.
Tendo em conta todo o enquadramento fáctico e jurídico que, detalhadamente, se considerou, entende-se, perfeitamente, plausível e justificada e, equitativamente, equilibrada, a opção da Relação, ao fixar o montante compensatório, a pagar à autora AA, em €289.631,39, correspondente a €300.000,00, a que se deve abater a quantia de €7.819,98, paga à autora pela Segurança Social, mas que a ré DD SA, terá de pagar a esta entidade.
Em relação ao menor BB, não tendo os autores questionado o montante fixado na apelação, a título de indemnização por danos patrimoniais futuros, ainda que o mesmo se afigure aquém da medida dos alimentos que lhe são devidos, manter-se-á o quantitativo definido de €2.548,56, por força do princípio da proibição da «reformatio in pejus», consagrado pelo artigo 684º, nº 4, do CPC.

V. DOS DANOS NÃO PATRIMONIAIS PRÓPRIOS DO NASCITURO

O autor CC pede, na presente acção, a condenação dos réus no pagamento de uma indemnização, por danos não patrimoniais próprios, sofridos em consequência da morte de seu pai, sobrevinda ao acidente de viação dos autos, muito embora, nessa ocasião, ainda não tivesse nascido.
O acórdão recorrido entendeu que o nascituro está fora do quadro elencado pelo artigo 496º, do CC, e, por isso, que o autor não goza do direito de compensação, por danos não patrimoniais próprios.
Na sequência desse entendimento, a Relação revogou a sentença, na parte em que atribuíra ao autor CC, nascituro à data do falecimento do pai, o quantitativo de €10.000,00 que, a esse título, lhe havia sido atribuído, em primeira instância.
Sustentam os autores, nesta revista, que a posição assumida pela Relação não merece acolhimento, devendo ser reposta, quanto a esta matéria, a decisão da primeira instância, cujo montante compensatório atribuído, a pecar, só por defeito pode ser considerado.
É hoje inquestionável o direito de indemnização pela perda do direito à vida, isto é, o denominado «dano morte», como um direito próprio da vítima, pelo que o respectivo direito compensatório deve ser integrado no património desta, a transmitir por via hereditária.
No caso em presença, é, portanto, absolutamente inequívoco, que o autor CC preenche os requisitos indispensáveis para assumir a posição de herdeiro da vítima, seu pai, com todas as legais consequências, e, assim, ser sujeito activo das indemnizações compensatórias decorrentes da sua morte.
Porém, não é na transmissibilidade do direito à indemnização, pelos danos não patrimoniais resultantes do sofrimento e da perda da vida da própria vítima, quanto à possibilidade de os nascituros poderem ser constituídos como titulares desse direito, por sucessão, que se centra a discussão nuclear do presente recurso, mas antes em saber se, para além do direito à indemnização por esses danos, próprios da vítima, a lei reconhece ao nascituro um direito próprio deste, radicado nos sofrimentos ou privações que o mesmo poderá sofrer, ao longo da vida.
Trata-se, a propósito, da dor que poderá vir a sofrer, por não ter sequer chegado a conhecer o pai, nem poder partilhar da sua companhia e afecto, ou de se sentir desamparado de conselhos e protecção, principalmente, nas alturas que mais precisa deles.
A questão que agora se coloca consiste, em suma, em saber se o nascituro é titular originário de um direito de indemnização, por danos não patrimoniais próprios, proveniente da morte de seu pai, contra o autor do facto ilícito correspondente, à margem do fenómeno sucessório da herança da vítima.
Estipula o artigo 496º, nº 2, do CC, que “por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes;…”.
De acordo com o normativo acabado de transcrever, na hipótese dos danos não patrimoniais, quer se trate de morte, quer de lesão, toda a indemnização correspondente cabe, não aos herdeiros, por via sucessória, mas antes aos familiares, por direito próprio (12)..
Pertencendo, assim, a indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela vítima, nomeadamente, aos filhos, importa questionar se, neste conceito de “filhos”, se incluem, de igual modo, os nascituros, como é o caso do menor autor.
O nascituro é um ser humano que ainda não nasceu, mas já foi concebido, a respeito do qual existe a expectativa de que venha a nascer(13)..
A questão está, assim, em saber se o nascituro tem personalidade jurídica, sendo certo que se defende a identificação do início da personalidade jurídica com o momento da concepção (14).
A personalidade jurídica consiste na susceptibilidade de ser sujeito de direitos e obrigações ou pessoa em sentido jurídico ou na aptidão para ser titular autónomo de relações jurídicas (15)..
É que o reconhecimento da personalidade jurídica é uma exigência do direito à dignidade, que pertence a todos os indivíduos, segundo o preceituado pelo artigo 6º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Porém, sendo o nascituro, inquestionavelmente, um ser humano em gestação, será, desde logo, uma pessoa, um indivíduo?
Tendo a vida início com a fecundação e sendo com a nidação do ovo, isto é, com a sua implantação no útero materno, que se garante a viabilidade do ovo, etapa importante da evolução do embrião, este apenas constitui mais uma modalidade de dependência do ser humano, em relação à sua progenitora, como acontece nas várias fases da vida pré-natal e pós-natal.
Por isso, distingue-se entre vida humana e vida pessoal, considerando que ser pessoa implica ser indivíduo e que um embrião, mesmo após a nidação, apesar de já ser vida humana, ainda não é uma pessoa, porquanto não pode ser considerado um indivíduo(16)
Aliás, o artigo 2º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, protege «o direito de toda a pessoa à vida», sendo certo que a Comissão Europeia dos Direitos do Homem considerou que o termo «pessoa» não abrange o ser humano, já concebido, mas ainda não nascido (17).
No plano europeu, o denominador comum sobre a questão da natureza do estatuto do embrião e/ou do feto, situa-se na sua pertença à espécie humana, na potencialidade deste ser e na sua capacidade para se tornar uma pessoa, sem que, para tanto, seja necessário criar “uma pessoa”, que teria “direito à vida”, no sentido do artigo 2º, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, não sendo possível responder à questão de saber se a criança ainda por nascer é uma pessoa(18).
Sendo certo que o artigo 25º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, consagra o direito fundamental à vida, declarando inviolável a vida humana, a vida pré-natal é protegida, não a título de direito subjectivo do nascituro, que carece de personalidade jurídica, mas como mero valor ou bem objectivo - «vida uterina», «vida fetal» -(19), que o legislador pode subpor a certos direitos ou interesses, constitucionalmente, tutelados, tais como, a vida, a saúde, a dignidade e a liberdade da mulher, qualidade de vida, paternidade e maternidade conscientes (20).
O artigo 66º, nº 1, do CC, aderindo a uma opção de tipo natalista, de ordem natural, até por necessidades de certeza jurídica, situa o começo da aquisição da personalidade jurídica singular, “…no momento do nascimento completo e com vida”.
Efectivamente, a personalidade jurídica tem início, relativamente às pessoas singulares, com o nascimento, isto é, com a separação da criança do ventre materno, completo e com vida, e não com a concepção (21).
Assim, de acordo com o entendimento adoptado pelo legislador nacional, apenas o nado-vivo é uma pessoa jurídica, pelo que, consequentemente, o nascituro não é um sujeito de direito, encontrando-se privado de capacidade jurídica ou de capacidade de gozo de direitos, excluindo-se, portanto, com base no texto do artigo 66º, nº 1, do CC, a personalidade jurídica dos nascituros (22)
A preferência da lei portuguesa, como, aliás, da lei alemã e da generalidade das legislações, pela coincidência da personalidade jurídica com o momento do nascimento com vida, em detrimento do instante da concepção, na evolução do embrião humano, não pode ser considerada como uma opção arbitrária, nem antinatural ou artificial do legislador, desde logo, em virtude da notoriedade do nascimento, em contraste com o secretismo natural e social da concepção do embrião, depois, porque as propriedades essenciais do ser humano, como sejam, a vontade, a consciência e a razão, começam com o nascimento e não com a fecundação do óvulo no seio materno e, finalmente, porque o nascimento é o marco culminante da autonomização fisiológica, perante o organismo da mãe, que determina o reconhecimento da personalidade do filho (23).
E, assim, não existe qualquer contraditoriedade entre o facto biológico do nascimento, enquanto momento da aquisição da personalidade jurídica singular, por força do estipulado pelo artigo 66º, nº 1, do CC, e o princípio da inviolabilidade do direito à vida humana, com base no disposto pelo artigo 24º, nº 1, da Constituição da República, que tutela, genericamente, a gestação humana, sem considerar o nascituro como um sujeito de direito.
Porém, o artigo 66º, nº 2, do CC, reconhece determinados direitos aos nascituros, em cinco casos tipificados (24)., acrescentando, expressamente, que os mesmos “…dependem do seu nascimento”.
Quer isto dizer que, apesar dos nascituros não terem ainda personalidade jurídica e, portanto, não serem sujeitos de direito, e de só adquirirem personalidade jurídica, a partir do nascimento, completo e com vida, a lei portuguesa reconhece-lhes determinados direitos, que ficam dependentes do seu nascimento.
Efectivamente, a lei nacional distingue os conceitos de filhos, nascituros e concepturos, enfatizando, no citado artigo 66º, nº 2, do CC, que “os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento”, o que significa, manifestamente, que não pode haver direitos sem sujeito, a não ser, transitoriamente, em casos, expressamente, tipificados (25) pois, de outro modo, seria pleonástico afirmar-se que esses direitos “…dependem do seu nascimento”, se se lhes reconhecesse a mesma universalidade de direitos, como acontece em relação aos filhos.
Aliás, não se aceita, com o muito devido respeito, a tese que sustenta, com base no estipulado pelo artigo 496º, nº 2, do CC, que o legislador, ao falar nos “…filhos;…”, quis referir-se, indistintamente, a todos eles, sem excluir os nascituros.
No artigo 66º, nº 2, do CC, o legislador estatuiu que “os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento” e não que “os direitos dos nascituros dependem do seu nascimento”, o que significa que comprimiu o feixe desses direitos, que não quis alargar, indiscriminadamente, a qualquer situação, e que não confundiu o conceito de nascituro com o conceito de filho.
Na verdade, a admitir-se a existência de personalidade jurídica desde a concepção, o nascituro teria os mesmos direitos da pessoa já nascida, o que importaria a extinção do instituto jurídico do nascimento (26)., sendo certo que, no ordenamento jurídico nacional, ainda se não defendeu uma nova incapacidade jurídica como aquela que, então, decorreria da situação de nascituro.
E não será incompatível pretender atribuir a personalidade jurídica ao nascituro, por um lado, enquanto que, por outro, se priva o mesmo do gozo e do exercício de determinados direitos, concretamente, de direitos previstos na lei e, desde logo, a propositura da acção de indemnização, por danos sofridos por aquele, antes do seu nascimento?
Baseando-se a responsabilidade civil numa violação ilícita do direito de outrem e, portanto, pressupondo uma personalidade contemporânea da lesão, não havendo ainda terceiro, no momento da pratica do facto ilícito, nenhum dever de indemnizar se formou (27)., não sendo o eventual e posterior nascimento da pessoa que pode fazer radicar na mesma um crédito indemnizatório e constituir o infractor no dever de o satisfazer.
E a admitir-se a existência de um facto ilícito, sem haver personalidade contemporânea da lesão, no momento da sua prática, mas que se repercutiria depois no sujeito, aquando do seu nascimento, causando-lhe o dano, como forma de justificação da afirmação de que ninguém pode ser titular de um direito, sem possuir personalidade jurídica (28)., tal constituiria uma perigosa inversão metodológica, ainda que com o pretexto de que a solução oposta representaria um contra-senso jurídico.
Revertendo ao caso em apreço, o facto gerador do alegado direito próprio do autor menor consiste na morte da vítima do acidente de viação, seu pai, ocasião em que aquele, ainda nascituro, não estava em condições de adquirir esse direito, por não dispor de personalidade jurídica, nem o tendo adquirido, aquando do seu nascimento, embora, então, já tivesse personalidade jurídica, por não haver lei que lho reconhecesse, à data do acidente.
Efectivamente, o legislador considerou que o nascituro só tem os direitos que a lei lhe reconhece, e esses mesmos só lhe são atribuídos, se vier a nascer com vida, nos termos do disposto pelo artigo 66º, nº 2, do CC.
É que a lei não lhe reconhece, enquanto nascituro, o direito a qualquer indemnização, por danos não patrimoniais próprios, por morte do pai, que apenas é reconhecido aos filhos, e estes, na acepção legal, são, tão-só, os nascidos com vida e que existam, à data da morte da vítima.
Assim sendo, os nascituros, ainda que venham a nascer com vida, não têm direito a qualquer indemnização, por danos não patrimoniais próprios, pela morte do pai, em consequência de facto ilícito ocorrido antes do seu nascimento, só podendo adquirir esse direito se o mesmo lhe fosse transmissível, por via sucessória, como efeito da perda do direito à vida do «de cujus», e tal não acontece, porque o mesmo se não radicou na titularidade deste e, como tal, não é susceptível de transmissão hereditária.
E, também, não se diga que este entendimento viola o princípio constitucional da igualdade, em que seriam colocados os descendentes do mesmo grau de idêntico progenitor.
Efectivamente, o princípio constitucional da igualdade significa, de acordo com o estipulado pelo artigo 13º, nº 1, da Constituição da República, que “todos os cidadãos…são iguais perante a lei”.
Porém, o princípio da igualdade não proíbe o estabelecimento de distinções, não aponta no sentido igualitarista, exigindo, tão-só, que se tratem por iguais situações, substancialmente, iguais, mas que situações, subjectivamente, diferentes sofram tratamento diverso, embora, proporcionalmente, diferente (29)., tudo estando em saber, para aferir do alcance do princípio, se, ao estabelecer a desigualdade de tratamento em causa, o legislador respeitou os limites à sua liberdade conformadora ou constitutiva, de modo a que a desigualdade não se baseie num fim, constitucionalmente, impróprio (30).
Ora, a desigualdade do tratamento normativo entre filhos e nascituros tem como fronteira e razão determinante o acontecimento mais marcante do ser humano, que é o seu nascimento.
E se é certo que o nascimento tem uma origem, não é menos verdade que ele é o princípio da existência do homem enquanto pessoa, e a razão do reconhecimento da sua personalidade jurídica.
Não são, pois, violadoras do princípio da igualdade constitucional as distinções que a lei, a propósito dos filhos e dos nascituros, consagrou no ordenamento jurídico.

CONCLUSÕES:

I – São três os fundamentos excepcionais justificativos da apresentação de documentos supervenientes com as alegações de recurso, ou seja, quando os documentos se destinem a provar factos posteriores aos articulados, quando a sua junção se tenha tornado necessária, por virtude de ocorrência posterior e, finalmente, no caso de a sua apresentação apenas se tornar necessária, devido ao julgamento proferido em 1ª instância.
II - Não é facto notório que pela circunstância de o acidente ter acontecido, junto a uma loja Maxmat, o mesmo se tenha registado dentro de uma povoação, devendo antes figurar entre a matéria alegada e ser objecto de prova positiva.
III – Mostra-se, equitativamente, equilibrada a fixação do montante compensatório, a título de alimentos devidos à viúva de vítima falecida, com 35 anos de idade, auferindo do rendimento do trabalho o quantitativo mensal líquido de €2599.75, durante catorze vezes no ano, em consequência de acidente de viação, totalmente, imputável a culpa do condutor segurado, como dano patrimonial futuro, em €300000,00.
IV - Não existe contraditoriedade entre o facto biológico do nascimento, enquanto momento da aquisição da personalidade jurídica singular, por força do estipulado pelo artigo 66º, nº 1, do CC, e o princípio da inviolabilidade do direito à vida humana, com base no disposto pelo artigo 24º, nº 1, da Constituição da República, que tutela, genericamente, a gestação humana, sem considerar o nascituro como um sujeito de direito.
V - Baseando-se a responsabilidade civil numa violação ilícita do direito de outrem e, portanto, pressupondo uma personalidade contemporânea da lesão, não havendo ainda terceiro, no momento da pratica do facto ilícito, nenhum dever de indemnizar se formou, não sendo o eventual e posterior nascimento da pessoa que pode fazer radicar na mesma um crédito indemnizatório e constituir o infractor no dever de o satisfazer.
VI – O nascituro não é titular originário de um direito de indemnização, por danos não patrimoniais próprios, provenientes da morte de seu pai, em consequência de facto ilícito ocorrido antes do seu nascimento, à margem do fenómeno sucessório da herança da vítima, direito esse que apenas é reconhecido aos filhos, e estes, na acepção legal, são, tão-só, os nascidos com vida e que existam, à data da morte da vítima.
VII - O facto gerador do alegado direito próprio do autor menor consiste na morte da vítima do acidente de viação, seu pai, ocasião em que aquele, ainda nascituro, não estava em condições de adquirir esse direito, por não dispor de personalidade jurídica, nem o tendo adquirido, aquando do seu nascimento, embora, então, já tivesse personalidade jurídica, por não haver lei que lho reconhecesse, à data do acidente.

DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em negar as revistas dos autores e da ré DD SA, e, em consequência, em confirmar, integralmente, o acórdão recorrido.

*

Custas da revista, a cargo dos autores e da ré DD, Portugal, SA, na proporção de 55% e de 45%, respectivamente.



Notifique.
Lisboa, 17 de Fevereiro de 2009
Helder Roque ( Relator)
Mário Cruz (voto vencido)
Ernesto Calejo ( Faço meu o voto de vencido do Conselheiro Mário Cruz.)
Sebastião Póvoas
Moreira Alves


Voto de vencido :
Votei vencido no segmento do Acórdão agora aprovado que não reconheceu direito de indemnização por danos não patrimoniais próprios ao nascituro.
Passo a transcrever o que constava do projecto por mim relatado relativamente a tal matéria, pois, apesar do brilhantismo do Acórdão vencedor, não vejo razões que me convençam a mudar de posição.
Afigura-se-me, de resto, que a solução por mim proposta – e que saiu vencida nesse segmento - se impunha de direito e de justiça:

Escrevi então no Projecto que saiu vencido:

“(…) Entendeu-se no Acórdão recorrido que o nascituro está fora do quadro elencado no art. 496.º do CC. e por isso não tinha direito a compensação por danos não patrimoniais.
Na sequência desse entendimento, a Relação revogou a Sentença na parte em que atribuíra ao A. Alexandre Neves Mendonça (nascituro à data do falecimento do pai), os € 10.000,00 que a esse título lhe haviam sido atribuídos na primeira instância.

Sustenta-se no recurso dos AA. que a posição assumida pela Relação não merece acolhimento, devendo ser reposta, quanto a esta matéria, a decisão da primeira instância, cujo montante compensatório atribuído, a pecar, só por defeito pode ser considerado.

Pois bem:
Como podemos ver da matéria de facto, quando o Alexandre Ferraz Mendonça faleceu, o ora A. Alexandre Neves Mendonça já havia sido concebido, encontrando-se no entanto ainda no seio materno. Tratava-se portanto de um nascituro (stricto sensu).

Isto reconduz-nos à velha problemática dos direitos sem sujeito. Mota Pinto, Teoria Geral, 3.ª ed., pg. 201.
De acordo com o disposto no art. 66.º-1 do CC., “A personalidade adquire-se no momento do nascimento completo e com vida.”
O n.º 2 do mesmo artigo enuncia-nos que “Os direitos que a lei reconhece aos nascituros dependem do seu nascimento.”

Mas poderá isto significar que pelo facto de o A., nascituro ainda quando o pai faleceu, não pode ter direito a ser compensado pelos danos não patrimoniais que ao longo da sua vida irá registar pelo facto de nascer já privado do pai, quando esse dano é imputável a responsabilidade de terceiro?
Há muito tempo que temos defendido que tem esse direito, e cremos que será esse o mais correcto entendimento.

Expliquemo-nos então por que assim pensamos:

Importa começar por referir que a lei reconhece de uma forma explícita alguns direitos ao nascituro, posto que condicionados na sua eficácia ao nascimento completo (ou seja, ao total desligamento do seio materno) e com vida- art. 66.º-2 do CC.
Estão entre eles, por exemplo, os seguintes:
- O de receber doações - art. 952.º ; Nesta caso também extensível a concepturo, filho de pessoa determinada, viva ao tempo da declaração do doador
- O de poder ser logo perfilhado – art. 1854.º e 1855.º; Ou até reconhecido judicialmente, como sustentado por Castro Mendes, in Teoria Geral do Direito Civil, I, pg. 106, da colecção “Obras Completas do Prof. Castro Mendes, ed. da AAFDL
- O de ser abrangido pelo poder paternal - arts. 1878.º;
- O de ser incluído logo na sucessão legal - 2033.º-1 idest, na sucessão legítima e legitimária dos nascituros; Neste caso os concepturos estão explicitamente excluídos
- O de poder ser contemplado na sucessão testamentária – art. 2033.º; Incluindo aqui também os concepturos filhos de pessoa determinada viva à data da abertura da sucessão.

A previsão casuística dos factos atrás enunciados permite suscitar no entanto a questão de saber se ao nascituro só são reconhecidos esses direitos, ou se pelo contrário, lhe serão reconhecidos outros.

É pacífico que a simples existência de preceitos específicos onde são contemplados direitos do nascituro faz esclarecer desde logo, relativamente ao caso em presença, que o A. Alexandre Neves, sendo nascituro à data do óbito do pai, se tornou desde logo herdeiro condicionado dele, e que, por se haver verificado essa condição (ao ter nascido com vida), a sua relação sucessória é exactamente igual à de qualquer filho nascido. – art. 2033.º-1 do CC.
Atendendo a que ele se tornou herdeiro do pai, os bens que devam preencher o património hereditário deste, transmitem-se ao filho, então ainda nascituro.
Na esfera jurídica patrimonial do pai, estavam desde logo incluídos os bens materiais que o mesmo tinha em vida, assim como as indemnizações a que, por direito próprio, lhe pertencessem ou viessem a ser conferidas por ter sido vítima de acidente.
Nelas se incluem, portanto, as indemnizações decorrentes dos sofrimentos havidos entre o momento do acidente e a morte, assim como a indemnização pela perda do direito à vida (danos não patrimoniais). Capelo de Sousa, Sucessões, 1.º-265; cfr., por exemplo, tb. Ac do STJ de 85.05.23, BMJ, 347.º-pg. 398.
Há quanto a este entendimento uma perfeita sintonia da doutrina, como pode ver-se, a título meramente exemplificativo, em Inocêncio Galvão Teles Inocêncio Galvão Telles, Sucessões, 5.ª ed., pg. 75 e ss. e Dario Martins de Almeida. Dario Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 1980, pg. 170.
É neste sentido que insere também a Jurisprudência portuguesa, ao colocar a indemnização pela perda do direito á vida (dano morte), como um direito próprio da vítima, pelo que o direito indemnizatório/compensatório daí decorrente se deve integrar no património dela, a transmitir por via hereditária.
No caso em presença, é portanto absolutamente inquestionável que o A. Alexandre Neves preenche os requisitos para assumir a posição de herdeiro da vítima, com todas as legais consequências, e assim ser sujeito passivo das indemnizações compensatórias daí decorrentes.

Não vamos alargar-nos em mais considerações sobre esse ponto, porque não é na transmissibilidade do direito à indemnização pelos danos “sofrimento” e “perda da vida” da própria vítima que se centra a discussão central do presente recurso quanto à possibilidade de os nascituros poderem ser constituídos como titulares desse direito, por sucessão.

Importa então saber se, para além do direito à indemnização por esses danos – próprios da vítima- , a lei reconhece ao nascituro um direito próprio deste, radicado nos sofrimentos ou privações que o próprio nascituro irá sofrer ao longo da vida (dor de não ter sequer chegado a conhecer o pai nem de poder partilhar da companhia e afecto que poderia ter tido, ou de se sentir desamparado de conselhos e protecção principalmente na altura que mais precisava dele.)
Esta é que é a questão central, sobre a qual se reconhece que – infelizmente - não há ainda consenso doutrinário e jurisprudencial.

Estamos no entanto do lado daqueles que sustentam que o nascituro tem também um direito próprio a ser indemnizado por esses danos não patrimoniais, pois é inquestionável que é ele mesmo que vai sentir a dor ou mágoa de alguém lhe haver tirado o direito a crescer com um pai ao seu lado.
Esta nossa posição entra em colisão com a tomada na decisão recorrida (onde esse direito não foi reconhecido ao nascituro mas apenas à esposa da vítima), mas está em total sintonia com a tese defendida pelos AA..

E que na verdade, quando a lei enuncia casos específicos em que reconhece direitos aos nascituros, fá-lo pela necessidade de salvaguardar a atribuição deles ao efectivo nascimento completo e com vida; fá-lo porque há necessidade de distinguir nascituros e concepturos; fá-lo porque vê necessidade de distinguir entre situações decorrentes de sucessão legítima e testamentária; fá-lo porque pretende limitar o âmbito de doações, etc..etc…
…. Mas em nenhuma delas se vê que o tenha feito para afastar, por exclusão de partes, a possibilidade de aplicação aos nascituros (entretanto nascidos com vida) dos direitos que na lei surgem como próprios dos filhos, ou de negar aos nascituros, por via legislativa, um dado incontornável da ciência - que se traduziria numa blasfémia - ou seja, o de pretender negar que o nascituro não sofre nem vai sofrer ao longo da vida danos não patrimoniais, por alguém, culposamente, ter tirado a vida ao pai.
Tal como Dias Marques já há muitos anos ensinava Dias Marques, in Código Civil Anotado, 2.ª ed., pg. 23. e que tem colhido o seu eco junto de Ils. Professores e Jurisconsultos mais recentes, também nós sustentamos que um nascituro (stricto sensu), adquire retroactivamente todos os direitos que caibam ou sejam reconhecidos ao filho biológico a partir do momento do seu nascimento completo e com vida,. “Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”- art. 9.º-3 do CC.

Pode argumentar-se que o legislador, quando pretendeu referir-se a direitos dos nascituros fê-los distinguir dos direitos dos filhos biológicos já nascidos, tanto mais que tem preceitos específicos para uns e que são diferentes dos outros como o fez no art. 496.º do CC. onde se refere apenas aos filhos (sem fazer qualquer referência a nascituros), criando nesse preceito um quadro pelo menos aparentemente dissemelhante do estipulado no campo sucessório.

Quanto a esta objecção, entendemos dever dizer, que só aparentemente se pode falar em dissemelhança, parecendo-nos extremamente pertinente trazer à colação uma passagem do Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 2000.03.20, relatado pelo ora Il. Conselheiro Custódio Montes onde se mostra escrito o seguinte:
“(...) A tese que defende que o nascituro não tem direito a indemnização por danos não patrimoniais, no contexto do art. 496.º (...), refere que se o legislador assim o quisesse tê-lo-ia feito, como o fez relativamente ás situações quanto aos direitos que (explicitamente) lhe reconhece.
Desde logo discordamos desta tese ao mencionar que a norma em questão não engloba no seu contexto os nascituros.
De facto, referindo-se a norma a “filhos” e não fazendo qualquer distinção entre os filhos nascidos e os nascituros, também o intérprete o não deve fazer.(...)”
E mais abaixo:
“A ordem jurídica não pode ..., negar o facto evidente de que, face à realidade biológica, o nascituro e a criança nascida são idênticos”, ou, como referido em Leite de Campos Leite de Campos, in A Vida, a Morte e a sua Indemnização, BMJ, 365.º-18),, “Entre a concepção e a morte, o ser humano é uma pessoa jurídica, por o direito se limitar a adoptar a realidade biológica, integrando-a no mundo da cultura.”

Para além disso, entendemos ainda que as referências explícitas no Código, em determinadas normas, ao estatuto dos nascituros nos parecer derivar do facto de ser necessária a previsão de consagrar desde logo determinado tipo de direitos antes que se concretize o evento da passagem de “entes protegidos sem personalidade jurídica” à situação de “filhos” (o que só acontecerá com o nascimento completo e com vida – art. 66.º-1 do CC), mas não devido ao facto de se pretender demarcar uma “caput diminutio” do estatuto do nascituro (stricto sensu). Tem sido essa a nossa posição de sempre, podendo a título exemplificativo citarmos o Ac da RP de 2006.01.24, na apelação 5962/05-2.ª, disponível in www.dgsi.trp.pt, que obteve confirmação do STJ
O argumento do Prof. Castro Mendes in “Teoria Geral, 1978, !-226, de que a lei não reconhece os mesmos direitos aos filhos já nascidos e aos nascituros, e que por isso os nascituros estavam excluídos da previsão contida no art. 496.º do CC., apontando a título de exemplo, a situação decorrente dos direitos adquiridos por terceiros sobre bens patrimoniais ao abrigo de usucapião, não nos parece convincente ou determinante, pois não vemos como possa operar a usucapião no espaço temporal compreendido entre a concepção e o nascimento (normalmente nove meses, máximo dez, para efeitos legais).

Assim, as situações decorrentes de facto gerador de responsabilidade, que tenham ocorrido ainda no período em que só havia nascituro (stricto sensu), não afastam este do direito a ser indemnizado como filho, por direito próprio, nos termos do art. 496.º do CC, condicionado como é natural, ex vi do art. 66.º do CC. - repete-se mais uma vez - à hipótese do seu nascimento posterior, completo (ou seja, desligado do seio materno) e com vida.

De resto, não se mostraria adequada ao reconhecimento do direito à identidade pessoal qualquer distinção entre ser apenas nascituro (ainda sem personalidade jurídica, mas já protegido) ou ser já filho, porque o filho já foi nascituro, e porque o nascituro que nasça com vida será filho de quem o gerou. Tem aqui pleno cabimento as considerações tecidas no Ac da RP de 2000.03.30, CJ, ano XXV, tomo II, pgs. 209 e ss. subscrito por Custódio Montes, Oliveira Vasconcelos e Viriato Bernardo (os dois primeiros são hoje Juízes Conselheiros deste STJ), quando a propósito do livro de António Damásio, “O Erro de Descartes”, se faz apelo ao sentimento de fundo (denominado por background), considerando que nem todos os sentimentos provêm de emoções, e que há sentimentos sem emoções. Na realidade, a dor pode constituir um sentimento profundo de mágoa e privação sem que cheque ao patamar da emoção, e a emoção pode ser, e normalmente é, uma dor passageira e breve, ainda que possa constituir o ponto de partida para uma dor mais serena, mas perdurável e profunda. O recém nascido também não chega a emocionar-se com a perda do pai porque ainda não tem a sua razão formada, mas nem por isso deixará de sentir a sua perda, permanentemente, ao longo da vida.

Parece-nos, aliás, de mui difícil sustentabilidade constitucional poder aceitar-se uma visão diferente do problema, ainda que continue a existir, mas a perder força, corrente doutrinária e jurisprudencial que não rema no mesmo sentido.
O art. 26.º da Constituição dá-nos o necessário suporte à tese sustentada, reconhecendo que todos têm direito à identidade pessoal, concretizada em diversas vertentes, das quais há a destacar o direito á historicidade genética, pessoal, educacional e familiar.
O “roubo” da vida de um dos progenitores é uma ofensa, fortemente limitativa desse direito.

A relação entre causa e efeito, por outro lado, não implica necessariamente que os danos ocorram imediatamente, podendo vir a verificar-se ao retardador. O que interessa é que exista esse nexo umbilical, por forma a que possa determinar-se que o efeito (leia-se aqui dano não patrimonial ao longo da vida por crescer sem pai) ocorreu devido à ocorrência de um evento causado por terceiro em violação de um direito.
O desenvolvimento da personalidade, não estaria a ser cumprido, se porventura interpretássemos o artigo enunciado de uma forma discriminativa, castrada, limitativa e sem razão, atribuindo o direito de indemnização por danos não patrimoniais aos filhos que já tenham nascido e não reconhecendo esse mesmo direito a quem, por maior azar, já esteja concebido mas ainda não tenha atingido esse estado físico, ainda que comungando da mesma fonte identitária ou genética da personalidade progenitora.
Violaria, por outro lado também, o direito constitucional da igualdade em que seriam colocados os descendentes no mesmo grau, do mesmo progenitor, relativamente ao enunciado direito, sendo certo que tanto um como outro provêm das mesmas pessoas e que a identidade física do filho nascido é a mesma do filho antes gerado (nascituro) enquanto encerrado no ventre materno, e que se desenvolve ininterruptamente desde a concepção.
De trazer à colação os arts. 24.º, 25.º e 13.º da Constituição, que, em nosso entender, apoiam claramente a posição aqui sustentada.

Não há pois uma única razão forte, salvo o devido respeito por opiniões em contrário, para restringir a interpretação do art. 496.º do CC., ao dela pretender excluir no âmbito da previsão do conceito de “filhos” (aí prevista) a abrangência dos nascituros, pois estes, tal como os primeiros, nem por isso deixarão de vir a ser reconhecidos como tal, e, tanto uns como outros, irão sentir ao longo da vida a mágoa e o sofrimento profundo de não terem a possibilidade de privar com o progenitor e de dele receber o carinho, o conforto e a palavra amiga em todos os momentos, pedra de toque essencial na formação da sua personalidade.
Defender o contrário por razões meramente formalistas ou recorrendo a interpretações restritivas afigura-se-nos, portanto, como uma forma de discriminação intolerável.

Reconhece-se, por isso, ao recorrente Alexandre Neves o direito que reivindica, ou seja, o de ser ele titular, por direito próprio, à indemnização pelos danos não patrimoniais resultantes da dor/sofrimento pela privação física do pai ao longo da vida.- dano futuro previsível – art. 564.º-2 do CC.

O montante da compensação/reparação deve determinar-se lançando mão da equidade, não discriminando entre filhos nascidos e apenas nascituros quando se verifica o evento morte do progenitor.
A quantia arbitrada na primeira instância (€ 10.000,00), se peca, é pois, por defeito, mantendo-se no entanto a mesma inalterável por com ela se conformar o A.”

É para nós um dado científico, no domínio das ciências sociais, - senão mesmo um facto notório - que a existência de uma relação parental concreta é um importantíssimo valor na formação da personalidade.
Isso leva-nos a concluir que a privação desse valor por acto de terceiro constitui um dano não patrimonial de extrema relevância, e, como tal, indemnizável.
E como dado científico que é, não pode a decisão ignorá-lo.
Se se quiser rejeitar essa tese como um dado científico, então terá essa situação de ser enquadrada entre os factos notórios (toda a gente sabe a falta que faz um pai a cuidar e educar um filho, a servir-lhe de amparo e retaguarda, a formar a respectiva personalidade e o sentimento de perda ou privação que o filho sentirá por não poder contar com ele), pelo que, também por essa vertente, não há necessidade de alegação e prova dos factos concretos que tipificarão o dano.

Mário Cruz



_______________________________

(1) Na primeira instância, havia-se considerado provado que circulava a velocidade não superior a 50 km/h.
A Relação, no entanto, considerou não provado o quesito a que respeitava (quesito 3º) e passou a considerar provado o quesito 61º, cuja resposta é a que já consta do texto.
(2) Na primeira instância, fora considerado provado, na resposta ao quesito 9º, que “O condutor do veículo deu à manobra para entrar em direcção ao estabelecimento do Maxmat quando o motociclo se encontrava a cerca de 10 metros de distância”.
(3) Segundo o brocardo latino “quod non est in autis non est in mundo”.
(4) Vaz Serra, Direito das Obrigações, BMJ nº 101, 138 e ss., estudo inserido nos trabalhos preparatórios do Código Civil.
(5) É essa a tendência jurisprudencial que tem sido, maioritariamente, seguida, pelo menos, desde a publicação do Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 9-5-1991, in AJ, 19º/92-6.
(6) STJ, de 20-12-1978, BMJ nº 282, 185; e de 16-4-1974, BMJ nº 236, 138.
(7) Vaz Serra, RLJ, Ano 102º, 263.
(8) STJ, de 4-2-1993, CJ (STJ), Ano I, T1, 128.
(9) Oliveira Matos, Código da Estrada Anotado, 1988, 394 e 395.
(10) Dados de 2006, in http://wwwacs.min-saude.pt/pns/pt/nascer-com-saude/esperanca-de-vida-a-nascenca/
(11)Oliveira Matos, Código da Estrada Anotado, 1988, 394; STJ, de 16-3-1999, CJ, Ano VII (STJ), T1, 167.
(12) Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e actualizada, 1987, 500.
(13) Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, Lex (fascículos), 1995-96, 54.
(14) Leite de Campo, Lições de Direitos da Personalidade, Separata do Boletim Faculdade Direito da Universidade Coimbra, LXVI, 2ª edição, 1992, 43.
(15) Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 193, 194 e 201; Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, I, 1966, 29 e 30.
(16) Relatório - Parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, sobre Reprodução Relatório - Parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, sobre Reprodução Medicamente Assistida (3/CNE/93), Documentação, I, (1991-1993), Presidência do Conselho de Ministros, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1998, 75 a 103; Relatório - Parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, sobre Experimentação no Embrião Humano (15/CNEC/95), Documentação, II, (1995-1996), Presidência do Conselho de Ministros, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1996.
(17) Álvaro Dias, Procriação Medicamente Assistida, Dignidade e Vida, in Ab uno ad omnes – 75 anos da Coimbra Editora, 1998, 138 e 139.
(18) Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, de 2-6-2004, Colectânea de Jurisprudência, www.gddc.pt
(19) Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, I, 2007, 449.
(20) TC, Acórdão nº 25/84, de 19-3-84; e TC, Acórdão nº 85/85, de 29-5-85, www.dgsi.pt
(21) Pereira Coelho, Direito as Sucessões, 4ª edição, 1970, 154; Luís Carvalho Fernandes, Teoria Geral, 1983, 1º, 205.
(22) Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 193, 194 e 201; Castro Mendes, Teoria Geral, 1967, 1º, 60; H. Ewald Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, 1992, 299 e 300.
(23) Antunes Varela, A Condição Jurídica do Embrião Humano Perante o Direito Civil, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Soares Martinez, I, 633.
(24) Doações a nascituros [artigo 952º, do CC]; Perfilhação do nascituro [artigos 1854º e 1855º, do CC]; Poder paternal em relação ao nascituro [artigo 1878º, nº 1, do CC]; Capacidade sucessória legal, testamentária e contratual [artigo 2033º, nºs 1 e 2, do CC]; e Administração da herança ou legado a favor do nascituro [artigo 2240º, do CC].
(25) Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 203.
(26)Stela Barbas, Direito ao Património Genético, Almedina, 1998, 77.
(27) Oliveira Ascensão, Teoria Geral de Direito Civil, I, 1997, 43 a 46.
(28) Oliveira Ascensão, Teoria Geral de Direito Civil, I, 1997, 46.
(29) TC, Acórdão nº 189/00, de 30-10-2000, DR, IIª série, nº 251, 17628.
(30) TC, Acórdão nº 157/88, de 26-6-1988, DR, IIª série.